Resumo: O presente trabalho traz o Plano Diretor Participativo, sob a perspectiva de mudanças que o cidadão pode propor em sua realidade mais próxima, através de sua contribuição pessoal. Compreendendo o papel do indivíduo enquanto homem e agente, assim como de sua atuação particular e atividade em sociedade, parte-se para a compreensão do que seria o papel do Município enquanto realidade mutável mais próxima, através de instrumentos legais postos a disposição para a população. A participação popular nas esferas mais próximas de sua realidade é o mais efetivo destes, desde que contenha em si a motivação apropriada para gerar tal mudança. Imposições e obrigações não criam os laços de pertença capazes de gerar comunidade, mas, motivações que partem das particularidades intrínsecas de cada cidadão são capazes de gerar cidadania e por consequência comunidade. A cidadania se constrói a partir da perspectiva do cidadão e o Plano Diretor Participativo é um instrumento eficaz de propiciar este desenvolvimento e está a disposição da comunidade para que esta possa ser ouvida e atendida conforme suas necessidades, a partir de sua perspectiva da realidade local.
Palavras-chave: Cidadão. Cidadania. Planejamento. Plano Diretor. Participação Popular.
Abstract: The present work bring the Participative Director Plan, from the perspective of changes that the citizen may propose in its closer reality, through his personal contribution. Understanding the role of the individual as man and as agent, as well as their particular role and activity in society, to the understanding of what the role of the municipality while closer reality changeable, through legal instruments put at the disposal for the population. The popular participation in the closer spheres to their reality is the most effective of these, if it contains within itself the proper motivation to generate such a change. Obligations and duties do not create the bonds of belonging that can generate community, but motivations that depart from the intrinsic features of each citizen are able to generate citizenship and therefore the community. The citizenship is constructed from the perspective of citizens and Participative Director Plan is an effective tool to facilitate this development under construction that is available to the community so that they can be heard and answered according to their needs, from their perspective of local reality.
Key-words: Citizen. Citizenship. Planning. Master Plan. Popular Participation.
Sumário: Introdução. 1. Ser Cidadão. 1. 1 Homem vs. Cidadão. 1. 2 Liberalismo vs. Comunitarismo.. 1. 3 Cidadania: Justiça Racional e Sentimento de Pertença. 2. Cidadania. 2. 1 Origem. 2. 2 Conceitos. 2. 3 Dimensões da Cidadania. 2. 4 Ideal de Cidadão. 2. 5 Ideal de Cidadania. 3. Criar Espaço para a Cidadania. 4. Papel do Município. 4. 1 Competência Municipal. 4. 2 Planejamento Municipal. 4. 3 Planejamento da Cidade. 4. 4 Estatuto da Cidade. 5. Plano Diretor. 5. 1 Histórico. 5. 2 Conceito. 5. 3 Ficha Técnica. 6. Participação Popular. 6. 1 Disposições Legais. 6. 2 Instrumentos de Participação. 6. 3 Participação no Plano Diretor. 7. Plano Diretor Participativo do Município de Londrina – PDPML. 8. Participação Popular como Escola de Cidadania. Conclusão.
Introdução
Por vezes, trata-se a cidadania através de um discurso de direitos, empregando uma ideia limitada de que o cidadão conhece seus direitos e pode exigir sua efetivação através do Estado, uma cidadania puramente passiva, sem expectativa de gerenciar mudanças. O que nos leva a entender as reclamações populacionais, no tocante a falta de cidadania, como a incompetência do Estado em cumprir suas obrigações:
“A vida humana associada exige dois tipos de aprendizagem fundamental: o primeiro e mais importante deles é equilibrar os desejos e interesses de cada membro individualmente com os interesses e desejos dos outros, pois sem isso não é possível viver juntos”. [1]
Com o intuito de perceber a motivação, ou falta desta manifestação da população, em sua execução, bem como da necessidade de compor todos estes interesses externalizados ou não, se usará dos conceitos de cidadania para compreensão de como seria seu exercício, sobremaneira nesta exigência legal de que trata o Plano diretor; assim como de sua abrangência, seus tipos, o que imaginamos, o que de fato temos e o que, utopicamente, gostaríamos de conceber.
