Da (in)convencionalidade da norma que estabelece o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de setenta anos

Resumo: O presente estudo analisa a norma prevista no artigo 1.641, inciso II, da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil brasileiro), que prevê a obrigatoriedade do regime da separação de bens no casamento da pessoa idosa com mais de setenta anos de idade, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, partindo da premissa de que, no Estado Democrático de Direito, o idoso é sujeito de direitos e não objeto de proteção do Estado.

Palavras-chaves: Casamento. Regime. Separação Obrigatória. Idoso. Convencionalidade.

Resumen: En este artículo se analiza la norma prevista en el artículo 1.641, párrafo II, de la Ley núm. 10.406, de 10 de enero de 2002 (Código Civil Brasileño), que establece el régimen obligatorio de separación de bienes en el matrimonio con la persona mayor de setenta años de edad, en virtud del derecho internacional de los derechos humanos, sobre la premisa de que en un Estado democrático, el anciano es sujeto de derechos, y no objeto de la protección estatal.

Palabras clave: Matrimonio. Régimen. Separación Obligatoria. Anciano. Convencionalidad

Sumário: Introdução. 1 O regime obrigatório de bens no casamento do idoso no Direito Civil brasileiro. 2 O Controle de Convencionalidade das normas que compõem o direito interno. 3 A proteção do idoso no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a inconvencionalidade do inciso II do art. 1.641 do Código Civil. 4. Do regime obrigatório e da (des)proporcionalidade da restrição. Conclusão.

Introdução

O direito, em algumas situações, estabelece limites  a direitos fundamentais, com a finalidade de conferir maior proteção ao próprio indivíduo. Nesse contexto, o art. 1.641, do Código Civil de 2002 é exemplo de uma limitação à liberdade individual imposta pelo Estado, pois, em seus incisos, estabelece hipóteses em que não haverá liberdade de escolha do regime de bens no casamento. Ocorre, entretanto, que a imposição de limites ope legis somente se justifica quando há proporcionalidade entre a limitação imposta e a finalidade da proteção jurídica. Desse modo, o presente artigo analisa a limitação prevista no inciso II do artigo 1.641 do Código Civil de 2002 – separação obrigatória de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos de idade -, tendo como parâmetro de controle o Direito Internacional dos Direitos Humanos, examinando, assim, a (in)convencionalidade da norma.

1. O regime obrigatório de bens no casamento do idoso no Direito Civil brasileiro

A escolha do regime de bens no casamento, regra geral, é livre aos casais, por força do princípio da liberdade de escolha e estruturação do regime de bens, previsto no art. 1.639, c/c art. 1.640, parágrafo único, do Código Civil de 2002.

“Podem os noivos adotar qualquer dos regimes de bens previstos na lei ou gerar um regime próprio. Mantendo-se silenciosos, ou seja, não firmando pacto antenupcial, vigora o regime da comunhão parcial”. (DIAS, 2011, p. 247)

Situações há, contudo, em que o direito impede a livre escolha do regime de bens pelos cônjuges e impõe um regime obrigatório. Assim, nos termos do art. 1.641, é obrigatório o regime da separação de bens no casamento: (i) das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; (ii) da pessoa maior de 70 (setenta) anos de idade; e (iii) de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Concentrando-se o presente estudo na análise da hipótese prevista no inciso II do art. 1.641 do Código Civil – pessoa maior de setenta anos -, cumpre mencionar que, sob a égide do Código Civil de 1916, estabelecia-se a obrigatoriedade de bens no casamento do homem maior de sessenta anos e da mulher maior de cinquenta anos (art. 258, parágrafo único, inc. II, do Código Civil de 1916). Posteriormente, com o advento do Código Civil de 2002, em sua redação original, previa-se o regime legal obrigatório aos maiores de sessenta anos de idade e, ainda mais recentemente, a Lei n. 12.344, de 09 de dezembro de 2010, aumentou esse limite de idade de 60 para 70 anos.

