Resumo: O presente artigo realiza uma abordagem histórica apontando o surgimento da Justiça Militar da União, analisado o surgimento da Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996, e o contesto histórico da época, abordando a criação da lei e sua abrangência, trazendo conceitos e esclarecimentos, sendo posteriormente analisada a constitucionalidade da mesma no âmbito das Justiças Militares, ou seja, da Justiça Militar da União e das Justiças Militares Estaduais, além de uma breve análise da Emenda Constitucional 45, a preocupação com a influência da Lei 9.299/96 e seus efeitos na competência da Justiça Militar da União e, por sua vez, no seu possível enfraquecimento, o que afetaria diretamente as Forças Armadas como um todo; tudo isso visando uma visão mais ampla do tema abordado.
Palavras-chave: Justiça Militar da União no Brasil. Inconstitucionalidade. Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996.
Sumário: Introdução. 1. Breve histórico da Justiça Militar da União no Brasil. 2. A criação da Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996. 3. A inconstitucionalidade da Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996. 4. A influência direta da Lei 9.299/96 na Justiça Militar da União. Conclusão.
Introdução
O presente artigo se insere no universo das pesquisas relativas à área do Direito Constitucional, abordando, dentro do assunto Direito Militar, o tema “A Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996, e sua conseqüência para a Justiça Militar da União”, visando apresentar a investigação que será realizada no âmbito da Justiça Militar da União, que demonstre a influência da referida Lei na Justiça Militar da União, suas conseqüências para os integrantes das Forças Armadas brasileiras e buscando argumentos que comprovem a inconstitucionalidade da referida lei.
O estudo deste tema é de grande relevância, tendo em vista que a Justiça Militar da União, que é um ramo especializado do direito, vem, aos poucos, perdendo força pela diminuição constante de suas atribuições e competências, sob alegações de as Forças Armadas serem instituições arcaicas e obsoletas, além de repousarem sob legislações antigas e desatualizadas que não acompanham a evolução dos outros ramos do direito.
A criação da Lei 9.299/96 reflete bem esta perda de força, com a retirada da competência da Justiça Militar para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis.
Existem algumas controvérsias a respeito dessa lei, controvérsias estas como, por exemplo: se a referida lei seria ou não inconstitucional e se deveria ser aplicada a todos os militares ou somente aos militares estaduais. Fica claro, também, o total desconhecimento do legislador a respeito das Justiças Militares e suas competências.
Sendo assim, a comprovação da influência devastadora dessa lei e sua inconstitucionalidade, pelo menos no âmbito da Justiça Militar da União, traria de volta atribuições antes retiradas, o que diminuiria o enfraquecimento deste ramo do Direito.
Os principais objetivos deste trabalho são identificar, através de doutrinas e jurisprudências, se houve um enfraquecimento significativo da Justiça militar da União frete à criação da Lei 9.299/96, se existe alguma inconstitucionalidade na referida lei e a qual das Justiças Militares a mesma se refere.
Por fim, para o estudo deste tema serão adotadas a pesquisa bibliográfica, sendo utilizado como fontes: livros, revistas, periódicos e, principalmente, artigos da internet.
1. Breve histórico da Justiça Militar da União no Brasil
Antes de entrarmos no tema propriamente dito, é de suma importância, como em todo trabalho de pesquisa, o estudo dos fatos históricos que antecederam ao tema. Assim sendo, cabe aqui uma rápida explanação a respeito do surgimento da Justiça Militar da União e o seu contexto histórico.
A Justiça Militar da União surgiu juntamente com a chegada de Dom João e da Família Real ao Brasil, em 1808. Na época, o então Príncipe-Regente de Portugal, havia deixado sua terra natal com o intuito de fugir das garras de Napoleão Bonaparte, que já dominava grande parte da Europa e ameaçava invadir o território português.
Com a chegada da Família Real portuguesa, vieram também de Portugal, todas as instituições necessárias a criação de uma infra-estrutura que permitisse ao Príncipe governar, inclusive seu país de origem, de terras brasileiras. Desta forma, junto com a comitiva real, vieram aqueles que formariam a primeira corte de justiça nacional. Assim, em 1° de abril de 1808, por Alvará com força de lei, assinado pelo Príncipe-Regente D. João foi criado o então chamado Conselho Supremo Militar de Justiça, formado, à época, por 15 julgadores.
Após a Independência do Brasil em 1822 e durante todo o Império e início da fase republicana, o referido Conselho foi presidido pelos Chefes de Estado, ou seja, no Império pelo Príncipe-Regente D. João IV e pelos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II e, na república, pelos presidentes Marechal Deodoro da Fonseca e Marechal Floriano Peixoto.
Em 18 de julho de 1893, por força do Decreto Legislativo, a Presidência do recém criado Supremo Tribunal Militar, denominação que substituiu o imperial Conselho Supremo Militar e de Justiça, passou a ser exercida por membros da própria Corte, eleitos por seus pares, cabendo ressaltar que neste momento houve somente uma mudança no nome do Tribunal, permanecendo todos os componentes do antigo Conselho Supremo Militar e de Justiça, despojados de seus títulos nobiliárquicos e denominados, genericamente, de Ministros[1].
Por fim, através da Constituição de 1946, substituiu-se a antiga denominação do Tribunal pela atual, qual seja, Superior Tribunal Militar – STM.
