Resumo: Trata-se a presente monografia de apresentar argumentos que justifiquem a legitimidade do controle judicial de políticas públicas no Brasil. A atuação do Poder Judiciário como sendo agente concretizador dos direitos sociais, quando omissa ou insuficiente é a atuação dos Poderes políticos na implementação de políticas públicas. Ademais, aborda a dificuldade de implementação de direitos fundamentais sociais consagrados na Constituição vigente, procurando desfazer argumentos utilizados pelo Poder Público para negar a efetivação desses direitos. A aplicação da reserva do possível por conta da escassez de recursos públicos, a discricionariedade administrativa, a separação de poderes em face da garantia de direitos fundamentais e do mínimo existencial. E por fim, a constatação da legitimidade da intervenção judicial na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.[1]
Palavras-chave: Políticas públicas. Controle judicial. Direitos sociais. Poder Judiciário.
A presente monografia tem o propósito de apresentar argumentos que justifiquem a legitimidade do Poder Judiciário no controle das políticas públicas no Brasil.
Para o desenvolvimento do tema foi feita uma compilação de autores e o trabalho dividiu-se em quatro capítulos, a seguir definidos: introdução, direitos sociais e políticas públicas, Poder Judiciário e controle judicial de políticas públicas e conclusão.
Direitos sociais e políticas públicas perfazem o segundo capítulo no qual são apresentados alguns conceitos que ajudam no entendimento do que significa a expressão “políticas públicas”. Embora se trate de uma definição que há pouco se tem operado no Direito, a compreensão do que significa essa expressão nos fornece um marco inicial para o desenvolvimento do tema. A seguir, são demonstradas as dificuldades trazidas para a implementação de direitos sociais previstos na vigente Constituição da República, sendo que, por vezes, a atuação dos agentes políticos se mostra omissa ou insuficiente na formulação e execução de políticas públicas. Diretamente ligada a essa problemática, são expostos os argumentos que invariavelmente são apresentados pelo Poder Público quando da necessidade de justificação para a não efetivação de direitos, tais como o orçamento, no tocante à escassez dos recursos, a aplicação da teoria da reserva do possível e a separação de poderes.
O terceiro capítulo aduz à intervenção do Poder Judiciário como agente concretizador de direitos fundamentais sociais. Procura o corrente capítulo mostrar os limites de atuação dos juízes nessa tarefa que lhe é conferida em casos concretos, onde cidadãos buscam a tutela jurisdicional para que tenham as condições mínimas de gozo dos direitos, não efetivados por abusividade governamental. Na sequência, propõe uma necessária releitura do princípio da separação ou tripartição dos poderes. Aqui a intenção é verificar que a atuação do Judiciário não é tendendo à usurpação das funções típicas dos outros Poderes e também não caracteriza atentado à democracia, mas sim legitimando uma atuação estatal quando já não se mostra suficientemente eficiente o trabalho dos eleitos para a concretização de direitos. Apresenta ainda as específicas situações onde é possível o controle judicial na formulação e na execução de políticas públicas.
Por fim, antes da etapa conclusiva do trabalho, a análise do icônico julgamento da ADPF-MC 45/DF no qual firmou o posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental, especificamente em relação à efetivação de direitos sociais. Ressalta-se que esse julgado repercutiu não só na própria jurisprudência do STF como em outros tribunais, conforme se verifica nos outros casos listados no decorrer do capítulo.
2 DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS
2.1 Políticas públicas: conceituação
A delimitação e conceituação do que são políticas públicas constituem temática que se fundamenta na Ciência Política, na Sociologia e na Administração Pública. Trata-se de expressão polissêmica. É matéria multidisciplinar e somente nas últimas décadas é que o Direito, por meio da Teoria do Estado, do Direito Constitucional e do Direito Administrativo é que se propôs a utilizar o termo.
Fábio Konder Comparato no “Ensaio sobre ao juízo de constitucionalidade de políticas públicas”, assim explanou:
“O longo silêncio das ciências jurídicas acerca das políticas públicas, deve-se ao fato de que, antes do advento da Revolução Industrial o seu conceito era desnecessário e vazio, entretanto com a instauração do Estado social, oportunidade em que o Estado tomou sob sua responsabilidade uma série de funções voltadas para a promoção do bem estar dos cidadãos, é que as políticas públicas entraram em pauta”.[2]
Dessa forma, o advento do Estado Social fez com que alguns autores se propusessem a conceituar o termo como a seguir se verifica.
“Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.[3]
Constitui um conjunto de ações ou omissões do Estado, decorrente de decisões e não decisões, constituída por jogo de interesses, tendo como limites e condicionamentos, os processos econômicos, políticos e sociais. Isso significa que uma política pública se estrutura, se organiza e se concretiza a partir de interesses sociais organizados em torno de recursos que também são articulados e muitas vezes, concomitantes e interdependentes, que comportam sequencias de ações em forma de respostas, mais ou menos institucionalizadas, a situações consideradas problemáticas, materializadas mediante programas, projetos e serviços. Ainda, toda política pública é um mecanismo de mudança social, orientada para promover o bem estar de segmentos sociais, principalmente os mais destituídos, devendo ser um mecanismo de distribuição de renda e de equidade social.[4]
No atual estágio de prospecção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, pensamos que a política pública pode ser considerada como a conduta comissiva ou omissiva da Administração Pública, em sentido largo, voltada a consecução de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal, sujeitando-se ao controle jurisdicional amplo e exauriente, especialmente no tocante à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos resultados alcançados.[5]
Políticas públicas, por conseguinte, são as diretrizes, estratégias, prioridades e ações que constituem as metas perseguidas pelos órgãos públicos, em resposta às demandas políticas, sociais e econômicas e para atender aos anseios das coletividades. Nesse conceito tem-se que diretrizes são os pontos básicos dos quais se originara a atuação dos órgãos; estratégias correspondem ao modus faciendi, isto é, aos meios mais convenientes e adequados para a consecução das metas obtidas mediante processo de opção ou escolha, cuja execução antecederá à exigida para outros objetivos; e ações constituem a efetiva atuação dos órgãos públicos para alcançar seus fins. As metas constituem os objetivos a serem alcançados: decorrem na verdade, das propostas que nortearam a fixação das diretrizes.[6]
Pode-se partir do conceito de políticas públicas, como sendo um conjunto de medidas institucionais que constituem programas de ações para implementação de certas finalidades ou objetivos, embasadas num cálculo de custo e benefício da intervenção do Estado e do risco das estratégias adotadas em face do orçamento, sendo performativa da atuação grupos de interesse da sociedade, bem propicia aos interesses organizados a oportunidade de influenciarem a atuação da arena política por meio do estabelecimento da agenda e, em última análise, das próprias policies numa lógica de circularidade. Assim, observa-se que tanto as políticas públicas constituem à arena política e atuação dos grupos de interesse, como também a arena política e a influência dos grupos de interesse nesse cenário, conjuntamente, constituem as políticas públicas.”[7]
Alguns conceitos foram postos, porém não é intenção desse trabalho esgotá-los até porque ainda tantos outros enunciados existem e também porque não se trata de um conceito pronto e acabado para a teoria jurídica. O essencial acerca do que são políticas públicas pode ser resumido como sendo um conjunto de ações/programas de ordem governamental que, considerando a dotação orçamentária do Estado e suas prioridades, visa promover o bem estar social aos segmentos da sociedade que se encontram em posição mais desfavorecida em relação a totalidade, podendo assim desfrutarem de condições materiais para existência de uma vida digna. Para além desse efeito progressivo, as políticas públicas podem ser “neutras” ou sem efeito redistributivo, podendo adotar o caráter “regressivo”, consolidando, dessa maneira, a posição daqueles que estão melhor posicionados.
