Resumo: O presente estudo tem por objetivo trazer a lume algumas premissas relevantes no tratamento da sentença transitada em julgado que estabeleça entendimento ofensivo à Constituição. Atento a tais dimensões e objetivos, outrossim, não encerra pretensão de minucioso detalhamento do sistema de controle de constitucionalidade pátrio.
Abstract: This study intends to bring to light some relevant assumptions in the treatment of final sentence eventually in conflict to the Constitution. In attention to such dimensions and objectives, likewise, it does not claim to meticulous detail the national control of constitutionality system.
Palavras Chave: COISA JULGADA. REVISÃO. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. SEGURANÇA JURÍDICA. PROPORCIONALIDADE.
Keywords: RES JUDICATA. REVIEW. CONTROL OF CONSTITUTIONALITY. LEGAL CERTAINTY. PROPORTIONALITY.
Sumário: Introdução. 1. Espécies de controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 2. A evolução do controle judicial de constitucionalidade no Direito brasileiro. 3. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade no Direito brasileiro 4. “Coisa julgada inconstitucional”. Conclusão. Referências.
Introdução
Para a adequada fixação dos preceitos envolvidos na análise do tema, dois fundamentos se mostram essenciais: (1) a acepção exata dos requisitos estabelecidos pelo sistema jurídico para que se tenha por inconstitucional um dado diploma legal, bem como (2) quais as consequências jurídicas daí advindas. Aquele, em nome da segurança do sistema, porquanto a conclusão de que determinada lei afronta a Carta Magna desafia a presunção de constitucionalidade de que normalmente são dotados os atos editados pelo Poder Legislativo quando formalmente conformes aos artigos 59 a 69 da Constituição da República. O último, porque a concepção unitária de nulidade da lei inconstitucional, à vista da disciplina emprestada à matéria pelo constituinte austríaco, bem como dos desenvolvimentos posteriores do tema em outros países, não mais parece ser afirmada hodiernamente com a mesma convicção de outrora.
Jorge Miranda conceitua o processo de aferição da constitucionalidade como a análise da “relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido", esclarecendo, porém, que não se cuida de uma relação lógica ou intelectiva, mas de uma relação de caráter normativo e valorativo[1]. Vê-se, de fato, que é perfeitamente possível questionar-se o acerto – a “justiça” – de uma dada decisão da Suprema Corte que tenha analisado a constitucionalidade de uma lei; afinal, a relação que se estabelece em tal exame é de caráter normativo e valorativo – aberto, portanto – podendo inclusive variar conforme a composição do Excelso Pretório. O que decide a Corte Máxima, portanto – a despeito de almejar-se a coincidência dos conceitos –, não é se a norma sub judice é justa ou injusta, mas se é ou não conforme a Constituição. Tais constatações produzem importantes desdobramentos.
Em primeiro lugar, se o processo de exame da constitucionalidade não possui natureza lógica, mas valorativa, deve-se questionar qual ou quais órgãos foram eleitos pelo sistema como detentores do poder para pronunciar-se sobre o tema. Afinal, se a questão se resolvesse num plano meramente lógico, poder-se-ia dizer que teríamos uma única resposta certa, coerente, racional, afigurando-se despiciendo questionar-se de quem, ou de qual órgão, teria emanado o pronunciamento – já que aí a resposta “certa” decorreria de um critério intelectivo imutável, ou seja, daquele que determinasse as categorias racionais válidas para a apreensão da realidade analisada. É sabido que tal lógica dialética simplesmente inexiste no âmbito do Direito, razão pela qual, como já repisamos aqui por diversas vezes, a revisão da coisa julgada jamais poderia ser motivada por um critério de “justiça”, ou pretenso acerto, da decisão judicial, sob pena de questionamentos infindáveis, em patente afronta à segurança jurídica. De outro lado, na situação em que o sistema tenha elegido um ou mais órgãos como detentores de prerrogativa para emitir pronunciamentos sobre se certos atos são ou não congruentes à Lei Maior, simplesmente ignorarem-se os efeitos jurídicos de tais pronunciamentos sobre a coisa julgada – sob o discurso de que esta, uma vez cristalizada, seria inatingível – não se parece afigurar o caminho mais consentâneo à investigação científica.
Deste quadro decorre que, ao passo que a ‘injustiça’ de determinada decisão não constitui paradigma seguro para eventual revisão desta após o prazo da rescisória, a mesma lógica não se pode dizer da inconstitucionalidade do julgado, quando aferida pelo órgão estatal eleito para tal mister. Neste ponto, retomamos a constatação de que a própria coisa julgada, por decorrer de escolha política – não sendo ínsita à jurisdição –, se sujeita aos regramentos estabelecidos pela Constituição. E sendo assim, a prevalência daquela dependerá de sua conformidade à Lei Maior. A rigor, e penetrando no segundo fundamento acima apontado, a pronúncia de inconstitucionalidade de um dado ato normativo, por ditame da própria Carta Magna, produz efeitos que atingem as três esferas de Poder – tal assertiva deriva substância tanto do artigo 1º, CF, segundo o qual “a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito”, como do artigo 60, o qual, seja pela previsão de um processo especial de revisão constitucional, seja pela asseguração, por seu parágrafo 4º, de intangibilidade aos direitos fundamentais, acaba por consagrar a pretensão de eficácia e a supremacia da Constituição.
Estas as premissas que orientarão o desenvolvimento do presente trabalho.
1. Espécies de controle de constitucionalidade no Direito brasileiro
O controle de constitucionalidade no Brasil, no que diz respeito ao órgão que o realiza, divide-se em preventivo e repressivo.
Segundo Alexandre de Moraes, “enquanto o controle preventivo pretende impedir que alguma norma maculada pela eiva da inconstitucionalidade ingresse no ordenamento jurídico, o controle repressivo busca dele expurgar a norma editada em desrespeito à Constituição” (2007, p. 693). Prossegue o renomado expoente do Direito Constitucional:
“Tradicionalmente e em regra, no direito constitucional pátrio, o Judiciário realiza o controle repressivo de constitucionalidade, ou seja, retira do ordenamento jurídico uma lei ou ato normativo contrários à Constituição. Por sua vez, os poderes Executivo e Legislativo realizam o chamado controle preventivo, evitando que uma espécie normativa inconstitucional passe a ter vigência e eficácia no ordenamento jurídico” (MORAES, 2007, p. 693).
