Breve apontamento a respeito da (des) obrigatoriedade da dupla instância administrativa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Resumo: Este artigo visa discorrer a respeito do princípio do duplo grau de jurisdição, particularmente na via administrativa, e sua abordagem pela Suprema Corte nacional. Percebe-se que tanto doutrina, como a jurisprudência da Corte Suprema brasileira, convergem para o entendimento de que tal princípio (ou regra) não encontra guarida em nível constitucional. No entanto, esta constatação não significa dizer que, uma vez estabelecida legalmente, a lei possa condicionar a admissibilidade de recurso voluntário a depósito ou pagamento de quantia que represente, na prática, a frustração desse direito.

Palavras-chave: Duplo Grau de Jurisdição; Administrativo; Jurisprudência; Constitucional; Supremo Tribunal Federal.

Sumário: Introdução. 1. A natureza infraconstitucional do duplo grau de jurisdição segundo a doutrina. 2. O duplo grau de jurisdição administrativa na visão do Supremo Tribunal Federal. Conclusão. Referências.

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INTRODUÇÃO

O princípio do Duplo Grau de Jurisdição é concebido, à moda clássica, a partir de dois caracteres específicos: a possibilidade de um reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado a órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária (Bulos, 2007, p. 296).

Segundo lição doutrinária (Santos, 1993, p. 83-84), verbis:

“O princípio do duplo grau de jurisdição, consagrado pela Revolução Francesa, consiste em admitir-se, como regra, o conhecimento e decisão das causas por dois órgãos jurisdicionais sucessivamente, o segundo de grau hierárquico superior ao primeiro”.

Trata-se de princípio agasalhado no ordenamento jurídico brasileiro, mas que não possui estatura de norma constitucional, porquanto a atual Constituição Federal é omissa no particular. No Brasil, segundo Bulos (2007, p. 295), apenas a Carta Imperial de 1824 consagrou o duplo grau de jurisdição de modo pleno e irrestrito[1]. As demais constituições não prescreveram, in verbis, o vetor, deixando-o imanente e implícito na ordem jurídica.

1 A NATUREZA INFRACONSTITUCIONAL DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO SEGUNDO A DOUTRINA

Logo, é lícito afirmar que o princípio do duplo grau de jurisdição não tem patamar constitucional[2], razão pela qual se revela legítima a existência de restrições na legislação processual, como, por exemplo, a exceção prevista no artigo 34 da Lei n. 6.830, de 1980[3], referente ao recurso de embargos infringentes de alçada da competência de juiz de primeiro grau.

Nessa senda, Alexandre de Moraes (2011. p. 90-91) leciona que:

“Menciona a Constituição Federal a existência de juízes e tribunais, bem como prevê a existência de alguns recursos (ordinários constitucionais, especial, extraordinário), porém não existe a obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição. Dessa forma, há competências originárias em que não haverá o chamado duplo grau de jurisdição, por exemplo, nas ações de competência originária dos Tribunais.”

Na mesma obra Moraes refere-se à experiência no direito alemão, analisada por Alcino Pinto Falcão, que deixou consignado que:

‘a cláusula não obriga por si só a que para todas as hipóteses tenha que haver duplo grau de jurisdição; é o que realça o juiz constitucional alemão Benhard Wolff, em estudo sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, citando acórdão do mesmo” (estudo monográfico vindo a lume no referido Jahrbuch, ano de 1958, vol. II, p. 127).

Por sua vez, Canotilho (1998. p. 620-621), dissertando a respeito da experiência no Direito Constitucional português, assevera que:

“A constituição [portuguesa] prevê vários graus de jurisdição. Isso não significa a existência necessária e obrigatória, em todos os feitos submetidos a decisão jurisdicional, de um duplo grau de jurisdição. (omissis). No entanto, a existência de um duplo grau impõe-se em matéria penal (CRP, artigo 32.º/1) como exigência constitucional ineliminável da garantia dos cidadãos. Discutível é a sua generalização em sede civil e administrativa”.

Em arremate a essa questão, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2011. p. 498) expressam sua posição, ponderando à luz do princípio constitucional da razoável duração do processo, verbis:

“Em conclusão, é correto afirmar que o legislador infraconstitucional não está obrigado a estabelecer, para toda e qualquer causa, uma dupla revisão em relação ao mérito, principalmente porque a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, LXXVIII, garante a todos o direito à tutela jurisdicional tempestiva, direito este que não pode deixar de ser levado em consideração quando se pensa em “garantir” a segurança da parte através da instituição da “dupla revisão”.”

Registre-se, como ressaltado pelo festejado jurista Lusitano, que apenas na seara do direito processual penal dá-se ao princípio do duplo grau de jurisdição patamar de garantia fundamental. Essa conclusão advém da leitura combinada dos §§ 2º e 3º do artigo 5º da Constituição Federal com a alínea “h” do número 2 do artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Eis o que dispõe o preceito do Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992:

“Garantias judicias: omissis 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: omissis h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.