Após este breve apanhado histórico, chega-se à conclusão de que a Justiça Militar da União é, portanto, a mais antiga do País, existindo há quase 200 anos.
2. A criação da Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996.
A lei 9.299, de 7 de agosto de 1996, foi sancionada pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, e teve como escopo a retirada da competência da Justiça Militar para julgar os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, mesmo quando aqueles estivessem em atividade de serviço.
Todavia, em momento algum, o legislador, ao elaborar a referida lei, fez menção a qual das Justiças Militares a mesma abrangeria, se Justiça Militar da União ou as Justiças Militares Estaduais, ou a que categoria de militares ela atingiria, se os das Forças Armadas ou os das Forças Auxiliares, englobando-se, neste último caso, os policiais e bombeiros militares dos estados.
A Lei 9.299, na sua redação, somente se limita a alterar o Código de Processo Penal Militar (CPPM) e o Código Penal Militar (CPM) tornando incerto o seu alvo, já que tanto a Justiça Militar da União, quanto a dos estados utilizam tais diplomas legais.
Começa, aqui, o estudo do tema proposto com um simples questionamento: a Lei 9.299 abarca somente as Justiças Militares Estaduais ou engloba, também a Justiça Militar da União?
Existem correntes divergentes a respeito do tema. Existem aqueles que acreditam que a Lei 9.299 engloba todas as justiças militares, ou seja, tanto a da União quanto as Estaduais. Esta corrente é engrossada pelo Supremo Tribunal Federal que no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.494, de 09 de abril de 1997, impetrada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL Brasil), e teve como relator o Ministro Celso de Mello[2].
Em contrapartida, existem correntes que são contra tal decisão do STF. Dentre estas corrente, existe aquela que acredita que a referida lei é totalmente inconstitucional, como no caso do STM, como veremos mais adiante em tópico específico deste trabalho, e existe, também, aquela que entende que o objetivo do legislador à época da criação da Lei 9.299, em agosto de 1996, era que a mesma atingisse, somente, os militares das polícias militares e bombeiros militares estaduais, excluindo da sua abrangência os militares das Forças Armadas. Tudo isso, tendo em vista o contexto que girava em torno da sociedade brasileira à época.
O contexto a que se refere o parágrafo anterior é descrito de forma simples e precisa no trabalho do Exmo. Sr. Juiz-auditor da Justiça Militar, Celso Celidônio, onde o mesmo descreve que, em 1996, a Lei n° 9.299 criara um, data vênia, “monstro jurídico”, baseado no clamor popular criado a partir da insistência da mídia nacional e internacional, face seqüência de fatos envolvendo violência policial contra civis. Fatos estes geradores de vários homicídios, como os casos “Carandiru”, “Eldorado dos Carajás”, “Candelária”, “Vigário Geral” e “Favela Naval”, dentre outros, relatando, ainda, que tal insistência da imprensa criou um clima de impunidade referente às Justiças Militares Estaduais, acusadas de corporativismo[3].
O ilustríssimo magistrado, em seu artigo, também menciona a intenção do legislador de que a referida lei abrangesse somente as Justiças Militares Estaduais, pois alega que a mesma pretendia, tão somente, alterar a competência das Justiças Militares Estaduais, mas acabou, por erro de abrangência, tentando alterar a competência da Justiça Militar da União também. Relata, também, que erro era tão claro que, imediatamente, o Exmo. Sr. Ministro de Estado da Justiça, à época Dr. Nelson Jobim, enviou ao Exmo. Sr. Presidente da República a Exposição de Motivos n° 475/96, geradora da Mensagem ao Congresso Nacional nº 779/96, contendo projeto de lei que corrigia, confessadamente, os erros claríssimos da Lei nº 9.299/96. A simples leitura da exposição de motivos, verdadeiro “mea culpa”, deixava clara a confusão e o real objetivo daquela lei anterior, desvirtuada pelos erros materiais[4].
Observa-se, então, que ocorreu um erro crasso por parte do legislador, que não soube, e na verdade até hoje não sabe, a diferença entre Justiça Militar da União e Justiças Militares Estaduais. Desta feita, cabe em breves palavras diferenciar uma de outra.
A Justiça Militar da União tem a sua organização prevista nos incisos I e II do Art 122 da CRFB/88 que diz o seguinte:
“Art. 122. São órgãos da Justiça Militar:
I – o Superior Tribunal Militar;
II – os Tribunais e Juízes Militares instituídos por lei.”
A lei referenciada no artigo supracitado é a Lei nº 8.457, de 4 de setembro de 1992, que em seu artigo 1º prescreve o seguinte:
“Art. 1º São órgãos da Justiça Militar:
I – o Superior Tribunal Militar;
II – a Auditoria de Correição;
III – os Conselhos de Justiça;
IV- os Juízes-Auditores e os Juízes-Auditores Substitutos.”
Para efeito de administração da Justiça Militar em tempo de paz, o território nacional divide-se em doze Circunscrições Judiciárias Militares, conforme prescreve o Art 2º da Lei nº 8457, abrangendo: a 1ª – Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo; a 2ª – Estado de São Paulo; a 3ª – Estado do Rio Grande do Sul; a 4ª – Estado de Minas Gerais; a 5ª – Estados do Paraná e Santa Catarina; a 6ª – Estados da Bahia e Sergipe; a 7ª – Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas; a 8ª – Estados do Pará, Amapá e Maranhão; a 9ª – Estados do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso; a 10ª – Estados do Ceará e Piauí; a 11ª – Distrito Federal e Estados de Goiás e Tocantins; a 12ª – Estados do Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia.