Em linhas rápidas, o controle preventivo se dá, no Legislativo, por meio das comissões de constituição e justiça do Congresso Nacional (art. 58, CF), cuja função precípua é cotejar, ao texto da Lei Maior, projeto de lei ou proposta de emenda constitucional que lhe sejam apresentados, impedindo seu prosseguimento em caso de inconciliação, e, no Executivo, pelo veto jurídico (art. 66, § 1º, CF), quando o fundamento da rejeição de projeto de lei pelo Presidente da República é o fato de entendê-lo inconstitucional. O controle repressivo, de sua vez, é realizado, em regra, pelo Poder Judiciário, a quem compete retirar do ordenamento jurídico lei ou ato normativo já editado, caso tragam a nódoa de afronta ao Texto Magno.
Como afirmado pelo insigne constitucionalista, porém, tal se dá “tradicionalmente e em regra”, havendo exceções, quais sejam as duas hipóteses em que o controle repressivo é realizado pelo Legislativo, e não pelo Judiciário. São casos em que “o Poder Legislativo poderá retirar normas editadas, com plena vigência e eficácia, do ordenamento jurídico, que deixarão de produzir seus efeitos, por apresentarem um vício de inconstitucionalidade” (MORAES, 2007, p. 697). Falamos aqui dos artigos 49, V, e 62, da Constituição Federal, o primeiro a referir-se à possibilidade de o Congresso sustar os atos normativos do Poder Executivo editados com desrespeito à forma constitucional (arts. 68 e 84, IV, CF), e o último a regular o controle de validade das medidas provisórias pelo Parlamento, as quais podem ser rejeitadas, dentre outros fundamentos, por vício de inconstitucionalidade.
Podemos assim dizer, em resumo, que no sistema de freios e contrapesos idealizado pelo Constituinte (art. 2º, CF), a constitucionalidade dos atos do Executivo é controlada pelo Legislativo e pelo Judiciário, e a dos atos do Legislativo, pelo Executivo e pelo Judiciário. Resta, entretanto, a pergunta: quem controla a constitucionalidade dos atos do próprio Poder Judiciário? O questionamento não é meramente retórico, como já salientado por juristas do escol de Paulo Otero, na afirmação que encabeça este tópico, e cuja percuciência justifica nova transcrição: “As questões de validade constitucional dos atos do poder judicial foram objeto de um esquecimento quase total, apenas justificado pela persistência do mito liberal que configura o juiz como ‘a boca que pronuncia as palavras da lei’ e o poder judicial como ‘invisível e nulo’ (Montesquieu)” (1993, p. 9). O exame que se segue, acerca do controle repressivo jurisdicional da constitucionalidade, bem como dos efeitos jurídicos deste, nos ajudará a elucidar o ponto.
2. A evolução do controle judicial de constitucionalidade no Direito brasileiro
Traçando um breve histórico, temos que o controle jurisdicional de constitucionalidade nem sempre foi a regra no Direito brasileiro. Com efeito, sob a Constituição de 1824, como lecionava Pimenta Bueno, o conteúdo da lei somente poderia ser definido pelo Poder Legislativo:
“Só o poder que faz a lei é o único competente para declarar por via de autoridade ou por disposição geral obrigatória o pensamento, o preceito dela. Só ele e exclusivamente ele é quem tem o direito de interpretar o seu próprio ato, suas próprias vistas, sua vontade e seus fins. Nenhum outro poder tem o direito de interpretar por igual modo, já porque nenhuma lei lhe deu essa faculdade, já porque seria absurda a que lhe desse” (1978, p. 69).
De fato, à luz do artigo 15, nos. 8º e 9º, da Constituição Imperial, outorgou-se ao Poder Legislativo a atribuição de “fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las”, bem como “velar na guarda da Constituição”. Inexistia aí qualquer sistema de controle judicial da constitucionalidade.
O Texto Magno de 1891, de sua vez, sob influência do Direito norte-americano[2], passou a contemplar o modelo difuso, reconhecendo a competência do Supremo Tribunal Federal para rever as sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, quando se questionasse a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do Tribunal fosse contra ela, ou quando se contestasse a validade de leis ou de atos dos governos locais em face da Constituição ou das leis federais, e a decisão do Tribunal considerasse válidos esses atos ou leis impugnadas (art. 59, § 1º, a e b).
Já a Constituição de 1934, ampliando o modelo de 1891, instituiu a “cláusula de reserva de plenário”, pela qual a declaração de inconstitucionalidade somente poderia ser realizada pela maioria absoluta de votos da totalidade dos membros dos tribunais (art. 179). O instituto visava resguardar a segurança jurídica, ameaçada pelas constantes flutuações de entendimento nos tribunais. Consagrou-se ainda a possibilidade de se atribuir eficácia erga omnes às decisões da Suprema Corte, conferindo-se competência ao Senado Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário” (arts. 91, IV, e 96).
A Carta de 1937, por seu turno, criou um inovador sistema de revisão dos atos do Poder Judiciário pelos Poderes Executivo e Legislativo, ao prever, pelo parágrafo único de seu artigo 96: “No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal”. A despeito da expressa previsão constitucional, contudo, quando, em caso concreto, o então presidente da República, Getúlio Vargas, editou o Decreto-Lei nº. 1.564, a confirmar textos de lei declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, houve intensas manifestações de repulsa no meio jurídico. Observaria Lúcio Bittencourt que tal reação estaria “a demonstrar como se encontra arraigado em nosso pensamento jurídico o princípio que confere à declaração judicial caráter incontrastável, em relação ao caso concreto” (1968, p. 139-140).
Sob a Constituição de 1946, disciplinou-se a apreciação de recursos extraordinários, no controle difuso, pelo Supremo Tribunal Federal, das “causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes: a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal” (art. 101, III). Preservaram-se, ademais, a atribuição do Senado Federal para suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo (art. 64), bem como a “cláusula de reserva de plenário” (art. 200).