Adiante, trataremos dos direitos sociais previstos na Constituição vigente e as dificuldades de implementação.
2.2 Direitos sociais na CR/88: dificuldades para implementação
Os direitos sociais, econômicos e culturais são denominados de segunda geração ou dimensão. Datam do século XX, onde pioneiramente aparecem na Constituição Mexicana de 1917 e posteriormente na Constituição Alemã de 1919. Ganharam relevância jurídica internacional após o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos e Sociais de 1966, ratificado tardiamente pelo Brasil em 1992. É uma categoria de direitos forjada no ideal de igualdade e assim sendo, exigem necessariamente obrigações ou prestações positivas do Estado em prol da sociedade a fim de reduzir as desigualdades ofertando aos hipossuficientes o necessário para uma vida digna promovendo o desenvolvimento da personalidade humana. Buscam a realização de uma igualdade substancial com objetivos claros de compensação de séculos de desigualdade fática.
José Afonso da Silva propôs o seguinte conceito:
“Direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.”[8]
A Constituição Brasileira vigente consagra, expressamente, um amplo catálogo de direitos sociais. O constituinte originário houve por bem destacar tais direitos, recepcionando-os no Título II, capítulo II, arts. 6º e 7º. Dada à posição em que foram alocados no Texto Constitucional, os direitos sociais, alçados à categoria de direitos fundamentais e valor supremo da República, vinculam o Poder Público uma vez que tais direitos gozam de eficácia plena e aplicação imediata, conforme art. 5º, § 1º da CR/88.
O rol constante no art. 6º é meramente exemplificativo no qual aparece o direito à saúde, à educação, à alimentação, o trabalho, a moradia, ao lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Além dessa disposição, esses direitos são pormenorizados no Título VIII – Da Ordem Social, onde estão as referências aos órgãos e instituições que asseguram a sua efetividade.
Como se observa são direitos que, em sua maioria, dependem de uma atuação estatal movida pela oferta de prestações materiais, implantação e execução de políticas públicas, que, por conseguinte, operam-se com recursos oriundos dos cofres públicos.
Da necessidade de implantação de políticas públicas é que surge a dificuldade para a implementação dos direitos sociais previstos, visto que estão limitados pela dotação orçamentária do Estado e dependente também de uma ampla e bem planejada infraestrutura. Conforme aponta Sérgio Resende de Barros:
“Mas essa intervenção do Estado para superar mediante direitos sociais as desigualdades reais tem um custo econômico-financeiro. Assim, a íntima relação existente entre as políticas públicas e os direitos sociais condiciona a atuação do Estado a prestações diretamente vinculadas à destinação dos bens públicos e à disponibilidade orçamentária. Dessa forma, as políticas públicas e, mais particularmente, os direitos sociais que elas enformam tem uma dimensão – um peso – economicamente relevante para o Estado”.[9]
Continua ainda o autor:
“Assim, o gasto público é conditio sine qua non da eficácia das políticas públicas, pois a efetiva realização dos programas por elas enformados não é possível sem alocação de recursos econômicos e humanos estatais, ainda que o Judiciário imponha ao Poder público a satisfação de determinadas prestações reclamadas em juízo. Dessa forma, apresenta-se um problema: a dependência das políticas públicas em relação à real existência dos meios para cumpri-las, mesmo se vierem a tornar-se obrigação judicialmente estabelecida. A efetividade das políticas públicas resulta dependente da atual disponibilidade de recursos por parte do destinatário da pretensão: o Estado. Esse é um limite fático, que precisa ser ponderado.”[10]
Observa-se diante do exposto que as políticas públicas são, ao mesmo tempo, o instrumento e a maior dificuldade para a concretização dos direitos sociais, posto que dependem de ações de poderes políticos, conforme assevera Habacuque Wellington Sodré:
“As políticas públicas são indispensáveis à efetivação de direitos fundamentais e estão condicionadas às ações de poderes políticos, que por sua vez, se encontram dependentes dos valores e diretrizes impostos por normas constitucionais impositivas e de observância geral e obrigatória. Em síntese, são instrumentos de efetivação de direitos, a serem utilizados após a análise de custos e benefícios na relação entre receitas e despesas, visando distribuir, regular e redistribuir benefícios a fim de minorar as desigualdades e aumentar o padrão de vida médio”.[11]
Considerando toda a problemática relativa ao custo dos direitos sociais, principalmente verificada na conjuntura da implementação das políticas públicas sociais, mister se faz ponderações do que se convencionou chamar de reserva do possível ou do financeiramente possível e o mínimo existencial como ponto e contraponto à efetivação dos direitos fundamentais sociais.
2.3 Direitos fundamentais sociais: orçamento, reserva do possível e mínimo existencial
2.3.1 Orçamento e políticas públicas
Como visto no tópico anterior, os direitos sociais, como direitos que necessitam de prestações por parte do Estado para serem concretizados, dependem fundamentalmente de políticas públicas, que por sua vez estão intrinsecamente ligadas ao orçamento público. Conforme menciona Ricardo Lobo Torres:
“O relacionamento entre políticas públicas e orçamento é dialético: o orçamento prevê e autoriza as despesas para a implementação das políticas públicas; mas estas ficam limitadas pelas possibilidades financeiras e por valores e princípios como o do equilíbrio orçamentário”.[12]
Dessa relação tem-se que a efetivação dos direitos fundamentais sociais depende necessariamente do orçamento público, pois é ele um mecanismo de previsão da arrecadação e gasto dos recursos públicos. A partir dele são definidas prioridades para a implementação de políticas públicas. Decidem-se quais obras serão prioritárias, quais promessas de campanha serão cumpridas e quais reivindicações populares poderão ser atendidas.
Aliomar Baleeiro conceitua orçamento como:
“O ato pelo qual o Poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo, por certo período e pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei.”[13]
Por sua vez, José Afonso da Silva oferta-nos o seguinte conceito:
“Orçamento é processo, conjunto integrado de documentos pelos quais se elaboram, se expressam, se aprovam, se executam e se avaliam os planos e programas de obras, serviços e encargos governamentais, com estimativa de receita e fixação das despesas de cada exercício financeiro.”[14]
O planejamento e elaboração do orçamento são definidos a partir do conjunto de três leis de iniciativa do Poder Executivo, sendo o orçamento iniciativa privativa desse Poder, conforme art. 165 da Constituição da República, a saber: Lei do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). De um modo geral, o Plano Plurianual prevê a arrecadação e os gastos em programas e ações em um período de 4 anos. A LDO estabelece metas e prioridades para o exercício financeiro, orienta e elaboração do orçamento e faz, quando necessárias, as alterações na legislação tributária. Por fim, a LOA estima receitas e fixa as despesas para um ano, respeitando as prioridades contidas nas outras duas leis, fazendo o detalhamento de quanto será gasto em cada programa ou ação governamental.
Dessa forma, observa-se que, uma vez elaborado, o orçamento deve ser capaz de perfazer as demandas eleitas pelos políticos e gestores públicos como prioritárias, ou seja, deve ser capaz de realizar as políticas públicas que tanto anseia a sociedade para o seu desenvolvimento socioeconômico.
2.3.2 A reserva do possível e o mínimo existencial
Conforme se pode verificar anteriormente, os direitos fundamentais sociais possuem um custo, uma dimensão econômica que é realidade e precisa ser discutida. Dessa maneira, um olhar atento para a questão orçamentária deve ser feito, visto que as necessidades individuais e coletivas são enormes e os recursos são escassos, ainda que tenhamos uma arrecadação que cresce a cada ano. Porém, um mínimo existencial deve ser garantido. Mas o que vem a ser “mínimo existencial”?
