Resumo: O presente artigo traz a discussão sobre a aparente dualidade existente entre a defesa social e o respeito aos direitos e garantias individuais. Busca-se explicitar o dever constitucional do Estado no fornecimento de segurança à sociedade, analisando a eficácia dos instrumentos lançados por este para se atingir tal missão.
Palavras-chave: Segurança. Defesa social. Garantismo. Simbolismo. Direitos e garantias.
Sumário: 1. Localização do problema. 2. Dever de combate à criminalidade. 3. A idéia da legislação Simbólica. 4. Garantismo penal e o perigo da impunidade. Conclusões.
1. Localização do problema
Desde os primórdios, uma das principais adversidades enfrentadas pelo ser humano foi a insegurança. No inicio, esta insegurança se dava de forma bem diversa da que conhecemos hoje. Na maioria das vezes, a espécie humana enfrentava a insegurança provocada pelas mudanças climáticas, outras vezes, se deparavam com doenças trazidas de outros grupos, pois, no início aqueles povos se movimentavam com muita freqüência na busca por melhores condições, eles teriam que estar onde existissem alimentos[1]. Como se pode ver, as vulnerabilidades eram diferentes das nossas.
Com a fixação do homem a um determinado território, onde ele já conseguia adaptar o ambiente às suas necessidades básicas, e o surgimento da idéia de propriedade privada, as discórdias entre os membros do grupo passam a ser constantes. As invasões de outros grupos, na tentativa de saquear alimento também causam insegurança. Como se pode observar, novas vulnerabilidades surgem no decorrer da história.
Esta sociedade, que agora encontra uma insegurança generalizada, repleta de vulnerabilidades, necessita de um ente que os dê segurança, promovendo com sua atividade interventiva, um ambiente de paz. Este é um dos argumentos para a origem do Estado, onde este iria regular as condutas com a finalidade de promover o bom relacionamento humano.
Este Estado, teria assim, o dever, e não só o poder, de dar segurança aos seus cidadãos. O indivíduo teria, nesta espécie de contrato, transferido uma parcela da sua liberdade ao Estado, pois, este na tentativa de manter a paz, poderia punir os transgressores da sua norma. Esta é em suma, a teoria Hobbesiana de Estado,
“No estado natural o homem é livre, porque pode usar seu poder do modo que lhe parecer melhor, para a preservação de sua própria natureza. Hobbes definiu a liberdade como a ausência de obstáculos externos capazes de impedir o homem de usar seu poder conforme o que lhe for ditado por seu julgamento e razão. E o que a razão dita é a busca pela paz, que somente existirá no Estado…
Para Hobbes, a construção jurídica do Leviatã se dá através de um contrato, onde cada indivíduo transfere ou cede parte de sua liberdade para obter segurança. A figura do contrato se encaixa bem na fórmula de Hobbes, vez que, como definido por ele mesmo, o contrato significa transferência mútua de direitos[2]”.
Com o passar do tempo, este dever de promover a segurança dos seus cidadãos ganha novas dimensões, e o Estado teve que se aparelhar para fornecer este ambiente de paz tão desejado pelo homem. Surgem assim, órgãos de segurança e o combate aos diversos tipos de criminalidade. Nesta evolução, ganha espaço o que veio a se chamar mais tarde de defesa social. Tal expressão surge justamente para representar a missão do Estado e de seus órgãos, na defesa da sociedade. Assim, poderíamos definir defesa social como um conjunto de mecanismos aplicados na defesa da sociedade, tendo como objetivo reduzir as vulnerabilidades para se alcançar um ambiente pacífico.
É interessante observar que a defesa social se desenvolve no âmbito do direito penal, e tem seu sentido inicial ligado ao combate à criminalidade[3]. Cezar Roberto Bitencourt (2002 – p.64) citando Gramática, afirma que o direito penal deve ser substituído por um direito de defesa social, com o objetivo de adaptar o indivíduo à ordem social[4].