Ainda sob a égide da Carta Magna de 1946, editou-se a Emenda Constitucional nº. 16/65, à qual se atribui o mérito de haver instaurado o controle abstrato de normas no Direito pátrio, sob a forma de uma representação que haveria de ser proposta pelo Procurador-Geral da República (arts. 8º, par. único) – a atribuição de efeitos erga omnes à decisão do Supremo, todavia, ainda remanesceria sujeita à suspensão da lei pelo Senado (art. 64).
Debaixo da Lei Maior de 1967, ampliou-se a representação para fins de intervenção, confiada ao Procurador-Geral da República, a qual passaria a assegurar não só a observância dos ‘princípios sensíveis’ (art. 10, VII), mas também a prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária (art. 10, VI). Preservou-se ainda o controle de constitucionalidade in abstracto, estabelecido pela Emenda nº. 16/65 (art. 119, I, l).
A Emenda nº. 1, de 1969, de seu turno, passou a prever o controle de constitucionalidade de lei municipal, em face da Constituição estadual, para fins de intervenção no município (art. 15, § 3º, d), e, na forma da Emenda nº. 7/77, introduziu-se, ao lado da representação de inconstitucionalidade, a representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual, outorgando-se ao Procurador-Geral da República legitimidade para provocar o pronunciamento do Supremo (art. 119, I, e).
Finalmente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, há uma significativa ampliação dos mecanismos de controle da constitucionalidade pelo Judiciário. A partir de tal marco, abre-se campo para especial tratamento da omissão do legislador, prevendo-se, ao lado do mandado de injunção, destinado à defesa de direitos subjetivos afetados pela omissão legislativa ou administrativa (art. 5º, LXXI, c/c art. 102, I, q), o processo de controle abstrato da omissão (art. 103, § 2º).
A principal inovação, contudo, se verificaria na introdução da ação direta de inconstitucionalidade, a qual, ao largo do tímido sistema de controle abstrato de normas criado em 1965, passou a admitir como legitimados à propositura um rol de nove órgãos ou entidades: o Presidente da República; a Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; Governador de Estado ou do Distrito Federal; o Procurador-Geral da República; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional; e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (art. 103, I a IX, CF). O mais notável impacto daí decorrente foi, sem dúvida, a possibilidade de, pela via do controle abstrato, submeter-se praticamente qualquer questão constitucional relevante ao Supremo Tribunal Federal, o que evidentemente reforçou o sistema. Nas palavras do eminente Ministro Presidente da Suprema Corte, Gilmar Mendes, “com a outorga do direito de propositura a diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o constituinte reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral incidente” (2008, p. 21-22).
Hodiernamente figuram, lado a lado, no sistema de controle de constitucionalidade pátrio, o modelo difuso ou concreto, e o concentrado ou abstrato, cada qual com suas peculiaridades, mas também a guardar semelhanças, dentre as quais os impactos que podem produzir sobre a coisa julgada, como analisaremos adiante.
Esboçadas tais linhas breves sobre o desenvolvimento do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, não se almejando, em apego aos objetivos do presente trabalho, uma investigação profunda do tema, focar-se-ão, doravante, os efeitos produzidos por decisões judiciais que enfrentam a validade de um ato normativo frente à Constituição Federal.
3. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade no Direito brasileiro
Justificando a necessidade da existência de sistemas de controle da constitucionalidade, Helenilson Pontes estatui, com a habitual propriedade:
“O princípio da supremacia da Constituição é o alicerce da organização jurídica política dos Estados contemporâneos, comprometidos com a defesa e a afirmação dos direitos e liberdades individuais no seu mais amplo espectro, sobretudo no que toca à promoção da dignidade da pessoa humana. É na Constituição que se encontram os compromissos jurídicos de um povo, os quais representam mandatos vinculantes em relação ao Estado e à própria sociedade. (…) A República brasileira declara-se solenemente um Estado Democrático de Direito no art. 1º da sua Constituição Federal… (…) Entre os princípios fundantes do Estado Democrático de Direito destaca-se o primado da Constituição, segundo o qual a norma constitucional representa o alicerce em que se apóia todo o edifício jurídico da comunidade política” (2005, p. 27-8).
Na esteira de tais assertivas, avalia o eloquente mestre que “nenhuma valia teria o princípio do primado da Constituição se não fossem criados mecanismos institucionais para o controle da adequação, material e formal, dos atos estatais aos parâmetros estabelecidos pela Carta Política”. Afirma que a existência de um sistema de controle de constitucionalidade dos atos normativos subordinados à Constituição “é consequência inelutável de um Estado Democrático de Direito” (PONTES, 2005, p. 27-8).
Gilmar Mendes, muito embora postado entre aqueles que admitem a revisão da coisa julgada unicamente nos casos em que tal hipótese tenha sido expressamente prevista pelo legislador ordinário, reconhece que “a lei declarada inconstitucional, sem ressalvas, é considerada, independentemente de qualquer outro ato, nula ipso jure e ex tunc”, de tal modo “que todos os atos praticados com base na lei inconstitucional estão igualmente eivados de inconstitucionalidade” (2006, p. 92). Consigna o ilustre Ministro da Suprema Corte:
“O poder de que dispõe qualquer juiz ou Tribunal para deixar de aplicar a lei inconstitucional a um determinado processo (CF, arts. 97 e 102, III, a, b, c e d) pressupõe a invalidade da lei e, com isso, a sua nulidade. A faculdade de negar aplicação à lei inconstitucional corresponde ao direito do indivíduo de recusar-se a cumprir a lei inconstitucional, assegurando-lhe, em última instância, a possibilidade de interpor recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal contra decisão judicial que se apresente, de alguma forma, em contradição com a Constituição (art. 102, III, a).
Tanto o poder do juiz de negar aplicação à lei inconstitucional quanto a faculdade assegurada ao indivíduo de negar observância à lei inconstitucional demonstram que o constituinte pressupôs a nulidade da lei inconstitucional” (MENDES, 2006, p. 94-95).