A teoria do mínimo existencial é aquela que reconhece a obrigação do Estado em assegurar aos cidadãos pelo menos as condições mínimas para uma existência digna. Ingo Sarlet conceitua da seguinte maneira:
“O conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida digna, saudável, e que este tem sido identificado como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, que estaria blindado contra qualquer intervenção do Estado e da sociedade.”[15]
Entretanto, de acordo com George Marmelstein, tal teoria não é compatível (por ser insuficiente para proteger os direitos sociais) com o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Pondera o autor:
“A Constituição Federal brasileira não prevê que apenas um mínimo será protegido. Existem, pelo contrário, algumas diretrizes que orientam para uma proteção cada vez mais ampla, por exemplo no âmbito da saúde, que se orienta pelo princípio da universalidade do acesso e integralidade do atendimento, o que afasta a ideia minimalista. Da mesma forma, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, já incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro em janeiro de 1992, fala em “máximo dos recursos disponíveis” para implementar os direitos sociais, o que também é incompatível com uma ideia minimalista”.[16]
A ser considerado o argumento do autor de que a Constituição vigente não protege apenas um mínimo, mas sim orienta uma proteção cada vez mais ampla dos direitos sociais e considerando a grande gama de direitos sociais previstos, a concretização desses direitos, via políticas públicas, fica deveras comprometida, visto o custo das prestações e a escassez de recursos.
A implementação de um direito a prestação exige não só a alocação de recursos financeiros, mas também recursos não monetários, como pessoal e equipamentos. Daí dizer que o ideal para que os direitos sociais fossem plenamente concretizados é que a disponibilidade financeira estatal fosse de tal monte que pudesse atender a todas as necessidades individuais e coletivas, cumprindo com os objetivos constitucionais. Entretanto, a realidade é bem diferente e desenvolveu-se a chamada cláusula ou teoria da reserva do possível. Trata-se de uma construção jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal Alemão[17] que merece particular atenção, visto a maneira que é aplicada no Brasil como argumento para a não efetividade dos direitos sociais, juntamente com o princípio da competência orçamentária do legislador e da competência discricionária administrativa do Executivo.
George Marmelstein assim sintetizou a teoria:
“Os direitos a prestações podem ser exigidos judicialmente, cabendo ao Judiciário, observando o princípio da proporcionalidade, impor ao Poder Público as medidas necessárias à implementação do direito, desde que a ordem judicial fique dentro do financeiramente possível. Nas palavras do tribunal Constitucional Alemão, a reserva do possível é aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da coletividade. Se for razoável (melhor dizendo, proporcional), não pode o Estado se negar a fornecer. Assim, pode-se dizer que a reserva do possível é sinônimo de razoabilidade econômica ou proporcionalidade financeira”.[18]
Da síntese da teoria da reserva do possível tem-se que a ideia é regular a possibilidade e a extensão da atuação do Estado no que tange à concretização de alguns direitos sociais, tais como o direito à educação e à saúde, notadamente direitos prestacionais, condicionando essas prestações à existência de dotação orçamentária disponível. Nesse sentido, a decisão tomada pelo magistrado na efetivação desses direitos deve levar em consideração o impacto que poderá causar as contas públicas, uma vez que a decisão poderá não ser cumprida devido à ausência de recursos, causando desprestígio do julgado e a não implementação do direito.
No entanto, observa-se que, na justificativa para a não implementação de um direito fundamental social, ou seja, contra a sindicação dos direitos sociais, o argumento utilizado pelo Poder Público é justamente a reserva do possível, aceito pela doutrina nacional. Tais alegações devem ser analisadas com devido cuidado e desconfiança, pois:
“A aceitação irrestrita pode transformar os direitos sociais em simples esperanças insatisfeitas, impedindo o crescimento (e em alguns casos contribuindo inclusive para a diminuição dos investimentos em políticas públicas), possibilitando uma discricionariedade desregrada (neste caso, poderia usar o termo arbitrariedade) por parte dos governantes na priorização dos gastos públicos.”[19]
Dirley da Cunha Jr. faz a seguinte advertência:
“A doutrina nacional, lamentavelmente, vem acolhendo comodamente essa criação do direito estrangeiro, aceitando-se indiscriminadamente como obstáculo ao reconhecimento dos direitos originários a prestações, não obstante ter sido a reserva do possível desenvolvida em um contexto jurídico e social distinto da realidade brasileira.”[20]
E complementa:
“Num Estado em que o povo carece de um padrão mínimo de prestações sociais para sobreviver, onde pululam cada vez mais cidadãos socialmente excluídos e onde quase meio milhão de crianças são expostas ao trabalho escravo, enquanto seus pais sequer encontram trabalho e permanecem escravos de um sistema que não lhes garante a mínima dignidade, os direitos sociais não podem ficar reféns de condicionamentos do tipo reserva do possível. […] trasladar para o direito brasileiro essa limitação da reserva do possível criada pelo direito alemão, cuja realidade socioeconômica e política do país difere radicalmente da realidade brasileira, é negar esperança àquele contingente de pessoas que depositou todas as suas expectativas e entregou todos os seus sonhos à fiel guarda do Estado Social do Bem-Estar. […] não atendido esse padrão mínimo, seja pela omissão total ou parcial do legislador, o Poder Judiciário está legitimado a interferir – num autêntico controle dessa omissão inconstitucional – para garantir esse mínimo existencial […]”.[21]
Para Ada Pellegrini Grinover:
“A alegação pelo Poder Público da falta de recursos não é suficiente e deverá ser provada pela própria Administração, sendo aplicável, neste particular, a inversão do ônus da prova previsto no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, ou a flexibilização do ônus da prova previsto no art. 333, do CPC, justamente para atribuir a carga da prova à parte que estiver mais próxima dos fatos e tiver mais facilidade de prova-los. Ainda que a insuficiência de recursos seja devidamente comprovada, deverá ser determinado ao Poder Público que inclua na próxima proposta orçamentária a verba necessária para a implementação da política pública”.[22]
Corrobora do mesmo entendimento, Ingo Wolfgang Sarlet:
“A impossibilidade de atendimento da demanda diante da alegação da reserva do possível deve ser demonstrada pelo Poder Público, a quem incumbe o ônus da prova, a fim de que não se torne um entrave burocrático na concretização dos direitos sociais prestacionais”.[23]
Conforme assevera George Marmelstein, “o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público. É ele quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental.”