Inicialmente ligada à repressão por meio da severidade das penas, a defesa social passa por uma reformulação humanista e ganha o rótulo de nova defesa social em 1954 com a obra de Marc Ancel. Esta nova concepção busca agregar uma filosofia mais humana, objetivando uma reação social que proteja o ser humano e garanta os seus direitos. Esta nova concepção busca ainda, analisar e criticar o sistema existente, bem como dar um maior valor as diversas ciências humanas que são chamadas a contribuir, de forma interdisciplinar, no estudo e combate dos problemas ligados à criminalidade[5].
Podemos observar, pela rápida análise evolutiva que fizemos da insegurança e seu combate, que a ideia de nova defesa social, contendo elementos humanizantes, que pregam um combate a criminalidade com respeito aos direitos dos cidadãos, além da busca de auxílios por outras áreas do conhecimento humano, que não somente o direito penal, se harmonizam melhor com o sentido dos direitos e garantias fundamentais.
Deve-se ter em mente que a expressão defesa social, não se restringe a área penal. Defender a sociedade deve ser entendida como um conjunto complexo de ações que reduzam as vulnerabilidades e proporcionem um ambiente harmonioso e sadio. Assim, educação, saúde, lazer, segurança, são segmentos que não podem ser pensados de forma isolada, pois, já se sabe que a ausência de educação ou a sua má qualidade, combinado com altos índices de desemprego, formam um ambiente fértil para a proliferação do crime.
Não se quer com este discurso, que se evite o combate direto ao crime, pelo contrário, o Estado brasileiro tem esse dever. No entanto, usar o direito penal como política pública, e com isso desrespeitar os direitos e garantias fundamentais é algo inadmissível.
2. Dever de combate à criminalidade
Conforme visto anteriormente, é um dever do Estado manter a ordem social, e buscar por todos os meios, o bem estar do seu povo. A nossa Constituição de 1988, inclui entre os direitos sociais no art. 6º, e como tal entre os direitos fundamentais, o direito à segurança. Em seu art. 144, a nossa lei fundamental traça as linhas gerais da segurança pública em nosso país, reforçando em seu caput que é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a segurança pública.
Neste capítulo da nossa carta magna encontramos o desenho de um esforço federativo de combate à criminalidade, onde encontramos os órgãos policiais e suas respectivas atribuições constitucionais.
Cumprir o dever de dar segurança a seu povo é uma sublime missão do Estado, pois, temos que compreender que é por meio da pacificação social e do combate aos excessos que se pode fazer valer os direitos fundamentais. Isso fica bem claro, quando pensamos numa sociedade onde impere a criminalidade. Neste ambiente, direitos fundamentais como a vida, a incolumidade física e psíquica das pessoas, o patrimônio e diversos outros direitos, não são respeitados e, consequentemente, fazem letra morta um conjunto de direitos conquistados com muita luta no decorrer da história.
Os órgãos de segurança pública e seus agentes são, em definição apertada, cumpridores e garantidores da ordem pública, sendo cumpridores das decisões tomadas no legislativo que são representadas por meio de lei. Assim, cumprir as leis e fazer com que elas sejam respeitadas é a missão dos responsáveis pela segurança publica.
Como cumpridores e aplicadores da lei, os agentes do Estado não podem se furtar aos mandamentos legais, tendo que atuar no combate a criminalidade observando os preceitos normativos. No entanto, temos acompanhado no dia a dia dos noticiários, uma série de condutas dos operadores de segurança pública que põe a sociedade em desconfiança. Seja por meio da corrupção, seja por meio dos constantes desrespeitos aos direitos e garantias fundamentais, a nossa sociedade está discrente não só na polícia, como também em todo o sistema penal do nosso país, para não nos alargarmos e falarmos dos governantes de modo geral.
Nos últimos anos, a criminalidade ganhou novas roupagens e o combate a ela ficou cada vez mais complexo. Com o fenômeno da globalização e a consequente integração entre os países, o crime não tem mais fronteira. O desenvolvimento da internet, como desdobramento deste fenômeno integraciosnista, abriu mais um leque para a criminalidade, pois, permite que crimes sejam praticados de qualquer lugar do mundo e seus autores permaneçam, muitas vezes, sem serem identificados. Assim, os velhos mecanismos de outrora já não servem mais para dar um combate eficiente a este fenômeno maléfico.