Helenilson Pontes também vincula o princípio da supremacia da Constituição à teoria da nulidade da lei inconstitucional, nas seguintes linhas:
“A equivalência entre nulidade e inconstitucionalidade decorre da própria imperatividade do sistema jurídico, como repertório de comandos dotados de sentido deôntico emanados pelo Estado, haja vista a circunstância de que este sistema apóia-se em uma lógica hierarquizada de subordinação material, em que na posição máxima encontra-se a Constituição, sendo que todos os demais comandos que com ela conflitarem perdem automaticamente o caráter deôntico, devendo, por tal razão, ser expulsos do sistema. Vale dizer, o sistema jurídico só reconhece imperatividade às normas que guardam compatibilidade com a norma responsável pela articulação de todo o sistema jurídico (a Constituição)” (PONTES, 2005, p. 37).
Palavras que encontram eco na ilustrada lição de Rui Barbosa, para quem “a nulidade da lei inconstitucional resulta da própria essência do sistema” (2003, p. 40):
“Onde se estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade para cada um dos grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem ultrapassar essa autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito equivale a cair em nulidade. Nullus est major defectus quam defectus potestatis” (BARBOSA, 2003, p. 40).
Já no que tange aos efeitos subjetivos, vimos que a atribuição de eficácia erga omnes à decisão do Supremo, mesmo que no controle abstrato, ainda condicionava-se, sob a Emenda Constitucional nº. 16/65, à apreciação pelo Senado Federal, o qual detinha o arbítrio de suspender ou não a norma eivada de inconstitucionalidade. Com efeito, pretendeu-se incluir nessa emenda cláusula que outorgava eficácia erga omnes automática às decisões declaratórias de inconstitucionalidade exaradas pelo STF – rejeitada, porém, pelo Congresso[3]. Foi somente a partir da Carta de 1988 que a decisão de inconstitucionalidade proferida pela via direta (controle concentrado) passou a surtir eficácia contra todos, além de efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública em geral (art. 102, § 2º, CF).
Por outro lado, no caso de decisão proferida em sede de controle incidental (difuso), remanesce a prerrogativa do Senado Federal para suspender a execução do ato viciado (art. 52, X, CF), o que, segundo entendimento amplamente aceito, seria imprescindível para a produção de efeitos erga omnes pelo julgado[4].
A fórmula, porém, não é isenta de críticas, à luz da teoria da nulidade.
Juristas do escol de Gilmar Mendes têm sustentado que “a atribuição de funções substantivas ao Senado Federal [é] a própria negação da idéia de nulidade da lei devidamente declarada pelo órgão máximo do Poder Judiciário” (2008, p. 21-22). Também o ínclito Ministro da Suprema Corte, ora aposentado, José Paulo Sepúlveda Pertence, mencionaria “o anacronismo em que se transformou, especialmente após a criação da ação direta, a necessidade da deliberação do Senado para dar eficácia erga omnes à declaração incidente” (ADC nº. 1, RTJ 159, p. 389-90). A mesma linha percorre Lúcio Bittencourt, para quem “dizer que o Senado ‘suspende a execução’ da lei inconstitucional é, positivamente, impropriedade técnica, uma vez que o ato, sendo ‘inexistente’ ou ‘ineficaz’, não pode ter suspensa a sua execução” (1968, p. 140-141).
O ilustre Ministro da Corte Constitucional, invocando (1) as faculdades concedidas ao relator de recurso extraordinário para a) negar seguimento a recurso que contrarie súmula do STF (Lei nº. 8.038/90), ou b) dar provimento ao recurso se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com a jurisprudência dominante do respectivo Tribunal (art. 557, § 1º-A, CPC), as quais indicariam que o legislador entendeu possível estender de forma geral os efeitos da decisão adotada pelo Supremo, tanto nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade incidental de determinada lei federal, estadual ou municipal – hipótese que estaria submetida à intervenção do Senado –, quanto nos casos de fixação de uma dada interpretação constitucional pelo Tribunal; (2) a reiterada e aceita postura do STF de, nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade de leis municipais, conferir de efeito vinculante não só à parte dispositiva da decisão, mas também aos próprios fundamentos determinantes[5]; (3) o controle de constitucionalidade nas ações coletivas, em que somente por força do uso de uma figura de linguagem, poder-se-ia falar em decisão com eficácia inter partes, revelando-se a suspensão de execução da lei pelo Senado, no mínimo, completamente inútil; e (4) a adoção de súmula vinculante (art. 103-A, CF), a qual conferirá eficácia geral e vinculante às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal sem afetar diretamente a vigência de leis porventura declaradas inconstitucionais no processo de controle incidental – tem-se efeito vinculante da súmula, que obrigará a administração a não mais aplicar a lei objeto da declaração de inconstitucionalidade (nem a orientação que dela se dessume), sem eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade –, conclui:
“Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que se não cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140,5 – publicação a cargo do Chanceler Federal e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art.31,(2), publicação a cargo do Ministro da Justiça). A não-publicação não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia.
Esta solução resolve de forma superior uma das tormentosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam-se, assim, também, as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a orientação dominante na legislação processual, de um lado, e, de outro, a visão doutrinária ortodoxa e – permita-nos dizer – ultrapassada do disposto no art. 52, X, da Constituição de 1988. No julgamento da Rcl. nº. 4.335, contra decisão do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, propusemos que o Tribunal efetivasse a revisão do entendimento anterior, passando a reconhecer eficácia erga omnes e efeito vinculante às decisões proferidas no processo de controle incidental” (MENDES, 2008, p. 21-22 – destaques do original; grifos nossos).
De fato, reconhecer efeitos ex tunc[6] e erga omnes às pronúncias de inconstitucionalidade pela Suprema Corte alinha-se ao fato de que o equilíbrio de todo o sistema jurídico depende do respeito às normas matrizes da Constituição – situadas no topo do ordenamento –, de tal forma que eventuais atos do Poder Público que violem aquelas normas deverão sofrer correção, sob pena de admitirem-se falhas e crises no sistema, com os efeitos nefastos daí advindos.