Cabe ressaltar, que as Circunscrições podem, ainda, se subdividir em Auditorias da Justiça Militar, correspondendo a cada uma delas um Juiz-Auditor e um Juiz-Auditor Substituto.
A Justiça Militar da União tem como competência, segundo o Art 124 da CRFB/88, processar e julgar os crimes militares definidos em lei, ou seja, os crimes previstos no Código Penal Militar (CPM). Cabe, neste momento, ressaltar que os crimes previstos no CPM também poderão ser cometidos por civis:
“Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum. (Parágrafo incluído pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996).”
Assim, resta claro que a Justiça Militar tem competência para julgar civis que, por ventura, tenham cometido algum dos crimes previstos na parte especial do CPM e nas condições descritas no inciso I e alíneas do inciso III do artigo 9º do mesmo diploma legal.
Já as Justiças Militares Estaduais tem a sua organização de acordo com o que prescreve a Constituição de cada estado ou determinada lei estadual específica para este fim, todavia, norteada pelo parágrafo 3º do Art 125 da CRFB/88, que diz o seguinte:
“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004);
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).”
As Justiças Militares Estaduais têm como competência, segundo o parágrafo 4º do Art 125 da CRFB/88, processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
Então, fica claro que as Justiças Militares Estaduais, diferentemente da Justiça Militar da União, jamais poderão processar e julgar civis, pois, a partir do momento em que a Constituição previu em seu artigo que a referida justiça somente poderia processar e julgar militares dos estados, retirou a competência da mesma para o julgarem civis.
Assim, com esta breve pincelada, pode-se verificar que não é difícil de se fazer a distinção entre as Justiças Militares da União e as Justiças Militares Estaduais.
3. A inconstitucionalidade da Lei 9.299 de 7 de agosto de 1996
Com o surgimento da controvérsia relativa às Justiças Militares vista no item anterior, surgiram, também, outros fatores que não poderiam deixar de ser analisados, pois se revestem de grande importância. Um desses fatores é com relação à inconstitucionalidade da Lei 9.299, que será abordado a partir de agora.
A inconstitucionalidade da Lei 9.299, apesar de já ser uma decisão pacificada pelo nosso Supremo Tribunal Federal (STF), que a considera constitucional, ainda gera muita controvérsia, tendo sido, alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.494, de 09 de abril de 1997, como já visto anteriormente.
Abaixo estão relacionados alguns julgados extraídos do primoroso estudo elaborado pelo promotor da Justiça Militar, Jorge Cesar de Assis[5]:
“Superior Tribunal de Justiça
Ementa. Processo penal. Conflito de competência. Justiça Militar Estadual e Justiça Estadual Comum. Ação penal em curso. Lei 9.299/96. Aplicação imediata. Os crimes previstos no art. 9º, do Código penal militar, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, são da competência da Justiça Comum. (Lei 9.299/96). E, por força do princípio da aplicação imediata da lei processual (CPP, art. 2º), afasta-se a competência da Justiça Militar para julgar a ação penal em curso.
Conflito conhecido para declarar competente o MM. Juiz de Direito da Vara do Júri. Unânime. (STJ – 3ª Seção – Conflito de competência 17.665-SP – Rel. Min. José Arnaldo, j. 27.11.96, DJU, 17.02.97).”
“Tribunal de Justiça do Paraná:
Ementa. Conflito de competência. Crimes de homicídio qualificado e facilitação de fuga de presos…o crime de homicídio qualificado, praticado por policial militar contra civil, em 26.06.93, cujo processo tramita perante a Justiça Castrense, passa à competência da Justiça Comum, sem que haja ofensa ao princípio do Juiz natural…(Ac. 3.036 – Confl. Comp. 54.932-8, de Palmas – grupo de Câmaras Criminais, Rel. Des. Trotta Telles, j. 18.06.97).”
“Ementa. Conflito de Competência. Homicídio doloso na forma tentada, cometido por policial militar do Estado, contra civil. Competência da Justiça Comum. Aplicação da Lei 9.299/96. Incoerência de ofensa a dispositivos constitucionais. Os crimes previstos no art. 9º do CPM, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, com o advento da Lei 9.299/96, passaram à competência da Justiça Comum. Não é inconstitucional o art. 1º, § 1º, da Lei 9.299/96. (Confl. Comp. 67.824-6, de Realeza. Grupo de Câmaras Criminais. Rel Des. Trotta Telles, j. 16.09.98).”
Ainda de acordo com Jorge César de Assis[6] em sua obra, Comentários ao Código Penal Militar, o mesmo acredita que “Data venia de entendimentos opostos e de todo respeitado, consideramos as mudanças procedidas completamente incoerentes, além de ser a própria Lei 9.299/96, inconstitucional […]”.