Com componentes cada vez mais articulados e organizados, as organizações criminosas conseguem atuar em diversos ramos da sociedade, conseguindo se infiltrar e cooptar agentes públicos, que se voltam contra o Estado e passam a compor uma rede cada vez mais preparada de criminosos.
É uma verdadeira corrida onde o crime organizado dá quatro passos enquanto o Estado dá apenas um[6]. Este atraso estatal pode ser observado em todas as áreas da persecução penal. Na área policial encontramos um verdadeiro sucateamento, onde viaturas não possuem se quer condições de funcionamento. Material humano despreparado, com baixos salários e sendo paquerados por organizações criminosas que prometem bons salários e proteção para a sua família. Na chefia dos órgãos de segurança, pessoas despreparadas, quase sempre apadrinhados políticos de A e/ou de B. Falta de integração e até mesmo de sincronia no combate ao crime é uma constante, é como se existe um crime organizado e um aparelho estatal desorganizado. Para complementar, o que se verifica em todo início de gestão, são políticas de segurança pública de governo e não de Estado, de tal forma que cada governante põe em prática uma ação, que após a eleição de um oposicionista, será totalmente abandonada e será posta em prática uma outra. Este é um fenômeno maléfico que impede de um lado a continuidade do trabalho e o seu aperfeiçoamento, bem como do outro, joga fora incontáveis valores dos cofres públicos, em um flagrante desrespeito ao princípio da eficiência e do bom trato da coisa pública.
Numa segunda etapa da persecução penal, encontramos um judiciário lotado de processos e com número insuficiente de servidores, acarretando com isso, uma exagerada demora no julgamento e na consequente condenação dos culpados. Essa lentidão, na maioria das vezes, passa para a sociedade uma péssima impressão de impunidade. Esse fenômeno também causa muitas vezes, a extinção da punibilidade, por meio da prescrição, o que faz com que criminosos fiquem impunes.
Na outra ponta, encontramos um sistema penitenciário falido, que não consegue cumprir a missão ressocializadora contida na ideia de pena. Conseguindo, isso sim, multiplicar e aprimorar a inesgotável arte criminosa dos ali aprisionados. Servindo muitas vezes, de quartel do crime, de onde perigosos criminosos comandam o tráfico ilícito de entorpecentes e muitas outras condutas que afligem a sociedade.
Diante deste cenário, a sociedade se sente insegura e o Estado falha em seu dever de combater a criminalidade e dar a paz que a sociedade tanto almeja. Pode-se afirmar que o Estado é devedor de um bem indispensável para a sociedade que é a segurança. Os bons cidadãos a muito clamam por justiça e segurança e o Estado sempre dá respostas paliativas, como aumento de pena, criminalização de condutas, edição de leis mais duras, quase sempre inconstitucionais, etc. O ex ministro Nilson Naves, do Superior Tribunal de Justiça, bem explica esta prática:
“Em face do quadro, a sociedade clama por providências, urgentes e efetivas, repito, e essas motivações pragmáticas cruzam-se, há décadas, com argumentos éticos. De fato, existe apressada mania e malconceito de se querer a tudo solucionar, em qualquer circunstância, por meio da constitucionalização de normas, como se normas ordinárias nada resolvessem, e por meio da criminalização, aí incluídos o endurecimento das penas e o agravamento desmedido de seu cumprimento. São dois fenômenos que, se não resolvem os problemas, contribuem para agravá-los por inúmeras razões, de todos conhecidos. Uma delas é a de que, paradoxalmente, concorrem para o fortalecimento da violência ao legitimar a violência institucionalizada[7]”.
É como se o Estado fizesse de conta que cumpre o mandamento constitucional de dar segurança a população sem, no entanto, desenvolver políticas públicas efetivas de combate à criminalidade, que como já visto, não se resume a editar leis mais duras ou restringir a liberdade de pessoas muitas vezes feita de forma arbitrária.