Desta forma, a invocação da reserva do possível deve ser feita com cautela, conforme assevera Kellen Cristina de Andrade Avila:
“A conotação essencial da teoria da reserva do possível deve ser compreendida sob a visão dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre a pretensão deduzida, qual seja a efetividade dos direitos constitucionais e as possibilidades financeiras do Estado, se fazendo imprescindível uma motivação pormenorizada que justifique o não atendimento das necessidades essenciais do ser humano, com sua respectiva comprovação objetiva a ser realizada pelo Estado, mas sempre com garantia de respeito ao mínimo existencial.”[24]
Conforme Fernando Borges Mânica:
“Em última análise, a aplicação da teoria da reserva do possível implica reconhecer, de um lado, a inexistência de supremacia absoluta dos direitos fundamentais em toda e qualquer situação; de outro, a inexistência da supremacia absoluta do princípio da competência orçamentária do legislador e da competência administrativa (discricionária) do Executivo como óbices à efetivação dos direitos sociais fundamentais. Isso significa que a inexistência efetiva de recursos e ausência de previsão orçamentária são elementos não absolutos a serem levados em conta no processo de ponderação por meio do qual a decisão judicial deve tomar forma. Assim, o custo do direito envolvido para a efetivação de um direito fundamental não pode servir como óbice intransponível para sua efetivação, mas deve ser levado em conta no processo de ponderação de bens. Além disso, deve participar do processo de ponderação a natureza de providência judicial almejada, em especial no que se refere a sua necessidade, adequação e proporcionalidade específica para a proteção do direito fundamental invocado. Por fim, outros elementos devem participar do processo de ponderação, como o grau de essencialidade do direito fundamental em questão, as condições pessoais e financeiras dos envolvidos e eficácia da providência judicial almejada. Assim deve ser entendida a teoria da reserva do possível.”[25]
Por fim, há de se considerar que os direitos fundamentais admitem concreção gradual, conforme assevera Sérgio Arenhart:
“Na realidade, impende lembrar que os direitos fundamentais admitem concreção gradual, de forma que podem ser implementados paulatinamente, segundo as possibilidades de cada Estado. Esta implementação gradual, todavia, não pode autorizar que, sob o pretexto da indisponibilidade financeira do Estado, possa este furtar-se de realizar o mínimo cabível, dentro da exigência razoável que suas condições autorizariam”. [26]
Canotilho (2004) apud Sérgio Arenhart (2009):
“A gradualidade está associada, por vezes, à ‘ditadura dos cofres vazios’ entendendo-se que ela significa a realização dos direitos sociais em conformidade com o equilíbrio econômico-financeiro do Estado. Se esta ideia de processo gradualístico-concretizador dificilmente pode ser contestada, já assim não acontece com a sugestão avançada por alguns autores sobre a completa discricionariedade do legislador orçamental quanto à atuação socialmente densificadora do Estado. A tese da insindicabilidade das ‘concretizações legislativas’ ou da ‘criação de direitos derivados a prestação’ pelo legislador assenta no postulado de que as políticas de realização de direitos sociais assentam em critérios exclusivos de oportunidade técnico-financeira”.[27]
E acrescenta que:
“Sempre, pois, será possível o controle judicial das políticas públicas – mesmo diante da reserva do possível – quando se tratar de garantir direitos fundamentais mínimos. Idêntica posição se pode exigir do Poder judiciário, à toda evidência, quando o argumento da “reserva do possível” não encontrar respaldo concreto, ou seja, quando o Estado dele se valha apenas para deixar de garantir interesse relevante. Verificada a ausência de qualquer limitação financeira, ou a aplicação de recursos públicos em finalidade evidentemente menos importante do que aquela a ser protegida, cumpre afastar o limite ora estudado, sendo imponível a prestação para o Estado”.[28]
3 PODER JUDICIÁRIO E CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Neste capítulo será abordado o controle judicial de políticas públicas.
Adiante serão apresentados tópicos pertinentes que ratificarão a legitimidade da atuação do Poder Judiciário como fiscalizador e garantidor da efetividade dos direitos sociais, considerando uma releitura necessária do princípio da separação dos poderes em consonância com a teoria dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito. Averiguar-se-á o limite de atuação dos juízes como agente político nesse processo de concretização de direitos, bem como a implementação por via judicial de políticas públicas.
3.1 Os limites de atuação dos juízes e o Princípio da Separação ou Tripartição dos Poderes
Uma questão tocante ao controle judicial de políticas públicas que se apresenta refere-se aos limites que devem ser observados pelos magistrados ao decidirem interferir em uma política pública. Qual o limite da decisão judicial para que não haja confronto com a decisão tomada politicamente pelo Executivo e pelo Legislativo? A ideia aqui é expor os critérios para a atuação dos magistrados e enfrentar os óbices postos tradicionalmente, tais como exemplo a afronta à tripartição dos poderes com a eventual usurpação da função típica dos outros poderes pelo Judiciário para a realização desse controle.
A inclusão dos direitos sociais na CR/88 e sua necessária efetivação ensejou uma nova postura por parte dos magistrados. O juiz, nesse aspecto, deixa de ser um mero aplicador da literalidade dos textos legais, passando a ter um papel proativo, com liberdade argumentativa e interpretativa, interferindo, dessa forma, na Política do Estado, em favor do respeito às leis e aos ditames constitucionais.
A fim de responder a questão inicial, o doutrinador Sérgio Arenhart apresenta a seguinte lição, considerando o papel político do juiz:
“A fim de enfrentar a questão posta, um pressuposto merece ser ponderado: o juiz, atualmente, não é mais visto como simples aplicador do direito. Seu papel, na atualidade, foi alterado de mera ‘boca da lei’, como queria o liberalismo clássico, para verdadeiro agente político, que interfere diretamente nas políticas públicas. Este papel se faz sentir em todas as oportunidades em que o magistrado é levado a julgar. Não há dúvida de que um juiz, que deve decidir sobre a outorga ou não de certo benefício previdenciário a alguém, interfere, mesmo que de forma mínima, em uma política pública. Sua decisão importará a alocação de mais recursos, a alteração de certos procedimentos (para atender ao caso concreto), além de representar um paradigma para outras pessoas e situação equivalente.”[29]
No julgamento de ações coletivas, naturalmente, o juiz é posto em situação de decidir acerca de dois interesses relevantes, em condições opostas. A eleição da “prioridade de maior relevância” exige do magistrado elevada carga de escolha pessoal, firmada em critérios subjetivos, conforme aduz autor anteriormente citado:
“Deveras, no atuar do Direito em ações coletivas, o magistrado frequentemente é levado a não apenas “aplicar o direito ao fato” (como se isso fosse possível), mas a conceber, em realidade, uma opção política, a propósito do bem jurídico ou do interesse social merece maior proteção pelo Estado e, assim, qual o outro interesse que deverá ser limitado para que aquele possa ser tutelado. A fluidez dos conceitos que se liga à proteção coletiva – e aos instrumentos a ela ligados, como a noção de proporcionalidade, de interesse público e de bem comum – outorga, em última análise, ao magistrado um poder semelhante àquele desempenhado pelos representantes políticos da sociedade, impondo ao juiz uma nova forma de pensar as questões a ele sujeitas.”[30]
No que tange ao princípio da proporcionalidade, afirma o autor “talvez represente a mais importante ferramenta de atuação do juiz”[31]. “A proporcionalidade deverá ser avaliada em sentido estrito, de forma a apresentar o resultado mais vantajoso, ou seja, aquele que obtém o melhor resultado em relação a um interesse, com o menor sacrifício aos demais interesses envolvidos no conflito”.
Em dissertação de mestrado, Pedro Ivo Soares Bezerra pondera acerca da utilização do princípio da proporcionalidade:
“A atuação do Judiciário na verificação da obediência ao cumprimento das diretrizes valorativas estabelecidas na constituição, quando da realização de políticas públicas pelo Estado, deve nortear-se pelo princípio da proporcionalidade. Dessa forma, evita-se a exacerbação no exercício da função judicante, com a interferência excessiva e indevida na esfera de atribuições dos órgãos políticos, incumbidos da definição das políticas públicas para a sociedade. Portanto, é inegável a importância do princípio da proporcionalidade como instrumento necessário à efetivação dos direitos fundamentais e, também, como mecanismo para evitar excesso, aplicando-se, nesse caso, o critério da ponderação.”[32]
A atuação do magistrado, dentro dessa nova ótica que se apresenta, quando pautado, no mais possível, de critérios objetivos constitucionalmente aportados, legitima decisões e desqualifica qualquer tentativa de argumentação acerca de usurpação de função de outro representante estatal. E essa nova mentalidade posta aos magistrados exige uma releitura da noção clássica de tripartição ou separação dos poderes.
Para aqueles que são contrários ao controle judicial de políticas públicas, argumento frequente é que ao investigar as atividades dos outros Poderes da República, estaria o Judiciário imiscuindo-se indevidamente, violando, portanto, a separação dos poderes.