O Superior Tribunal Militar, em algumas de suas decisões, afastam a constitucionalidade da Lei 9.299/96, como na ementa a seguir:
“Ementa. Recurso Criminal. Competência da Justiça Militar da União.Inconstitucionalidade, declarada incidenter tantum, da Lei nº 9.299 de 1996, no que se refere ao parágrafo único do art. 9º do CPM e ao caput do art. 82 e seu parágrafo 2º do CPPM. Desde a sanção da Lei nº 9.299 de 1996, com o Projeto de Lei encaminhado ao Congresso Nacional para modificá-la, verifica-se que seu texto resultou equivocado. Enquanto não ocorre a alteração do texto legal pela via legislativa, o remédio é a declaração de sua inconstitucionalidade Incidenter tantum, conforme dispõe o Art. 97 da CF. Antecedentes da Corte (RCr nº 6348-5/PE). Provido o recurso do RMPM e declarada a competência da Justiça Militar da União para atuar no feito. Decisão unânime.(Acórdão nº 1997.01.006449-0 UF: RJ Decisão: 17/03/1998. Rel. Min. Aldo da Silva Fagundes).”
O oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo (servindo na Corregedoria) e professor de Direito Penal Militar da Academia de Polícia Militar do Barro Branco e de Direito Penal Militar Aplicado no Curso de Especialização de Oficiais em Polícia Judiciária Militar na Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Cícero Robson Coimbra Neves[7], afirma que para grande parte da Doutrina, para não dizer sua totalidade, ao assim dispor, a lei 9.299/96 apresentou inconstitucionalidade patente, pois sua edição apenas suprimiu a competência da Justiça Militar, expressa no art. 124 (Justiça Militar Federal) e no § 4º do art. 125 (Justiças Militares Estaduais), da Constituição Federal.
A Constituição Federal no seu artigo 124 diz que “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.”, ou seja, à Justiça Militar da União compete processar e julgar os crimes previstos no Código Penal Militar, que, apesar de ser um Decreto-lei, é reconhecido e considerado como sendo equivalente a uma lei complementar.
Assim, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o militar quando do cometimento de qualquer um dos crimes elencados na parte especial do CPM, inclusive o crime previsto no artigo 205, qual seja, “matar alguém”, era processado e julgado pela Justiça Militar e seus juízes militares, sendo observado sempre o princípio do juiz natural.
Todavia, com o surgimento da Lei 9.299, em 1996, este princípio deixou, de uma hora para outra, de ser observado, pois, com a inserção do parágrafo único no artigo 9º do CPM, parágrafo este que prescreve o seguinte: “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão de competência da justiça comum” e, ainda, com a inserção do § 2º no artigo 82 do CPPM que prescreve o seguinte: “Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar (IPM) à justiça comum.”, criou-se, como descreve o Exmo. Sr. Juiz-auditor Celso Celidonio, um “monstro jurídico”, pois um crime militar previsto no CPM e cometido por militar, estando em serviço ou atuando em razão da função, contra um civil deverá ser processado e julgado pela justiça comum.
A respeito do assunto Cícero Robson Coimbra Neves[8], diz que no caso da Lei 9.299/96, o que se viu foi a materialização de uma inconstitucionalidade, tendo em vista que a referida lei, lei ordinária, alterou competência de julgamento de crimes militares dolosos contra a vida de civis que, constitucionalmente, era conferida às Justiças Militares, relativizando e ignorando o princípio do juiz natural.
O que se procura entender é como uma Lei Ordinária, no caso da Lei 9.299, uma lei meramente processual que altera dispositivos do CPM e CPPM fazendo com que os mesmos contrariem a previsão constitucional do Art 124, não é vista desta forma pelo STF, parecendo-me o acórdão referente à ADI nº 1.494 uma decisão meramente política.
Em trabalho de sua autoria, Jorge César de Assis[9] afirma que “ a Lei 9.299/96 ofendia princípios estabelecidos na Lei Maior, não podendo o legislador ordinário alterar competência fixada pela Constituição, como acabou fazendo em relação aos crimes dolosos contra a vida praticados por militares.”
Atualmente, todos, desde os mais leigos em direito, sabem que nenhuma lei pode ir de encontro à Magna Carta, sob pena de inconstitucionalidade, parecendo-me o acórdão do STF com relação à ADI nº 1.494 uma decisão meramente política.
O raciocínio para a situação supracitada é bastante simples, bastando uma simples reflexão acerca do princípio da supremacia da constituição e da idéia de uma constituição rígida, como é a Constituição brasileira. Assim, nenhuma norma infraconstitucional, pelos postulados supra, pode afrontar a Lei Maior ou, do contrário, deverá ser considerada inconstitucional.
O professor Alexandre de Moraes[10] argumenta em sua obra que a existência de um escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo. Além disso, nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da sua função legiferante.
Desta forma, não me parece justo, nem muito menos legal e coerente, que um militar durante um ato de serviço, como por exemplo, um soldado no serviço de guarda ao quartel que ao se defender de um invasor cooptado pelos traficantes de uma favela próxima para que tente roubar seu fuzil, fato muito comum no Rio de Janeiro, o mate, ou mesmo durante um serviço realizado nos arredores da Vila Militar/RJ, uma determinada “patrulha”¹ ao ser emboscada por traficantes, troque tiro com os mesmo vindo a matar algum deles, venha a responder o processo e ser julgada perante a Justiça Comum e seus juízes, não sendo observado o princípio do juiz natural.
O princípio do juiz natural esta claramente expresso na Constituição Federal nos incisos XXXVII e LIII do seu artigo 5º, onde diz “que não haverá juízo ou tribunal de exceção e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.”, sendo, neste caso, a justiça competente para processar e julgar um militar, a Justiça Militar.