3. A idéia da legislação Simbólica
Uma questão interessante é a análise das leis editadas pelo nosso legislativo para dar combate à criminalidade. Geralmente editadas em momentos de clamor social, o que é comum após um crime que choca a opinião pública, estas leis endurecem penas, criminalizam condutas e restringem direitos e garantias fundamentais.
Esta conduta apressada e pouco produtivo de combate à criminalidade, funciona como uma espécie de resposta à opinião pública. Assim, cria-se uma resposta legislativa e mostra-se a sociedade uma atuação rápida do poder público. Tenta-se resolver o problema por meio da legislação penal, criando novos tipos penais e contribuindo para a banalização deste ramo do direito.
Como que numa contramão, ao criminalizar condutas e não possuir uma estrutura para dar cumprimento à nova lei, está-se, na verdade, contribuindo para o aumento da impunidade, o aumento da violência e a criação de um sentimento de descrédito pela máquina punitiva do Estado, o que acaba legitimando a violência institucionalizada. É como se quisesse combater a violência do crime, pela violência da lei. O Ministro Nilson Naves bem comenta esta conduta do legislador pátrio:
“Eis um aspecto grave do problema: o crime precisa ser punido, sim, porém a chamada legislação do “pânico”, incentivadora da crueza das penas, não constitui instrumento eficaz nessa luta. A propósito, andam por aí apregoando o ressurgimento do terror penal − no entender de alguns, verdadeiro atalho para os erros do passado −, todavia é bom que se ponderem seus efeitos. Sem dúvida, numa sociedade igualitária, livre e fraterna, não se pode querer combater a violência do crime com a violência da lei[8]”.
É importante esclarecer que não se condena aqui a atuação legislativa no combate à criminalidade, até porque, ela se faz fundamental na medida em que cria instrumentos legais de combate a este grave problema. No entanto, o que se condena são medidas paliativas, que combatem as consequências e não as causas do crime, pois, se investe pouco em um combate estrutural da criminalidade que tem suas origens nas questões sociais.
O que existe nestas legislações é a função simbólica, onde o elemento jurídico-instrumental da norma é substituído por um elemento essencialmente político-ideológico[9]. Em outras palavras, a legislação simbólica serviria não como um instrumento eficaz para a defesa social, mas sim, como instrumento populista de cunho político ideológico.
No entanto, um grave problema é que esta legislação simbólica, mesmo desprovida de instrumentalidade jurídico-normativa e dotada de uma farsa política, ingressa no ordenamento jurídico e produz efeitos, quase sempre maléficos para a sociedade. O que acontece, é que por ter sido produzida em um momento de clamor social, e ter sido editada para dar uma resposta, seja ela qual for para a sociedade, estas leis tem provocado uma série de confusões e desrespeito aos direitos e garantias fundamentais.
Exemplos em nosso ordenamento jurídico não faltam, basta lembrarmos da lei dos crimes hediondos, lei 8.072/90. Esta lei criou uma série de restrições aos direitos e garantias fundamentais, entre elas, a proibição da progressão de regime, que foi mais tarde, declarada pelo Supremo Tribunal Federal como parcialmente inconstitucional sob o argumento de ferir o direito fundamental à individualização da pena. Citemos apenas este exemplo para não deixarmos este trabalho enfadonho.
O professor Marcelo Neves (1994, pp. 26-41) nos mostra qual seriam as verdadeiras funções das chamadas legislações simbólicas, e as elenca em três: a) confirmar valores sociais, b) demonstrar a capacidade de ação do Estado e c) adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios[10].
Num primeiro momento a legislação simbólica traria a confirmação de valores sociais. Assim, o legislador assume uma posição em relação a determinados conflitos sociais, de forma que os grupos que estão envolvidos nestes conflitos acerca de determinados valores consideram a confirmação legislativa como uma vitória, como uma prova da superioridade de sua posição, independentemente da eficácia normativa da lei. E isto pode ser explicado, pelo crescente desejo da sociedade em ver os “bandidos” atrás das grades. O legislador diz o que a sociedade quer escutar.