E diante destas exposições poder, ao final, tratar no tema de maneira objetiva, olhando para os exemplos de comportamento em nossa cidade, constatando como anda nossa participação, como a sociedade londrinense tem se comportado frente as necessidades legais de sua presença.
Pensar global e agir local, ou seja, não apenas discorrer vagamente sobre o tema, mas esquadrinhar opções e, por assim dizer, possibilidades, de levá-lo de fato à realidade social de seu local de aplicação. Os contrapontos entre teoria e prática existem e sempre existirão, o que faremos frente a eles é que definirá que tipo de cidadãos somos.
Para que não se torne apenas mais um projeto imaginário, belo na teoria, mas sem qualquer aplicação prática, é imprescindível um Plano Diretor que atenda as reais necessidades da população como um todo, não apenas daqueles, que por deter maior poder de barganha, se fazem ouvir, mas, particularmente, daqueles que ainda desconhecem seu direito de serem ouvidos, de terem suas carências atendidas, em reconhecimento de sua cidadania. Na mesma medida em que buscam uma participação em sociedade, contrapondo sua ação a ação do Estado.
1. Ser cidadão
Para que se conheça como a participação popular na execução do Plano Diretor se faz, antes, é preciso compreender a premissa que antecede o ato de participar. É necessária a mitigação da ideia de que o envolvimento popular se trata, apenas e tão somente, de uma possibilidade que a sociedade abrangida pelo planejamento, possui, ou ainda limitar a compreensão desta participação a uma condição de legitimidade na feitura e aplicação desse plano. Entretanto é necessário, sobretudo, partir da condição desta participação como direito legal da população, como exercício de sua cidadania.
Cidadania esta que, na conceituação de José Afonso da Silva, “qualifica os participantes da vida do Estado, é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política”.[2] Afirmativa que traz em seu liame a compreensão global do termo, qual seja: cidadania fonte de direitos e exercício de deveres.
No entanto, antes de discutir a adequação ou não deste conceito é preciso diferenciar outros dois conceitos que são basilares para a compreensão do que de fato é a cidadania, são eles os conceitos de homem e cidadão:
“O homem (indivíduo que se tornou membro de um grupo que produz algo = trabalho/corporação) que compreende sua condição de parte do todo se torna cidadão quando entende sua situação de ser livre em si e para si, ou seja, que sabe que é membro, que é homem, que têm direitos e deveres e, mais do que isso, que sabe que é parte do todo e, nesse todo, precisa movimentar-se, consciente, do sistema de relações que mantém um Estado e do qual ele é parte. […] Para ser cidadão, o indivíduo (ser jogado no mundo e nas suas contingências) tem de se tornar membro de alguma comunidade […] onde todos têm deveres e direitos. Para ser membro (indivíduo que mergulhado numa organização entende sua parte no todo), o indivíduo tem de negar a primazia dos seus interesses individuais e buscar o interesse comum”[3].
Dualidade esta responsável por contemplar a complexidade e a atuação da natureza humana. Em linhas gerais, compreendendo o homem como indivíduo que se torna cidadão na medida em que se insere em uma comunidade, tornando-se membro desta.
1.1 Homem vs. Cidadão
Em sua definição mais elementar, como consta no dicionário de língua portuguesa, homem é “qualquer indivíduo pertencente a espécie animal que apresenta o maior grau de complexidade na escala evolutiva; o ser humano”[4]. Para o vocabulário jurídico homem é “vocábulo empregado para designar todo ente humano, notadamente no plural, homens, em que abrange os dois sexos. (…) Significa Indivíduo”[5].
Cidadão, por sua vez, é definido no dicionário de língua portuguesa como “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este (…) pop. Indivíduo, homem, sujeito”[6]. No vocabulário jurídico, cidadão “quer designar a pessoa que reside no território nacional”[7]. Para José Afonso da Silva “Cidadão, no direito brasileiro, é o individuo que seja titular dos direitos políticos de votar e suas consequências”[8].