Conforme assegura Sérgio Arenhart: “considerar a ideia de ‘separação de poderes’ como imposição de rígida divisão de atribuições entre o Judiciário, o Executivo e o Legislativo é algo que não tem mais pertinência em nenhum país do mundo (aí incluído o Brasil)”.[33] E acrescenta:
“Com efeito, a aplicação da teoria da “separação dos poderes” implicaria a aceitação da ideia de que a legislação somente é atribuída ao Legislativo, de que a administração somente compete ao Executivo e de que a aplicação do direito ao caso concreto (por terceiro imparcial) é providência exclusivamente reservada ao Judiciário. Ora, as medidas provisórias, a autonomia administrativa do Legislativo e do Judiciário (arts. 51, IV, 52, XIII e 99, da CR) e as sentenças normativas da Justiça do Trabalho, respectivamente, são demonstração do equívoco dessa premissa. Aliás, admitida de forma irrestrita a “separação dos poderes”, sequer seria admitido o controle jurisdicional do Estado (mesmo que sob a suposição de violação da legalidade).”[34]
A aceitação irrestrita da noção clássica dessa teoria fatalmente se transformaria em obstáculo para as reivindicações sociais, inviabilizando a concretização de direitos fundamentais. Já não há mais cabimento para a noção histórica no direito pátrio e uma nova proposta de leitura faz-se necessária, conforme propõe Freire Jr.:
“A modernidade requer uma nova proteção social, não mais contra o arbítrio da monarquia, mas desta vez contra os abusos da lei, contra a arbitrariedade das casas parlamentares e contra a falta de efetividade dos direitos assegurados no texto constitucional. Diante dessa proposição emerge que a separação dos poderes deva passar por uma releitura, a fim de que possa manter-se como instrumento de garantia dos direitos constitucionais. É inquestionável que a prerrogativa de formular e executar políticas públicas caiba primariamente aos poderes legislativo e executivo, esse entendimento já foi exposto com vasta fundamentação, pelo STF, que admite a possibilidade, ainda que em bases excepcionais, de o Poder Judiciário determinar a implementação de políticas públicas definidas no texto constitucional, sempre que os órgãos competentes, descumprirem os encargos político-jurídicos que incidirem sobre si através do mandato, e com a sua omissão vierem a comprometer a efetividade dos direitos constitucionais.”[35]
Coaduna desse mesmo entendimento, Andreas Joachim Krell, conforme citação do Ministro-Relator Celso de Mello na ADPF nº 45 que adiante será melhor estudado:
“Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional. No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais.”[36]
Hoje, o sistema adotado no Brasil é o do “balanceamento dos poderes”[37], ou seja:
“O direito nacional não concebe a vedação de o Judiciário controlar atividades de outros “poderes” – seja negando força a estas atividades (controle negativo), seja impondo condutas (controle positivo). Ao contrário, no Brasil, o Judiciário tem sim a prerrogativa de interferir na atividade do Executivo e do Legislativo, para controlar a atuação destes na sua conformidade com o Direito – aí incluídos os princípios e diretrizes constitucionais. Dessa forma, sempre que a atividade dos outros “poderes” se mostre ilegal ou contrária às diretrizes principiológicas da Lei Maior, impõe-se a atuação do Poder Judiciário, coibindo esta ilegalidade e apontando o caminho correto da atividade do Estado, seja vedando certa conduta, seja ainda impondo-a, quando verificada a omissão.”[38]
Ainda nessa esteira, afirma Eduardo Appio:
“A separação dos poderes se assenta na especialização das funções do Estado e não veda o exercício, a título ocasional, de uma determinada função por órgão não-especializado, desde que compatível com sua atividade fim. Já a reserva absoluta da lei implica a destinação específica da regulação de uma determinada matéria – inclusive as formas de exercício de um determinado direito – à atividade legislativa, a qual não pode ser exercida pelos membros dos demais Poderes. É da própria natureza do Poder Judiciário interferir sobre o exercício das atividades dos demais Poderes, na medida em que é o Poder constitucionalmente responsável pela função de verificar a compatibilidade destas atividades com a Constituição Federal. Andreas Krell recorda, neste sentido, que “na medida em que as leis deixam de ser vistas como programas condicionais e assumem a forma de programas finalísticos, o esquema clássico de divisão de poderes perde sua atualidade”.[39]
Acerca da legitimidade da intervenção do Poder Judiciário na aferição de omissões administrativas, Emerson Garcia, tece as seguintes palavras:
“Em um primeiro plano, deve-se ressaltar que a ratio do controle exercido pelo Poder Judiciário, longe de buscar a sedimentação de uma superioridade hierárquica no plano institucional ou a frívola ingerência em seara inerente ao Executivo, é a de velar para que o exercício do poder mantenha uma relação de adequação com a ordem jurídica, substrato legitimador de sua existência. Dessa forma, não se identificará um juízo censório ou punitivo à atividade desenvolvida por outro poder, mas, sim, uma relevante aplicação do sistema de “freios e contrapesos”, inerente ao regime democrático e cujo desiderato final é garantir o bem-estar da coletividade.”[40]
E acrescenta:
“Não merece acolhida, inclusive, a tese de uma possível supremacia do Judiciário em relação aos demais Poderes. As suas vocações de mantenedor da “paz institucional” e de garantidor da preeminência do sistema jurídico assumem especial importância no Estado Social moderno, no qual aumenta a importância do Estado em relação ao indivíduo, com a correlata dependência deste para com aquele, exigindo do Judiciário o controle dessa relação”.[41]
Acerca da legitimidade da intervenção do Judiciário, Andreas Joachim Krell professa a seguinte lição:
“A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes (…). Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência tem percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social”.[42]
E complementa:
“A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. (…) Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais”.[43]
Ultrapassado o argumento da separação dos poderes como óbice à legitimidade constitucional do controle judicial de políticas públicas e definido o limite de atuação dos magistrados, admite-se que legítima é a intervenção do Poder Judiciário para aferição das omissões administrativas que obstruem a efetivação de direitos sociais constitucionalmente previstos. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso afirma que:
“Ainda que os magistrados não tenham o voto popular, desempenham, por legitimação da própria Constituição Federal, um poder político, capaz inclusive de invalidar atos dos outros dois Poderes. A legitimidade, portanto, é normativa, e decorrente da própria Constituição Federal”.[44]
3.1.1 O controle judicial de políticas públicas no Brasil
Embora a parte da doutrina contrária à possibilidade de controle de políticas públicas ainda aponte outros argumentos além da eventual transgressão ao princípio da separação dos poderes, visão por sinal já superada, fato é que a satisfação dos direitos sociais mediante a tutela jurisdicional vem crescendo devido à evolução da sociedade moderna e à maior complexidade das relações sociais e nesse tocante surge a necessidade de intervenção do Poder Judiciário como agente concretizador. Marina Corrêa Xavier faz o seguinte apontamento:
“A partir de uma concepção de imprescindibilidade de diálogo entre os Poderes e da complementaridade de suas capacidades institucionais, é indubitável que cabe também ao Poder Judiciário a concretização dos direitos sociais constitucionalmente estabelecidos”.[45]
No que se refere às políticas públicas, notório é que a sua formulação e execução dependem de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam um mandato eletivo, quais sejam os membros do Legislativo e do Executivo. No entanto, não por raras vezes, as opções políticas não são as melhores e as prioridades não alcançam a efetividade dos direitos sociais. Diante da má gestão das políticas públicas pelo Poder Executivo, encoberto pela escassez de recursos, o Judiciário não pode ficar inerte quando um processo de judicialização se inicia visando a concretização de direitos. Ademais, diante de um caso concreto, deve o Judiciário proferir decisões que imponham ao Estado a obrigação da adoção de medidas que confiram ao cidadão a satisfação daquilo que está constitucionalmente previsto, limitando dessa forma a discricionariedade que cabe ao Executivo.
