Resumo: Recentemente foi sancionada pela Presidente da República a lei nº 12.441/2011, que altera o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) para permitir a constituição de empresa individual de responsabilidade limitada, passando a vigorar em nosso ordenamento jurídico a partir de 8 de janeiro de 2012. Em breve questionamento à lei, abriu a oportunidade de empresários constituírem empresa individualmente, sem que seja necessário juntar-se a um sócio. No entanto, sabendo das intenções maliciosas que circundam a abertura de pessoa jurídica pautada no princípio da autonomia patrimonial, o presente trabalho surge com o questionamento se pode ser aplicada ou não a desconsideração da personalidade jurídica neste tipo de sociedade, a fim de coibir práticas abusivas e desvio de finalidade. Entende-se, assim, que é possível aplicar a desconsideração da personalidade jurídica na EIRELI, como medida excepcional, atingindo o patrimônio pessoal do empresário, desconsiderando a chamada “limitação da responsabilidade” para assim: indenizar terceiros, coibir o desvio da finalidade e práticas abusivas pela pessoa jurídica.
Palavras-Chave: Direito Empresarial; Pessoa Jurídica; Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI); Desconsideração da Personalidade Jurídica; Lei nº 12.441/2011.
Abstract: Recently it was sanctioned by the President of the Republic Act nº 12.441/2011 amending the Civil Code (Law nº 10.406, of January 10, 2002) to allow the creation of individual enterprise with limited liability, being effective in our legal system the from January 8, 2012. Soon questioning the law has opened the opportunity for entrepreneurs constitute company individually, without having to join a partner. However, knowing the malicious intentions that surround the opening of a corporate entity ruled on the principle of patrimonial autonomy, this paper comes up with the question of whether or not it can be applied to piercing the corporate veil in this type of society in order to curb abusive practices and misuse. It is understood, so that you can apply to piercing the corporate veil in EIRELI, as an exceptional measure, reaching the entrepreneur's personal assets, excluding so-called "limited liability" for this: indemnify third curbing the diversion of purpose and practices abusive by legal entity.
Keywords: Business Law; Corporations; Limited Liability Company Individual (EIRELI); Disregard of Legal Personality; Law nº 12.441/2011.
1 INTRODUÇÃO
No que se sabe, diante as várias tentativas em melhorar as disposições no ordenamento jurídico brasileiro, em 10 de janeiro de 2002 o Presidente da República finalmente sancionou o novo Código Civil com a já unificação da legislação comercial. Após sua resolução tivemos outras leis inclusas em sua redação, que vêm para melhor apoiar a regulamentação da responsabilidade societária (sociedades personificadas e não personificadas).
Em 11 de julho de 2011 foi sancionada a Lei 12.441, pela Presidente da República, alterando a Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) permitindo a constituição da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, conhecida como EIRELI.
No entanto, surgem questionamentos acerca de questões previstas no Código Civil (CC) e sua aplicabilidade na EIRELI, especificamente, na hipótese de o capital social da empresa integralizado pelo empresário não suprir as dívidas contraídas pela sociedade. Questiona-se, nesse ponto, se poderá ser aplicada à EIRELI a teoria da desconsideração da personalidade jurídica prevista no artigo 50 do Código Civil, possibilitando a invasão no patrimônio pessoal dos sócios a fim de quitar as referidas dívidas desta sociedade empresária.
O estudo a ser realizado tem assim, como principal foco perquirir sobre a aplicabilidade ou não da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, frente a sua aplicação direta na responsabilidade civil do empresário que estabelece este tipo de empresa.
2 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
2.1 ORIGEM DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
“A desconsideração desenvolveu-se inicialmente nos países da Common Law, pois, no direito continental, os fatos não têm a força de gerar novos princípios, em detrimento da legislação” (TOMAZETTE, 2009, p.235).
Revelando seu surgimento na Inglaterra no século XIX por volta do ano de 1897, cuja qual primeira aplicação que se tem registro foi no caso Salomon vs. Salomon & Cia. Ltda., que um empresário constituiu uma empresa familiar, atendendo aos requisitos legais de sua constituição ficando este com a maioria das ações e designando uma para cada um dos demais sócios. Entretanto a sociedade logo se revelou insolvente, com um ativo insuficiente para satisfazer as obrigações por ela contraídas, caso que, nada sobrava para pagar seus credores. Confessando, o liquidante afirmou que a atividade da empresa era, na verdade, do empresário, que usara daquele artifício para limitar sua responsabilidade pessoal (REQUIÃO, 1988; TOMAZETTE, 2009).
A teoria saltou da Inglaterra chegando com grande ascensão aos Estados Unidos, onde se desenvolveu e se espalhou aos outros continentes do mundo, chegando inclusive ao Brasil, qual Rubens Requião foi autor de grande importância na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro, como estudaremos adiante (REQUIÃO, 1988; COELHO, 2010).
A definição de Rubens Requião (1988) dessa teoria persiste como “desconsideração da personalidade jurídica”, mais reconhecida nos Estados Unidos e Inglaterra como: Disregard of Legal Entity (Desconsideração da Entidade Legal) ou, então, Disregard Doctrine (Doutrina da Desconsideração).
2.2 CONCEITO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA (DISREGARD DOCTRINE)
“A autonomia patrimonial da pessoa jurídica, princípio que a distingue de seus integrantes como sujeito autônomo de direito e obrigações, pode dar ensejo à realização de fraudes” (COELHO, 2007, p.126).
“No plano do Direito Societário, muito cedo alguns perceberam que poderiam utilizar-se da personalidade jurídica […] para a prática de atos ilícitos (contra a lei) ou fraudatórios (em fraude à lei), lesando terceiros em benefício próprio” (MAMEDE, 2010, p.234).
Essa percepção foi aguçada quando
“o Estado, para estimular o investimento em atividades produtivas – meio para o desenvolvimento público -, criou hipóteses de limite de responsabilidade entre as obrigações da sociedade e as obrigações dos sócios, preservando o patrimônio desses, que não mais seriam chamados para responder, subsidiária ou solidariamente, pelas obrigações sociais, mesmo que os ativos sociais não fossem bastantes para resolver (adimplir) seu passivo” (MAMEDE, 2010, p.234).
Pretendendo prevenir esta situação, procede a prática da teoria da desconsideração da personalidade jurídica como meio de coibir os atos dos personagens que se escondem atrás da pessoa jurídica (MAMEDE, 2010). Mais clara é a exposição de Fabio Ulhoa Coelho (2004, p.35), “[…] tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude”.
Indispensável, ainda destacar os ensinamentos de Fábio Ulhôa Coelho (1989, p.13-14):
“A teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa, justamente, a impedir que essas fraudes e esses abusos de direito, perpetrados com utilização do instituto da pessoa jurídica, se consumam. É uma elaboração teórica destinada à coibição das práticas fraudulentas que se valem da pessoa jurídica. E é, ao mesmo tempo, uma tentativa de preservar o instituto da pessoa jurídica que foi utilizada na realização da fraude, ao atingir nunca a validade do seu ato constitutivo, mas apenas a sua eficácia episódica. Em suma, pela teoria da personalidade jurídica, o direito pretende livrar-se da fraude e do abuso perpetrados através de uma pessoa jurídica, preservando-a, contudo, em sua autonomia patrimonial.”
