Resumo: O trabalho trata da questão da extinção da punibilidade em função do pagamento e do parcelamento da dívida nos crimes contra a ordem tributária com ênfase na análise histórico-legislativa da matéria destacando a instabilidade legislativa como traço característico do tema. Nesse contexto aborda-se o instituto a partir da lei que o introduziu em nosso ordenamento jurídico- inspirada do direito alemão – até as mais recentes alterações normativas e respectivos entendimentos jurisprudenciais. Desse modo busca-se analisar a evolução da matéria de sorte a identificar o atual posicionamento legal que admite tanto a extinção da punibilidade pelo pagamento como a suspensão em razão do parcelamento e sua conformidade com o sistema jurídico por meio do uso subsidiário do Direito Penal na esfera tributária.
Sumário: 1 Origem do instituto na legislação alemã: influências ao direito brasileiro; 2Fundamento do instituto no Direito alemão; 3 Natureza jurídica do instituto; 4 Histórico Legislativo; 5 Conclusão
1 Origem do instituto na legislação alemã: influências ao direito brasileiro
Segundo Rodrigo Sanchez Rios, é no ordenamento jurídico alemão que encontramos os pilares do instituto da extinção da punibilidade pelo pagamento do crédito tributário[1].
A Legislação Tributária germânica (Abgabenordung – AO), vigente desde 1977, inaugura um instituto chamado “autodenúncia liberadora de pena” [2], com o condão de livrar o agente da pena nos casos de prévia defraudação tributária previstos em seu § 370 [3].
Observa-se, a partir daí, que a retificação voluntária por parte do agente, ocorrida antes de iniciado o procedimento administrativo ou penal, juntamente com o cumprimento de seus deveres fiscais, relativos ao ressarcimento integral dos prejuízos causados ao Fisco, constituem pressupostos de incidência da causa liberadora de pena. Em outras palavras, a voluntariedade e a reparação do dano são elementos essenciais à constituição do instituto [4].
Desse modo, “ficam excluídas do benefício condutas de retificação e reparação posteriores ao início do procedimento administrativo ou penal” [5], pois caracterizariam comportamento “involuntário” do autor do delito [6] .
2 Fundamento do instituto no Direito alemão
A adoção do instituto da extinção da punibilidade pode ser sustentada por dois argumentos principais: o jurídico-penal e o político-fiscal. O primeiro, baseado na estrutura lógica estabelecida pelo Direito Penal, insere-se nos “critérios gerais justificadores de uma causa pessoal de extinção ou liberação de pena” [7], amparado nos moldes da desistência e da reparação do dano. O segundo traduz a manifestação da soberania estatal e do constante intervencionismo público no domínio econômico, visando a concretização das políticas sócio-governamentais, com fins meramente arrecadatórios. [8]
A doutrina alemã reconhece no critério político-fiscal os motivos ensejadores da excepcionalidade da autodenúncia. [9] No entanto, o enfoque jurídico-penal ocupa cada vez mais espaço quando se trata da fundamentação do instituto, isso porque os pressupostos básicos do § 371 da Abgabenordung estão inseridos em critérios gerais de enfoque eminentemente penal [10]. Exemplo disso é a exclusão do benefício em relação às mencionadas condutas “involuntárias” [11], sob pena de entrar em desacordo com a finalidade do sistema penal, na medida em que se distanciam dos institutos da desistência voluntária e da reparação [12].
Segundo Andréas Eisele, o que a experiência comparativa irá demonstrar é exatamente a necessidade da repressão do crime fiscal, como forma de sustentação de um sistema tributário justo, inspirado nos princípios básicos da igualdade e da capacidade contributiva. “Assim, a repressão penal da evasão tributária confere materialmente o sentido de igualdade à tributação, ainda que de forma reflexa” [13]. Os critérios utilizados quando da aplicação da causa extintiva devem dar continuidade ao fundamento lógico que embasa os próprios crimes tributários.
Como afirma Rodrigo Sanchez Rios,
“Certamente, não se ignora a existência de interesses econômico-fiscais do Estado no suporte legal da autodenúncia, mas estes não podem prevalecer sobre os critérios penais – assentados na teoria dos fins da pena-, muito menos assumir um papel hegemônico, senão dar-se-á um indevido uso ás causas de liberação da pena”[14].
Embora seja admissível a utilização do critério fiscal no tratamento dos crimes tributários, esse deve estar sempre escoltado pelos pilares da legislação penal, sob pena de estarmos optando pelo “uso político do direito criminal como mero instrumento de política interna, no qual a norma ultima ratio do ordenamento jurídico passa a prima ratio da solução de questões sociais” [15].