O principal problema de um militar ser julgado perante um Tribunal do Júri quando do cometimento de um crime doloso contra a vida, como é previsto na letra d), do inciso XXXVIII, do artigo 5° da Constituição é o desconhecimento desse tribunal a respeito das características e peculiaridades da caserna², ou seja, em vez de ser julgado por um Conselho de Justiça da Justiça Militar, formado, no esquema de escabinato, por 4 (quatro) juízes militares mais antigos (de graduação ou posto superior) que o réu e 1 (um) Juiz-auditor, seus juízes naturais, o mesmo será julgado por elementos totalmente leigos e que, em muitas das vezes, nunca serviram ou passaram na porta de um quartel.
O sistema de escabinato utilizado na Justiça Militar é o sistema mais justo para se julgar um militar, pois os juízes militares, que apesar de serem leigos em direito, trazem ao tribunal a vivência e conhecimento do dia-a-dia dos quartéis e o Juiz-auditor traz o conhecimento jurídico necessário para o desenrolar dos trâmites do processo.
Um problema ainda maior surge quando se fala em Garantia da Lei e da Ordem (GLO), função constitucional das Forças Armadas, elencada no artigo 142 “in fini” da Constituição que diz o seguinte: “…destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”. Então, quando um militar estiver, amparado pela Constituição, em atividades de GLO e, por ventura, vier a cometer um crime doloso contra a vida, deverá ser processado e julgado, como um indivíduo comum, pelo Tribunal do Júri?
Assim, com o intuito de regular a atividade de GLO prevista na Constituição Federal e frente o clamor da população para a utilização das Forças Armadas nas ruas, principalmente do Rio de Janeiro, no combate à onda de violência que assola as cidades, foi criada a Lei Complementar n° 117, de 02 de setembro de 2004, que alterou a Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999, que regulava o emprego das Forças Armadas em operações de GLO.
O § 7º do artigo 15 da Lei Complementar 97 diz o seguinte: “O emprego e o preparo das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem são considerados atividade militar para fins de aplicação do art. 9o, inciso II, alínea c, do Decreto-Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar. (Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2004)”
Após a publicação da referida lei, houve uma certa “confusão jurídica”, pois, por ser uma lei mais recente que a Lei 9.299 e elencar no § 7º do seu artigo 15 que o emprego das Forças Armadas em atividades de GLO são considerados atividades militares para fins de aplicação da alínea c), do inciso II, do artigo 9º do CPM, tal dispositivo legal teria revogado, tacitamente, o previsto na Lei 9.299/96, pelo menos com relação aos delitos ocorridos durante as operações de GLO.
A dúvida, porém, ainda persistia com relação aos homicídios dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis em situações diferentes das previstas para as operações de GLO.
Neste momento de indefinições, todos esquecem que a profissão militar é diferente de qualquer outra profissão, que é regida por dois pilares básicos, a hierarquia e disciplina, e são homens que estão cumprindo o seu dever, muitas das vezes, não por que querem, mas sim porque devem, ou seja, não têm escolha.
O Ex-Ministro do STM, Flávio Flores da Cunha Bierrenbach[11], relata em seu artigo alguns fatos interessantes a respeito da profissão militar e que cabem serem ressaltados. O mesmo descreve que a existência de Forças Armadas como instituições, nacionais e permanentes, se configura como um fato de enorme relevância para o país, em toda sua dimensão histórica, política e jurídica, pois, segundo a Constituição da República, que é a Carta Magna, a Lei Suprema, essas são as únicas instituições que têm por finalidade a defesa da Pátria, além da garantia dos poderes constitucionais.
O Ex-Ministro descreve, ainda, que esses fatos, que são a existência e a singularidade constitucional das Forças Armadas, correspondem valores, que lhes dão conteúdo, que lhes conferem significado, sendo esses valores a hierarquia e a disciplina, os pilares básicos dessas instituições, além de serem os seus bens juridicamente tutelados, sem os quais as Forças Armadas se desorganizam e, desorganizadas, perdem a capacidade de cumprir a sua missão constitucional de defesa da Pátria.
Diante desses fatos e desses valores, ambos especialíssimos, pois são absolutamente peculiares e singulares, já que nenhuma outra instituição se confunde com as Forças Armadas, surge um conjunto de regras, também especialíssimas, pois não são iguais a quaisquer outras regras, sendo estas as normas jurídicas aplicáveis em relação a essas instituições especiais, que são as Forças Armadas. Assim sendo, têm-se, para fatos especiais, valores especiais e normas também especiais.
Posteriormente, com a publicação da Emenda Constitucional 45, em 2004, mais uma vez ficou clara a intenção do legislador em revogar a Lei 9.299/96, pois a referida emenda alterou diretamente o § 4º do artigo 125 da CRFB/88 referente às Justiças Militares Estaduais, dando-lhe a seguinte redação.
“§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”
Observa-se, aqui, que o legislador especificou claramente no seu texto, que deverá ser “ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil”, sendo que nos artigos referentes à Justiça Militar da União (artigos 122 a 124) a Emenda Constitucional 45 foi omissa, mantendo-os inalterados.
Cabe ressaltar que, quanto à hierarquia da emenda constitucional, enquanto proposta, a mesma é considerada um ato infraconstitucional sem qualquer normatividade, só ingressando no ordenamento jurídico após sua aprovação, passando então a ser preceito constitucional, de mesma hierarquia de normas constitucionais originárias, ou seja, possui o mesmo valor normativo que a Constituição Federal.