Há quem sustente a eficácia protetiva de tal norma, a exemplo de Regina Beatriz Tavares da SILVA, atualizadora da obra de Washington de Barros MONTEIRO, ao argumento de que, “reconhecidos os maiores atrativos de quem tem fortuna, o direito de família não poderia aceitar que um casamento por meros interesses financeiros seja realizado em prejuízo do cônjuge idoso e de seus familiares de sangue e, ainda: “Conforme os anos se passam, a idade avançada acarreta maiores carências afetivas e, portanto, maiores riscos corre aquele que tem mais de setenta anos de sujeitar-se a um casamento em que o outro nubente tenha em vista somente vantagens financeiras”. (2004, p. 218)

Argumentos desse jaez, com o devido respeito àqueles que pensam dessa forma, a pretexto de proteger, perpetuam odiosa discriminação às pessoas maiores de 70 anos, além de enxergar o indivíduo como um objeto de proteção do Estado em face de seu patrimônio e de sua idade avançada, devendo-se reconhecer que, em um Estado Democrático de Direito, razões de ordem puramente patrimonial não devem esvaziar o conteúdo essencial de outros direitos fundamentais, fulminando a própria dignidade da pessoa humana.

A corroborar esse entendimento, a doutrina, de forma amplamente majoritária, tem se posicionado no mesmo sentido, conforme demonstra Carlos Roberto GONÇALVES (2012, v. 6, p. 324-6):

Francisco José CAHALI, atualizando a obra de Silvio RODRIGUES, afirma que a restrição à escolha do regime de bens pelos maiores de 70 anos é atentatória à liberdade individual, ponderando que a tutela excessiva do Estado sobre pessoa maior e capaz é descabida e injustificável, de modo que “melhor se teria se o novo Código tivesse previsto como regime legal o da separação, facultada, entretanto, a celebração de pacto para outra opção, ou ao menos a possibilidade de, mediante autorização judicial, ser livremente convencionado o regime”. (2004, p. 144-6)

Tânia da Silva PEREIRA, atualizadora da obra de Caio Mário da Silva PEREIRA, argumenta que a limitação em exame “não encontra justificativa econômica ou moral, pois que a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem razão para subsistir. Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesse nessas faixas etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode existir”. (2002, p. 194)

João Batista VILLELA, por sua vez, destaca que “a proibição, na verdade, é bem um reflexo da postura patrimonialista do Código e constitui mais um dos ultrajes gratuitos que a nossa cultura inflige na terceira idade”. (1980, p. 35)

Paulo Luiz Netto LÔBO, de seu turno, sustenta que a “hipótese é atentatória do princípio da dignidade da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-la à tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Consequentemente, é inconstitucional esse ônus”. (2003, p. 242-3)

Também Silmara Juny CHINELATO enfatiza que a vida prática “nos dá exemplos de pessoas do mais alto discernimento que ultrapassaram os sessenta anos. Os legisladores do novo Código, por exemplo, e muitos dos juízes e desembargadores que irão julgar causas que envolvam direta ou indiretamente o inciso II do art. 1.641. Curiosamente, a lei presume tenham maturidade, vivência e discernimento para escolher o regime de bens pessoas que há pouco entraram na idade adulta: as que completaram dezoito anos, agora plenamente capazes”. (2004, p. 290-1)

Cristiano Chaves de FARIAS, aduz que a restrição à liberdade de escolha do regime de bens no casamento quando um dos nubentes tiver mais de setenta anos de idade é nitidamente inconstitucional, tratando-se de “dispositivo legal inconstitucional, ferindo frontalmente o fundamental princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III)”. (2014, p. 1.083)

Por fim, Maria Berenice DIAS, citando Rolf MADALENO, com a precisão que lhe é peculiar, afirma:

“A limitação à autonomia da vontade por implemento de determinada idade, além de odiosa, é inconstitucional. Em face do direito à igualdade e à liberdade, ninguém poderia ser discriminado em função do seu sexo ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade. A plena capacidade é adquirida quando do implemento da maioridade e só pode ser afastada em situações extremas e através do processo judicial de interdição (CPC 1.777 a 1.186)”. (2011, p. 473) (grifos da autora)

Verifica-se, portanto, que a esmagadora maioria da doutrina sustenta a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do Código Civil, pelo que o presente estudo avançará a tese da invalidade do dispositivo sobre um outro enfoque, qual seja, o da convencionalidade da norma, tendo como parâmetro de controle o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