No mesmo norte, Maria Helena Diniz (2008, p.304-305) leciona que:
“A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica visa impedir a fraude contra credores, levantando o véu corporativo, desconsiderando a personalidade jurídica num dado caso concreto, ou seja, declarando a ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, portanto, para outros fins permanecerá incólume. Com isso alcançar-se-ão pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos, pois a personalidade jurídica não pode ser um tabu que entrave a ação do órgão judicante.”
Assim, com a possibilidade da autonomia patrimonial, haja vista a personalização da pessoa jurídica, avistou-se a facilidade de empresários se utilizarem deste instituto como instrumento para fins diversos do qual foi constituído, dando brechas a abusos e fraudes contra credores, surgindo então a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, por interferência doutrinária e jurisprudencial para reprimir os desvios ocorridos pela má utilização da pessoa jurídica, criando a chance de descaracterizar a limitação da responsabilidade do empresário, que se utilizava da pessoa jurídica como escudo de indisponibilidade de seus bens pessoais (COELHO; MAMEDE, 2010).
Rubens Requião (1969, p.14) adverte que:
“A disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo todavia a mesma incólume para seus outros fins legítimos.”
Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica ou “penetração”, por assim dizer, favorece o magistrado a se utilizar desta, para não mais considerar os efeitos da personificação da pessoa jurídica e sua autonomia patrimonial, mas, alcançar e estabelecer a responsabilidade de seus representantes, a fim de impedir a consumação de fraude e abuso de direito, que causem prejuízos ou danos a terceiros (COELHO; MAMEDE, 2010).
“Representa a teoria da desconsideração remédio jurídico que possibilita aos magistrados prescindirem da estrutura formal da pessoa jurídica para tornar a sua existência autônoma, como sujeito de direitos, ineficaz em uma situação particular” (CEOLIN, 2002, p.01).
2.3 PRESSUPOSTOS DE CABIMENTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURIDICA
Os pressupostos de aplicação da teoria da desconsideração segundo o jurista alemão Rolf Serick (1955, apud FREITAS, 2004, p.62), são os seguintes:
“1. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem cabimento quando houver utilização abusiva da pessoa jurídica, com o objetivo de se furtar da incidência da lei ou de obrigações contratuais, ou causar danos a terceiros de forma fraudulenta;
2. A autonomia subjetiva da pessoa jurídica pode ser desconsiderada quando isso for necessário para coibir violação de normas de direito societário que não possam ser violadas nem mesmo por via indireta;
3. As normas que tiveram por base atributos, capacidade, ou valores humanos à pessoa jurídica podem ser aplicadas se, entre a finalidade de tais normas e a função da pessoa jurídica à qual é as mesmas aplicadas, não se detectarem contradições. Importa salientar que, para se determinarem os pressupostos normativos, é possível considerar as pessoas físicas que agem por intermédio da pessoa jurídica;
4. No caso de a pessoa jurídica servir de instrumento para ocultar o fato de que as partes envolvidas no negócio são, na prática, o mesmo sujeito, a autonomia da pessoa jurídica pode ser afastada, se for necessário aplicar a norma embasada sobre a efetiva diferenciação, não sendo possível ampliar tal entendimento à diferenciação ou identidade apenas jurídico-formal.”
Pertinentemente Marlon Tomazette nos lembra que “a desconsideração só tem cabimento quando estivermos diante de uma pessoa jurídica, isto é, de uma sociedade personificada. Sem a existência de personalidade não há o que desconsiderar” (TOMAZETTE, 2006).
Por sua vez, admite-se o “[…] superamento da personalidade jurídica com o fim exclusivo de atingir o patrimônio dos sócios envolvidos na administração da sociedade” (NEGRÃO, 2010, p.267).
Silva (1999, p.26) pontifica que:
“Requisito importante para viabilizar a teoria da desconsideração é a existência de responsabilidade limitada. Poucos doutrinadores detiveram-se nesse aspecto para melhor explicar a teoria. É importante salientar que a limitação de responsabilidade é o requisito essencial junto com a personalidade jurídica.”
Do mesmo modo Justen Filho (1987, p.95) afirma:
“O pressuposto consiste em circunstância que provocam a incompatibilidade entre o ordenamento jurídico e o resultado a que se atingiria, no caso concreto, através da utilização da pessoa jurídica. Poder-se-ia aludir, como é usual, o abuso da pessoa jurídica como fundamento da desconsideração”.
No tocante aos efeitos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica Rubens Requião aduz que:
“O que se pretende com a doutrina da disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude). […] Com isto, no fundo não se nega a existência da pessoa, senão que se a preserva na forma com que o ordenamento jurídico a há concebido (REQUIÃO, 1969 apud COELHO, 1989, p.36, grifo do autor).”
Fabio Ulhoa Coelho destaca que a desconsideração da pessoa jurídica é momentânea, não invalida os seus atos constitutivos, tão-somente suspende a eficácia preservando a integridade da empresa (COELHO, 1989).
As lições de Silvio Rodrigues (2003, p.76) auxiliam nossa compreensão quanto à autonomia proporcionada ao juiz para desconsiderar a pessoa jurídica, em caso concreto:
Doutrina que permite ao Juiz erguer o véu da pessoa jurídica, para verificar o jogo de interesses que se estabeleceu em seu interior, com o escopo de evitar o abuso e a fraude que poderiam ferir os direitos de terceiros e o fisco. Assim sendo, quando se recorre à ficção da pessoa jurídica para enganar credores, para fingir à incidência da lei ou para proteger um ato desonesto, deve o juiz esquecer a idéia (sic) de personalidade jurídica para considerar os seus componentes como pessoa físicas e impedir que através do subterfúgio prevaleça o ato fraudulento.
Assim, nos casos que empresários se utilizarem da personalidade jurídica e sua autonomia como véu para realizar atos fraudulentos e desonestos, pertinentemente torna-se cabível a desconsideração da personalidade jurídica como meio jurídico de exigir a responsabilização destes e evitar implicações injustas ao direito de terceiros. (COELHO, 1989; RODRIGUES, 2003).
2.3.1 Métodos de Aplicabilidade
“Diante da possibilidade de se desvirtuar a função da personalidade jurídica é que surgiu a doutrina da desconsideração, a qual permite a superação da autonomia patrimonial, que embora seja um importante princípio, não é um princípio absoluto” (TOMAZETTE, 2009, p.239).
Ainda mais, há de se esclarecer que:
“Pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, por que é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se respeitada a autonomia da sociedade. Note-se, a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade não desfaz o seu ato constitutivo, não o invalida nem importa a sua dissolução. Trata, a penas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato […]” (COELHO, 2004, p.40).
Como ver-se-á no próximo capítulo, existem duas vertentes doutrinárias acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro, a teoria maior e a teoria menor, mas para podermos discorrer sobre os critérios que ensejam essas teorias divergentes, se faz necessário conhecimento quanto à fraude e o abuso de direito.
