Resumo: O presente artigo pretende em linhas gerais e de forma não exaustiva elucidar apontamentos acerca da teoria hermenêutica proposta por Friedrich Schleiermacher, analisando quais são as contribuições propostas por esse importante pensador para a formação de uma hermenêutica universal. Destaca-se aqui a importância das elucidações feitas pelo teólogo polonês, em uma síntese de seu projeto hermenêutico, para tanto utilizamos diversos autores e estudiosos do assunto, haja vista que, impressionantemente o próprio Schleiermacher jamais publicou um livro sequer.
Palavras Chave: Hermenêutica – Linguagem – Schleiermacher – Romantismo.
Abstract: This paper aims to broadly and is not limited to elucidate notes about the hermeneutic theory proposed by Friedrich Schleiermacher, analyzing what are the contributions offered by this leading thinker for the formation of a universal hermeneutics. Here we highlight the importance of the clarifications made by the Polish theologian, in a summary of your project hermeneutic, therefore use various authors and scholars of the subject, given that impressively Schleiermacher himself never published a book even.
Keywords: Hermeneutics – Language – Schleiermacher – Romanticism.
Sumário: 1. Introdução. 2. Hermenêutica e Dialética em Schleiermacher. 3. Dialética e linguagem 4. A compreensão metódica 5. O método divinatório e o método comparativo 6. Conclusão
1. Introdução
Schleiermacher em sua reflexão hermenêutica busca explicar e justificar um procedimento para interpretação e tradução de textos antigos clássicos. Anteriormente, a hermenêutica encontrada por Schleiermacher se encontrava em um agregado de regras determinadas para objetos particulares, derivando-se mais da prática do que de princípios.
Os estudos de hermenêutica desenvolvidos por Schleiermacher estão inseridos tanto na tradição exegética da teologia protestante, como no renascimento dos estudos de filologia clássica, no final do século XVIII. A investigação hermenêutica proposta por Schleiermacher busca fundamentar o procedimento a partir de um conceito geral de compreensão.
A partir do Renascimento fixaram-se três tipos básicos de técnica de interpretação:
– hermenêutica teológica;
– filosófico-filológica (profana);
– jurídica (júris)
Insatisfeito com este procedimentos que continham basicamente regras e métodos interpretativos, Schleiermacher buscava antes e sobretudo, “as razões” das regras e do procedimento, portanto, da arte da compreensão geral. (SCHLEIERMACHER, 1999, p.15)
Logo, se percebeu que o problema da interpretação não se solucionaria simplesmente com a leitura do texto pelo texto, mas pela “restauração histórica do contexto devida a que pertencem os documentos.” (GADAMER, 1990, p. 181)
Trata-se de uma necessidade filosófica de uma hermenêutica que passa a indagar o que significa em geral interpretar e compreender e como é que isto ocorre, deixando para trás a mera preocupação em interpretar apenas este ou aquele texto.
Neste aspecto, encontramos o antigo ideal exegético de reconstituir o sentido original de um texto, afirma Paul Ricoeur, que “esse ideal aparece orientado por uma exigência filosófica de extração kantiana”.[1]
W.Dilthey coloca a hermenêutica de Schleiermacher como fundamento geral das ciências humanas ou ciências do espírito, contra a pretensão hegemônica da metodologia positivista das ciências naturais experimentais. (SCHLEIERMACHER, 1999, p.7)
Destarte, enquanto as ciências explicativas buscam determinar as condições causais de um fenômeno através da observação e da quantificação, as ciências compreensivas visam a apreensão das significações intencionais das atividades históricos concretas do homem.
Se as ciências possuem métodos para compreender seus objetos naturais, os textos, que são produtos da razão, precisam de uma hermenêutica, “de uma ciência da compreensão adequada a obras.” (PALMER, 1986, p.19), que considere seus elementos históricos e humanísticos.
O autor polonês expõe que o processo de compreensão hermenêutica se dá pela inserção daquele que compreende no horizonte da historia e da linguagem, as quais são aquilo mesmo que deve ser compreendido (SCHLEIERMACHER, 1999, p.8), assim resta estabelecida a inseparabilidade de sujeito e objeto, o condicionamento de toda expressão do homem a um determinado horizonte lingüístico, a circularidade entre o todo e o particular, ou a mútua dependência constitutiva entre a parte e a totalidade , que impossibilita a compreensão por mera indução, e finalmente a referencia a uma pré-compreensão, que estabelece a prioridade da pergunta sobre a resposta e problematiza a noção do dado empírico puro.