2. O Controle de Convencionalidade das normas que compõem o direito interno

O tema do controle de convencionalidade, segundo Valerio de Oliveira MAZZUOLI, se deu entre nós a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004. Trata-se, em apertada síntese, da verificação da compatibilidade entre o direito interno e os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país, realizando-se, desse modo, um duplo controle da validade das normas, tendo como parâmetro, em um primeiro momento, a Constituição Federal – controle de constitucionalidade – e, em um segundo momento, os tratados de direitos humanos – controle de convencionalidade, na perspectiva do Estado Constitucional e Humanista de Direito. (2009, p. 114)

Ainda segundo o mesmo autor, o primeiro entre nós a tratar sobre o tema, “a incompatibilidade da produção normativa doméstica com os tratados internacionais em vigor no plano interno (ainda que tudo seja compatível com a Constituição) torna inválidas as normas jurídicas de direito interno.” (MAZZUOLI, 2009, p. 115) Rompe-se, destarte, com a dogmática positivista clássica, que confundia vigência com validade da norma jurídica, admitindo-se, com FERRAJOLI, a distinção entre os planos da vigência e da validade das normas. Nesse sentido, a vigência de determinada norma estaria relacionada com a forma dos atos normativos, enquanto que a sua validade seria uma questão de coerência ou de compatibilidade das normas produzidas pelo direito doméstico com aquelas de caráter substancial, advindas da Constituição e também dos tratados de direitos humanos em vigor no país. (1999, p. 21-22)

Vale referir que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem evoluído consideravelmente quanto ao tema do conflito entre tratados e normas internas, como se deu a partir do voto do Ministro Sepúlveda PERTENCE, em 29 de março de 2000, no julgamento do RHC n. 79.785/RJ, no qual entendeu ser possível considerar os tratados de direitos humanos como documentos de caráter supralegal. Posteriormente, a tese da natureza supralegal (acima da legislação ordinária e abaixo da Constituição) da Convenção Americana de Direitos Humanos sagrou-se vencedora, a partir do voto-vista do Ministro Gilmar MENDES na sessão plenária do dia 22 de novembro de 2006, no julgamento do RE n. 466.343/SP, em que se discutia a questão da prisão civil do depositário infiel. Entendeu-se, assim, que os diplomas normativos internacionais de proteção dos direitos humanos que não forem ratificados na forma do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal teriam efeito paralisante em relação à legislação infraconstitucional.

Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade deve ser exercido pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos quais o país se encontra vinculado, conformando-se os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para estes deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno. (MAZZUOLI, 2009, p. 128-9)

Postas essas premissas, passa-se a analisar a compatibilidade da imposição da obrigatoriedade do regime de separação legal aos maiores de setenta anos de idade, prevista no art. 1.641, II, do Código Civil de 2002 e as normas internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil.

3. A proteção do idoso no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a inconvencionalidade do inciso II do art. 1.641 do Código Civil

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (XXV 1) proclama o direito à segurança na velhice

Segundo Mary ROBINSON, Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos (1997 – 2002), o Século XX foi testemunha da mais extensa longevidade da história da humanidade:

“A cada dia que passa, as pessoas idosas abrem novos caminhos, demonstrando que a idade não é necessariamente uma barreira para o êxito nas esferas que escolheram. No ano passado [1998], John Glenn regressou ao espaço [aos 77 anos de idade], Mitislav Rostropovich continuou a deleitar os amantes da música em todo o mundo e Dame Judi Dench [aos 64 anos] ganhou um Oscar”. (ROBINSON, 1999)

Ao contrário do que já conquistaram as crianças e as mulheres, no caso das pessoas idosas ainda não há uma Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa Idosa no âmbito do sistema global de proteção dos direitos humanos. No entanto, a partir de 1982 ampliou-se significativamente a afirmação dos direitos desta população. Em 1982, a Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento aprovou o Plano de Ação Internacional de Viena sobre o Envelhecimento, com 62 recomendações, muitas das quais têm uma relevância direta para o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e é a base da política para a pessoa idosa, no plano internacional. Em 1991, a Assembleia Geral aprovou os Princípios das Nações Unidas em prol das Pessoas Idosas. Estes princípios estão divididos em cinco seções:

“Independência” que inclui o acesso à alimentação, à água, à habitação, ao vestuário e aos cuidados de saúde adequados. Direitos básicos a que se acrescentam a oportunidade de um trabalho remunerado e o acesso à educação e à formação.