Feitas as devidas adaptações terminológicas, a “autodenúncia liberadora de pena” é usada, didaticamente, como figura semelhante a nossa “extinção da punibilidade” [16]. Entretanto, ainda que o modelo alemão tenha servido de inspiração direta à legislação brasileira, surgem grandes contradições estruturais quando se pretende traçar uma comparação entre eles [17].
O problema é que, enquanto o instituto alemão funda-se em critérios compensadores do desvalor da ação e do desvalor do resultado, como vimos, no Brasil, as leis que regulam o assunto estão longe de acompanhar seu viés originário, pois “inexiste aqui uma fundamentação jurídica amparada na teoria da desistência e da reparação do dano” [18]. Ademais, embora perceba-se tendência nesse sentido, não é encontrada, entre nós, qualquer deliberação normativa que trate substancialmente da voluntariedade pós-delitiva do agente, como se demonstrará mais a frente, no decorrer da análise legislativa deste trabalho [19].
3 Natureza jurídica do instituto
Rodrigo Sánchez Rios, considerando a deficiência da literatura penal nacional, encontra na doutrina estrangeira, principalmente na espanhola, subsídios capazes de elucidar a natureza jurídica do instituto ora em exame [20].
Conforme interpretação doutrinária do Código Penal espanhol (art. 305.4), a regularização tributária tendente a excluir a punibilidade nos delitos fiscais representa uma modalidade típica de escusa absolutória. Nesse aspecto, observa-se a exigência de cumprimento dos mesmos requisitos demandados pela legislação alemã – comportamento voluntário pós-delitivo, acompanhado da devida reparação -, e o conseqüente direcionamento de seus efeitos para o campo da punibilidade. Há, contudo, nesse mesmo país, forte inclinação [21] à substituição do instituto da escusa absolutória pelas chamadas causas de liberação de pena, pois os requisitos prescritos na legislação manifestam a necessidade de um comportamento do agente posterior ao ato delituoso, com o condão de exonerar, de forma retroativa, uma punibilidade anteriormente presente [22].
As divergências relacionadas à natureza jurídica do instituto trazem algumas implicações na sua esfera prática.
Primeiramente, há que se perquirir sobre o alcance do benefício a terceiros participantes da conduta lesiva, sejam co-autores ou partícipes.
Defendendo o caráter pessoal do instituto, tanto os que lhe atribuem natureza de escusa absolutória quanto os que o consideram causa de “liberação de pena”, compartilham do mesmo entendimento: a não abrangência de seus efeitos em relação a terceiros partícipes. Logo, “(…) a liberação da pena tem lugar para o sujeito que retorna à legalidade, subsistindo a punibilidade para os restantes interventores” [23].
Por outro lado, aqueles que acreditam na extensão do benefício aos agentes auxiliares, fazem-no por aplicação dos critérios materiais de autoria, atribuindo natureza objetiva à causa extintiva. Sob esse último juízo, seria exigida também por parte do co-autor ou do partícipe a conduta compensatória capaz de demonstrar, voluntariamente, o desvalor da ação e do resultado [24].
Em face de qualquer enfoque dogmático penal, seja escusa absolutória, causa de liberação ou de exclusão da pena, o instituto terá sempre caráter pessoal. Por esse motivo, a extensão do benefício a terceiros sempre necessitará de outras exigências, com base em razões de política criminal, superadoras das teses restritivas que impedem a comunicabilidade dos efeitos da autoria em favor dos terceiros partícipe [25].
Assim, ainda que não reste respaldo jurídico-penal que justifique a permissão, não se deve tomar tal fato como motivo para sua inaplicação absoluta, sob pena de estar acobertando enorme injustiça, como por exemplo, possibilitar a impunidade do autor ao mesmo tempo em que se nega a do mero colaborador [26].
Outra temática relevante relaciona-se à extensão da causa extintiva às condutas delituosas acessórias, como é o caso das falsidades instrumentais. Nesse ponto, encontra-se pouca discordância doutrinária, sendo predominante o entendimento de que o benefício alcança tais condutas, já que desempenham papel precedente na consumação do delito fiscal. A doutrina penal pátria, particularmente, funda-se na abrangência nos crimes subsidiários ou, ainda, em razão do princípio da consunção [27].
Saliente-se, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal enfrentou recente discussão quanto ao alcance da extinção da punibilidade às condutas acessórias. Em sede do HC 83.115, após algumas divergências entre os votos dos Ministros Gilmar Mendes, relator do acórdão, e Carlos Veloso, que dividiram opiniões na Segunda Turma, entendeu a Suprema Corte que o pagamento do tributo, elide o crime de falso, pois, no caso, o documento falso foi apresentado em investigação que poderia resultar, em tese, mais de um delito: o delito contra a ordem tributária e quaisquer outros decorrentes de enriquecimento ilícito [28].