Como se podem perceber os conceitos são demasiadamente abstratos e em determinadas definições se confundem, não nos permitindo compreender, de fato, o que são ou ainda perceber no que se diferem, para então serem aplicados.
Já no século XVIII, Jean-Jacques Rousseau, 1712-1778, se ocupou de fazer esta distinção. Filósofo, nascido em Genebra, na Suíça, inovou a forma de pensar a política, ao propor um exercício da soberania pelo povo, como primeira condição para sua libertação:
“A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhe faltava. […] o que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o seduz e que ele pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui”.[9]
Desta feita, o homem é aquele que busca sua própria felicidade, “em seu estado de natureza, o ser humano é livre, bom e inocente”,[10] mas o advento das estruturas sociais afetam negativamente a harmonia do homem, por se pautar sobre a lógica da propriedade privada, do lucro e do acúmulo, gerando escravidão e violência.
No entanto o cidadão (homem partícipe das estruturas sociais) é aquele que apesar de ter sido corrompido em suas virtudes e em sua liberdade, busca uma mudança estrutural da trama social, a partir da vontade geral, que propiciará aos cidadãos uma liberdade por excelência, a liberdade moral, na qual o ser humano poderá seguir uma lei que prescreve a si mesmo. O corpo coletivo se torna soberano, uno e indivisível representando a sociedade em seu todo, ou seja, “o povo no exercício da vontade geral”:[11]
“A vontade geral é a vontade indivisível do corpo de cidadãos, fundada no consenso em torno da justiça e do bem comum. É a base para a democracia e o fundamento de qualquer ato de soberania […] a vontade geral indica, em sua significação mais plena, o interesse comum que não pode ser reduzido à mera soma das diversas vontades dos indivíduos”.[12]
Em sua totalidade, o homem deseja ser feliz, a felicidade é seu objetivo. O cidadão, por outro lado, é aquele membro de uma sociedade, esperando dela que lhe faça justiça, que esta coloque a sua disposição os bens imprescindíveis para que ele possa continuar buscando um projeto de vida feliz, ao seu próprio esforço.[13]
Para os efeitos que este trabalho busca, compreende-se o homem como aquele sujeito que busca o máximo de sua felicidade, que possui seus conceitos de justiça e vive em harmonia e equilíbrio com o mundo no qual se encontra inserido, é o bom selvagem.
O cidadão por outro lado, é aquele sujeito que apesar de ter sido corrompido pelas estruturas da sociedade, não deixa de ser homem, ou seja, não deixa de querer sua satisfação ou sua felicidade suprema, mas se resigna em sua liberdade individual para vivenciar o seu ápice, ou seja, sua liberdade moral, na qual em conjunto com os demais cidadãos unem forças para mudar a realidade de um Estado corrompido. A partir da união de suas vontades estabelecem seu interesse comum, que constituirá a base de uma estrutura democrática:
“O homem não nasce cidadão; o homem se torna cidadão. A formação de um cidadão não é tarefa fácil: a família, a escola e mesmo o Estado não se sentem responsáveis pela sua formação. Transferindo-se a responsabilidade de uma instância para outra, quem sai perdendo é o indivíduo e a sociedade. […] Os homens não se tornam cidadãos através do aprendizado de alguns conteúdos. Para se tornar cidadão o indivíduo tem que se comprometer com a mudança e com as transformações [adesão]. Cidadão é aquele que entende seu papel no Estado [reconhecimento] e realiza sua parte na melhoria da sociedade”.[14]
O processo de tornar-se cidadão acontece a partir do momento em que o homem se reconhece como ator social, como parte no Estado e se desenvolve com o real comprometimento deste cidadão com a evolução de sua sociedade, ou seja, aprimora-se esta cidadania com sua verdadeira aderência.