Tais questões, já aparecem em Schleiermacher como determinantes do conceito de compreensão, que servem de referência principalmente para o desenvolvimento da problemática das ciências humanas e da consciência histórica. Posteriormente, no que tange à sua influência na hermenêutica contemporânea, Schleiermacher influenciou autores como Martin Heidegger, H.G. Gadamer, Paul Ricoeur e Emilio Betti. (SCHLEIERMACHER, 1999, p.9)
2. Hermenêutica e Dialética em Schleiermacher
A unificação do “realismo com o idealismo” significava para Schleiermacher pensar junto o universal e o particular, o ideal e o histórico. A dialética seria, portanto, a responsável pela exposição do saber, na sua forma ideal, pressuposta por todo saber concreto, expondo sempre um processo de formação de um saber provisório, sem uma pretensão a um saber absoluto. Schleiermacher trabalha sobre a pressuposição de uma incontornável relatividade do pensamento, que terá como conseqüência a relatividade do saber. Neste sentido, ele argumenta a inseparabilidade de pensamento e linguagem e a impossibilidade de uma linguagem universal, haja vista que a própria linguagem é fonte da relatividade.
Portanto, em Schleiermacher não é possível uma identidade absoluta do saber, caso isso fosse possível seria necessário uma linguagem universal absoluta, o que ele determina como impossível de existir, a medida que a linguagem é algo histórico.
A novidade da hermenêutica proposta em Schleiermacher foi que, deixou-se de lado a preocupação com “regras de compreensão”, o principal problema cerne de sua teoria foi a natureza do próprio compreender. Assim, a hermenêutica deixou de ser um conhecimento instrumental do interprete para justificar teoricamente essa atividade da compreensão, tal mudança de perspectivas alterou o sentido da hermenêutica, inovando-a.
Schleiermacher, determina que a linguagem possui em si mesma uma repartição prévia ou um modo de intuir o que é dito, isto quer dizer que a interpretação não se refere somente às expressões lingüísticas, vai além, pois a linguagem alcança o real, interpretando-o. Hermenêutica e dialética possuem uma dependência mútua,
“[…] a dialética, entendida como lógica filosófica, constitui tão somente um aspecto da atividade especulativa (spekulative Tätigkeit), a qual também é a base da atividade poética. Filosofia e poesia constituíram, desse modo, os dois direcionamentos da livre produtividade na linguagem”. (SCHLEIERMACHER, 1999, p.13)
3. Dialética e linguagem
O pensamento de Schleiermacher pode ser exposto como uma reflexão sobre as relações entre o universal e o particular. O universal jamais se oferece em si, sempre irá se mostrar sob uma forma particular. O particular, por sua vez, simultaneamente não se deixa subsumir inteiramente pelo universal, pois contém em si algo que vai além da sua particularidade e assim, manifesta a presença do universal.
Portanto, a dialética enquanto “ciência da unidade do saber”, não consegue se ver livre da temporalidade da linguagem em que se expressa, pois é dependente das possibilidades abertas por essa linguagem. A importância da hermenêutica se dá neste momento, enquanto complementação, visando a apreensão do pensamento contido em um discurso particular, e que por sua vez, dependerá da dialética, uma vez que ela (dialética) visa a exposição do pensamento em um discurso.
Temos que em Schleiermacher, “todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão.” (GADAMER, 1990, p.188), visto que o mal-entendido se dá por si mesmo, podendo ocorrer inclusive na conversa imediata, enquanto a compreensão (a interpretação correta) é algo a ser almejado.
Outrossim, a hermenêutica mostra os limites da dialética, e esta mostra a possibilidade da hermenêutica. Assim, é imprescindível a existência da hermenêutica para a apreensão do pensamento, o pensamento se dá através de uma linguagem histórica, o universal sempre é pensado dentro das possibilidades de uma linguagem dada.
Como Hans Georg Gadamer mesmo destacou:
“O rigor no uso dos conceitos requer um conhecimento de sua história para não sucumbir ao capricho da definição ou à ilusão de poder estabelecer uma linguagem filosófica vinculante. O conhecimento da história dos conceitos converte-se assim em um dever crítico.” (GADAMER, 2002, p. 563).
Em Schleiermacher a hermenêutica adquire um caráter filosófico-teórica, não sendo mais o objeto aquilo que é determinante na hermenêutica, sendo que ela será determinada pelas condições, ou melhor, pelo “como” de sua efetivação.
“Visto que a arte de falar e compreender (correspondente) estão contrapostas uma à outra, e falar é, porém, apenas o lado exterior do pensamento, assim a hermenêutica está conectada com a arte de pensar e, portanto, é filosófica […]” (SCHLEIERMACHER, 1999, p.15)
Portanto, a hermenêutica é vista além do domínio técnico científico, sendo na verdade deslocada por Schleiermacher para o campo filosófico, uma vez que, a arte de compreender está inteiramente conectada a arte de falar e com a arte de pensar.