Em relação à possibilidade de se alterar a competência da Justiça Militar, o instrumento hábil para tal alteração é a Emenda à Constituição, estabelecida no artigo 59, I e delineado no artigo 60 e parágrafos, não cabendo essa alteração a uma lei ordinária, devendo-se obedecer aos pressupostos estabelecidos pela Carta Magna. Por fim, a EC 45, de 08.12.2004, culminou por alterar a competência da Justiça Militar Estadual, e somente em relação a ela, ressalvando que os crimes militares dolosos contra a vida, praticados por militares estaduais e do Distrito Federal, quando a vítima for civil, serão da competência do Tribunal do Júri.
Desta forma, se o legislador realmente quisesse que os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas fossem processados e julgados pelo tribunal do Júri, o teria feito por ocasião da já citada Emenda Constitucional 45, o que não fez. Assim, fica nítida a tentativa do legislador corrigir um erro cometido no passado com a criação da desastrada Lei 9.299/96, revogando-a tacitamente e fazendo com que retorne para a Justiça Militar da União a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, previstos no CPM.
Então, com relação às Justiças Militares Estaduais, pode-se raciocinar com duas situações distintas, uma vigente antes da Emenda Constitucional 45, a Lei 9.299/96, onde a referida lei era considerada pela grande maioria da Doutrina como sendo inconstitucional, pois suprimiu a competência das Justiças Militares Estaduais contida no § 4º do artigo 125 da CRFB/88 e uma situação vigente após a Emenda Constitucional 45, que alterou o já citado § 4º do artigo 125 da CRFB/88, tornando, então a Lei 9.299/96 constitucional somente em relação às Justiças Militares Estaduais, sendo o novo texto claro em consagrar a competência do Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes militares dolosos contra a vida de civis cometidos por militares estaduais.
De acordo com Cícero Robson Coimbra Neves[12], no que concerne ao deslocamento de competência para a Justiça Comum para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, perpetrados contra civis, a lei 9.299/96 apresentou flagrante inconstitucionalidade. O raciocínio para essa conclusão é bastante simples, bastando uma simples reflexão acerca do princípio da supremacia da constituição e da idéia de uma constituição rígida . É dizer, em outros termos, que nenhuma norma infraconstitucional pode afrontar a Lei Maior ou, do contrário, deverá ser rechaçada por inconstitucionalidade.
Com isso, no âmbito estadual, existe o entendimento de que os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares permanecem com a classificação de militares, todavia com competência de julgamento pelo Tribunal do Júri, o que não parece ser o mais coerente.
Cabe ressaltar que apesar das claras evidências da inconstitucionalidade da Lei 9.299/96 e as tentativas de revogação tácita dadas pela publicação das Leis Complementares 97 e 117 e pela Emenda Constitucional 45, o Exmo. Dr. Juiz-Auditor Celso Celidonio, em seu artigo “O Parágrafo Único do Artigo 9° do Código Penal Militar – Aplicação e Efeitos”, descreve que foi encaminhado pelo Supremo Tribunal Militar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 2.014/03, que resolve, de uma vez por todas, a questão, alterando o parágrafo único do artigo 9º do CPM e o § 2º do artigo 82 do CPPM.
O professor Célio Lobão[13], aproveitando os postulados, dentre outros, de Romeu de Campos Barros, entende que "classificar o direito penal especial em função do órgão judiciário encarregado de aplicar o direito objetivo, demonstra evidente confusão entre Direito Penal especial e Direito Processual Penal especial" e comenta, ainda, que "o Direito Penal Militar é especial em razão do bem jurídico tutelado, isto é, as instituições militares, no aspecto particular da disciplina, da hierarquia, do serviço e do dever militar, acrescido da condição de militar dos sujeitos do delito”.
Por fim, existiria uma solução, que apesar de não ser a mais coerente, poderia ser dada ao problema: concluir que os crimes dolosos contra a vida praticados por militares, contra civis, deixaram de ser crimes militares com o advento da Lei 9.299/96. Por essa razão, muito bem observa o professor Célio Lobão[14], que acertaria o legislador ordinário se, simplesmente, utilizasse a seguinte redação na lei 9.299/96: "os crimes dolosos contra a vida, praticados contra civis, não são crimes militares". O texto idealizado por Célio Lobão, de redação simples e direta solucionaria, sem a necessidade de nenhuma elucubração jurídica, a questão.
4. A influência direta da Lei 9.299/96 na Justiça Militar da União
A Constituição Federal trata, em seu artigo 142, das Forças Armadas, instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Assim, fica claro ao observarmos este artigo, a grandiosidade da importância das Forças Armadas para o país, pois possuem como finalidade precípua a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, além do que, nos dias de hoje, realizam um interessante trabalho social, ensinando aos jovens que por elas passam, durante o cumprirem o serviço militar obrigatório, virtudes como camaradagem, liderança, companheirismo, dentre outras, além de desenvolverem o moral e o civismo em cada um.
As Forças Armadas têm como princípios básicos, conhecidos na caserna como pilares básicos a hierarquia e disciplina, sem os quais as mesmas se desorganizariam e, consequentemente, não conseguiriam cumprir sua missão constitucional.