Analisados os principais aspectos relativos ao fundamento do instituto da extinção da punibilidade pelo pagamento, podemos passar à apresentação e análise da evolução legislativa pátria.
4 Histórico Legislativo
Diante da instabilidade política no tratamento da extinção da punibilidade, que acarretou uma multiplicidade de regulamentações do instituto, comentou Emerson de Lima Pinto:
“Se a questão é tormentosa para o legislador, que legifera com extrema rapidez, como é facilmente perceptível a partir das diversas leis que estabelecem as condutas típicas que são enquadradas no bojo de uma concepção de “crimes contra a ordem econômica”, imaginemos de outra forma como estas questões são tratadas no seio do Poder Judiciário, que tem por atribuição a aplicação concreta das mudanças de humores dos parlamentares e da “criatividade de iniciativas econômicas” que os economistas do Governo federal experimentam em nossa “sólida e independente economia””[29].
Pioneira no tratamento da matéria, a Lei n° 47.29/65 inaugurou o instituto em nosso ordenamento, equiparando, para fins de extinção da punibilidade, o comportamento pós-delitivo do agente à denúncia espontânea do art. 138 do CTN.
Cerca de dois anos depois já se verificava modificação no assunto por meio do Decreto-lei n° 157/67, que veio a flexibilizar o prazo para o pagamento, anteriormente obstado pelo início da ação fiscal, estendendo-o até a comunicação do julgamento administrativo de primeira instância. Nota-se, aqui, que a espontaneidade na manifestação do agente já começava a perder importância.
Com a edição da Lei n° 8.137/90, é afastado completamente o caráter espontâneo do ato ao se alongar o prazo da promoção do pagamento para até o recebimento da denúncia. Começa a sobressair aqui a desconfiguração do fundamento da subsidiariedade do Direito Penal, que assume cada vez mais um caráter funcionalista.
Até então, imperando a retroatividade de cada norma superveniente, havia uma tendência crescente em se beneficiar o agente delitivo. A polêmica, no entanto, surgiu com a edição da Lei n° 8.383/91, cujo artigo 98 revogava os benefícios trazidos pelas legislações anteriores (Lei n° 8.137/91 e Lei n° 4729/65), tendo suprimido o instituto do nosso ordenamento jurídico.
No entanto, não demorou muito para a legislação ser novamente modificada. A Lei n° 9.249/95 restabeleceu a extinção da punibilidade com a promoção do pagamento do tributo ou contribuição social antes do recebimento da denúncia, incluindo os acessórios. Essa lei provocou inúmeras discussões doutrinárias e jurisprudenciais, posto que, além da reinserção do instituto no ordenamento nacional, e da expectativa de sua permanência, levantou outras questões a ele peculiares, tais como a extensão do benefício a terceiros partícipes, a consideração de condutas auxiliares e conveniência na escolha do momento de incidência da causa extintiva.
Ponto interessante refere-se às tendências doutrinárias na defesa ou não do instituto.
Aqueles que sustentam oportuna a manutenção legal do benefício costumam classificar o Direito Penal Tributário como ramo do Direito Tributário, e não do Direito Penal, o que torna perfeitamente possível o uso funcional deste último. No entanto, considerando a própria essência do Direito Penal, filiamo-nos à corrente contrária, pois a própria criação desse ramo do direito funda-se na defesa dos bens jurídicos de maior relevância contra as lesões mais graves, tornando inadmissível seu caráter meramente utilitário. Além disso, no âmbito do Direito Penal-Tributário, as normas penais não podem ser usadas como instrumento de proteção do patrimônio público, pois o bem jurídico principal é a destinação social da receita tributária, não alcançada com a mera reparação econômica posterior.
Saliente-se, ademais, que com a criação dos “novos crimes previdenciários” pela Lei n° 9.983/2000 foi inserida nova disciplina da extinção da punibilidade pelo pagamento em nossa ordem jurídica. Assim, ao prever como limite temporal para o pagamento do tributo o início da ação fiscal no caso do crime de apropriação indébita previdenciária, o § 2° do art. 168-A do Código Penal ressuscitou, quanto a esse delito específico, a importância da espontaneidade no comportamento do agente.
A distinção feita entre o art. 168-A e o art. 337-A, ambos do Código Penal, em face da ausência de exigência do pagamento por parte do agente que praticou o delito descrito no art. 337-A do CP, bastando que declare, confesse e preste informações, pelo que não sofre qualquer influência do instituto da extinção da punibilidade pelo pagamento.