Do ponto de vista doutrinário, o controle judicial das políticas públicas pode se dar em três momentos distintos, conforme assevera Eduardo Appio: “o controle judicial das políticas públicas pode-se, portanto, dar em três momentos distintos, ou seja, na sua formulação, execução ou avaliação”.[46]
Ana Paula de Barcellos sustenta que o controle judicial de políticas públicas em matéria de direitos fundamentais pode se ocupar de cinco objetos principais, nos seguintes termos:
“É possível cogitar de 5 (cinco) objetos distintos (sem prejuízo de outros), ainda que interligados, que podem ser agrupados em dois grupos. No primeiro bloco, será possível controlar, em abstrato, (i) afixação de metas e prioridades por parte do Poder Público em matéria de direitos fundamentais; em concreto, será possível cogitar do controle (ii) do resultado final esperado das políticas públicas em determinado setor. No segundo grupo, é possível controlar ainda três outros objetos: (iii) a quantidade de recursos a ser investida, em termos absolutos ou relativos, em políticas públicas vinculadas à realização de direitos fundamentais, (iv) o atingimento ou não das metas fixadas pelo próprio Poder Público, e (v) a eficiência mínima na aplicação dos recursos públicos destinados a determinada finalidade. Como é fácil perceber, os dois primeiros objetos de controle se ocupam do conteúdo das políticas públicas em si, ao passo que os três últimos pretendem controlar aspectos do processo de decisão e execução de políticas levado a cabo pelo Poder Público”.[47]
Verifica-se a partir da cogitação dos objetos que o controle das políticas públicas, na realidade, deve ser uma regra e não uma exceção, visto que dessa maneira estará se assegurando a constitucionalidade das medidas, a efetividade das políticas públicas e por fim a concretização de direitos fundamentais. Nesse sentido, afirma Sérgio Arenhart:
“O controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário não deve ser tido como exceção, mas antes como uma regra. Diante da concepção do sistema dos “freios e contrapesos”, acolhida pelo direito nacional, não há dúvida de que o controle dos demais “poderes” do Estado somente pode ser realizado, em última instância, pelo Poder Judiciário. Por outro lado, o Judiciário não se pode, justamente porque ele representa o último campo de proteção contra os abusos eventualmente cometido pelos outros “poderes”, furtar a exercer esse papel. Ainda que existam limites para a sua atuação e para o seu controle, a existência destas barreiras não infirmam, mas antes confirmam, a necessidade de atuação desta função pelos órgãos jurisdicionais. De todo modo, a existência destes limites não pode autorizar sua simples alegação, como obstáculo à intervenção judicial. A efetiva existência do limite em questão deve ser cuidadosamente verificado pelo Poder Judiciário e devidamente ponderado, a fim de evitar “vácuos” no domínio público, em que certas condutas permanecem simplesmente livres de controle, pelo simples fato de uma invocada ilegitimidade na intervenção jurisdicional.”[48]
3.2 Controle judicial na formulação e na execução de políticas públicas
Como apontado anteriormente, a formulação de políticas públicas cabe ao Poder Legislativo e a sua execução ao Poder Executivo.
Em relação à formulação das políticas públicas, o controle por parte do Poder Judiciário, na lição de Eduardo Appio, além de inconstitucional, traria consequências políticas importantes:
“A substituição do legislador/administrador público pela figura do juiz não se mostraria politicamente legítima na medida em que (1) o administrador público (Executivo) e o legislador foram eleitos, através do sufrágio universal, para estabelecer uma pauta de prioridades na implementação de políticas sociais e econômicas. Ademais, (2) o Judiciário não possui o aparato técnico para a identificação das reais prioridades sociais, tendo de contar, nestes casos, com as informações prestadas pela própria Administração Pública. Também (3) o fato de que a atividade-fim do Poder Judiciário é a de revisão dos atos praticados pelos demais Poderes e não sua substituição, enquanto que a atividade-fim da Administração é estabelecer uma pauta de prioridades na execução de sua política social, executando-a consoante critérios políticos, gozando de discricionariedade, existindo verdadeira “reserva especial de administração”. A discricionariedade do administrador não pode ser substituída pela do juiz. Ainda (4) com a indevida substituição a tendência natural seria a de um grande desgaste do Judiciário, enquanto poder político, na medida em que teria de suportar as críticas decorrentes da adoção de medidas equivocadas e (5) o mais importante, imunes a uma revisão por parte dos demais Poderes. Portanto, o Poder Judiciário, como responsável pela fiscalização dos demais Poderes exercentes das funções de governo, não pode substituir esta atividade, a título de fiscalizar sua escorreita execução, sob pena de autorizar a intervenção dos Poderes Legislativo e Executivo na atividade judicial. Finalmente, (6) a invasão da atividade de governo representaria uma autorização para um maior controle político do próprio Poder Judiciário, abrindo-se a possibilidade de interferência direta nas funções judiciais, através de leis aprovadas pelo Congresso que disponham sobre casos julgados ou ainda pela intervenção política do Executivo na escolha dos membros do Supremo Tribunal.”[49]
De acordo ainda com o autor:
“O controle judicial da formulação de políticas públicas pressupõe a substituição da vontade dos membros dos demais Poderes pela vontade dos juízes e somente a própria Constituição Federal poderá fornecer um argumento forte o suficiente para imprimir ao jogo político esta nova variante, sem que este fenômeno implique a ruptura com o equilíbrio político no país.”[50]
Já a execução das políticas públicas depende, necessariamente, da prática de atos administrativos. A omissão ou a prática incorreta desses atos podem ensejar a atuação do Poder Judiciário. Entretanto, a revisão judicial de obedecer determinados pressupostos, como aponta Eduardo Appio:
“1º) a política social já se encontra abstratamente prevista na lei ou na Constituição e corresponde à outorga de direitos coletivos; 2º) o Poder Executivo ainda não implementou a política social prevista na Constituição; 3º) o Poder Executivo, ao implementar a política social, rompeu com o princípio da isonomia (atendimento parcial de um dever constitucional). O autor coletivo deverá, ainda, preencher os seguintes requisitos específicos: 1º) deverá indicar a fonte de financiamento da implantação ou extensão de um programa social; e 2º) terá de respeitar a lei orçamentária anual (princípio da reserva da atividade legislativa)”.[51]
Nesse sentido, o autor aponta quais políticas estão passíveis de controle judicial:
“Programas sociais não previstos na Constituição e na lei: o Poder Judiciário não poderá determinar, através de uma sentença em ação civil pública – que visa a proteção de bens sociais, tais como a prestação de serviços sociais decorrentes de direitos genéricos previstos na Constituição – a prática de um ato privativo da Administração Pública, em observância do princípio da separação dos Poderes.[52]
Política social prevista de modo específico na Constituição: execução de decisões judiciais que determinam o aumento das despesas públicas – nos casos em que o constituinte definiu com clareza a forma de adimplemento de determinados direitos sociais previstos na CF/88, infundindo ao Poder Executivo o dever de implementar políticas sociais específicas, cumpre ao Poder Judiciário exercer um controle através das ações civis públicas.[53]
Política social prevista em lei: o legislador tem a faculdade de implementar direitos sociais previstos de modo genérico na Constituição Federal de 1988. Não pode, todavia, determinar as hipóteses concretas de atuação do Poder Público, o que implicaria invasão da atividade administrativa. Deve, portanto, prever de modo genérico e abstrato a implantação de um determinado programa social positivo, de modo a beneficiar um dado segmento da sociedade. Ao Poder Executivo incumbe a execução do programa social previsto em lei ordinária, a partir dos limites impostos pela lei orçamentária ordinária anual. Nesta seara, caso a Administração Pública se negue ao cumprimento da lei estará praticando um ato ilegal, com o que se revela possível a revisão judicial da omissão, através de ação civil pública, podendo o juiz determinar o cumprimento específico do programa previsto.[54]