De qualquer maneira, vimos que o controle de constitucionalidade se apresenta como consequência do Estado Democrático de Direito, sendo por este delimitado – da mesma maneira que a coisa julgada se reveste da condição de princípio constitucional decorrente do Estado Democrático de Direito, conformando-se a suas diretrizes. Nessa linha, o princípio de supremacia da Constituição, assim como todos os demais, sofre temperamentos em nome da coesão, harmonia e unidade do sistema[7]. Nessa medida, Gilmar Mendes, embora reporte “imperativo concordar com a orientação do Supremo Tribunal Federal que parece reconhecer hierarquia constitucional ao postulado da lei incompatível com a Constituição” (2006, p. 95), abona que
“essa orientação não obsta a que se admita o desenvolvimento de fórmulas intermediárias entre a nulidade e a simples declaração de constitucionalidade, tanto com fundamento na necessidade de uma nova forma de censura para atender os casos especiais (v.g., omissão inconstitucional), quanto com base em um dos princípios fundamentais do Estado de Direito, a idéia de segurança jurídica.(…)
Coerente com a evolução constatada no Direito Constitucional comparado, o art. 27 da Lei nº. 9.868, de 1999, permite que o próprio Supremo Tribunal Federal, por maioria diferenciada, decida sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo um juízo rigoroso de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional, de um lado, e os postulados da segurança jurídica e do interesse social, de outro” (MENDES, 2006, p. 95).
Consoante o referido artigo 27 da Lei 9.868/99, poderá o STF, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, fundado em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Para o insigne professor da Universidade de Brasília, o dispositivo encerra a possibilidade de pelo menos quatro tipos de decisão pela Suprema Corte:
“a) declarar a inconstitucionalidade apenas a partir do trânsito em julgado da decisão (declaração de inconstitucionalidade ex nunc), com ou sem repristinação da lei anterior;
b) declarar a inconstitucionalidade com a suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (declaração de inconstitucionalidade com efeito pro futuro), com ou sem repristinação da lei anterior;
c) declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, permitindo que se opere a suspensão de aplicação da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, venha a se manifestar sobre a situação inconstitucional (declaração de inconstitucionalidade = restrição de efeitos); e, eventualmente;
d) declarar a inconstitucionalidade dotada de efeito retroativo, com a preservação de determinadas situações” (MENDES, 2006, p. 95-96).
Comentando as hipóteses “c” e “d”, prossegue o magno expoente do Direito Constitucional:
“Poderão ainda surgir casos que recomendem a adoção de uma pura declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade (suspensão de aplicação da lei e suspensão dos processos em curso) (hipótese “c”). Poderá ser o caso de determinadas lesões ao princípio da isonomia (exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade). Nessas situações, muitas vezes não pode o Tribunal eliminar a lei do ordenamento jurídico, sob pena de suprimir uma vantagem ou avanço considerável. A preservação dessa situação sem qualquer ressalva poderá importar, outrossim, o agravamento do quadro de desigualdade verificado. Assim, um juízo rigoroso de proporcionalidade poderá recomendar que se declare a inconstitucionalidade sem nulidade, congelando a situação jurídica existente até o pronunciamento do legislador destinado a superar a situação inconstitucional.
Finalmente, poderá ser declarada a inconstitucionalidade com efeito retroativo (hipótese “d”), desde que sejam preservadas situações singulares (v.g., razões de segurança jurídica), que, segundo entendimento do Tribunal, devam ser mantidas incólumes.
Assim, o princípio da nulidade somente poderá ser afastado in concreto se, a juízo do próprio Tribunal, se puder afirmar que a declaração de nulidade acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional.
Dessa forma, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há que se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g., lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional” (MENDES, 2006, p. 96-97 – destaques do original; grifos nossos).
Assim, tal qual se dá com os demais princípios constitucionais, também aquele que consagra a nulidade da lei inconstitucional é apto a sofrer moderações, justamente em nome de uma maior estabilidade do sistema como um todo. Como apontado pelo mestre, tal possibilidade já se encontra inclusive prevista pelo legislador ordinário.
4. “Coisa julgada inconstitucional”
A clássica lição Kelsen, segundo a qual “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma” (1962, p. 2), traduz princípio hermenêutico básico, segundo o qual as normas jurídicas subordinadas se devem harmonizar às superiores, numa verdadeira pirâmide jurídica em que a Constituição ocupa o topo. Assim, normas de menor hierarquia apenas encontrarão seu fundamento de validade ao ponto em que outra norma superior, igualmente válida, lhes dê suporte. E, no que respeita aos princípios constitucionais, é justamente por se encontrarem previstos no diploma que ocupa o cume do ordenamento, a Constituição, que nenhuma norma inferior (legal ou regulamentar) estará autorizada a contrariá-los. Em breves linhas, tais considerações resumem o princípio da supremacia da Constituição.
De outro lado, o sistema jurisdicional brasileiro, é sabido, consagra o livre acesso, o que tem por inevitável consequência a ocorrência de decisões desiguais para indivíduos em idêntica situação jurídica. E ante pronunciamentos conflitantes, é fatal o questionamento, ao menos sob a ótica do jurisdicionado, sobre qual deles seria o ‘correto’, apto a subsistir. Não se pode negar que tal interrogação encerra preocupação com a segurança jurídica, ao menos em sentido amplo – não é socialmente desejável que a posição de dado indivíduo decorra de mero casuísmo, ficando a mercê do entendimento desse ou daquele magistrado, dessa ou daquela turma do tribunal. Assim, o sistema prevê a existência de recursos, os quais, ao fim e ao cabo, para além de alentar a sempre presente irresignação humana com uma primeira e única opinião, têm a indiscutível função de uniformização, ou padronização, dos julgados.
O legislador, neste particular de defesa ao ideal de uniformidade interpretativa do Direito, vai além, autorizando não apenas a revisão recursal, mas também prevendo a possibilidade de rescisão da sentença já transitada em julgado quando esta haja violado “literal disposição de lei” (art. 485, V, CPC). É pacífico o entendimento de que “somente a ofensa literal, flagrante, é que autoriza o pedido de rescisão de julgado” (PORTO, 2000, p. 318). Quando, porém, se configuraria tal violação, tendo em vista que, como é estabelecido, o sistema convive com decisões conflitantes? Pronunciando-se sobre o dispositivo, o Supremo editou a súmula nº. 343, consignando que “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Analisando tal jurisprudência, Barbosa Moreira manifesta reservas à tese, mas também reconhece que, “no campo interpretativo, muitas vezes há que se admitir certa flexibilidade, abandonada a ilusão positivista de que para toda questão hermenêutica exista uma única solução correta” (2002, p. 131). O ilustre processualista fluminense traz a lume, nada obstante, importante ressalva existente nos precedentes que culminaram com a edição da súmula: “fica preexcluída a rescisão quando seja ‘de interpretação controvertida nos tribunais’ a norma supostamente violada pela decisão rescindenda, a menos que se trate de texto constitucional” (2002, p. 131 – grifo nosso).