A opção legislativa em exigir o pagamento apenas de um dos mencionados delitos para fins de extinção da punibilidade parece-nos inconstitucional, pois estaria violando o princípio da igualdade, na medida em que estabelece tratamento diverso para tipos penais protetores do mesmo bem jurídico, a arrecadação tributária. Além disso, nem mesmo a denúncia espontânea do CTN restringe-se a apenas algumas espécies de tributos, pelo que deveria prevalecer apenas a redação do § 1° do art. 337-A do CP.
Desde a edição da Lei n° 9.249/95 já surgia dúvida quanto à possibilidade de se considerar ou não o parcelamento da dívida como forma de promoção do pagamento. O Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento que admite a equivalência entre pagamento e parcelamento, sob o fundamento de não ter feito a lei qualquer distinção se a promoção do pagamento seria integral ou parcelada. Nessa visão, considerando a extinção da dívida por meio da concessão do parcelamento, que criaria nova obrigação, operar-se-ia transação entre as partes credora e devedora, alterando a natureza da relação jurídica e retirando dela o conteúdo criminal para lhe atribuir caráter de ilícito civil.
Data maxima venia, ousamos discordar de tal entendimento. Como já estabeleceu o Código Tributário Nacional, o parcelamento constitui, na verdade, modalidade de moratória, funcionando como causa de suspensão da exigibilidade do crédito e não entre as formas de extinção da obrigação tributária. Destarte, a expressão “promover o pagamento” do art. 34 da Lei 9.249/95 equipara-o a lei penal em branco, a ser preenchida pelo conceito de pagamento disposto no CTN, fato que justifica o parcelamento da dívida como causa de suspensão da punibilidade, e não de extinção da pretensão punitiva do Estado.
Disciplinando efetivamente a questão do parcelamento da dívida, foi editada a Lei 9.964/2000, que instituiu o Programa de Recuperação Fiscal – o REFIS.
Algumas questões surgem com a Lei do Refis.
Embora a redação da Lei 9.964/2000 limite o benefício às pessoas jurídicas, já entendeu a doutrina pela sua extensão às pessoas físicas, desde que satisfeito o pressuposto temporal, que exige que a concessão do parcelamento se opere antes do recebimento da denúncia, sendo admitida, nessas condições, a retroatividade da norma. Ademais, segundo entendimento majoritário dos nossos tribunais, a suspensão da pretensão punitiva pelo ingresso no Refis tem por conseqüência direta a suspensão do prazo prescricional.
Ainda que nos termos da Lei do Refis a quitação da última parcela da dívida acarrete a extinção da punibilidade, note-se que o art. 15 da Lei 9.964/2000 não revogou o art. 34 da Lei 9.249/95, tendo em vista serem distintos seus objetivos centrais, referindo-se o da primeira lei à suspensão da punibilidade e o da segunda à sua extinção.
Por fim, a Lei 10.684/2003 trouxe as últimas alterações significativas à matéria, com nítida intenção de expandir o benefício da suspensão da pretensão punitiva, permitindo ao agente, a qualquer tempo, a adesão ao parcelamento para fins de suspensão da pretensão punitiva, independente do regime adotado.
5 Conclusão
Embora tenha se inspirado na legislação alemã quando da adoção do instituto da extinção da punibilidade pela promoção do pagamento da dívida tributária, o legislador brasileiro sempre esteve distante dos pressupostos mínimos para sua configuração no âmbito jurídico-penal, visto não ter fundado a concessão do benefício nos critérios da voluntariedade e da reparação do dano, que necessariamente deveriam estar presentes na conduta pós-delitiva do agente.
Mostra-se patente, dessa forma, a predominância do intervencionismo estatal com fins meramente arrecadatórios, cuja opção traduz-se num mal uso do direito penal, transformado em instrumento de política interna, de caráter puramente simbólico. O resultado é uma desmoralização do caráter coativo das normas penais e o conseqüente enfraquecimento dos bens jurídicos tutelados por elas.
A inexperiência legislativa é refletida na instabilidade do tratamento normativo do tema e na manifesta inserção de normas penais em diplomas eminentemente tributários.
De toda sorte, sob a égide dessa derradeira norma, Lei 10.684/2003, hoje o entendimento predominante é de que é permitida ao agente, a qualquer tempo, a adesão ao parcelamento para fins de suspensão da pretensão punitiva, independente do regime adotado. E, estendendo a conclusão, havendo pagamento sob essas mesmas condições, estará extinta a punibilidade, mesmo que não efetivado no momento final do parcelamento.
Informações Sobre o Autor
Paula de Mello Tavares Silva Cunha Parreira