A definição de hierarquia e disciplina podem ser encontradas em diversas legislações relativas aos militares, dentre estas legislações a que melhor expressa tal definição é o Decreto 4.346, de 26 de agosto de 2002 (Regulamento Disciplinar do Exército), que nos artigos 7º e 8º da Seção III, Dos Princípios Gerais da Hierarquia e da Disciplina, do Capítulo I, prescreve o seguinte:
“Art. 7o A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, por postos e graduações.
Parágrafo único. A ordenação dos postos e graduações se faz conforme preceitua o Estatuto dos Militares.
Art. 8o A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar.
§ 1o São manifestações essenciais de disciplina:
I – a correção de atitudes;
II – a obediência pronta às ordens dos superiores hierárquicos;
III – a dedicação integral ao serviço; e
IV – a colaboração espontânea para a disciplina coletiva e a eficiência das Forças Armadas.”
O Sr. Ex-Ministro do STM, Flávio Flores da Cunha Bierrenbach[15], cita em seu artigo um fato curioso e que caracteriza o que vem a ser realmente um integrante das Forças Armadas. O iminente jurista afirma que: “O fato é que os integrantes das instituições militares são os únicos seres humanos de quem a lei exige o sacrifício da própria vida A nenhum funcionário público, na verdade a nenhum cidadão, exceto aos militares, lei alguma impõe deveres tão especiais, deveres que podem implicar a obrigação de morrer e até de matar.”
Diante da peculiaridade de tais instituições, houve por bem se criar um ramo especializado do Poder Judiciário para lidar com as mesmas, qual seja, a Justiça Militar da União.
Paulo Frederico Cunha Campos[16], sobre este aspecto, registra em seu artigo o posicionamento exarado pelo Excelentíssimo Juiz da Justiça Militar do Estado de São Paulo, Dr. Ronaldo João Roth, Capitão da Reserva da PMESP, que relata que o exame das peculiaridades da caserna e dos misteres enfrentados pelos militares, encontram mais facilidade de compreensão quando realizados pelo próprio militar que, uma vez guindado ao exercício da judicatura militar, deverá – aplicando a lei penal militar, sob os cânones processuais penais militares, decidir no caso concreto, situação essa que, de modo contrário, poderá trazer ao juiz togado certa dificuldade de apreciação fática, levando-o a aplicar a lei sem a mesma acuidade própria dos militares.
De acordo com Patrícia da Silva Gadelha[17] “a Justiça Militar da União é uma justiça especializada na aplicação da lei a uma categoria especial, a dos militares federais – Marinha, Exército e Aeronáutica, bem como aos civis que pratiquem crimes militares, os quais estão definidos no Código Penal Militar”.
Todavia, de alguns anos para cá, o Direito Militar, que como já foi visto é um ramo especializado do direito, vem aos poucos perdendo força, tendo em vista principalmente, pela diminuição cada vez maior das suas atribuições e competências, sob a alegação de servir a instituições arcaicas e obsoletas, além de repousarem sob legislações antigas e desatualizadas, que não acompanham a evolução dos outros ramos do direito.
De certo modo, o Direito Militar realmente repousa sobre legislações antigas e desatualizadas, contudo as Forças Armadas, razão de ser do Direito Militar estão longe de serem instituições arcaicas e obsoletas, pois desde os mais remotos tempos existiram exércitos e estes sempre irão existir, pois desde o início dos tempos o homem, segundo Thomas Hobbes, “os homens, no estado de natureza, eram inimigos uns dos outros e viviam em guerra permanente”, ou seja, o homem foi e sempre será um animal belicista. Desta forma, as pessoas passam, mas as instituições Forças Armadas sempre permanecerão.
Com o passar dos anos, vão surgindo novas leis que retiram, aos poucos, da Justiça Militar algumas de suas atribuições, sendo uma delas a Lei 9.299, que retirou da justiça militar a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, mesmo quando aqueles estiverem em atividade de serviço, contribuindo para um enfraquecimento cada vez maior da Justiça Militar e um possível desaparecimento da mesma num futuro próximo.
Leis desse tipo, com certeza, são criadas por desconhecimento do legislador, que, na sua grande maioria, não conhece a vida militar, a carreira militar ou a própria Justiça Militar e, por conseguinte, não sabem da eficácia e celeridade da mesma. Todavia, podem surgir, também, de certos revanchismos políticos, contudo, nos dias de hoje, muito remotamente.
A Doutora Lúcia Maria Lobo[18], Defensora Pública da União em seu artigo descreve que “várias pesquisas demonstram, estatisticamente, a eficácia da prestação jurisdicional realizada pela Justiça Militar da União, além de sua exemplaridade em face de pronta resposta estatal contra condutas ilícitas que lesem as instituições militares”, estritamente necessária à Justiça Militar, pois as decisões não admitem demora.
Segundo, ainda, a ilustre Doutora “as instituições armadas são erigidas sob os rígidos pilares da hierarquia e da disciplina. Portanto, qualquer lesão institucional não pode cair na vala larga dos julgamentos comuns, que, por vezes, deságua em insuportáveis anos de demora na conclusão de um processo criminal”, ou seja, há a necessidade se ter uma pronta resposta, para que se evite a baderna e se mantenha, principalmente, a disciplina e, então, consequentemente a hierarquia.