No segundo caso, o Estado lança mão da legislação para demonstrar a sua capacidade de ação, pois, quer passar para a população a ideia de que deu um combate rápido e eficaz a problemas que afligem a sociedade. Nesta função de demonstrar uma ação rápida, o Estado não está preocupado nem se ele possui condições estruturais para concretizar a norma, é o que se poderia chamar de legislação álibe, na qual se cria uma imagem favorável do Estado no que concerne à resolução de problemas sociais[11].
Um exemplo prático deste caso foi visto quando da elaboração da chamada lei seca para condutores de veículos automotores. O legislador diante de um cenário, onde os noticiários informavam cotidianamente sobre mortes no trânsito, em sua grande maioria provocadas por condutores que dirigiam embriagados, editou uma lei onde se proibia, sem conceder tolerância alguma, que condutores ingerissem álcool antes de dirigir.
O detalhe é que o projeto de lei foi apresentado, discutido, aprovado e entrou em vigor, sem nem mesmo o Estado ter aparelhado seus agentes com o instrumento que serviria para atestar a ingestão de álcool pelo condutor. Mais uma vez, fica claro pelo exemplo dado, que a citada legislação serviu para demonstrar a capacidade de ação do Estado.
Como já dito anteriormente, o que é maléfico é que tais legislações com frequência atentam contra os direitos e garantias fundamentais. A citada lei seca, por exemplo, pune o condutor que não soprar o famoso “bafômetro”, em afronta ao desdobramento do princípio da presunção de inocência que se resume em não obrigar alguém a produzir prova contra si. Mais uma vez, tenta-se reduzir o número de mortes no trânsito penalizando condutas e contrariando direitos fundamentais.
Entendendo o trânsito seguro como um desdobramento do direito à segurança previsto no texto constitucional, estando assim incluso dentro da ideia de defesa social, o Estado está obrigado a intervir para reduzir suas vulnerabilidades e dar segurança aos usuários das vias. No entanto, este objetivo de segurança deverá ser buscado de forma efetiva, com aparelhamento de órgãos policiais, aumento de efetivo das instituições que atuam nesta área e com melhoramento da infraestrutura rodoviária, e não com legislações simbólicas atentadoras de preceitos fundamentais.
Numa terceira via, as legislações simbólicas buscam adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios. Ou seja, ao dar uma solução ao clamor social por meio de uma legislação simbólica, o poder público transfere a resolução do problema para um futuro incerto. É o que poderia chamar de resolução aparente, pois, a norma simbólica é editada e publicada, a sociedade tem a resposta imediata para os seus anseios, pelo menos de forma fictícia, porém, o conflito só será sanado ao minimizado após a efetivação das disposições legais que acontecerá, ou não, em longo prazo.
Como se pode concluir, para se dar segurança a sociedade, importante se faz a edição de normas que instrumentalizem o combate a criminalidade ou qualquer outra forma de violência contra a sociedade. No entanto, estas legislações não podem funcionar como símbolos e sim, dar um efetivo suporte a políticas públicas destinadas a manter a paz do meio social, não deixando em momento algum, de respeitar os direitos e garantias fundamentais. Deve-se buscar assim, em todos os momentos do combate a insegurança, compatibilizar os instrumentos de defesa social com os direitos fundamentais previstos na nossa lei maior.
4. Garantismo penal e o perigo da impunidade
Como até aqui exposto, o Estado possui o dever de dar segurança ao seu povo, utilizando-se de todos os esforços para combater a criminalidade tão crescente nos últimos anos. Deve, no entanto, na implementação deste esforço, respeitar direitos e garantias fundamentais, sob pena de se instituir um Estado policialesco, que não respeita direitos fundamentais e usa de meios desumanos sob o argumento da preservação do bem maior que é a defesa da sociedade.