Por “participação” entende-se que as pessoas idosas deveriam participar activamente na formulação e aplicação das políticas que afectem directamente o seu bem-estar e poder partilhar os seus conhecimentos e capacidades com as gerações mais novas bem como poder formar movimentos ou associações.

A secção intitulada “cuidados” afirma que as pessoas idosas deveriam poder beneficiar dos cuidados da família, ter acesso aos serviços de saúde e gozar os seus direitos humanos e liberdades fundamentais, quando residam em lares ou instituições onde lhes prestem cuidados ou tratamento.

No que se refere à “auto-realização”, os “Princípios” afirmam que as pessoas de idade deveriam poder aproveitar as oportunidades de desenvolver plenamente o seu potencial, mediante o acesso aos recursos educativos, culturais, espirituais e recreativos da sociedade.

Por fim, a secção intitulada Dignidadeafirma que as pessoas de idade deveriam poder viver com dignidade e segurança, e libertas da exploração e maus tratos físicos ou mentais, ser tratadas dignamente, independentemente da idade, sexo, raça ou origem étnica, deficiência, situação económica ou qualquer outra condição, e ser valorizadas independentemente do seu contributo económico. (grifo nosso) (DIREITOS ECONÓMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DAS PESSOAS IDOSAS, Comentário Geral n. 6, contido no documento E/1996/22, anexo IV)

Nos termos do Comentário Geral n. 6, aprovado pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 1995, “a população de idade avançada é o grupo com maior crescimento em todo o mundo, com um aumento estimado em 10%, entre 1950 e 2025, em comparação com os 6% do grupo de pessoas de 60 anos de idade e um pouco acima de 3% do conjunto da população”. Ainda segundo referido Comentário Geral, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais verifica que, embora ainda talvez não fosse possível concluir que a discriminação por razões de idade é amplamente proibida pelo Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “o número de questões em relação às quais a referida discriminação pode ser aceita é muito limitado. Há que se ressaltar, além disso, que muitos dos documentos de política internacional insistem na não aceitação da discriminação das pessoas idosas, aspecto recolhido na legislação da imensa maioria dos Estados”.

Em 1999, as Nações Unidas celebraram o Ano Internacional das Pessoas Idosas, tendo sido formulado o conceito de uma sociedade para todas as idades, que possuía quatro dimensões: (a) desenvolvimento individual durante toda a vida; (b) relações entre várias gerações; (c) relação mútua entre envelhecimento da população e desenvolvimento; e (d) a situação dos idosos. Desse modo, o Ano Internacional contribuiu para a promoção da consciência desses problemas, assim como para a pesquisa e a ação em matéria de políticas, em todo o mundo, composta dos esforços por incorporar as questões relacionadas com o envelhecimento às atividades de todos os setores e promover oportunidades relativas a todas as fases da vida.

Posteriormente, um segundo Plano Internacional para o Envelhecimento (PIAE) foi aprovado pelas Nações Unidas, durante a II Assembleia Mundial sobre Envelhecimento, realizada em abril de 2002, em Madri. Em referido documento, a ONU recomenda a promoção de abordagem positiva do envelhecimento e de superação dos estereótipos associados aos idosos:

“O Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento, 2002, exige mudanças das atitudes, das políticas e das práticas em todos os níveis e em todos os setores, para que possam se concretizar as enormes possibilidades que oferece o envelhecimento no século XXI. Muitos idosos envelhecem com segurança e dignidade e também elevam sua própria capacidade para participar no âmbito de suas famílias e comunidades. O objetivo do Plano de Ação consiste em garantir que em, todas as partes, a população possa envelhecer com segurança e dignidade e que os idosos possam continuar participando em suas respectivas sociedades como cidadãos com plenos direitos. Sem deixar de reconhecer que as bases de uma velhice sadia e enriquecedora são lançadas em uma etapa inicial da vida. O objetivo do Plano é oferecer um instrumento prático para ajudar os responsáveis pela da formulação de políticas a considerar as prioridades básicas associadas com o envelhecimento dos indivíduos e das populações. Reconhecem-se as características comuns do envelhecimento e os problemas que apresenta e se formulam recomendações concretas adaptáveis às mais diversas circunstâncias de cada país. No Plano levam-se em conta as diversas etapas do desenvolvimento e as transições que estão tendo lugar em diversas regiões, assim como a interdependência de todos os países na presente época de globalização”. (grifo nosso)