Dessa forma, na Justiça castrense, existe o caráter disciplinador da pena, ou seja, o militar das Forças Armadas que comete um crime militar, rapidamente será punido exemplarmente. Esta certeza de um julgamento rápido e esta presteza na aplicação da pena inibem a ação ilícita dentro dos quartéis, diferentemente do criminoso sujeito a justiça comum, que quase sempre alcançará a reincidência por sentir-se impune, pelos motivos já conhecidos por todos.
Apesar de tudo que já foi dito, ainda existem aqueles que acreditam que exista no direito militar um corporativismo exacerbado, o que não é verdade. Este tipo de pensamento faz com que o Direito Militar, o ramo mais antigo direito deste país, caia cada vez mais em desuso e seja cada vez mais desprestigiado, concorrendo, então, para o seu desaparecimento em um futuro próximo.
A possível inexistência de um direito militar teria efeitos catastróficos não só para as Forças Armadas como também para as Forças Auxiliares que dele se utilizam, pois minariam a hierarquia e a disciplina, colaborando sobremaneira para o desmoronamento das mesmas, além do desamparo aos seus integrantes, categoria especial de servidores que dedicam e sempre dedicarão, inclusive sob juramento, a sua vida ao Brasil.
A respeito da figura do militar, Flávio Flores da Cunha Bierrenbach[19] diz que "para os integrantes das Forças Armadas, que são obrigados, em determinados momentos, a morrer e a matar, há um outro valor que se sobrepõe à própria vida. Este valor é a Pátria. Essa é uma circunstância absolutamente única, especial, singular, incontornável”.
De acordo, ainda, com o ilustríssimo Ministro, “a existência da Justiça Militar, portanto, é uma decorrência da existência das Forças Armadas. As peculiaridades do direito militar são decorrentes das peculiaridades das Forças Armadas”, assim sendo, a única Corte de Justiça do país que tem competência para aplicar a pena de morte, conforme a Constituição, é o Superior Tribunal Militar, em tempo de guerra.
Apesar de tudo, também existem aqueles que ainda acreditam na força da Justiça Militar e, graças a estas vozes solitárias, este braço castrense do Direito já perdura a quase 200 anos. Assim, para encerrar, faço minhas as palavras do ilustre professor Moreira Alves[20], Ministro do Supremo Tribunal Federal: “sempre haverá uma Justiça Militar, pois o juiz singular, por mais competente que seja, não pode conhecer das idiossincrasias da carreira das armas, não estando pois, em condições de ponderar a influência de determinados ilícitos na hierarquia e disciplina das Forças Armadas”. Daí, a importância da Justiça Militar. É eficiente e eficaz!
Conclusão
Após o estudo da Lei 9.299, de 07 de agosto de 1996, desde sua criação até os dias atuais, resta claro que a mesma pode ser considerada uma “aberração legislativa” que, conseqüentemente, acabou criando, como o Exmo Sr Dr Juiz-Auditor Celso Celidônio se refere, um “monstro jurídico”, no que se refere à sua criação e aplicação.
Em um primeiro momento a referida lei foi criada totalmente inconstitucional, pois afrontava claramente o artigo 124 da Constituição Federal, que prevê a competência da Justiça Militar da União, e o § 4º do Art 125 do mesmo diploma legal, que previa a competência das Justiças Militares Estaduais.
Posteriormente, com a decisão, a meu ver, meramente política e descabida do Supremo Tribunal Federal, em resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.494, de 09 de abril de 1997, impetrada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADOPOL Brasil), na qual considerou a lei constitucional, criou-se uma verdadeira confusão jurídica que se estende até os dias de hoje, com julgados contrários do Superior Tribunal Militar e grande parte da Doutrina com entendimento diferente ao do STF.
Desta forma, foram sendo criadas legislações que tentavam, de certa forma, minorar o estrago criado pela Lei 9.299/96 e que, em certas situações, chegaram a revogar tacitamente a referida lei, como por exemplo a Lei Complementar n° 117, de 02 de setembro de 2004, que alterou a Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999, que regulava o emprego das Forças Armadas em operações de GLO e a própria Emenda Constitucional n° 45.
Após a EC n° 45, que modificou o § 4º do artigo 125 da CRFB/88, referente a competência das Justiças Militares Estaduais, tornou a Lei 9.299/96 constitucional em relação aos militares estaduais (policiais militares e bombeiros militares), cumprindo objetivo da sua criação, como abordado no trabalho. Todavia, ao não mencionar o artigo 124 da Constituição, a mesma continuou a ser inconstitucional em relação aos militares das Forças Armadas, não devendo ser aplicada aos mesmos.
Assim, terminado o trabalho chega-se a conclusão que a Lei 9.299/96, é constitucional quando aplicada à militares dos estados por força da Emenda Constitucional nº 45, todavia, quanto à aplicação da referida lei aos militares das Forças Armadas, a mesma foi revogada tacitamente pelo mesmo diploma legal, pois, em momento algum, a supracitada Emenda Constitucional modificou o Art 124 da Constituição, artigo este que trata da competência da Justiça Militar da União, devendo os militares federais continuarem a ser julgados, mesmo quando no cometimento de crimes dolosos contra a vida de civis, pelo Superior Tribunal Militar e seus juízes naturais.
Informações Sobre o Autor
Carlos Alberto Martins de Barros
Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e em Direito pela Universidade Estácio de Sá, possui especialização em Direito Militar pela Universidade Gama Filho (UGF) e em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É mestre em Operações Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO). Atualmente é oficial de carreira do Exército Brasileiro