Política social através de uma atuação negativa: pode suceder, ainda, que a política social a ser implementada não dependa de uma atuação positivado Estado, mas antes, de uma atuação negativa, no sentido de garantir isenções fiscais previstas em lei, imunidades fiscais previstas na Constituição ou, ainda, benefícios financeiros diretos na prestação de serviços públicos, executados de forma direta ou indireta. Trata-se da proteção de direitos individuais homogêneos, uma vez que as ações poderão ser individualmente propostas. Cumpre, todavia, distinguir os casos em que a lei ou a Constituição impõe uma prestação positiva por parte do Estado – visando assegurar um dever de abstenção pelo particular – como, por exemplo, nos casos em que o Poder Público tenha de assegurar a oferta de benefícios por parte de concessionárias e permissionárias de serviços públicos. Neste caso, a omissão do administrador público poderá ser ilidida através de uma ação coletiva na qual a sentença judicial irá substituir a atividade da Administração. Muito embora a ação deva ser promovida somente em face do Poder Público omisso, produzirá efeitos em face de todas as concessionárias e permissionárias.[55]
Proteção de direitos fundamentais: os direitos fundamentais individuais previstos no art. 5º da Constituição Federal somente podem ser atendidos pelo Poder Judiciário de forma concreta no caso individual. Resulta claro que uma necessidade individual – a qual demanda e pressupõe a prévia implementação de uma determinada política social – não pode ser atendida pelo juiz no caso concreto, através de uma ação individual, vez que estaria interferindo numa atividade administrativa vinculada. Trata-se da busca de proteção de um direito coletivo através de uma demanda de natureza individual. A vinculação do administrador público à lei não lhe permite atender uma necessidade específica de um dos seus cidadãos, sem que exista uma previsão específica em lei ou uma política social já implementada pelo Estado. Da mesma forma, o juiz não poderá atender a uma necessidade individual, com base no dever de proteção dos direitos fundamentais individuais – como o direito à vida, por exemplo – sem que exista um programa prévio de proteção social já implementado”.[56]
Deste modo, restam especificados os casos legítimos referentes à atuação positiva do Poder Judiciário no controle de políticas públicas no Brasil.
3.3 Implementação por via judicial de políticas públicas: a ADPF-MC 45/DF e outros casos.
“ADPF-MC 45/DF:
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).”
Da análise pormenorizada dessa Ação na qual o STF firmou posicionamento acerca da implementação de políticas públicas por parte do Judiciário surge o arcabouço teórico e fundamentação jurisprudencial que justificam o tema desse trabalho. Além disso, outros casos se seguiram que tiveram como base esse leading case. Dessa feita, cabe o detalhamento do voto do Ministro relator no qual encontram-se justificados vários pontos anteriormente estudados.
Conforme cita Rodrigo Carregal Sztajnbok em artigo dedicado ao estudo dessa ação, é possível apontar quatro pontos importantes abordados no voto do Ministro-Relator Celso de Mello, a saber:
“1) A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental; 2) A dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal; 3) Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível” e 4) A necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”.[57]
Acerca da questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário, o Ministro-Relator reconheceu a qualificação da ADPF como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas quando previstas na Constituição, conforme textualmente mencionado no voto:
“Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de fazer instaurar situação de prejudicialidade da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.”[58]
Continua o eminente Ministro, aduzindo acerca do segundo ponto, qual seja o da dimensão política da jurisdição constitucional:
“Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. Celso de Mello), sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional”[59]
Por sua vez, a implementação de políticas públicas por via judicial deve ser feita em bases excepcionais, conforme assevera adiante:
“É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e nas desta Suprema Corte, em especial, a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (José Carlos Vieira de Andrade, “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.”[60]
O conteúdo programático das regras inscritas no texto da Constituição, conforme jurisprudência do próprio STF:
“Não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.”[61]
O terceiro ponto no julgado, refere-se ao tema pertinente da “reserva do possível” e assim foi abordado:
“Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível”, notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.”[62]
Continua adiante:
“É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado na Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência”.[63]
Ressalta ainda acerca da aplicação da cláusula da “reserva do possível”:
“Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”[64]
Para a concretização de direitos de segunda geração apresenta, no voto, o seguinte binômio de fundamental observância:
“Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, a razoabilidade de pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação de direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos”.[65]
E por fim, pondera acerca da necessária preservação, em favor dos indivíduos, do mínimo existencial:
“É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.”[66]
Feito o estudo detalhado desse icônico julgado que firmou o posicionamento da jurisprudência acerca desse tema, vê-se que outros casos se sucederam, tomaram essa orientação e merecem ser destacados.
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRANSPORTE DE ALUNOS DA REDE ESTADUAL DE ENSINO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. 1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa afronta à Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que "[a] educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental[…]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional". Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.” (RE 603575 AgR / SC – SANTA CATARINA AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. EROS GRAU. Julgamento: 20/04/2010. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-02401-05 PP-01127 RT v. 99, n. 898, 2010, p. 146-152)
No caso supracitado, havendo a possibilidade de comprometimento da eficácia e da integralidade de direitos sociais, visto a falta de inciativa dos poderes legitimados para a implementação da política pública constitucionalmente prevista, não resta outra opção senão a intervenção judicial para que o direito em discussão seja assegurado.
“DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO A SAÚDE. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROSSEGUIMENTO DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. ARTIGOS 2º, 6º E 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. Precedentes. 3. Agravo regimental improvido”. (AI 734487 AgR / PR – PARANÁ AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 03/08/2010 . Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação DJe-154 DIVULG 19-08-2010 PUBLIC 20-08-2010 EMENT VOL-02411-06 PP-01220 RT v. 99, n. 902, 2010, p. 158-162).
Nesse caso, destaca-se de fundamental importância o fato de a atuação do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde face à omissão do ente responsável não configurar ingerência na questão que envolve a discricionariedade do Poder Executivo.
“DIREITO CONSTITUCIONAL. SEGURANÇA PÚBLICA AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROSSEGUIMENTO DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. ARTIGOS 2º, 6º E 144 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. Precedentes. 3. Agravo regimental improvido.” (RE 559646 AgR / PR – PARANÁ. AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE.Julgamento: 07/06/2011. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: DJe-120 DIVULG 22-06-2011 PUBLIC 24-06-2011 EMENT VOL-02550-01 PP-00144).
Recorrente caso sedimenta entendimento de que na ausência de iniciativa do Poder legitimamente responsável, cabe ao Judiciário, sem ofensa a discricionariedade do Executivo, impor ao Estado a criação de condições que oportunizem o acesso ao direito pleiteado.
No mesmo sentido, em casos semelhantes, ressaltam-se as decisões monocráticas:
“AI 835956 AgR / MA
EMENTA: Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional. Ação civil pública. Ampliação da atuação da Defensoria Pública. Relevância institucional. Implementação de políticas públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Precedentes. 1. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação dos poderes, inserto no art. 2º da Constituição Federal. 2. Agravo regimental não provido.
Não merece prosperar a irresignação, uma vez que a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de reconhecer a legitimidade do poder judiciário em determinar a concretização de políticas públicas constitucionalmente previstas, quando houver omissão da administração pública. Nesse sentido, anotem-se a decisão monocrática do Ministro Celso de Mello na ADPF nº 45, DJ de 4/5/04, e o acórdão da Segunda Turma no RE nº 367.432/PR, Relator o Ministro Eros Grau, DJe de 14/5/10.