E prossegue, mais adiante, o Plano Internacional para o Envelhecimento (PIAE):

“A promoção e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, inclusive o direito ao desenvolvimento, são essenciais para a criação de uma sociedade que inclua todas as idades, da qual os idosos participem plenamente, sem discriminação, e em condições de igualdade. A luta contra a discriminação por motivos de idade e a promoção da dignidade dos idosos é [sic] são fundamentais para assegurar o respeito merecido por essas pessoas. A promoção e proteção de todos direitos humanos e liberdades fundamentais são importantes para uma sociedade para todas as idades. Para isto, a relação mútua entre as gerações deve ser cultivada, ressaltada e estabelecida mediante um diálogo amplo e eficaz”. (grifo nosso)

Nota-se, portanto, que a imposição do regime da separação de bens obrigatória prevista no art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, é incompatível com os Princípios das Nações Unidas em prol das Pessoas Idosas firmados em 1991 e, além disso, é inadequada frente ao conceito de uma sociedade para todas as idades desenvolvido no Ano Internacional das Pessoas Idosas (1999) e afrontoso às diretrizes do Plano Internacional para o Envelhecimento (PIAE) aprovado pelas Nações Unidas em 2002, notadamente com relação à luta contra a discriminação por motivos de idade, a promoção da dignidade dos idosos e a superação dos estereótipos associados aos idosos.

Tais incompatibilidades, entretanto, não são suficientes a impedir a aplicação das normas do direito interno por meio do controle de convencionalidade, uma vez que tais princípios, recomendações e diretrizes não possuem a mesma força vinculante dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro, pois são normas não convencionais, reconhecidas como costumes no âmbito do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. (RAMOS, 2012, p. 38)

 Por outro lado, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e aprovado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de1991, e promulgado pelo Decreto n. 592, de 06 de julho de 1992, estabelece, em seu artigo 2, o princípio da não-discriminação por motivo de qualquer natureza, o que inclui, por certo, a vedação a qualquer tipo de discriminação por razões ligadas à idade. Mais adiante, no artigo 23, o Pacto reconhece o direito do homem e da mulher de, em idade núbil, casar e construir família, sem fixar qualquer restrição ao matrimônio da pessoa idosa. Destarte, entende-se que a restrição da escolha do regime de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos é incompatível com o princípio da não-discriminação por motivo de idade, padecendo, portanto, de vício de inconvencionalidade à luz do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

O mesmo ocorre no âmbito do sistema regional interamericano de proteção dos direitos humanos. Muito embora não haja convenção própria que estabeleça expressamente direitos específicos dos idosos, a Convenção Americana de Direitos Humanos também estabelece o princípio da não-discriminação de qualquer natureza, além de assegurar a todas as pessoas: o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3º); o direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade (art. 11.1); a garantia de que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada e na de sua família (art. 11); o direito de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que estas não afastem o princípio da não-discriminação estabelecido na Convenção (art. 17 c/c art. 1º).

Desse modo, a partir desses direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos e, sobretudo, considerando que a medida prevista no art. 1.461, II, do Código Civil viola o princípio da não-discriminação assegurado nos artigos 1º e 17 da Convenção, notadamente no que diz respeito ao direito dos idosos de fundarem uma família e escolherem o regime de bens por ocasião do matrimônio, é de se notar que a fixação do regime de separação obrigatória de bens padece de vício de inconvencionalidade também à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, pelo que deve ser extirpado de nosso ordenamento jurídico.