4. A compreensão metódica
A compreensão para Schleiermacher é tida como uma reconstrução histórica e divinatória dos fatores objetivos e subjetivos de um discurso falado ou escrito. A operação hermenêutica visa uma superação da diferença ou da distância entre leitor e autor.
O Autor descreve e faz distinção de dois tipos de interpretação, sendo uma delas a prática natural da arte da compreensão, em que se baseava a hermenêutica iluminista e a arte da compreensão, enquanto esforço consciente e metódico.
Portanto, a tarefa da hermenêutica é reconhecer que há essa unidade e tentar compreender corretamente a ideia do texto. Porém, isso só poderia ser feito realizando uma análise da linguagem e, simultaneamente, captando o pensamento do autor mediante um retorno até o momento de produção, ou melhor, do surgimento do texto, de sua gênese. Ele se utilizou, assim, de dois “métodos” de interpretação de texto, a saber, um gramatical (comparativo) e outro psicológico (divinatório). É justamente neste último “que se encontra sua contribuição mais genuína.” (GADAMER, 1990, p. 190).
Na visão naturalista, pressupõe-se que a compreensão se produz por si mesma, logo, o esforço consistirá em “evitar o mal-entendido”. Já na metódica, a hermenêutica geral deverá refletir “que o mal-entendido se produz por si e que a cada ponto a compreensão deve ser desejada e buscada”. A diferença entre uma e outra consiste que na prática metódica há um controle das compreensões imediatas, ou seja, das pré-compreensões.
O filósofo expõe que “tudo o que necessita de uma determinação mais precisa em um dado discurso apenas pode ser determinado a partir do domínio lingüístico do autor e de seu público original”, frisa ainda que tal regra primordial alcança sentido no momento em que se concebe a linguagem como algo histórico, de tal modo que ela (linguagem) jamais estará disponível em sua totalidade para um individuo qualquer.(SCHLEIERMACHER, 1999, p.17)
Daí o distanciamento histórico entre o texto e o leitor, que denota a priori o caráter indeterminado do texto, uma vez que, nada permite esperar uma identidade sintático-semântica.
A próxima regra determina que “o sentido de uma palavra em uma determinada passagem deve ser determinado a partir do contexto onde ela ocorre”, pressupondo que “cada parte do discurso, material ou formal, é indeterminada em si”, isto demonstra que a determinação do sentido de uma parte depende de sua correlação com as outras partes concomitantes. O que nos leva a conclusão que “o sentido não está nos elementos isolados, mas apenas em sua concatenação”, não sendo, portanto, a simples soma dos significados das partes. (SCHLEIERMACHER, 1999, p.17)
Logo, a parte quando isolada possui apenas um significado indeterminado e múltiplo, para que essa parte (isolada) alcance um sentido unívoco, necessita estar no interior do todo, ou seja, correlacionada com as outras partes coordenadas, tal fato demonstra o caráter circular da hermenêutica de Schleiermacher, na qual a busca do sentido circunda movimentos entre a parte e o todo, o todo e a parte.
A hermenêutica em Schleiermacher possui também um momento dado à interpretação psicológica, que busca compreender em síntese “como o autor opera na linguagem”, trata-se da recuperação do momento subjetivo. Contudo, deve se ter cuidado para não conceber a interpretação psicológica como um tipo extralingüístico de apreensão do autor e seu pensamento, haja vista que os “fatos do pensamento” têm que se manifestar como “modificação da linguagem”. (SCHLEIERMACHER, 1999, p.18)
Schleiermacher foi extremamente influenciado pelo Romantismo da existência de um espírito (Geist) – a hermenêutica como um movimento de congenialidade, um gênio que fala a outro gênio–, mas sua pretensão maior era mostrar a necessidade de “experimentar os processos mentais do autor do texto.” (PALMER, 1986, p. 93) na interpretação, para eliminar a sensação de estranheza que nos impede de alcançar uma compreensão correta do mesmo.