1.2 Liberalismo vs. Comunitarismo
A partir desta diferenciação é possível compreender duas correntes que buscam teorizar como se daria uma maior coesão social, ou seja, o verdadeiro reconhecimento da sociedade por seus membros e a consequente adesão destes aos seus projetos comuns. Binômio reconhecimento e adesão, que compõe o conceito de cidadania, ou que pretende compor o que esta deveria ser. São as correntes do Liberalismo com a teoria sobre os mínimos de justiça e a corrente do Comunitarismo com sua teoria sobre os máximos de vida boa.
O liberalismo político, uma das mais proeminentes correntes da atualidade, tem como representante John Rawls, o qual defende que “a tarefa da própria filosofia política consiste em elaborar uma teoria da justiça distributiva que possa ser compartilhada por todos os membros de uma sociedade com democracia liberal”.[15]
A metodologia desta vertente trata de descobrir, dentro da cultura política de uma sociedade, o que seus cidadãos compreendem como justo. A partir desta percepção, intenciona construir uma teoria da justiça com a finalidade de infundi-la nas instituições elementares da sociedade. Como já dito, apesar de ser cidadão, o sujeito não deixou de ser homem, ainda que sob os moldes da sociedade, o indivíduo carrega sobre si o ideal de justiça.
Ter deixado de lutar individualmente por ela, não quer dizer que este tenha deixado de concebê-la. “Aqueles valores que todos compartilham compõem os mínimos de justiça aos quais uma sociedade pluralista não está disposta a renunciar, embora os diversos grupos tenham distintos ideias de vida feliz”.[16]
Quando aplicada a pequenos grupos, esta teoria pode parecer simples, contudo no momento em que aplicamos à sociedades amplas e plurais, como o Brasil, com diferentes crenças, diversas doutrinas filosóficas e diferentes ideologias políticas, com diferentes projetos de vida satisfatória, a convivência pode se tornar um tanto quanto conflituosa.
Sendo assim, as diferenças precisam convergir no descobrimento dos interesses comuns, de valores comuns e compartilhados, que embora sejam diferentes frente às visões individuais de mundo, possuem comunitariamente semelhanças, constituindo assim, uma sociedade moralmente pluralista. Caso contrário se terá a imposição de um grupo sobre os outros, ou ainda a inexistência de convivência, com grupos individualizados e isolados. Situações essas que não cumprem com objetivo de ampliar a coesão social dentro da cidadania, ou como diria Rousseau, não comporia a vontade geral.
Ampliar a adesão à uma concepção consciente ou inconsciente de justiça, tomando-a como pressuposto para resolver conflitos que se apresentem nesta sociedade constituída “é um dever moral de civilidade, é um dever moral que cria comunidade”.[17]
Neste contexto é preciso enfatizar que a Teoria dos Mínimos de Justiça, ou Liberalismo Político, de Rawls, ou ainda, como prefere Cortina, “ética mínima”, leva em conta o cidadão, de maneira simples e concentrada, é aquele que deixa sua liberdade individual para viver em sociedade usufruindo de sua liberdade civil ou moral.
Partindo da ótica do cidadão, este pretenderá cooperar com a sociedade na construção de um interesse coletivo que agregue suas necessidades as necessidades da vontade geral. Não apenas some, porque assim se teriam seres individuais buscando seus interesses pessoais através do coletivo, no entanto, sob esta perspectiva, se tem cidadãos que buscam aprimorar as tramas sociais através de sua liberdade moral, qual seja, constituir uma realidade justa que compreenda a todos.
Diametralmente oposta à teoria da ética mínima, se tem o movimento comunitário. O comunitarismo, nascido nos anos 1980 como adversário da teoria liberal, não advém com a intenção de se tornar uma alternativa ao liberalismo, mas se apresenta como uma crítica as suas insuficiências:
“O comunitarismo teme, com razão, que o princípio liberal de justiça possa configurar, na verdade, mais uma doutrina abrangente, mais uma ética de máximos, e tratar de exterminar as restantes. Nesse caso, cairíamos inevitavelmente no totalitarismo liberal, que em princípio se consideraria uma cultura superior às outras e acabaria por se proclamar uma cultura única”.[18]
Para os comunitaristas a teoria liberal propõe apenas procedimentos, sem pontuar uma concepção concreta de vida boa, apenas indicando princípios que uma sociedade deveria eleger para ser justa. Perdendo sua força motivadora, por propor apenas um “minimalismo de justiça”. Os cidadãos deixam de colaborar com a coisa pública por se tratar apenas de procedimentos racionais.