Isto posto, sem olvidar de que, por vezes, o próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos prevê hipóteses em que o Direito interno poderá adotar medidas específicas para acelerar o processo de igualação dos sujeitos pertencentes a certas minorias, como ocorre em relação às mulheres, às minorias étnico-raciais e às pessoas com deficiências, por meio de ações afirmativas, tal não ocorre com a norma prevista no art. 1.641, II, do Código Civil, uma vez que, esta, a pretexto de proteger o patrimônio das pessoas maiores de setenta anos, estabelece verdadeira discriminação, em antagonismo ao princípio da não-discriminação que rege o sistema de proteção dos direitos humanos.

4. Do regime obrigatório de separação de bens e da (des)proporcionalidade da restrição

A imposição do regime obrigatório, na hipótese em análise, ademais de ferir o princípio da não-discriminação que informa o Direito Internacional dos Direitos Humanos, é desproporcional.

Segundo Virgílio Afonso da SILVA, a regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão, tendo uma estrutura racionalmente definida, com sub-elementos independentes, quais sejam, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido-estrito, que são aplicados em uma ordem pré-definida e de forma subsidiária, conferindo à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade. (2002, p. 30).

A adequação consiste em que o objetivo pretendido pela limitação imposta pela norma seja alcançado ou pelo menos fomentado. Desse modo, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido. (SILVA, 2002, p. 37). Assim, verifica-se que a imposição do regime da separação obrigatória de bens aos maiores de 70 anos pode ser tida como adequada, pois a sua utilização contribui para a proteção ao patrimônio dessas pessoas.

A necessidade, por sua vez, indica que um ato estatal será tido por necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido. (SILVA, 2002, p. 38-9) Aqui, tampouco enxergamos a ausência da necessidade, uma vez que a proteção ao patrimônio da pessoa maior de 70 anos não poderia ser promovida, com a mesma intensidade, através de outra limitação.

“Ainda que uma medida que limite um direito fundamental seja adequada e necessária para promover um outro direito fundamental, isso não significa, por si só, que ela deve ser considerada como proporcional.” Necessário é, ainda, o exame da proporcionalidade em sentido estrito, “que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”. (SILVA, 2002, p. 41). Aqui, portanto, reside a desproporcionalidade da norma que se extrai do art. 1.641, II, do Código Civil, já que os motivos que fundamentam a adoção da restrição – de cunho eminentemente patrimonial – não tem peso suficiente para justificar a restrição a direitos fundamentais como a igualdade, a liberdade e a própria dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, a imposição da separação obrigatória aos maiores de 70 anos afronta o próprio critério da proporcionalidade, em sua faceta da proporcionalidade em sentido estrito, o que corrobora, mais uma vez, o caráter desarrazoado da restrição.

Conclusão

Como conclusão, passamos a arrolar sucintamente o tanto quanto aqui defendido:

1. O art. 1.641, inc. II, do Código Civil de 2002, estabelece hipótese em que não haverá liberdade de escolha do regime de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos de idade e impõe a obrigatoriedade da adoção do regime da separação obrigatória de bens, a pretexto de conferir maior proteção ao patrimônio dessas pessoas.

2. Tal restrição perpetua odiosa discriminação às pessoas maiores de 70 anos, além de enxergar o indivíduo como um objeto de proteção do Estado em face de seu patrimônio e de sua idade avançada.

3. Em um Estado Democrático de Direito, razões de ordem puramente patrimonial não devem esvaziar o conteúdo essencial de outros direitos fundamentais, como a igualdade, a liberdade e a própria dignidade da pessoa humana.

4. Doutrina quase unânime sustenta a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do Código Civil, por colidir frontalmente com a dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da Constituição Federal).

5. Da verificação da compatibilidade entre tal norma de direito interno e os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país, realizou-se o que a doutrina denominou Controle de Convencionalidade.

6. A restrição da escolha do regime de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos é incompatível com o princípio da não-discriminação previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 2º) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 1º c/c art. 17), sendo, portanto, norma inválida à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

7. Por fim, tal restrição, além de inconvencional, é desproporcional, uma vez que os motivos que a fundamentam – de cunho eminentemente patrimonial – não tem peso suficiente para justificar a restrição a direitos fundamentais como a igualdade, a liberdade e a própria dignidade da pessoa humana.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Bruno Malta Borges

Advogado atuante em Goiânia Goiás Especialista em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco UCDB. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina


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