Trata-se, à evidência, de preceito destinado, repita-se, apenas ao direito processual penal. Contudo, importa salientar que o Supremo Tribunal Federal não reconhece o caráter absoluto do princípio do duplo grau nem mesmo no direito processual penal:

“AGRAVO REGIMENTAL. PROCESSUAL PENAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ARTIGO 5º, PARÁGRAFOS 1º E 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. EMENDA CONSTITUCIONAL 45/04. GARANTIA QUE NÃO É ABSOLUTA E DEVE SE COMPATIBILIZAR COM AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL. PRECEDENTE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Agravo que pretende exame do recurso extraordinário no qual se busca viabilizar a interposição de recurso inominado, com efeito de apelação, de decisão condenatória proferida por Tribunal Regional Federal, em sede de competência criminal originária. 2. A Emenda Constitucional 45/04 atribuiu aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que aprovados na forma prevista no § 3º do art. 5º da Constituição Federal, hierarquia constitucional. 3. Contudo, não obstante o fato de que o princípio do duplo grau de jurisdição previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos tenha sido internalizado no direito doméstico brasileiro, isto não significa que esse princípio revista-se de natureza absoluta. 4. A própria Constituição Federal estabelece exceções ao princípio do duplo grau de jurisdição. Não procede, assim, a tese de que a Emenda Constitucional 45/04 introduziu na Constituição uma nova modalidade de recurso inominado, de modo a conferir eficácia ao duplo grau de jurisdição” (AGI n. 601.832/SP — AgRg, 2ª Turma do STF, Diário da Justiça eletrônico n. 64, de 2 e 3 de abril de 2009).

2 O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA NA VISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

É cediço que o Supremo Tribunal Federal, a quem compete, precipuamente, a guarda da Constituição, já asseverou que o duplo grau de jurisdição “não consubstancia garantia constitucional” (Ag. Reg. em AI nº 210.048-0/SP).

Tal compreensão também foi levada em conta durante o período que a Corte Máxima nutria compreensão no sentido de ser possível a exigência de depósito prévio para fins de acesso a via recursal administrativa, conforme ilustra a seguinte ementa:

“EMENTA: – Recurso extraordinário. Admissibilidade de recurso administrativo. Depósito de 30% do valor do débito. – O Plenário desta Corte, ao julgar a ADIMC 1.922, de que fui relator, indeferiu o pedido de medida liminar contra o § 2º do art. 33 do Decreto Federal 70.235/72, com a redação dada pelo artigo 32 da Medida Provisória 1.863-53/99 (resultado de reedições sucessivas, e entre elas se acha a Medida Provisória 1.621-30/99), por entender ausente a plausibilidade jurídica da tese de ofensa aos incisos XXXIV, XXXV, LIV e LV do artigo 5º da Constituição. Salientou-se, ainda, nesse acórdão que isso ocorria inclusive pela inexistência, na Carta Magna, da garantia ao duplo grau de jurisdição na via administrativa, sendo esse depósito requisito de admissibilidade de recurso administrativo e não o pagamento de taxa para o exercício do direito de petição. Posteriormente também assim foi decidido no RE 234.425 em caso análogo. Dessa orientação, divergiu o acórdão recorrido. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE 311023, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 18/09/2001, DJ 26-10-2001 PP-00063 EMENT VOL-02049-05 PP-00961)

Ocorre que com a edição da sumula vinculante nº 21[4], a Suprema Corte Brasileira teria, aparentemente, não apenas declarado a inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio para a admissibilidade de recurso administrativo; como, finalmente, teria reconhecido o caráter de garantia constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição. Contudo, esta última hipótese não se vislumbra, segundo se depreende da leitura atenta dos votos dados no leading case (RE 388.359-3/PE) que determinou a reviravolta na jurisprudência constitucional, ensejando a formulação do sobredito verbete.

Nessa esteira, nota-se patente, não só no voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio, relator no RE 388.359-3/PE, como no dos demais Ministros que o acompanharam, que o entendimento prevalecente apegou-se a tese de que uma vez que o recurso administrativo consubstancia garantia constitucional do direito de petição, e seu usufruto independe do pagamento de taxas (art. 5º, XXXIV, “a”, CF/88), não seria razoável (rectius: constitucional) erigir condicionante baseada na capacidade econômico-financeiro do cidadão/contribuinte. Pois, eventualmente, isto redundaria em malferimento do princípio da isonomia, mormente porque algum interessado, apresentando situação legal idêntica a de outro, poderia ver-se alijado do direito a revisão de uma decisão desfavorável por, circunstancialmente, não dispor da quantia ou bem exigido.

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Apesar de ter sido engrandecido sobremaneira o princípio da revisibilidade, que segundo o Ministro Carlos Ayres Brito também parece emprestar ao art. 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição, dimensão mais generosa. Não se chegou, no entanto, ao ponto de reconhecer o princípio do duplo de grau como garantia constitucional.