A teoria comunitarista, ou teoria dos máximos de vida boa, oferece o “maximalismo agatológico, uma concepção completa do bem”[19]. Objetivando um pleno exercício da cidadania, busca-se uma visível adesão dos cidadãos, através de laços ancestrais de pertença, de suas raízes históricas e tradicionais, não bastando apenas uma justiça procedimental, mas um propósito, um sentimento de felicidade que só é possível encontrar nas comunidades. É preciso vigorar nos cidadãos seu sentido de pertença a uma comunidade: “não basta a racionalidade da justiça, mas é necessário contar com a emotividade que procede do sentimento de pertença a uma comunidade”:[20]
“Só a pessoa que se sente membro de uma comunidade concreta, que propõe uma forma de vida determinada; só quem se sabe reconhecido por uma comunidade desse tipo como um dos seus e adquire sua própria identidade como um membro dela pode sentir-se motivado a se integrar ativamente nela. A ética da autenticidade, de fidelidade à identidade individual e comunitária, precisa complementar ao menos a ética da justiça”.[21]
A teoria dos máximos de vida boa, parte, diferentemente da teoria dos mínimos de justiça, da perspectiva do homem. Homem este que é por essência bom e busca sua felicidade, vivendo de maneira simples, por não comportar em sua natureza conceitos de acúmulo, pretende viver em equilíbrio com o meio ao qual está arraigado. O homem diferente do cidadão busca o que é inerente ao seu ser e não da coletividade, sua satisfação advém da conquista destas particularidades, do alcance da ‘vida boa’, esta é sua motivação.
É a partir deste tipo de motivação que surge o reconhecimento do indivíduo como membro da sociedade e consequentemente sua adesão aos seus projetos comuns. Objetivos que a cidadania quer enraizar em seu conceito.
1. 3 Cidadania: Justiça Racional e Sentimento de Pertença
A oposição entre liberais e comunitaristas não permite que se acresça em nenhuma área da vida humana ou social. Ganhar uma disputa teórica sem que esta tenha a possibilidade de se tornar real, não me parece uma vitória muito inteligente. No entanto, quando duas correntes teóricas conseguem concentrar dois ideais, os quais, juntos, possibilitam a formação de um terceiro conceito capaz de se efetivar e ainda trazer acréscimos significativos à sociedade, isso me parece uma vitória mais que merecida.
A formação deste novo conceito, mais rico e completo, dá à cidadania “um conceito mediador porque integra exigências de justiça e, ao mesmo tempo, faz referência aos que são membros da comunidade, une a racionalidade da justiça com o calor do sentimento de pertença”.[22]
Da associação desses dois lados, leia-se, o racional e o obscuro, tem-se, respectivamente, uma sociedade que busca ser justa de forma que seus membros observem sua legitimidade, em conjunto com os vínculos de pertença, laços e sentimentos intrínsecos que fazem parte da identidade do homem. Ambos os aspectos contribuem adjuntamente para motivar os membros de uma sociedade a trabalhar por ela. A partir do fato de se saber e de se sentir cidadão compreende-se a realidade da cidadania:
“Parece, pois que a racionalidade da justiça e o sentimento de pertença a uma comunidade concreta têm de andar juntos, se desejamos assegurar cidadãos plenos e, ao mesmo tempo, uma democracia sustentável. É por esse motivo que, na década de 1990, tornou-se atual um velho e novo conceito: o de cidadania”[23]
Cidadania. Atual e antigo, este termo voltou ao nosso linguajar na década de 1990, a partir da necessidade de se manter duas conquistas da modernidade, a democracia liberal e o capitalismo, bem como quaisquer projetos políticos e econômicos. Período no qual as sociedades pós-industriais encontravam-se sob a necessidade de proporcionar em seus membros algum tipo de identidade que gerasse laços de acolhimento.