De fato. Como expresso no julgamento do RE nº. 101.114-9/SP (DJ 10/02/84), pacificou a Suprema Corte orientação no sentido de que “a súmula 343 tem aplicação quando se trata de texto legal de interpretação controvertida nos tribunais, não, porém, de texto constitucional” (grifo nosso). Justificou-se o entendimento:
“O verbete, na verdade, se reporta à interpretação controvertida da lei, e a matéria aqui é constitucional que, pela supremacia jurídica, não pode ficar sujeita à perplexidade, não se aplicando portanto a máxima jurisprudencial, como aliás advertido pelo Pleno no julgamento do RE 89.108 (RTJ 101/207)”[8] (grifo nosso).
A motivação da ressalva é evidente e sadia: em se cuidando de matéria de cunho constitucional, o sistema não admite, pura e simplesmente, a convivência pacífica de entendimentos vários e dissonantes – da mesma forma que o faz no caso de preceitos de menor hierarquia. Afinal, em nome do princípio da supremacia da Constituição, não há se admitir que a interpretação desta seja vacilante ou dúbia. Eis o motivo pelo qual, a despeito de tolerar-se a arguição e resolução incidental de questões constitucionais, de forma pulverizada, por juízes e tribunais (art. 97, CF), houve por bem o constituinte em estabelecer um órgão de superposição, detentor da atribuição precípua de ditar a correta interpretação da Magna Carta.
E como se viu, sob tal ótica, o conceito de ‘interpretação correta’ não tangencia necessariamente com a noção de interpretação ‘certa ou errada’, ‘justa ou injusta’. Não. Por “correta interpretação da Magna Carta” deve-se entender aquela proferida pelo órgão eleito pelo sistema como detentor do poder para pronunciar-se definitivamente sobre a controvérsia suscitada – repisando-se que o exame da constitucionalidade é de natureza valorativa, e não lógica. Extrai-se do artigo 102, caput e parágrafos 2º e 3º, bem como do novel artigo 103-A (introduzido pela emenda nº. 45/2004), que o órgão escolhido para tal importantíssima comissão é o Supremo Tribunal Federal, o qual, à luz das premissas estabelecidas, é quem dará a palavra final em matéria constitucional. O tema foi magistralmente abordado por Gilmar Mendes, por ocasião do julgamento do agravo regimental no AI nº. 460.439/DF (DJ 09/03/2007):
“No âmbito específico do inciso V, o propósito imediato é o de garantir a máxima eficácia da ordem legislativa em sentido amplo. Para isto, permite-se a excepcional rescisão daqueles julgados em que o magistrado violou, nos termos do CPC, “literal disposição de lei”.
A violação à literal disposição de lei obviamente contempla a violação às normas constitucionais, o que poderia ser considerado como um tipo de violação “qualificada”.
Indaga-se: nas hipóteses em que esta Corte fixa a correta interpretação de uma norma infraconstitucional, para o fim de ajustá-la à ordem constitucional, a contrariedade a esta interpretação do Supremo Tribunal, ou melhor, a contrariedade à lei definitivamente interpretada pelo STF em face da Constituição ensejaria a utilização da ação rescisória?
Penso que sim. Penso que aqui há uma razão muito clara e definitiva para a admissão das ações rescisórias.
Quando uma decisão desta Corte fixa uma interpretação constitucional, entre outros aspectos está o Judiciário explicitando os conteúdos possíveis da ordem normativa infraconstitucional em face daquele parâmetro maior, que é a Constituição.
Isso obviamente não se confunde com a solução de divergência relativa à interpretação de normas no plano infraconstitucional. Não é por acaso que uma decisão definitiva do STJ, pacificando a interpretação de normas no plano infraconstitucional, não possui o mesmo alcance de uma decisão definitiva desta Corte em matéria constitucional. Controvérsia na interpretação de lei e controvérsia constitucional são coisas absolutamente distintas e para cada uma delas o nosso sistema constitucional estabeleceu mecanismos de solução diferenciados com resultados também diferenciados.
Não é a mesma coisa vedar a rescisória para rever uma interpretação razoável de lei ordinária que tenha sido formulada por um juiz em confronto com outras interpretações de outros juízes, e vedar a rescisória para rever uma interpretação da lei que é contrária àquela fixada pelo Supremo Tribunal Federal em questão constitucional.
Nesse ponto, penso que é fundamental lembrar que nas decisões proferidas por esta Corte temos um tipo especialíssimo de concretização da Carta Constitucional. E isto certamente não equivale à aplicação da legislação infraconstitucional.
A violação à norma constitucional, para fins de admissibilidade de rescisória, é sem dúvida algo mais grave que a violação à lei. Isto já havia sido intuído por Pontes de Miranda ao discorrer especificamente sobre a hipótese de rescisória hoje descrita no art. 485, inciso V, do CPC. Sobre a violação à Constituição como pressuposto para a rescisória, dizia Pontes que “o direito constitucional é direito, como os outros ramos; não o é menos; em certo sentido, é ainda mais. Rescindíveis são as sentenças que o violam, quer se trate de sentenças das Justiças locais, quer de sentenças dos tribunais federais, inclusive as decisões unânimes do Supremo Tribunal Federal”. (cit., p. 222)
De fato, negar a via da ação rescisória para fins de fazer valer a interpretação constitucional do Supremo importa, a rigor, em admitir uma violação muito grave à ordem normativa. Sim, pois aqui a afronta se dirige a uma interpretação que pode ser tomada como a própria interpretação constitucional realizada.
Nesse ponto, penso, também, que a rescisória adquire uma feição que melhor realiza o princípio da isonomia.
Se por um lado a rescisão de uma sentença representa certo fator de instabilidade, por outro não se pode negar que uma aplicação assimétrica de uma decisão desta Corte em matéria constitucional oferece instabilidade maior, pois representa uma violação a um referencial normativo que dá sustentação a todo o sistema. Isso não é, certamente, algo equiparável a uma aplicação divergente da legislação infraconstitucional.
Certamente já não é fácil explicar a um cidadão por que ele teve um tratamento judicial desfavorável enquanto seu colega de trabalho alcançou uma decisão favorável, considerado o mesmo quadro normativo infraconstitucional. Mas aqui, por uma opção do sistema, tendo em vista a perspectiva de segurança jurídica, admite-se a solução restritiva à rescisória que está plasmada na Súmula 343.
Mas essa perspectiva não parece admissível quando falamos de controvérsia constitucional. Isto porque aqui o referencial normativo é outro, é a Constituição, é o próprio pressuposto que dá autoridade a qualquer ato legislativo, administrativo ou judicial!
Considerada tal distinção, tenho que aqui a melhor linha de interpretação do instituto da rescisória é aquela que privilegia a decisão desta Corte em matéria constitucional. Estamos aqui falando de decisões do órgão máximo do Judiciário, estamos falando de decisões definitivas e, sobretudo, estamos falando de decisões que, repito, concretizam diretamente o texto da Constituição.
Assim, considerado o escopo da ação rescisória, especialmente aquele descrito no inciso V do art. 485 do CPC, a partir de uma leitura constitucional deste dispositivo do Código de Processo, já não teria dificuldades em admitir a rescisória no caso em exame, ou seja, nos casos em que o pedido de revisão da coisa julgada funda-se em violação às decisões definitivas desta Corte em matéria constitucional”[9] (negrito e destaques do original; grifos nossos).
Em outras palavras, e para sobrelevar o ponto, para os fins do artigo 485, V, CPC, “violar literal disposição de lei”, quando a “lei” em questão seja a Constituição, corresponde a ‘violar a interpretação ditada pelo STF sobre a lei’, o que foi exemplarmente resumido pelo eminente Ministro do STJ, Teori Albino Zavascki:
“… relativamente às normas constitucionais, que têm supremacia sobre todo o sistema e cuja guarda é função precípua do Supremo Tribunal Federal, não se admite a doutrina da “interpretação razoável” (mas apenas a melhor interpretação), não se lhes aplicando, por isso mesmo, o enunciado da súmula 343; (…) considera-se a melhor interpretação, para efeitos institucionais, a que provém do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, razão pela qual sujeitam-se a ação rescisória, independentemente da existência de controvérsia sobre a matéria nos tribunais, as sentenças contrárias a precedentes do STF, seja ele anterior ou posterior ao julgado rescindendo, tenha ele origem em controle concentrado de constitucionalidade, ou em controle difuso, ou em matéria constitucional não sujeita aos mecanismos de fiscalização de constitucionalidade dos preceitos normativos” (ZAVASCKI, 2003, p. 153-174 – grifos nossos).
Viu-se também que, em nome do princípio da nulidade da lei inconstitucional (corolário da supremacia constitucional), os efeitos das pronúncias de inconstitucionalidade pelo STF são, em regra, ex tunc – a menos que expressamente modulados pela Suprema Corte, no uso da prerrogativa estendida pelo artigo 27 da Lei 9.868/99 – não sendo razoável uma leitura no sentido de que tais efeitos não se apliquem a atos do Judiciário. Nessa linha, aquilo que o Supremo Tribunal, sem ressalvas, diz ser inconstitucional, o é desde sempre, e tal fato jurídico, inegavelmente, deve surtir efeitos sobre a coisa julgada, entendimento que deriva substância justamente da segurança jurídica – afinal, além de “fundamento axiológico-normativo da coisa julgada” (PONTES, 2006, p. 141), constitui-se esta em justificativa para a busca de uniformização dos julgados, na seara do direito infraconstitucional, e para a imposição de tal padronização em matéria constitucional.
Ante tais constatações, vamos além, seguindo os passos de uma nova geração de juristas para quem a supremacia da Constituição, considerados os efeitos deletérios que a prevalência de atos jurídicos inconstitucionais (tenham sido estes produzidos por quaisquer dos três Poderes) causa à segurança jurídica, impõe a revisão geral de tais atos, até porque, como visto, vigora em nosso Direito o princípio da nulidade do ato inconstitucional – e ato nulo, como é assente, nenhum efeito pode produzir, não possuindo o tempo, em tal caso, o poder sanativo geral que normalmente exerce sobre atos meramente irregulares ou anuláveis.
Tal entendimento é robustecido por uma realidade inegável do sistema: a forma como foi concebido o controle da constitucionalidade no Brasil, com a coexistência dos modelos difuso e concentrado, frequentemente resulta em que a Suprema Corte, detentora do importantíssimo mister de dar a palavra final em matéria constitucional, apenas estabeleça de forma definitiva a validade ou não de uma norma perante a Lei Maior após anos de debates nos tribunais inferiores e inúmeras decisões dissonantes acerca da constitucionalidade de referida norma. O próprio Gilmar Mendes reconhece que “a manutenção de soluções divergentes, em instâncias inferiores, sobre o mesmo tema, provocaria, além da desconsideração do próprio conteúdo da decisão desta [Suprema] Corte, última intérprete do texto constitucional, uma fragilização da força normativa da Constituição”[10]. Prossegue o renomado constitucionalista:
“… no nosso sistema geral de controle de constitucionalidade a voz do STF somente será ouvida após anos de tramitação das questões em três instâncias ordinárias.
De fato, penso que não podemos desconsiderar o atual contexto da demora na tramitação das questões que chegam ao STF em recurso extraordinário, o que aliás é uma decorrência de uma perspectiva que entendo equivocada, que acabou conferindo ao recurso extraordinário uma feição subjetivista.