Tanto a compreensão objetiva e subjetiva, no aspecto de efetivação da compreensão, são provisórias, justamente por serem produto do entrecruzamento da “totalidade da linguagem” e da “totalidade da vida do autor”, as quais jamais se dão inteira e simultaneamente. (SCHLEIERMACHER, 1999, p.19)
5. O método divinatório e o método comparativo
O primeiro aspecto importante a ser destacado a respeito do método divinatório e o método comparativo é que eles são inseparáveis. Schleiermacher vai utilizar os dois métodos de eliminação do estranho, sendo que no método divinatório busca-se apreender o individual imediatamente, ou seja, no primeiro momento apenas a parte. O método comparativo parte do genérico e procura detectar o particular por contraste. O filósofo alerta que essa adivinhação do que o outro quis dizer num determinado texto ou discurso, “alcança a sua certeza apenas através da comparação sem a qual ele sempre poderá ser fantasioso”, de tal sorte, “ os dois não podem ser separados um do outro”, pois a comparação pressupõe sempre já uma pré-compreensão imediata do que será comparado. (SCHLEIERMACHER, 1999, p.19)
Portanto, em Schleiermacher, temos que a compreensão correta do discurso alheio se realiza através da compreensão da linguagem, que o autor utilizou para expressar o seu pensamento, logo, não existe outra via de acesso ao entendimento do que o outro expôs em seu texto e/ou discurso, se não a linguagem. “O que se pressupõe e o que se encontra em hermenêutica é apenas linguagem.” (SCHLEIERMACHER, 1999, p.19)
A respeito da possibilidade de “compreender um autor melhor do que ele próprio se compreendeu” podemos através dos estudos hermenêuticos em Schleiermacher inferir que a compreensão é um ato de reprodução, “o artista que cria uma obra não é seu intérprete qualificado.” (GADAMER, 1990, p. 195-196), isto é, a contribuição do interprete é justamente esse movimento de reprodução da obra, em um dado momento que não àquele de produção da obra, o que pode ensejar em esclarecimentos que escaparam ao autor no momento de criação.
Partindo desses pressupostos, conforme Gadamer, o que Schleiermacher quis exprimir com a sua fórmula paradoxal foi que “o que se deve compreender não é, obviamente, a auto-interpretação reflexiva, mas a intenção inconsciente do autor.” (GADAMER, 1990, p. 197).
Por tudo isso, segundo ele nos afirmou:
“[…] em todo lugar onde houver qualquer coisa de estranho, na expressão do pensamento pelo discurso, para um ouvinte, há ali um problema que apenas pode se resolver com a ajuda de [sua] teoria […]” (SCHLEIERMACHER, 2006, p.31).
6. Conclusão
Com o advento do romantismo, iniciou-se a contraposição ao iluminismo de Descartes, através do combate que visava ir contra a visão excessivamente racionalista, que demonstrou uma preocupação com a linguagem, passando-se a valorizar a restauração, isto é, uma tendência a repor o antigo porque é antigo, a voltar conscientemente ao que é inconsciente e que culmina no reconhecimento de uma sabedoria superior nos tempos do mito [2]. Com inspiração nessa “inversão de valores”, desenvolve-se a consciência histórica do século XIX.
Nesta esteira de raciocínio, em Schleiermacher nota-se uma retomada do estudo da hermenêutica propriamente dita, o teólogo, filólogo e filósofo, estabeleceu bases para a formação de uma hermenêutica universal.
Em Dilthey, buscou-se a compreensão através da Critica da Razão Histórica, que não significava a busca de um absoluto hegeliano ou kantiano, ou da possibilidade de uma razão histórica universal. Na verdade, Dilthey propõe a existência de uma razão histórica individual onde cada um interiorize em si essa razão histórica. Segundo Ricardo Salgado, a conseqüência disso aplicado à norma jurídica é a conclusão da insuficiência do mero desdobramento da lei para que se chegue ao seu sentido. Mais do que isso, é necessário que se relacione a norma com o ETHOS da sociedade em que está sendo aplicada. Somente assim é possível alcançar o verdadeiro sentido da norma e revelar o direito nela contido.[3]
No entanto, o romantismo se aproximou daquilo que criticou, uma vez que se apresenta como ciência histórica. Se a revalorização do passado parece libertar dos ideais iluministas, segundo Lopes, verifica-se uma “prisão” ao objetivismo e à verdade inquestionável conferida pela crítica histórica, o que é incompatível com os preconceitos de determinada tradição. [4]
Embora, muito importante a teoria proposta por Schleiermacher, temos que sua aplicação ao Direito enquanto “obra de arte”, ou enquanto um movimento de congenialidade é de certo insegura, e pouco razoável para a busca pelo sentido adequado das normas jurídicas frente aos fatos. Já que no tange aos elementos de circularidade da compreensão, vemos que Schleiermacher contribuiu significativamente, o interprete da norma deve averiguar sua pertinência dentro do ordenamento jurídico como um todo, para assim, alcançar seu sentido isolado face ao que se apresenta dentro do arcabouço legal.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Daniel Carreiro Miranda
Advogado, Mestrando em Direito pela UFMG