De antemão, Marlon Tomazette (2002, p.1) ensina que o pressuposto fundamental da desconsideração é o desvio da função da pessoa jurídica, que se constata na fraude e no abuso de direito relativos à autonomia patrimonial, “pois a desconsideração nada mais do que uma forma de limitar o uso da pessoa jurídica aos fins para os quais ela é destinada”.
2.3.1.1 Da fraude
Na visão de Marlon Tomazette (2002, p.1) a fraude é:
“O artifício malicioso para prejudicar terceiros, isto é, ‘a distorção intencional da verdade com intuito de prejudicar terceiros’. O essencial na sua caracterização é o intuito de prejudicar terceiros, independente de se tratar de credor. Tal prática a principio é lícita, sua ilicitude decorre do desvio na utilização da pessoa jurídica, nos fins ilícitos buscados no manejo da autonomia patrimonial.”
Em exame a matéria Gladston Mamede (2010, p.234) acentua que:
“A utilização ilícita ou fraudatória da personalidade jurídica não poderia jamais merecer a acolhida do Direito, razão pela qual se desenvolveu na doutrina estrangeira a chamada Doctrine of disregard of legal entity – doutrina da desconsideração do ente legal ou teoria da desconsideração da personalidade jurídica”.
Perseguindo as lições de Tomazette, “[…] pessoas, movidas por um intuito ilegítimo, podem lançar mão de autonomia patrimonial para se ocultar, e fugir ao cumprimento de suas obrigações. Neste particular, estaremos diante de uma fraude relacionada à autonomia patrimonial” (TOMAZETTE, 2009, p.244).
Caio Mário da Silva Pereira (2004, p.371, grifo do autor) distingue a fraude dos demais defeitos dos negócios jurídicos:
“Fraude é a manobra engendrada com o fito de prejudicar terceiro; e tanto se insere no ato unilateral (caso em que macula o negócio ainda que dela não participe outra pessoa), como se imiscui no ato bilateral (caso em que a maquinação é concertada entre as partes). Distinguisse dos demais defeitos dos negócios jurídicos. Difere do erro, em que o agente procede com pleno conhecimento dos fatos; do dolo, em que neste, o agente é induzido a engano de que resulta a declaração de vontade; da coação se distancia pela inexistência do processo de intimidação que é o elemento desta; com a simulação se não confunde porque não há, em sua etiologia, o disfarce para o negócio jurídico, que se apresenta caracterizado nos seus extremos normais.
Na fraude, o que estará presente é o propósito de levar os credores um prejuízo, em benefício próprio ou alheio, furtando-lhes a garantia geral que devem encontrar no patrimônio do devedor. Seus requisitos são a má-fé, ou a malícia do devedor e a intenção de impor um prejuízo a terceiro. Mais modernamente, digamos, com mais acuidade científica, não se exige que o devedor traga a intenção deliberada de causar prejuízo (animus nocendi); basta que tenha a consciência de produzir o dano.”
Porntanto, “o uso ilícito da personificação jurídica caracteriza infração legal a permitir a desconsideração da personalidade jurídica e responsabilização daquele que o fez” (MAMEDE, 2010, p.238).
2.3.1.2 Do abuso de direito
“O abuso da pessoa jurídica é possível, precisamente, em razão do caráter instrumental que tem o reconhecimento da personalidade jurídica como aparato técnico oferecido pela lei à obtenção de finalidade ilícita que os indivíduos por si sós não poderiam conseguir” (SILVA, 2009, p.68).
Assim no entendimento de Amador Paes de Almeida (2008, p.198), a teoria da desconsideração da personalidade jurídica “se equipara, para os fins a que se propõe, o abuso de direito, o excesso de poder, a violação da lei, do contrato social ou do estatuto, ao ato ilícito, impondo a responsabilidade pessoal dos sócios sempre que, em decorrencia de tais fatos, haja prejuizo do consumidor”.
Para Pedro Orlando (1959, p.26) o abuso se define no “exercicio irregular, no exercicio anormal do direito, no exercício do direito com excesso intencionais ou invonluntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem”.
Caio Mário da Silva Pereira nos ensina sobre a teoria do abuso de direito ao afirmar que:
“O seu germe prende-se à noção do exercício dos direitos, que em verdade só se constituem para proporcionar benefícios, vantagens ou utilidades ao respectivo sujeito. Conseguintemente à idéia do direito está imediatamente vinculado o co-respectivo desfrute, situado na sua utilização, e, como esta é uma faculdade ou um poder do titular, admitir-se-ia em princípio que pode ser levada ao ultimo extremo, ainda que tal programa viesse causar a ruína, a desgraça e a humilhação alheia. […] Abusa, pois, de seu direito, o titular que dele se utiliza levando um malefício a outrem, inspirado na intenção de fazer mal, e sem proveito próprio. O fundamento, ético da teoria pode, pois assentar em que a lei não deve permitir que alguém se sirva de seu direito exclusivamente para causar dano a outrem”. (PEREIRA, 2004, p.466).
Ainda mais convincente, Marlon Tomazette afirma que:
“Este "mau uso" da personalidade jurídica, isto é, a utilização do direito para fins diversos dos quais deveriam ser buscados, é que primordialmente autoriza a desconsideração, variando com a experiência de cada país outros fundamentos. Ao contrário da fraude, no abuso de direito o propósito de prejudicar não é essencial, há apenas o mau uso da personalidade jurídica”. (TOMAZETTE, 2002, p.1, grifo do autor).
“Por abuso da personalidade jurídica entende-se, objetivamente, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, que se podem materializar por uma infinidade de formas fraudatórias e que causam prejuízos a credores” (NEGRÃO, 2010, p.295).
Quanto ao desvio de finalidade esculpido como abuso de direito, Ricardo Negrão (2010, p.296) sabiamente explica:
“Haverá desvio de finalidade quando o objeto social é mera fachada para exploração de atividade diversa. Na confusão patrimonial, os bens pessoais e sociais embaralham-se, servindo-se, os administradores, de uns e de outros para, indistintamente, realizar pagamentos de dividas particulares dos sócios e da sociedade.”
Gladston Mamede (2010, p.238-239) é enfático a considerar que:
“Ser finalístico que é, a sociedade tem sua existência jurídica compreendida no plano geral dos atos ilícitos, implicando o respeito à lei e, num plano mais específico, respeito às regras ajustadas para a sua existência e funcionamento, devidamente atermadas no instrumento de constituição (contrato ou estatuto), levado ao registro respectivo. Sua atuação, via de consequência, somente é regular quando se comporta no âmbito das finalidades dispostas em seu ato de constituição, às quais se acrescem, por imperativo lógico, os atos indispensáveis à sua administração, existência e funcionamento.”
“De acordo com o artigo 187 do Código Civil, o abuso de direito caracteriza ato ilícito, configurando-se sempre que o titular de um direito de uma faculdade), ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (MAMEDE, 2010, p.242).