A interpretação restritiva, considerado esse modelo em que as questões constitucionais chegam ao Supremo tardiamente, cria uma inversão no exercício da interpretação constitucional. A interpretação dos demais tribunais e dos juízes de primeira instância acaba por assumir um significado muito mais relevante que o pronunciamento desta [Suprema] Corte. (…)
A exegese restritiva [à rescisão da sentença inconstitucional transitada em julgado], que na verdade assume um caráter excessivamente defensivo, acaba por privilegiar a interpretação controvertida, para a mantença de julgado desenvolvido contra a orientação desta Corte [Suprema], significa afrontar a efetividade da Constituição. Isso não me parece aceitável, com a devida vênia”[11] (grifos nossos).
O posicionamento aqui defendido também deriva azo das recentes reformas legislativas introduzidas ao diploma processual civil brasileiro. Com efeito, sob o progressivo reconhecimento de que a segurança jurídica demanda estabilidade interpretativa, o que se tem visto é um movimento em prol da uniformização jurisprudencial em geral, ao passo que, em se cuidando de decisões do STF, mecanismos cogentes e vinculantes foram criados para conferir verdadeira eficácia normativa a estas. É o que se dá no caso da Lei nº. 11.418/2006, que atende ao § 3º do artigo 102 da Carta Magna, introduzido pela emenda 45/2004, e da Lei nº. 11.672/2008.
Por esta última, acresceu-se um artigo 543-C ao CPC, o qual passou a disciplinar o processamento do recurso especial ao STJ (art. 105, III, CF) para o caso de multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito. Segundo o dispositivo, o presidente do tribunal de origem ou o relator do recurso especial no STJ deverão se limitar a admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, determinando a suspensão dos demais. Sobrevindo a decisão do STJ, os recursos especiais sobrestados na origem deverão basicamente seguir a orientação ditada por aquela corte de superposição acerca da correta interpretação a ser dispensada à legislação federal objeto da controvérsia.
Quanto àquele primeiro diploma, foi editado como lei enunciadora dos termos de admissão de recurso extraordinário ao STF, a qual, segundo o novel § 3º do artigo 102 da Constituição, imprescindirá de que as questões constitucionais discutidas no caso possuam “repercussão geral”. Com efeito, ao lado do também recém-introduzido artigo 103-A da Lei Maior – o qual passou a autorizar à Suprema Corte, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar ‘súmula vinculante’ em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública[12] –, a legislação em comento deu ao controle difuso de normas pela Suprema Corte o tão aspirado caráter objetivo, aproximando as decisões proferidas por aquela via às ditadas em controle concentrado[13].
O cotejo entre as situações, contudo, deixa ainda mais transparente o diferencial existente entre uniformizar-se a interpretação da Lei e a da Constituição. É que, no caso da interpretação da lei infraconstitucional, ainda que se trate daquela ditada pelo STJ sobre lei de repercussão nacional, o sistema se contenta com o impedimento à admissão de recursos que encerrem orientação dissonante daquela pronunciada pelo Tribunal Superior. Os juízes e tribunais inferiores, porém, não se encontram impedidos de ditar entendimento destoante, o que se extrai até mesmo do § 7º, II, do artigo 543-C do CPC, que não prescreve a correção, pura e simples, pelo tribunal de origem, do acórdão proferido em contraste com a tese do STJ, mas sim que a matéria ‘seja novamente examinada’, mantendo, até certo ponto o livre convencimento dos magistrados de primeiro e segundo graus. Em se tratando da interpretação dada pelo STF ao texto constitucional, todavia, a situação é diferente. Neste caso, a própria Constituição, para além de exigir que a questão enfrentada projete repercussão geral, autoriza à Corte Suprema a edição de súmula com efeito vinculante.
Ora, na dicção do § 3º do artigo 103-A da Lei Maior, “do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso”. Assim, em se tratando de interpretação ditada pelo STF que resolva controvérsia constitucional atual entre órgãos judiciários que acarretasse grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica (art. 103-A, § 1º, CF), o sistema não se satisfaz com o mero óbice à subida àquela Corte de recursos que contrariem dita interpretação. Não. Nesse caso, vai-se além, prevendo-se o mecanismo da reclamação, por meio da qual a Suprema Corte “cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida” em seu lugar. A explicação não é outra: o princípio da supremacia da Constituição, do qual a nulidade da lei inconstitucional é corolário, impõe tal tratamento diferenciado.
Conclusão
Temos estabelecidas as seguintes premissas a partir do seguinte trabalho: (1) em matéria de constitucionalidade, quem dá a palavra final é o STF, e o posicionamento por este externado é que definirá de forma segura se determinado ato encontra-se ou não em harmonia com a Lei Maior; (2) em se tratando de normas constitucionais, diferentemente do que se dá com as de inferior hierarquia, o sistema não convive com a coexistência de interpretações várias e dissonantes – a segurança jurídica, que justifica a uniformização dos julgados, impõe plena padronização em relação à Constituição; e (3) em nome do princípio da supremacia da Constituição, aquilo que o Supremo diz ser inconstitucional o será desde sempre, tendo-se por nulos, e insanáveis, os atos eivados de violação à Magna Carta.
Dessa maneira, temos que a efetiva realização dos objetivos da República imprescinde de prestígio à segurança jurídica, desígnio a ser perseguido ainda que, em nome de sua concretização, se imponha a relativização, ou revisão, da coisa julgada. Afinal, a mantença da coisa julgada poderá, conforme o caso, resultar em ofensa à supremacia da Constituição ou à isonomia, não sendo razoável que simplesmente se ateste aquela por absoluta e estas, por relativas. Não, mas a solução deverá se alicerçar num juízo adequado de proporcionalidade entre os diversos princípios e valores envolvidos. Em suma, a coisa julgada – que “não constitui um atributo essencial e necessário da sentença, mas uma simples criação do ordenamento jurídico” (PALACIO, 1998, p. 539), decorrendo de escolha política do Constituinte, conforme os fins por este colimados – relacionar-se-á com outros valores tidos por igualmente relevantes no contexto político adotado segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, não se cogitando de uma supremacia essencial, conceitual, da coisa julgada perante outros princípios, tal qual aquela fosse fundamental à estruturação jurídica e estes não.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Felipe Tojeiro
Procurador Federal especialista em Direito Processual pela Escola Paulista da Magistratura EPM e em Direito Público pela Universidade de Brasília UnB MBA em Direito da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas FGV