Dependia-se de uma revolução cultural capaz de garantir a civilidade, ou seja, de gerar no cidadão uma maior disponibilidade de atuar na coisa pública, de se comprometer com a atividade pública, de dar sua contrapartida para a manutenção do sistema político e econômico. A ausência desta participação caracteriza o cerne da problemática das sociedades de capitalismo tardio, ou seja, a dificuldade de “fazer com que seus cidadãos preocupados unicamente em satisfazer seus desejos individuais cooperem na construção da comunidade política”.[24]
Desde muito já se percebeu a carência de adesão dos cidadãos à sua coletividade, com um comportamento primordialmente individualista, assim como também se sabe que este individualismo hedonista torna impossível à superação das crises. Quando estes cidadãos não se afeiçoam a sua comunidade não se disponibilizam a lutar por ela, quanto menos, irão sacrificar seus interesses em nome da res publica.
Dentro desta realidade urgia a exaltação da virtude da civilidade, a qual não se pode obter apenas mediante o direito e uma legislação coercitivamente imposta, mas, sobretudo pela livre vinculação e participação dos cidadãos, ou seja, “pelo livre exercício da virtude moral da civilidade”:[25]
“Mas a civilidade não nasce nem se desenvolve se não se produz uma sintonia entre os dois atores sociais que entram em jogo, entre a sociedade correspondente e cada um de seus membros. Por isso, a sociedade deve organizar-se de modo a conseguir gerar em cada um de seus membros o sentimento de que pertence a ela, de que essa sociedade se preocupa com ele e, em consequência, a convicção de que vale a pena trabalhar para mantê-la e melhorá-la. Reconhecimento da sociedade por seus membros e consequente adesão por parte destes aos projetos comuns são duas faces da mesma moeda que, ao menos como pretensão, compõem esse conceito de cidadania que constitui a razão de ser da civilidade”.[26]
A cidadania caminha de encontro com esta necessidade de civilidade, uma vez que esta propõe não apenas o reconhecimento racional de sua vinculação com o Estado, mas propõe um sentimento de pertencimento, com vínculos que geram em seus membros, não apenas o dever de ser parte, mas o desejo de participar e tomar para si os desafios vivenciados por esta sociedade.
2. Cidadania
O que hoje entendemos por cidadania adveio de inspirações clássicas de realidades do mundo greco-romano, “conceitos de cidadania que originam, por sua vez, duas tradições: a tradição política, própria do polités grego, e a tradição jurídica do civis latino”.[27] Contudo, atribuir à realidade de outrora à realidade atual não seria possível, uma vez que estas pertencem a “mundos diferentes, com sociedades distintas, nas quais pertencimento, participação e direitos têm sentidos diversos”.[28]
2. 1 Origem
Não foi a década de 1990, ou a urgência da civilidade que originou a existência do conceito de cidadania. Sua origem remonta desde a antiguidade clássica, na qual gregos e romanos cuidaram de cunhar esta prática. A ideia da cidadania é uma ideia clássica que perpassa através do tempo, a qual foi marcada pela realidade ateniense dos séculos V a IV a. C. e romana dos séculos III a. C. ao século I d. C:
A história da cidadania é a história da caminhada dos seres humanos para afirmarem sua dignidade e os direitos inerentes a todas as pessoas. A história da cidadania é, de certa forma, a própria história dos direitos humanos e a história das lutas para a afirmação de valores éticos como a igualdade, a liberdade, a dignidade de todos os seres sem exceção, a proteção legal dos direitos, a sacralidade do trabalho e do trabalhador, a democracia e a justiça.[29]
“Possuem o caráter de cidadania as pessoas que estão integradas em uma cidade-Estado e aí são oficialmente reconhecidas como detentoras dos direitos políticos previstos na sua Constituição”.[30] A cidadania dentro da acepção que temos atualmente foi se dilatando em paralelo ao desenvolvimento das cidades-estado. Ao longo dos séculos os territórios agrícolas foram, gradualmente se fechando, instituindo suas próprias fronteiras, organizando seus habitantes em estruturas caracterizadoras de uma comunidade, repreendendo os estrangeiros e defendendo coletivamente seus territórios cultivados de possíveis invasores. Conjunto de elementos que culminou nas cidades-estado:
“Cidades-estado eram comunidades num sentido muito mais forte do que nos Estados-nacionais contemporâneos. Eram também comunidades imaginárias, que se construíram e inventaram ao longo do tempo. Ao contrário do que pregava a historiografia tradicional, não era primevas, originais ou naturais, nem tampouco o resultado da divisão e subdivisão progressiva de um grupo de famílias. […] Sua identidade comunitária foi construída ao longo do tempo, a partir de populações muitas vezes díspares, sem unidade étnica ou racial. Foi criada e recriada, reforçada e mantida por mecanismos que produziram o cidadão ao mesmo tempo em que faziam nascer cultos comuns, moeda cívica, língua, leis, costumes coletivos – modos de a comunidade fechar-se sobre si mesma e definir seu território”.[31]
Foram os laços de pertença e identidade comunitária, que propiciaram a ideia de cidadania. Os vínculos muitas vezes se davam por um ancestral comum, divindade, ou grupo de famílias. Idealmente a cidadania se transmitia por vínculos de sangue, sendo passada de geração em geração, no entanto a vida prática propiciou a formação das comunidades-cidadãs de modos distintos.
“Como já ressaltava o filósofo grego Aristóteles, fora da cidade-estado não havia indivíduos plenos e livres, com direitos e garantias sobre sua pessoa e seus bens. Pertencer à comunidade era participar de todo ciclo próprio da vida cotidiana”.[32] Pertencer a uma cidade-estado, era estar em posição de privilégios, com um sentimento de pertença capaz de alocá-los ativamente em todo o ciclo pertinente a vida cotidiana “com seus ritos, costumes, regras, festividades, crenças e relações pessoais”.[33] Ser reconhecido por uma comunidade garantia ao indivíduo uma posição restrita e minuciosamente observada.
Este premente zelo, cuidado e vigia, levou Atenas, no século V a. C. a fechar-se quase que completamente, admitindo em seu corpo de cidadãos apenas os filhos de pai e mãe ateniense. Muito embora no século VII a. C. passou-se a desenvolver, progressivamente, formas mais abertas de participação no poder, chamada pelos gregos de democracia, estendendo a participação a toda a população masculina cidadã. Ainda que tal democracia ateniense nunca tenha sido de todo includente, os que possuíam a prerrogativa de cidadãos puderam ensejar uma grande experiência de participação direta no poder de todas as camadas sociais, independente da riqueza ou da posição social.
Roma, por outro lado, permaneceu durante toda sua história mais aberta, exteriormente e interiormente. À medida que unia as cidades italianas a um amplo sistema de alianças e posteriormente à plena cidadania, proporcionava uma maior abertura externa, ao passo que com a integração dos escravos libertos ao corpo de cidadãos se mantinha aberta internamente. O cidadão romano “atua sob a lei e espera a proteção da lei em qualquer parte do império: é o membro de uma comunidade que compartilha a lei, e que pode se identificar ou não com uma comunidade territorial”:
“Em síntese: a história da cidadania antiga só pode ser compreendida como um longo processo histórico, cujo deslanche é o Império Romano. De pertencimento a uma pequena comunidade agrícola, a cidadania tornou-se, com o correr dos tempos, fonte de reivindicações e de conflitos, na medida em que diferentes concepções do que fossem as obrigações e os direitos dos cidadãos no seio da comunidade se entrechocaram. (…) Quando os pensadores iluministas do século XVIII retomaram, a seu modo, a noção de cidadania, foi em outro contexto, buscando inspiração não na cidadania estendida e amorfa do Império Romano, mas naquela, potencialmente participativa, das pequenas cidades-estado que um dia repartiram entre si os territórios das planícies do Mediterrâneo”.[34]
A retomada da noção de cidadania no século XVIII não descarta suas origens, mas se aplica em um novo contexto, com uma nova compreensão, a partir de outras perspectivas e necessidades.