A importância de, a pessoa jurídica exercer sua atividade empresarial por meios lícitos, pode ser abarcada pelo doutrinador Fabio Ulhoa Coelho (1989, p.43):
“O pressuposto da licitude serve, em decorrência, para distinguir a desconsideração de outras hipóteses de responsabilização de sócios ou administradores de sociedade empresária, hipóteses essas que não guardam relação com o uso fraudulento da autonomia patrimonial. A responsabilização, por exemplo, do administrador de instituição financeira sob intervenção por atos de má administração faz-se independentemente da suspensão da eficácia do ato constitutivo da sociedade. Ela independe, por assim dizer, da autonomia patrimonial da pessoa jurídica da instituição financeira. Tanto faz se a companhia bancária é considerada ou desconsiderada, a má administração é ato imputável ao administrador”.
Mamede no mesmo fim crítico de que a pessoa jurídica deve obedecer aos princípios jurídicos de licitude, acrescenta:
“A intenção que motiva o ato deve ser reta, adequada, sem traços de ardil ou fraude, sem intenção de prejudicar outrem ou tirar proveito que, segundo a moral e os costumes, sejam injustificados, embora seja indispensável redobrado cuidado para não transformar tal previsão em instrumento de lesão ilegítima à liberdade individual […]” (MAMEDE, 2010, p.243).
“Assim, sempre que a pessoa jurídica seja utilizada para fins diversos ao objeto para qual foi criada, há de ser desconsiderada sua personalidade com a consequente responsabilidade pessoal dos respectivos integrantes, por eventuais prejuízos causados a terceiros” (ALMEIDA, 2008, p.203).
Portanto, conclui-se que o abuso de direito proporciona a desconsideração da personalidade jurídica como resposta à conduta atípica, pois “quem usa de modo regular o direito a ninguém prejudica. Quem usa o direito com excesso, age nocivamente a outrem. Isto corresponde ao abuso de direito” (FACHIN, 1992, p.106).
2.4 A TEORIA MAIOR E A TEORIA MENOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
“Há duas formulações para a teoria da desconsideração: a maior, pela qual o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela, e a menos, em que o simples prejuízo do credor já possibilita afastar a autonomia patrimonial” (COELHO, 2008, p.36).
2.4.1 Teoria Maior
Esta teoria é a mais elaborada, de maior consistência e abstração, que propõe o afastamento no caso concreto da autonomia patrimonial, entretanto para ser aplicada, necessita da comprovação de fraude e abuso de direito com intenção de prejudicar terceiros (COELHO, 2008). Rubens Requião foi o responsável por ingressar no direito brasileiro, que com autoria sustentava:
“[…] diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para penetrando no seu âmago, alcançar as pessoas e bens dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos” (REQUIÃO, 1988, p.74).
Para Fábio Ulhoa Coelho o objetivo da aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica é de coibir práticas fraudulentas e abusivas, pois:
“A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam” (COELHO, 2004, p.37).
“Nota-se que a teoria maior torna impossível a desconsideração operada por simples despacho judicial no processo de execução de sentença, […] é indispensável a dilação probatória através do meio processual adequado” (COELHO, 2007, p.56, grifo do autor).
Segundo Alexandre Couto Silva (2009, p.86) “para os adeptos da concepção subjetivista o abuso de direito e a fraude são hipóteses exclusivas que ensejam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica”. Sendo a teoria mais corrente entre os doutrinadores.
2.4.1.1 Concepção subjetiva x objetiva
Os estudiosos conceberam meio de aplicação distintos para a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, qual melhor possa sistematizá-la, dividindo-se em concepção subjetiva e concepção objetiva. Para Fábio Ulhoa Coelho (1989, p.55):
“O elemento subjetivo tomado pela formulação dos subjetivistas como principal pressuposto de incidência da desconsideração é a intenção de usar, com fraude à lei, ao contrato ou aos credores, ou com abuso de direito, o expediente da separação patrimonial com vistas a prejudicar terceiros.”
Fábio Konder Comparato (apud COELHO, 2007, p.127) propôs uma formulação diversa em que:
“Os pressupostos da desconsideração da autonomia da sociedade são objetivos, como a confusão patrimonial ou o desaparecimento do objeto social. Por esta razão, é possível chamar-se a primeira de concepção subjetivista e esta última de concepção objetivista da teoria da desconsideração da pessoa jurídica”.
Assim ao adotar o critério objetivo, retirou-se o caráter subjetivo, para que pudesse ser aplicado pelos magistrados nas questões judiciais, em casos específicos, que relacionam a confusão patrimonial ou o desaparecimento do objeto social (COELHO, 2007).
2.4.2 Teoria Menor
Essa outra vertente é a menos elaborada, aprecia tão somente a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica sem haver a necessidade de se caracterizar a fraude ou o abuso de direito. Esta teoria se aplica pela simplesmente insatisfação (inexistência) do crédito perante a sociedade. Ou seja, na aplicação da teoria menor, a confusão patrimonial é o requisito para que se possibilite o instituto da desconsideração (COELHO, 2008).
Logo, pela teoria menor, a simples existência de prejuízo ao credor por culpa da pessoa jurídica que não possuir bens suficientes para saldar a obrigação, já é amparo suficiente para o intuito da desconsideração da personalidade jurídica e responsabilização direta de seus responsáveis (COELHO, 2008).
2.5 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA APLICADA AO DIREITO BRASILEIRO
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil procedeu dos casos semelhantes advindos do exterior que forçavam uma atitude dos juristas para presidir situações que envolviam a personalidade jurídica e atos de seus administradores (COELHO, 2007).
Ocasião que sua aplicabilidade nos tribunais passa a se tornar frequente, o que direcionava a elaborar decisões com preceito tão somente à doutrina como fonte do Direito por não haver ainda expressão legal que a fundamentasse. Momento que a desconsideração se acomoda no nosso ordenamento jurídico, já em maiores proporções, uma vez que admitida pela jurisprudência em casos distintos (COELHO, 2007).
Marlon Tomazette (2009, p.250) de forma clara, diz que:
“A teoria da desconsideração prescinde de fundamentos legais para sua aplicação, uma vez que nada mais justo do que conceder ao Estado através da justiça, a faculdade de verificar se o direito está sendo adequadamente realizado. Apesar disso, o legislador houve por bem acolher a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em determinados dispositivos legais, alguns de aplicação geral e outros de aplicação específica.”
“No Brasil, devemos dar destaque especial ao artigo de Rubens Requião, publicado em 1969, com o título Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica” (TOMAZETTE, 2009, p.237, grifo do autor). Pois como analisamos anteriormente, a fraude ou o abuso de direito seriam elementos preponderantes para que o poder judiciário pudesse desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, com o único fim de atingir o patrimônio dos empresários ou administradores que fizeram uso indevido da pessoa jurídica (COELHO, 2007; TOMAZETTE, 2009).
Assim, pela ousadia dos juristas em promover seu embasamento legal, “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, foi proclamada pela primeira vez no ordenamento jurídico, com o artigo 28 do Codigo de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) que passou a vigorar em 11 de março de 1991” (ALMEIDA, 2008, p.198), in verbis:
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração de lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade de pessoa jurídica provocada por má administração” (artigo 28 do CDC).
O Código do Consumidor prevê ainda que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores” (artigo 28, § 5º do CDC). Sobremaneira, “possibilitando a responsabilização pessoal do empresário, por meio de seu patrimônio, sempre que utilizar a empresa ou sua personalidade jurídica para maliciosamente auferir lucros indevidos em prejuízo de terceiros” (MEZANOTTI, 2003, p.48).
Fábio Ulhoa Coelho (2007, p.106) em referência ao supra colacionado, explica ainda que:
“O CDC introduz no direito nacional um dispositivo que autoriza, expressamente, a desconsideração da personalidade jurídica (art. 28). Para impedir que a autonomia patrimonial da sociedade empresária possa ser utilizada como instrumento de fraude ou abuso de direito em prejuízo da satisfação de um interesse do consumidor, prevê-se a desconsideração daquela autonomia para a efetivação da responsabilidade sobre o património de quem perpetrou o mau uso da pessoa jurídica.”
Portanto, no que prevê este instituto desconsidera-se a personalidade jurídica em favor do consumidor, nos casos de: “[…] a) abuso de direito; b) excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social; c) falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade provocados por má administração” (COELHO, 2007, p.51, grifo do autor).
Seguindo essa mesma linha, outro dispositivo que faz menção à desconsideração da personalidade jurídica é a Lei Antitruste (Lei nº 8.884/94), o que pode ser observado na redação do seu artigo 18:
“Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”
Há de observar que em duas oportunidades ocorre a desconsideração da personalidade jurídica: “[…] na configuração de infração da ordem econômica e na aplicação da sanção” (COELHO, 2004, p.52).
Neste caso, nas palavras de Fabio Ulhoa Coelho (2007, p.53), “na hipótese de conduta infracional, a autonomia das pessoas jurídicas não pode servir de obstáculo” se isso ocorrer “[…] a penalidade deve estender-se, por via da desconsideração da personalidade jurídica, às outras sociedades que tenham objeto idêntico ou semelhante porventura existentes entre os mesmos sócios”. Apesar de sua referência à desconsideração no direito brasileiro, a Lei Antitruste não cooperou para a formulação doutrinária (COELHO, 2007).
“A terceira referência à teoria da desconsideração, no direito positivo brasileiro” (COELHO, 2007, p.54) é a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), embora tenha um conceito mais vago à matéria, trata da responsabilidade pelas ações lesivas ao meio ambiente, ditando apenas que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente” (artigo 4º da lei 9.605/98).
O novo Código Civil (2002) foi mais específico, quanto da sua anuência, passando a tratar da desconsideração da personalidade jurídica em seu artigo 50, como repressão ao abuso da personalidade jurídica, fraude ou confusão patrimonial, ipsi litteris:
“Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica” (artigo 50 do CC).
Mamede sabiamente nos lembra de que o ser humano busca obter vantagens sobre os demais, situação em que nem sempre prefere competir por melhores condições sociais dentro das regras de convivência, todavia encontra no “ilícito, no comportamento proibido, na fraude, um meio fácil para aferir vantagem” demonstrando por sua vez o mau uso da personalidade jurídica (MAMEDE, 2007, p.221).
Assim sendo, segundo Coelho (2002, p.54):
“A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica independe de previsão legal. Em qualquer hipótese, mesmo naquelas não abrangidas pelos dispositivos das leis em que se reportam ao tema (Código Civil, Lei ao Meio Ambiente, Lei Antitruste ou Código de Defesa do Consumidor), está o juiz autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela for fraudulentamente manipulada para frustrar interesse legítimo de credor.”
Considerando-se todas as ponderações citadas quanto à personalidade da pessoa jurídica e sua autonomia patrimonial reconhecida, vimos que a desconsideração é medida que se impõe em casos que houver de fato configurados a fraudes, abusos ou outras situações ilícitas que impeçam o cumprimento de suas obrigações e fiel exercício empresarial (COELHO, 2007).
Neste passo, ante o estudado repisa-se que não há que se falar em anulação da personalidade jurídica, mas apenas em sua declaração de ineficácia (desconsideração) da autonomia patrimonial, como artifício jurídico para que o juiz em procedimento judicial possa alcançar, em casos concretos, o patrimônio dos responsáveis que se utilizaram da pessoa jurídica para fins ilícitos (COELHO, 2007).
3 DA EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (LEI 12.441/2011) – EIRELI
3.1 HISTÓRICO DA EIRELI
Há tempos já se vêm discutindo no Brasil quanto à instituição da empresa individual de responsabilidade limitada, para que fosse possível haver distinção entre o patrimônio da pessoa jurídica e de seu responsável, entretanto, havia forte resistência pela concretização desse pensamento, o qual constataremos abaixo (PARECER DO SENADO FEDERAL Nº 380).
Em 1947, foi apresentado Projeto nº 201, de autoria do Deputado Fausto de Freitas e Castro, que pretendia implementar a limitação da responsabilidade pela empresa individual, porém, pareceres contrários das Comissões de Constituição e Justiça e de Indústria, do Congresso Nacional, alegando que promover a limitação significaria possibilitar fraudes na prática mercantil, impedindo sua concretização no ordenamento jurídico brasileiro. (BRUSCATO, 2005).
Nas palavras de Wilges Ariana Bruscato (2005, p.64):
“O Deputado em sua justificativa cita que há muito se fazia sentir a falta de uma lei que permitisse e regulamentasse a criação de empresas individuais de responsabilidade limitada, sendo notórios os benefícios da limitação da responsabilidade para as sociedades. E o que parecia mais agudo ao autor do projeto, era o fato de se obter às margens da lei, a limitação de sua responsabilidade.”
Fausto de Freitas e Castro aduz ainda que:
“Na realidade, as empresas individuais – de responsabilidade limitada – existem, embora de formação contrária à lei. O mal não advém do fato em si, mas dos abusos que se podem cometer por meio de tão fácil burla às exigências da lei. Muitas dessas sociedades aparentes têm vivido e prosperado, gozando de crédito nos bancos e de bom conceito na praça. Diante da realidade dos fatos, em face dos princípios que regem o instituto da limitação da responsabilidade, é preferível que o legislador discipline a matéria, evitando a ação dos aventureiros e de pessoas inescrupulosas” (1947, apud BRUSCATO, 2005, p.64).
Mais adiante, em 2011, foi apresentado Projeto de Lei da Câmara nº 18, de autoria do Deputado Marcos Montes Cordeiro, com a finalidade de instituir no ordenamento jurídico brasileiro a empresa individual de responsabilidade limitada, de acordo com o Projeto de Lei nº 4.605 de 2009, na casa de origem (PARECER DO SENADO FEDERAL Nº 380).
“Na justificação do projeto, seu autor afirma que o seu objetivo é instituir a ‘sociedade unipessoal’, também conhecida como ‘empresa individual de responsabilidade limitada’, reproduzindo, na justificação, artigo publicado na Gazeta Mercantil, em 2003, de autoria de Guilherme Duque Estrada de Moraes” (PARECER DO SENADO FEDERAL Nº 380).
Cita-se ainda, que “desde o início da década de 80 discute-se no País a criação da ‘empresa individual de responsabilidade limitada’. A ideia foi examinada no Programa Nacional de Desburocratização, conduzido pelo Ministro Hélio Beltrão, de forma vinculada ao estatuto da microempresa, mas ela foi abandonada em virtude da prioridade dada à questão tributária” (PARECER DO SENADO FEDERAL Nº 380).
“A mesma fonte relembra anteprojeto próprio, e outras contribuições oferecidas ao Governo desde a década de 90, com o ‘propósito de permitir que o empresário, individualmente, pudesse explorar atividade econômica sem colocar em risco seus bens pessoais, tornando mais claros os limites da garantia oferecida a terceiros’” (PROJETO DE LEI Nº 4.605/09).
Como fundamento a sua existência no direito brasileiro, não são poucos os países que já instituíram a empresa individual de responsabilidade limitada, como por exemplo: “França, Espanha, Portugal, Itália, Bélgica, Países Baixos, Alemanha, Reino Unido, Dinamarca e, na América do Sul, Chile […]” (PARECER DO SENADO FEDERAL Nº 380).
O novo modelo de empresa (EIRELI) consta como importante rebate às empresas constituídas em sociedade “faz-de-conta”, somente para limitar a responsabilidade do sócio, qual um destes era apenas o “laranja” do outro a fim de obter vantagens fiscais e jurídicas (PROJETO DE LEI Nº 4.605/09).
Ainda, qualifica-se como facilitador à constituição de uma empresa (pessoa jurídica), num processo menos burocrático, podendo ser detentor da totalidade das quotas que correspondem ao capital social da empresa, por sua vez acabando com as disputas entre sócios, afora ainda trazer contribuições para a geração de empregos e incentivando a formação de novos empreendedores, facilitando a atividade econômica (PROJETO DE LEI Nº 4.605/09).
Conhecendo algumas brechas no Projeto de Lei nº 4.605/09, foi apensado o Projeto de Lei nº 4.953/2009, expondo uma formulação mais adequada da empresa individual de responsabilidade limitada, suprindo as lacunas do projeto anterior (PARECER DO SENADO FEDERAL Nº 380).
Sintaticamente Antônio Pereira de Almeida (1988, apud BRUSCATO, 2005, p.260) diz que mesmo “[…] consagradas às sociedades de responsabilidade limitada e admitidos os patrimônios de afetação especial, não se vê mais razão para que, se duas pessoas podem limitar sua responsabilidade, uma sozinha não o possa fazer”.
Sendo assim, após longo trajeto legislativo e incessantes intervenções jurídicas, atendendo a necessidade da classe dos comerciantes, empresários, compondo um ordenamento jurídico mais moderno e adequado para acompanhar a evolução da sociedade brasileira que foi aprovado o projeto na Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, e com base nestas ponderações doutrinárias a Presidente da República Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.441 em 11 de julho de 2011.
“Esta Lei acrescenta inciso VI ao art. 44, acrescenta art. 980-A ao Livro II da Parte Especial e altera o parágrafo único do art. 1.033, todos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), de modo a instituir a empresa individual de responsabilidade limitada, nas condições que especifica” (artigo 1º da EIRELI), entrando em vigor 180 dias após a data de sua publicação (artigo 3º da EIRELI).
3.2 CONCEITO DA EIRELI
A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, de acordo com o enunciado 469 do Conselho de Justiça Federal, se distingue do caráter de sociedade, aprovando-se que “[…] a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado” (BRASIL, 2011). Lembrando, que esta nova empresa nem tão pouco se confunde ou substitui a personificação do empresário individual, estando regulamentada pelas Instruções Normativas do DNRC (nº 116/2011, nº 117/2011 e nº 118/2011).
Fábio Ulhoa Coelho, distinguindo o conceito de empresa e empresário, esclarece que “a empresa é a atividade, e não a pessoa que a explora; e o empresário não é o sócio da sociedade empresarial, mas a própria sociedade” (COELHO, 2008, p.63).
Nesse caminhar, considerando as palavras de Fábio Ulhoa Coelho, ressaltando a nomenclatura originada pela Lei nº 12.441/2011, tem-se o entendimento de que o objeto da EIRELI corresponderá ao exercício de atividades semelhantes àquelas realizadas pelo empresário, relacionadas no artigo 966 e seguintes do Código Civil (BRASIL, 2011; COELHO, 2008).
Porventura, o regime jurídico da EIRELI não tem um conceito definido, por ainda satisfazer singularmente o interesse social, sendo, portanto, passível de algumas críticas.
3.3 CARACTERÍSTICAS DA EIRELI
Inicialmente, antes de tecermos comentários acerca da titularidade da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, é importante transcrevermos abaixo o caput do artigo 980-A da Lei nº 12.441/2011:
Para comentarmos as características acerca da EIRELI transcrevemos abaixo o artigo 980-A originalmente acrescentado no Código Civil:
“Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
§ 1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão "EIRELI" após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada.
§ 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.
§ 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração.
§ 4º (VETADO).
§ 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional.
§ 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
"Art. 1.033.
Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV caso o sócio remanescente, inclusive na hipótese de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, requeira, no Registro Público de Empresas Mercantis, a transformação do registro da sociedade para empresário individual ou para empresa individual de responsabilidade limitada, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115 deste Código." (NR)
Primeiramente quanto à constituição da EIRELI, será realizada por uma única pessoa, esta denominada como titular, responsável pela integralização total do capital social de sua respectiva empresa. Criticamente analisando o presente dispositivo, percebe-se a omissão quanto à determinação se ambos (pessoas físicas ou jurídicas) podem ser titulares da empresa individual de responsabilidade limitada (artigo 980-A, caput da EIRELI).
Como recentemente visto, o capital da empresa individual deverá ser antecipadamente integralizado, não inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no país, para que o empresário possa realizar a constituição da EIRELI na Junta Comercial (artigo 980-A, caput da EIRELI). No ato constitutivo, lembra-se que o nome empresarial deverá ser formado precisamente pela inclusão da expressão "EIRELI" após a firma ou a denominação social (artigo 980-A, § 1º da EIRELI).
Por conta disso, o registro do ato constitutivo há que ser realizado na Junta Comercial da sede designada à empresa (artigo 967 do CC) obedecendo à Instrução Normativa do DNRC nº 117/2011, eis que convém lembrar o enunciado 471 do Conselho de Justiça Federal: “os atos constitutivos da EIRELI devem ser arquivados no registro competente, para fins de aquisição de personalidade jurídica. A falta de arquivamento ou de registro de alterações dos atos constitutivos configura irregularidade superveniente” (BRASIL, 2011).
Entretanto há de se lembrar das restrições para os que optam pela constituição da EIRELI, sendo que, é autorizado à pessoa natural constituir apenas uma única pessoa jurídica desse tipo (artigo 980-A, § 2º da EIRELI). Tanto que o DNRC, em sua Instrução Normativa nº 117/2011, especifica que compõe cláusula do ato constitutivo da EIRELI a “declaração de que o seu titular não participa de nenhuma outra empresa dessa modalidade” (IN-DNRC nº 117/2011).
A EIRELI veio a acrescer à legislação brasileira oportunizando, sobremaneira, a limitação da responsabilidade patrimonial à empresa constituída por único empresário, qual aquele que quer atuar com liberdade no mercado, podendo assim compor empresa sem necessidade de se juntar a algum sócio (artigo 980-A da EIRELI; PROJETO DE LEI Nº 4.605/09).
Ainda, complementando, a IN-DNRC nº 118/2011 relaciona os procedimentos para se realizar a transformação (relativa ao nome empresarial e ao capital) dos atos da sociedade em: empresário ou empresa individual de responsabilidade limitada e vice-versa; deixando-se de lado as sociedades anônimas, sociedades simples e cooperativas (artigo 980-A da EIRELI; IN-DNRC nº 118/2011).
Por fim, "aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas" (artigo 980-A, § 6º da EIRELI).
3.4 PRINCIPAIS MOTIVOS PARA CONSTITUIÇÃO DE UMA EIRELI
Pode-se dizer que a primeira motivação para se instituir uma EIRELI seria da liberdade do empresário em compor individualmente empresa com personalidade jurídica, a fim de realizar atividade empresária sem a existência de sócios (artigo 980-A da EIRELI).
Relembrando o que estudamos nos capítulos anteriores quanto à constituição de empresa, personalidade jurídica e responsabilidade dos empresários, chegamos a outra motivação relevante ao estabelecer uma EIRELI, qual seja a obtenção da chamada autonomia patrimonial e limitação da responsabilidade pelo seu titular, atrelada à integralização total do capital social (artigo 980-A da EIRELI).
Além destes, outro motivo relevante da constituição da EIRELI se daria em caso de dissolução de uma sociedade empresária, onde um dos sócios se retira ou é excluído da empresa, e restando um único sócio, este passa a ser “titular” da empresa e detentor da totalidade das quotas, podendo assim, requerer a transformação daquela em EIRELI (artigo 980-A da EIRELI; PROJETO DE LEI Nº 4.605/09).
De forma sintetizada, apresentou-se alguns pontos relevantes para se constituir uma EIRELI, haja vista sua recente inclusão no direito brasileiro. Podendo considerar, no entanto, que este instituto permite que um único empresário possa constituir empresa, admitindo-se a sua personalidade jurídica, oportunizando a distinção do patrimônio do empresário ao da empresa, sendo por fim, este, detentor da totalidade do capital social, tendo sua responsabilidade vinculada à integralização de suas quotas (artigo 980-A da EIRELI).
Mormente, como resultado da instituição em EIRELI instigaria a legalização e registro daqueles empresários individuais atuando informalmente, bem como a afastabilidade das sociedades limitadas constituídas com sócios “laranja” que subscreve-se apenas para dar validade aquela sociedade empresária (BORBA, 2004; COELHO, 2008).
Não bastando isso, a existência da distinção entre o patrimônio da pessoa jurídica e de seu titular, transmite uma impressão de maior segurança e resguardo legal aos empresários para instituir uma EIRELI, mas há de sopesar suas responsabilidades como titular.
3.5 A RESPONSABILIDADE NA EIRELI
Ao determinar que fossem aplicáveis as regras das sociedades limitadas à empresa individual de responsabilidade limitada, de acordo com o artigo 980-A, § 6º da EIRELI, nos remetemos ao artigo 1.052 do Código Civil (2002) que trata da responsabilidade de cada sócio, no caso da EIRELI – titular, in verbis: “Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social”.
Relevante esclarecer que havendo dívidas perante terceiros, o patrimônio pessoal do empresário não será utilizado, limitando assim a responsabilidade das obrigações decorrentes da atividade empresária na EIRELI ao capital integralizado (artigo 980-A da EIRELI; artigo 1.052 do CC).
Apesar dos baldrames supracitados, é salutar contrapor o teor do enunciado 470 do Conselho de Justiça Federal, que dispõe: “o patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica” (BRASIL, 2011).
Entretanto, como já vimos, é reiterada na legislação brasileira a possibilidade da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica regida pela limitação de responsabilidade quando constatado intenções maliciosas ou fraudulentas, de acordo com o artigo 50 do Código Civil (2002) e demais dispositivos legais.
Assim sendo, resta saber se é possível realizar a desconsideração da EIRELI para responsabilizar o seu titular, devendo responder com seu patrimônio pessoal, que até então, estava protegido pela autonomia patrimonial da empresa, fundada na integralização do capital social. Isto posto, repisa-se que fora especificado no § 6º do artigo 980-A da EIRELI que “obedeceria as regras da sociedade limitada”.
Ocasião que nos direcionamos ao item seguinte deste capítulo, que vem responder a este questionamento que faz alusão ao objetivo central deste trabalho, qual seja, se é aplicável ou não a teoria da desconsideração da personalidade jurídica na EIRELI.
4 A (IN)APLICABILIDADE DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EIRELI
Como preceito unilateral para que possa declarar ser aplicável a teoria desconsideração da personalidade jurídica na EIRELI, basta referenciar a mensagem de veto nº 259/2011 pela Presidente da República, daquele que deveria ser o parágrafo 4º do artigo 980-A do Código Civil:
“Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente” (PROJETO DE LEI Nº 4.605/09).
Sendo vetado pelas alegações de contrariar o interesse público, no mais a mais, por constar a expressão “qualquer situação” na limitação da responsabilidade estaria em desacordo com a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, sendo relevante à interpretação da matéria transcrever as razões do veto:
“Não obstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão 'em qualquer situação', que pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à EIRELI as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio”. (MENSAGEM DE VETO Nº 259/2011, grifo do autor).
Ressalta-se a preocupação do legislador em resguardar o interesse público em primeiro lugar, conseguinte, o de evitar a possibilidade de confusão quanto à possibilidade de responsabilização do titular da EIRELI na ocorrência de abuso da personalidade jurídica, reflexo de casos juramentados ao longo dos anos na legislação brasileira (PROJETO DE LEI Nº 4.605/09; MENSAGEM DE VETO Nº 259/2011; BORBA, 2004).
Muito embora a regularização da responsabilidade jurídica na lei que instituiu a EIRELI, através da mensagem de veto outrora apresentada, novamente, denota-se que a lei 12.441/11 já se referia no § 6º do artigo 980-A, que essa empresa seria regulada pelas regras das sociedades limitadas, sendo possível no mais, a declaração da desconsideração da personalidade jurídica em algumas hipóteses.
Sobre o assunto esclarece Fábio Ulhoa Coelho (2005, p.31):
“[…] é pacífico na doutrina e jurisprudência que a desconsideração da personalidade jurídica não depende de qualquer alteração legislativa para ser aplicada, na medida em que se trata de instrumento de repressão a atos fraudulentos. Quer dizer, deixar de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo legal expresso, significaria o mesmo que amparar a fraude.”
Portanto, em caso de desvio da finalidade, confusão patrimonial ou condutas maliciosas e fraudulentas, a responsabilidade limitada, arcabouço da EIRELI é afastada, pois o instituto da pessoa jurídica não pode servir de véu para atos ilícitos (SILVA, 2002).
A respeito disso José Edwaldo Tavares Borba elucida: “a sociedade, ainda que unipessoal, representa um foco de interesses – o interesse da empresa. Desvirtuada essa distinção, frustra-se a base teleológica do instituto – quebra-se a personalidade jurídica, de modo a permitir penetrá-la e responsabilizar o sócio” (BORBA, 2004, p.33).
Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho ao definir a responsabilidade dos sócios, podendo ser transportada à responsabilidade do titular da EIRELI, é enfatizada a existência de exceções em que estes respondem com seu patrimônio pessoal pelos débitos da empresa:
“Os sócios são, ademais, responsabilizáveis por obrigação sociais quando incorrem em ilícitos, perpetrados pela sociedade. Esse terceiro conjunto de exceções à regra da irresponsabilidade dos sócios tem o sentido de sancionar as condutas ilícitas. A limitação da responsabilidade é preceito destinado ao estímulo de atividades econômicas, e não pode servir para viabilizar ou acobertar práticas irregulares” (COELHO, 2003, p.107).
No mesmo sentido, Rubens Requião (2003, p.497) instrui:
“As limitações da responsabilidade do sócio, próprias da sociedade limitada, exigem dele comportamento ilibado, respeitando as normas contratuais e legais. Infringidas tais normas, o transgressor perde a vantagem concedida pelo tipo social, passando a responder de modo ilimitado pelos atos que autorizou ou praticou. Esta responsabilidade ampliada tem natureza solidária, pos não afastará a responsabilidade natural da sociedade que serve de instrumento para o ato; agrega-se-lhe a responsabilidade pessoal do sócio que deliberou de modo infrator.”
Com o intuito de fortalecer este entendimento, embora ainda ser relacionado adiante a jurisprudências que julgam favorável a matéria, Gustavo César de Souza Mourão (2009, p415-416) afirma que:
“A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, bem como a responsabilidade pessoal e direta dos sócios, devem ser aplicadas excepcionalmente e de acordo com as hipóteses legais. Os institutos devem considerar as peculiaridades do caso concreto, com o objetivo de concretizar a justiça em virtude do abuso da personalidade jurídica ou dos vícios existentes nos negócios jurídicos.”
Como já visto a afastabilidade da personalidade jurídica não invalida qualquer ato que constitui a EIRELI, seguindo a mesma regra da desconsideração nas sociedades limitadas.
Desta forma, a EIRELI deve ser vista como avanço no ordenamento jurídico brasileiro e no direito empresarial como meio adequado aos empresários constituírem individualmente empresa com personalidade jurídica, propondo estancar a instituição de sociedades empresárias havidas com sócios de fachada, ou como Jose Edwaldo Tavares Borba nomeia os “testas de ferro” (BORBA, 2004).
Portanto, a limitação da responsabilidade na EIRELI pode ser desconsiderada quando houver abuso de personalidade e atividade fraudulenta, devendo-se apresentar primeiramente execução dos seus créditos até o esgotamento de seu capital constante de todo seu patrimônio empresarial. Posteriormente, quando estes não bastarem para suprir os débitos contraídos, torna-se plausível a afetação no patrimônio pessoal do titular da EIRELI.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada no Código Civil brasileiro (2002) veio a proporcionar ao empresário a possibilidade de distinção da autonomia patrimonial e responsabilidades estribadas entre este e a pessoa jurídica.
Apesar de muitos países já terem instituído a EIRELI ou, como a chamam, Sociedade Unipessoal, até mesmo em países da América do Sul, o Brasil foi um dos poucos a resistir a esta influência no direito empresarial. Muito embora atrasado em aceitar sua expressão na legislação brasileira, doutrinadores como Rubens Requião, o Ministro Hélio Beltrão, o Deputado Marcos Montes Cordeiro e o Deputado Fausto de Freitas e Castro foram grandes arrimos para que a EIRELI fosse sancionada no nosso ordenamento jurídico, por este fim, demonstrando grande disposição em torná-la eficaz em favor dos empresários.
Por se tratar de matéria recente no direito comercial, que se tornou vigente em 8 de janeiro de 2012, não temos como elaborar maiores comentários acerca dessa nova empresa.
Recordamo-nos que o instituto da pessoa jurídica de responsabilidade limitada é visto de forma desvirtuada quanto ao objetivo de sua constituição, pois através da autonomia patrimonial a pessoa jurídica pode ser uma ponte para a realização de fraudes e abuso de direito, pois os atos ilícitos praticados por seu responsável estariam sob o véu da pessoa jurídica, não sendo possível alcançá-lo através dela, para que assim pudesse indenizar.
Entretanto, como estudamos recentemente em resposta ao objetivo deste trabalho, é relevante e notável afirmar que ante a análise da mensagem de veto nº 259/2011 pela Presidente da República, a possibilidade de desconsideração da pessoa jurídica que está presente em diversas leis do nosso ordenamento jurídico e principalmente os ensinamentos da doutrina e jurisprudência, torna-se um instrumento importantíssimo para a efetividade da tutela jurisdicional.
Em se tratando disso, a teoria da desconsideração foi referenciada pela primeira vez no direito brasileiro no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidos, bem como, posteriormente, sua previsão legal foi estampada no artigo 50 Código Civil brasileiro (2002).
Observa-se que essa teoria da desconsideração não propõe anular o instituto da personalidade jurídica nem mesmo sua dissolução, age apenas em situações concretas, quando a autonomia patrimonial foi ilicitamente utilizada ou interferiu na responsabilização do sócio.
Sendo assim, no presente estudo foram apresentados os principais aspectos em relação à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, delimitando os meios que a definem, para então compreender sua aplicabilidade na EIRELI, obedecendo no que couber, as mesmas regras das sociedades limitadas. Situação que, de modo geral, consiste em igualar a responsabilidade do titular a empresa, que dentro dela se resguarda a fim de alcançar seu patrimônio pessoal diante da desconsideração.
Ademais pesquisou-se nos tribunais pátrios de nosso país a existência ou não de jurisprudência sobre a matéria discorrida, entretanto por ser tratar de uma legislação nova, e pouco debatida, até o presente momento não foram registradas ações judiciais defendendo a desconsideração da personalidade jurídica, estabelecida por uma EIRELI.
Portanto, diante os estudos realizados, com fonte e embasamento jurídico pode-se afirmar com segurança que é aplicável à desconsideração da personalidade jurídica na empresa individual de responsabilidade limitada, como meio de coibir atos ilícitos do titular que estava, até então, resguardado pela limitação de responsabilidade da pessoa jurídica.
Informações Sobre o Autor
Gabriel Bertoluci
Bacharel em Direito pela instituição de ensino FAE – Blumenau