AI 598212 ED / PR
E M E N T A: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO – DEFENSORIA PÚBLICA – IMPLANTAÇÃO – OMISSÃO ESTATAL QUE COMPROMETE E FRUSTRA DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS NECESSITADAS – SITUAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE INTOLERÁVEL – O RECONHECIMENTO, EM FAVOR DE POPULAÇÕES CARENTES E DESASSISTIDAS, POSTAS À MARGEM DO SISTEMA JURÍDICO, DO “DIREITO A TER DIREITOS” COMO PRESSUPOSTO DE ACESSO AOS DEMAIS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS – INTERVENÇÃO JURISDICIONAL CONCRETIZADORA DE PROGRAMA CONSTITUCIONAL DESTINADO A VIABILIZAR O ACESSO DOS NECESSITADOS À ORIENTAÇÃO JURÍDICA INTEGRAL E À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITAS (CF, ART. 5º, INCISO LXXIV, E ART. 134) – LEGITIMIDADE DESSA ATUAÇÃO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS – O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO ESTADO – A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO ESTADO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) – DOUTRINA – PRECEDENTES – A FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA E A ESSENCIALIDADE DESSA INSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – “THEMA DECIDENDUM” QUE SE RESTRINGE AO PLEITO DEDUZIDO NA INICIAL, CUJO OBJETO CONSISTE, UNICAMENTE, na “criação, implantação e estruturação da Defensoria Pública da Comarca de Apucarana” – RECURSO DE AGRAVO PROVIDO, EM PARTE. – Assiste a toda e qualquer pessoa – especialmente àquelas que nada têm e que de tudo necessitam – uma prerrogativa básica essencial à viabilização dos demais direitos e liberdades fundamentais, consistente no reconhecimento de que toda pessoa tem direito a ter direitos, o que põe em evidência a significativa importância jurídico-institucional e político-social da Defensoria Pública. – O descumprimento, pelo Poder Público, do dever que lhe impõe o art. 134 da Constituição da República traduz grave omissão que frustra, injustamente, o direito dos necessitados à plena orientação jurídica e à integral assistência judiciária e que culmina, em razão desse inconstitucional inadimplemento, por transformar os direitos e as liberdades fundamentais em proclamações inúteis, convertendo-os em expectativas vãs. – É que de nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (CF, art. 134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da República. – O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um “facere” (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. – Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse “non facere” ou “non praestare” resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. Precedentes (ADI 1.458-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Doutrina. – É lícito ao Poder Judiciário, em face do princípio da supremacia da Constituição, adotar, em sede jurisdicional, medidas destinadas a tornar efetiva a implementação de políticas públicas, se e quando se registrar situação configuradora de inescusável omissão estatal, que se qualifica como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. Precedentes. Doutrina. – A função constitucional da Defensoria Pública e a essencialidade dessa Instituição da República: a transgressão da ordem constitucional – porque consumada mediante inércia (violação negativa) derivada da inexecução de programa constitucional destinado a viabilizar o acesso dos necessitados à orientação jurídica integral e à assistência judiciária gratuitas (CF, art. 5º, LXXIV, e art. 134) – autoriza o controle jurisdicional de legitimidade da omissão do Estado e permite aos juízes e Tribunais que determinem a implementação, pelo Estado, de políticas públicas previstas na própria Constituição da República, sem que isso configure ofensa ao postulado da divisão funcional do Poder. Precedentes: RTJ 162/877-879 – RTJ 164/158-161 – RTJ 174/687 – RTJ 183/818-819 – RTJ 185/794-796, v.g.. Doutrina.”
Terminado o compêndio jurisprudencial, cabe o seguinte fechamento:
“O exame jurisdicional de políticas públicas é uma realidade presente. Já não cabe afirmar a ilegitimidade do Poder Judiciário para exercê-lo. Contudo, perdura a advertência sobre os limites e possibilidades de exercício deste controle para que, em nome de um ativismo judicial, não se cometam desvios, excessos que promovam desigualdades e onerem demasiado o Estado. A proporcionalidade e a razoabilidade são exigências inafastáveis no exame das políticas públicas de direitos sociais para promover a eficácia dos ditos direitos.”[67]
O Estado Social encartado na Constituição vigente reivindica políticas públicas para que se mostre efetivamente implementado. No entanto, desde a promulgação da atual Carta Política, nunca esse Estado foi suficientemente desenvolvido. A realidade nos mostra que as escolhas governamentais não implicaram nesse desenvolvimento. Ao revés, a adoção de políticas neoliberais diminuiu aquilo que já não era grande. A minimização do Estado é a contramão do que constitucionalmente está previsto, principalmente no tocante às garantias de efetivação dos direitos sociais. A sociedade brasileira, dentro desse contexto, apresenta-se fragmentada devido à segregação econômica existente, onde uma parcela consegue ter assegurado seus direitos, viver bem e dignamente com o alto preço do perecimento dos direitos da outra porção da sociedade. A partir daí, o controle das políticas públicas aparece como sendo um estabilizador das relações sociais.
O controle judicial de políticas públicas no Brasil mostra-se legitimamente pertinente e justificado quando se trata de efetivação de direitos fundamentais, precisamente os direitos sociais que demandam atividade positiva dos Poderes Executivo e Legislativo. Essa legitimidade advém da própria Constituição, uma vez que sua força normativa é motor que impele o Poder Judiciário para concretizar direitos fundamentais, que não deveriam ser violados pela ausência de políticas públicas eficientes. A sintomática sonegação de direitos inspira a atuação ou intervenção coercitiva do Judiciário.
As políticas públicas, como instrumentos de implementação de direitos sociais, são o resultado da atividade conjunta de dois Poderes da República. A intervenção judicial mostra-se necessária quando tais poderes agem de maneira irrazoável ou procuram neutralizar a efetivação de direitos sociais, alegando: a discricionariedade administrativa na formulação e execução dessas políticas, a possível usurpação de função por parte do Judiciário, atentando dessa forma contra a democracia e a escassez de recursos justificada pela “reserva do possível”, como se a Constituição dependesse de orçamento para a efetivação de direitos fundamentais. Nesse argumento, especificamente, ocorre o oposto: o orçamento deve ser de tal forma formulado e planejado justamente de maneira a ser capaz de atender à preferência constitucional dada aos direitos fundamentais sociais. O que ocorre é que as prioridades não são bem definidas, as escolhas são desarrazoadas e o resultado é que direitos não se efetivam, levando à sociedade ao descrédito para com a classe política e elegendo o Judiciário como último bastião capaz de promover justiça social.
Nesse aspecto, as ações civis públicas se apresentam como instrumento hábil de controle das políticas públicas, visto que, de suas sentenças judiciais contra a omissão inconstitucional do Poder Público, surge o atendimento das demandas sociais. Esse processo fortalece o exercício da cidadania e faz com que a sociedade se movimente com o objetivo de ver concretizados os ditames constitucionais.
Esse trabalho vem constatar que, não caberia tal controle, ou perderia o seu sentido, acaso tivéssemos os agentes eleitos trabalhando com o objetivo de demonstrar um plano de ação com as prioridades baseadas nos anseios da sociedade a qual representa, na adoção e encaminhamento das medidas necessárias e na correta arrecadação e destinação dos recursos públicos. Ou seja, bastaria organização administrativa e vontade política aliados ao grande volume de recursos arrecadados para que a realidade social desse País fosse radicalmente modificada. A interação harmônica dos Poderes, com o exercício de fato suas funções típicas, promoveria o tão esperado desenvolvimento social conclamado por todos, assegurando, desta maneira, a plena efetivação dos direitos constitucionalmente postos e fortalecendo a tão moderna democracia desse País, afinal, o amadurecimento da democracia passa fundamentalmente pela concretização dos direitos fundamentais.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Fernandes Silveira
Pós-graduado em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDCONST