Nova lei de organização criminosa (Lei n° 12.850/2013), e a oitiva do agente colaborador em juízo

Resumo: Trata do instituto da colaboração premiada e a possibilidade até então inédita de oitiva do colaborador na condição de testemunha

A Lei n° 12.850, de 2 de agosto de 2013, trouxe importantes inovações na disciplina do crime organizado, quer sob o aspecto material, quer, notadamente, sobre os meios de prova a serem utilizados na repressão a essa espécie de criminalidade.

Dois dispositivos, nessa linha de ideia, chamam a atenção, a saber:

“Art. 4°, § 12.  Ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial.

Art. 4°, § 14.  Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade”[1].

De sorte que, no § 12, o legislador prevê a possibilidade do colaborador ser ouvido como testemunha, “ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado”. Como “não denunciado”, se entenda aquele que teve o inquérito policial (ou outro procedimento investigatório) arquivado, por iniciativa do Ministério Público, nos termos do § 4° da lei.

Não compreendemos, no entanto, como e em quais condições o beneficiado pelo perdão judicial pode ser ouvido como testemunha.

O perdão judicial pressupõe a existência de um processo, quando, somente a seu final, o juiz, após verificar que o crime se aperfeiçoou, deixará, porém, de impor pena ao réu[2]. Se é assim, estaria a lei a admitir que o acusado ocupasse duas posições no mesmo processo, de réu e testemunha? Indagamos dessa forma porque a homologação de acordo de colaboração não retira a condição de réu do colaborador. Em outras palavras: ainda que homologado acordo de colaboração, o processo seguira seus trâmites regulares, para somente ao final, já na sentença, ser concretizado o perdão, a redução ou a substituição da pena.

Parece-nos, assim, que seja mesmo possível a oitiva, na condição de testemunha, daquele que não foi denunciado pelo Ministério Público. Ao contrário, cremos um tanto mais complexa a segunda possibilidade, a admitir a coexistência, em uma só pessoa, da condição de testemunha e de réu beneficiado pela colaboração.

O texto sugere, salvo engano, a iniciativa do legislador em importar conceitos que são próprios do direito italiano, embora sem o devido regramento constante desse ordenamento e que, mesmo lá, suscita uma série de críticas.

Assim, naquele direito há a figura do acusado “conexo teologicamente” (art. 12, “c” do Código de Processo Penal italiano) ou do acusado “coligado” (art. 371, inc. 2, “b” do mesmo código).

Tais acusados possuem a faculdade de permanecerem em silêncio (art. 210, inc. 4° do Código de Processo Penal italiano), bem como podem suscitar o direito de não se incriminarem (art. 197-bis, inc. 4 do mesmo “codex”), no que se refere a si próprios, mas se, com seus depoimentos, responsabilizarem a terceiros, assumirão a qualidade de testemunhas (art. 64, inc. 3, “c”, do código).

Na lição de Paulo Tonini, “o acusado conexo (ou coligado) tem a faculdade de permanecer silente e, se presta declarações, não tem o dever de dizer a verdade. Todavia, se presta declarações sobre fatos que concernem à responsabilidade alheia, adquire a qualidade de testemunha assistida limitadamente aos fatos declarados, e deve responder segundo a verdade”[3].

Essa fórmula, porém, parece inaplicável em nosso ordenamento, em virtude da ausência de um regramento que melhor explique sua adoção na prática. Não concebemos, destarte, que determinado réu em um processo ocupe, de início, a posição de testemunha, a depor sobre fatos alheios à sua conduta, sujeito, inclusive, à prática do crime de falso testemunho para, logo em seguida, mudando de cadeira, passe à condição de réu, a ser interrogado com todos os direitos que lhe são assegurados (inclusive pela Constituição), especificamente para esse ato.  

E mesmo no âmbito do direito italiano esse procedimento não escapou à crítica de Paolo Tonini, para quem é “necessário questionar comum uma disciplina tão complexa e difícil de ser analisada abstratamente possa encontrar uma aplicação satisfatória nas salas de audiência. É notório, na verdade, que as distinções conceituais mais claras são muitas vezes distorcidas em sua aplicação prática”[4]).

Antes o autor italiano advertiu que “a complexidade da regulamentação introduzida pela Lei 63, de 2011, deriva do fato que o legislador não foi capaz de optar entre o modelo francês e o modelo inglês. Assim, o intérprete encontra dificuldade em extrair das normas princípios gerais”[5].

Ora, se no direito italiano, em que os conceitos de “testemunha assistida”[6], “acusado conexo ou coligado”, etc., são formulados pela lei, já há controvérsia, que dizer em nosso âmbito interno, quando o legislador, ao importar essas noções, o fez sem a devida sistematização?

A forma que encontramos para explicar o disposto no § 12 se deu ao utilizarmos uma interpretação mais restrita, no sentido de que a possibilidade de ser ouvido como testemunha se referiria somente ao colaborador que não foi denunciado pelo Ministério Público (§ 4°), contra quem, portanto, não se deflagrou o processo. Já aquele que foi beneficiado pelo perdão judicial e tem contra si um processo em curso, jamais ocuparia, pelas razões já expostas, essa posição.

Essa impressão parece se reforçar com a leitura do § 14, que impõe ao colaborador sua renúncia do direito ao silêncio e ainda o submete ao direito de dizer a verdade, posto que compromissado nesse sentido.

Tais cominações, em nosso entender, podem ser impostas somente àquele que não é réu no processo, porque não denunciado pelo Ministério Público, conforme previsto no § 4° acima. Ao réu que responde ao processo jamais poderia a lei infraconstitucional restringir-lhe o direito ao silencio, obrigando-o, ainda, a dizer a verdade sob pena de configuração do crime de falso testemunho ou mesmo daquele previsto no art. 19 da mesma lei. 

Trata-se, insistimos, de direito assegurado na Constituição (art. 5°, inc. LXIII), e no Código de Processo Penal (art. 186 do Código de Processo Penal), decorrente da cláusula do “nemo tenetur se detegere”, que, dentre seus desdobramentos, se encontra aquele que garante ao réu o direito de não produzir prova contra si mesmo, daí podendo se valer do silêncio. Na lição de Antonio Magalhães Gomes Filho, o direito à não-auto-incriminação constitui uma barreira intransponível ao direito à prova de acusação; sua denegação, sob qualquer disfarce, representará um indesejável retorno às formas mais abomináveis da repressão, comprometendo o caráter ético-político do processo e a própria correção no exercício da função jurisdicional”, em posicionamento inúmeras vezes reiterado pelo Supremo Tribunal Federal[7].

Em suma e na tentativa de harmonizar ambos os dispositivos (§§ 12 e 14) da lei em análise com a Constituição e mesmo com a legislação infraconstitucional e a tradição de nossa “praxis” processual penal, concluímos que a possibilidade de oitiva, na condição de testemunha, se restrinja àquele agente que não fora denunciado pelo Ministério Público (§ 4°), não se aplicando, outrossim, ao réu colaborador.

 

Notas:
 
[1] Art. 214 do CPP: “Antes de iniciado o depoimento, as partes poderão contraditar a testemunha ou argüir circunstâncias ou defeitos, que a tornem suspeita de parcialidade, ou indigna de fé. O juiz fará consignar a contradita ou argüição e a resposta da testemunha, mas só excluirá a testemunha ou não Ihe deferirá compromisso nos casos previstos nos arts. 207 e 208”.

[2] Reforce-se essa ideia com a lição de Magalhães Noronha, para quem o perdão “tem como pressuposto, obviamente, o reconhecimento de um fato delituoso e sua autoria: por primeiro o juiz reconhece o crime e a autoria, condenando o acusado, para, depois, aplicando o perdão, não impor qualquer sanção” (Direito Penal, vol. 1, Saraiva, 25 ed., 1987, pág. 361).

[3] A prova no processo penal italiano. Trad. Alexandra Martins e Daniela Mróz. São Paulo:RT, 1ª. edição, 2002, p. 161

[4] ob. cit., p. 163

[5] ob. cit., p. 154

[6] Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: RT, 1997, p. 114

[7] RT 576/449; RT 748/563; RTJ 127/461; RTJ 141/512


Informações Sobre o Autor

Ronaldo Batista Pinto

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela UNESP Universidade Estadual Paulista. Professor de Direito Processual Penal das Faculdades COC de Ribeirão Preto – SP.


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