Por causa dessa última afirmação, merece destaque trecho do voto proferido pelo Ministro Cezar Peluso, que se contrapôs a tese até então vigente na Corte Suprema, exposta no voto do Ministro Sepúlveda Pertence[5], quando externou entendimento a respeito do princípio do duplo grau de jurisdição, in verbis:

“O argumento expendido pelo eminente Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, segundo o qual a exigência de depósito não ofenderia a Constituição da República, porque esta não prevê recurso na esfera administrativa, nem condiciona ao exaurimento de instâncias administrativas o acesso ao Poder Judiciário, não me parece, com o  devido respeito, soar como objeção intransponível.

Uma vez franqueado ao contribuinte, pela legislação subalterna, via de acesso a instância recursal administrativa, não faz sentido impor-lhe exigências desproporcionais que terminem por inviabilizar o manejo do próprio remédio recursal. Institui-se direito subjetivo, e ao mesmo tempo frustra-se-lhe, na prática, o exercício! Nisso, a efetividade da norma constitucional que prevê o direito de petição é aviltada pela exigência do depósito recursal prévio.

Embora se possa aderir à tese de que a Constituição da República não contemplaria, pelo menos de modo direto, o duplo grau administrativo, como parece tampouco fazê-lo, pelo menos sob disciplina genérica, quanto à jurisdição mesma, sua concreta previsão na legislação inferior deve acomodar-se aos princípios constitucionais, a cuja luz não fora demasia filiar-lhe a obrigatoriedade na amplitude que a Constituição da República confere e assegura, também no processo administrativo, à defesa do litigante, “com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, inc. LV). Suposto a Constituição não obrigue à instituição de instâncias recursais na esfera administrativa, já se caracteriza nítida lesão ao princípio do devido processo legal (due processo of Law) e ao direito de petição, quando, com instituí-las, a lei subordine o uso dos recursos à satisfação de exigência que repugne a outros preceitos constitucionais”. (grifamos)

Percebe-se, sem esforço, que o Min. Cesar Peluso, a despeito de pronunciar entendimento superando tese atrelada precipuamente ao não reconhecimento da obrigatoriedade de segunda instância administrativa, ponderou que uma vez prevista legalmente, a Administração Pública obriga-se a franquear ao interessado o seu acesso, sem prejuízo do estabelecimento de condicionantes razoáveis e contrabalanceadas pelas demais garantias constitucionais.

CONCLUSÃO

Enfim, permanece o entendimento de que o princípio do duplo grau de jurisdição não representa garantia de cunho constitucional que imponha a criação de instâncias administrativas revisoras ou grau hierárquico de jurisdição administrativa. No entanto, uma vez estabelecida legalmente, não pode a lei condicionar a admissibilidade de recurso voluntário a qualquer depósito ou pagamento de quantia que represente, na prática, a negação desse direito. Conclusão que não prejudica a vigência e o respeito de requisitos mínimos formais ou materiais de admissibilidade recursal administrativa.

 

Referências:
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 7. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 53/2006. – São Paulo: Saraiva, 2007.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 3ª ed.. Coimbra: Almedina, 1998.
MARINONI, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 9 ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2011.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 3ª ed., 1993.
 
Notas:
[1] Nossa primeira Constituição exprimia-se nestes termos: “Art. 158. Para julgar as Causas em segunda, e ultima instancia haverá nas Provincias do Imperio as Relações, que forem necessarias para commodidade dos Povos”.

[2] “O duplo grau de jurisdição, entretanto, não constitui garantia constitucional, como se chegou a imaginar. Omissis. O duplo grau de jurisdição continua a fazer parte, consequentemente, de nossa tradição infraconstitucional, pois não foi introduzido no elenco dos direitos e garantias constitucionais dos indivíduos e da sociedade.” Manoel Antônio Teixeira Filho. Cadernos de Processo Civil. 1999, pp. 60 e 61.

[3] O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE nº 637.975/MG-RG (DJe de 1º/9/11), com repercussão geral reconhecida, de relatoria do Ministro Cezar Peluzo, entendeu que a norma que afirma ser incabível apelação em casos de execução fiscal cujo valor seja inferior a 50 ORTN não afronta os princípios constitucionais da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da inafastabilidade da prestação jurisdicional e do duplo grau de jurisdição.

[4] É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.

[5] Na ocasião o Min. Pertence reportou-se ao voto proferido na ADI 1.922-MC, quando sustentou, no que importa, o seguinte: “A Constituição, a meu ver, não garante o recurso administrativo. Ela estabelecerá, conforme a matéria, procedimentos administrativos para tornar definitivas as decisões administrativas sempre sujeitas a controle jurisdicional. Controle jurisdicional, no entanto, repita-se, jamais dependente da exaustão da instância administrativa”.


Informações Sobre o Autor

João Batista do Rêgo Júnior

Assessor Jurídico na SEF/DF. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Instrutor da Escola de Governo do DF. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho. Pós-graduado em Ensino Superior Jurídico


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