“Vigora no Estado Policial a pena de morte, de banimento, de trabalhos forçados, de caráter perpétuo, e de qualidades cruéis. Há a irrestrita inobservância dos ditames do devido processo legal, da ampla defesa, da legitimação das provas em juízo. Desrespeita-se, a todo custo, a integridade física e moral dos particulares. Apreende-se documentos que entenderem necessários e suficientes. Pratica-se o mal pelo bem, segundo entendem. Prevalece a máxima de que os fins justificam os meios. Vale tudo, ou melhor, quase tudo. Só não vale a invocação de Direitos perante o poder Estatal. Aí não, até porque inexistiria autoridade conhecedora de Direitos fundamentais. São os detentores das armas, dos cassetetes, dos aparatos tecnológicos, da prisão. Ignoram os Direitos. Conhecem a soberba, a arrogância, a futilidade[12]”.
Quase que como uma constante, neste trabalho nos referimos muito a esta aparente dualidade existente entre o dever de combate à criminalidade e o dever de respeito aos direitos e garantias fundamentais. Esta “dualidade” pode ser representada por duas doutrinas existentes na esfera penal, uma punitivista e defensora da lei e da ordem, e outra garantista que não despreza a defesa social, no entanto, estabelece limites ao Estado, tendo como baliza, os direitos e garantias previstos na nossa lei fundamental. A primeira, simpatiza com o combate a criminalidade como um dos mais importantes fins a ser perseguido pelo Estado, independente de como se alcançará tal fim, pois, a segurança da coletividade deve ser o bem maior a ser protegido.
A doutrina garantista capitaneada por Luigi Ferrajoli, por outro lado, é formada tendo como plataforma a limitação do Estado. Esta doutrina, como o próprio nome já faz presumir, prega pela garantia dos indivíduos e pelo efetivo respeito aos seus direitos fundamentais. O garantismo prega um direito repressivo mais humano, onde haja a efetiva sanção ao infrator, mas com critérios rígidos de respeito à dignidade da pessoa humana e que garantam um julgamento justo com ampla garantia dos direitos individuais, mesmo que estes venham a conflitar com o interesse estatal[13].
O garantismo busca assim dar maior efetividade a preceitos fundamentais constantes na nossa Constituição Federal, para isso, propõe adequar os acontecimentos sociais com as disposições normativas. O professor Alexandre da Maia (2009), se referindo a Luigi Ferrajoli, bem explica essa finalidade:
“No aspecto penal, destaca o autor que as atuações administrativas e policiais andam em descompasso com os preceitos estabelecidos nas normas jurídicas estatais. Então, a ideia do garantismo é, de um modo geral, a busca de uma melhor adequação dos acontecimentos do mundo empírico às prescrições normativas oficiais[14]”.
Esta estrutura garantista pode ser muito bem visualizada no decorrer do texto da nossa Constituição cidadã, no entanto, uma série de problemas poderiam ser apontados para o seu não implemento, principalmente em se falando de pessoas pobres que não podem fazer valer seus direitos. É que pela falta de uma defensoria pública eficiente, e muitas vezes até mesmo insistente, o garantismo parece ser algo alcançado apenas pelas classes mais favorecidas, que por meio dos seus caríssimos procuradores, usam e abusam da estrutura garantista do nosso sistema constitucional.
No entanto, como já falado, os excessos no direito são sempre muito perigosos. Se a ausência de uma postura garantista, onde haja uma prevalência do Estado policial punivista, é maléfica para a eficácia dos direitos e garantias fundamentais, uma teoria exacerbadamente garantista, ou supergarantista, poderá levar ao terrível ambiente da impunidade. Este ambiente de impunidade também causa uma comoção social, e gera um ambiente de descrédito no aparelho persecutório do Estado. A estrutura social, entendida como a divisão da sociedade em classes, tem sido, infelizmente, o fator diferenciador de uma aplicação garantista ou punitivista do direito.
“O fator estrutural, contudo, no caso dos desafortunados, em algumas situações, ao reverso de proporcionar impunidade, possibilita a punição injusta, pois é interesse do poder estatal (abstratamente considerado) punir alguém, até mesmo para justificar sua relativa inoperância. E nesse instante se assiste a dicotomia das duas faces da celeridade processual: a) a primeira, do processo do poderoso, onde a celeridade está a mercê da defesa (ela dita o ritmo – trava quando seu constituinte está solto, e acelera quando ele está preso); b) a segunda, do processo do desafortunado, onde o crime normalmente é de fácil elucidação (geralmente não há organização sofisticada para prática do delito), a defesa é meramente formal, não usando recursos, incidentes processuais ou qualquer outro instrumento legal de protelação, tendendo a condenação a ser rápida e a execução da pena imediata. Nessa segunda hipótese é que algumas instituições persecutórias normalmente tentam se apresentar como eficientes no intuito de mascarar a real inoperância[15]”.
Em última análise, cabe-nos afirmar que o garantismo, como forma de limitação do poder do Estado e como teoria concretizadora dos direitos e garantias fundamentais, deve ser aplicada a todos os níveis sociais, seja por meio do acesso de todos à justiça, seja pelo respeito aos preceitos fundamentais nas etapas de combate à criminalidade. Por outro lado, o garantismo não pode servir de apanágio para a impunidade, principalmente quando tivermos como réus, pessoas de alto poder aquisitivo da sociedade brasileira.
5. Conclusões
Do duplo dever disposto na Constituição, que é o dever de proporcionar segurança ao seu povo e o dever de observância aos direitos e garantias fundamentais, não pode haver conflito. A Constituição deve ser vista e interpretada como um conjunto unitário de normas, assim deve-se buscar harmonizar combate à criminalidade e respeito aos preceitos fundamentais.
A teoria neoconstitucionalista trouxe como uma de suas bases, a centralização da Constituição. Assim, toda ação governamental, e de uma forma geral, todos os preceitos legais, devem estar harmonicamente alinhados com as disposições da nossa lei fundamental. Por essa teoria, toda aplicação do direito deve passar pelo filtro de constitucionalidade para se averiguar sua compatibilidade.
Isto não seria diferente no campo da persecução penal, mais especificamente no direito e no processo penal. Assim, deverá existir, seja na criação da norma penal, seja no modus operandi dos órgãos de segurança pública, ou na interpretação e aplicação do direito, uma busca pela efetivação dos valores e fundamentos constitucionais.
Diante disto, temos que buscar um direito penal humanizante[16], que dê respostas necessárias e suficientes para as condutas lesivas aos bens jurídicos indispensáveis ao convívio social, mas que tenha como parâmetro a dignidade da pessoa humana. Desta forma, estaremos cumprindo o dever de combate a criminalidade sem, no entanto, desrespeitarmos os direitos e as garantias fundamentais.
É importante concluir essa análise sem esquecer da outra via humanizante. Refiro-me a devida estrutura que deve ser disponibilizada para os órgãos responsáveis pela segurança pública. Estes órgãos formados, em sua maioria, por homens e mulheres de bem, não podem ser jogados numa guerra particular entre o Estado e a criminalidade sem uma estrutura eficiente e garantidora da segurança dos próprios agentes do Estado. Não esqueçamos que esses agentes são destinatários dos mesmos direitos e garantias atribuídos aos demais membros da sociedade.
Esse aspecto deve ser ressaltado, porque a atuação não efetiva no combate à criminalidade, compromete e expõe a perigo todos os setores da sociedade, tornando vulnerável todos os cidadãos de bem deste país, aí é claro, incluindo o profissional da segurança pública.
Lembremos que o Estado é devedor no tocante ao fornecimento de segurança à toda a sociedade, e como tal, deve lançar mão de medidas concretas e eficazes no combate a criminalidade. Não agindo desta forma, o Estado está descumprindo a própria Constituição Federal, oferecendo uma proteção deficiente aos seus administrados.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Edimar Ferreira Bezerra
Servidor Público Federal, Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito de Caruaru/PE