2. 2 Conceitos
Quando se tem uma acepção fulgente do terreno sobre o qual a cidadania brotou, ou seja, quando se conhece as origens, princípios e contextos nos quais a cidadania foi construída, conceitos como o trazido pelo dicionário de língua portuguesa: “cidadania. (…) Qualidade ou estado de cidadão”,[35] ou pelo dicionário jurídico: “cidadania. (…) é a expressão, assim, que identifica a qualidade da pessoa, que estando na posse de plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e gozo dessa cidadania”,[36] se tornam demasiadamente simplórios e insípidos ao nosso estudo.
Ainda que a cidadania tenha suas raízes nas realidades gregas e romanas do período clássico, seu conceito atual não remonta o outrora concebido por estas, mas procede, sobretudo, de realidades mais recentes datadas dos séculos XVII e XVIII com as revoluções; francesa, inglesa, americana, e com o nascimento do capitalismo, acontecimentos, estes, responsáveis pela nova roupagem ao conceito de cidadania:
“O conceito de cidadania nasce, pois, dessa dialética ‘interno/ externo’, dessa necessidade de união com os semelhantes que comporta a separação dos diferentes, necessidade que, ao menos no Ocidente, é vivida como um permanente conflito”.[37]
Todavia conceituar um termo tão intenso e abrangente como tal é uma tarefa para poucos, houve quem o pretendeu fazer e serão citados na tentativa de clarificar as noções que nos foram pré-concebidas:
“Cidadania é a pertença passiva e ativa de indivíduos em um Estado-nação com certos direitos e obrigações universais em um específico nível de igualdade”.[38]
Cidadania é “um conjunto de práticas políticas, econômicas, jurídicas e culturais que definem uma pessoa como membro competente da sociedade”.[39]
“A cidadania é primordialmente um relação política entre um indivíduo e uma comunidade política, em virtude do qual o indivíduo é membro de pleno direito dessa comunidade e a ela deve lealdade permanente”.[40]
“A cidadania é um tipo de relação de mão dupla: da comunidade para o cidadão e do cidadão para a comunidade. Sem dúvida, o cidadão assume alguns deveres com relação à comunidade e, em decorrência disso, deveria assumir ativamente suas responsabilidades nela”.[41]
Contudo, o conceito de cidadania que se tornou padrão para os mais diversos estudos foi o de cidadania social desenvolvido pelo britânico Thomas H. Marshall, em 1950, o qual analisou a cidadania com base em três ciclos históricos e suas respectivas dimensões, sendo elas a civil, política e social.[42]
A cidadania civil alcance a proteção da vida, das capacidades de exercício das liberdades de manifestação do pensamento e expressão, da garantia da propriedade e julgamento por tribunais de justiça imparciais. A cidadania política, por sua vez corresponde aos períodos de extensão do sufrágio e das normas políticas democráticas do século XX, integrado pelas liberdades de reunião e associação e dos mecanismos para a participação eleitoral e representação legítima nos órgãos de governo.
Por fim, a cidadania social, cujo alcance se dá na consolidação do Estado de bem-estar no século XX, que estabelece garantias para uma vida digna e ao bem-estar dos indivíduos, como o acesso ao trabalho e à previdência social:
“A partir dessa perspectiva, é cidadão aquele, que em uma comunidade política, goza não só de direitos civis (liberdades individuais), nos quais insistem as tradições liberais, não só de direitos políticos (participação política), nos quais insistem os republicanos, mas também de direitos sociais (trabalho, educação moradia, saúde, benefícios sociais em época de particular vulnerabilidade)”.[43]
A perspectiva social veio acrescentar esta dimensão capaz de contemplar não apenas o homem, enquanto indivíduo, com seus direitos, mas o homem que se insere em uma sociedade, o cidadão.
2. 3 Dimensões da Cidadania
O conceito desenvolvido por Marshall sofreu várias críticas entre elas a de conceber um conceito que se resume ao “direito a ter direitos”, sem tratar da cidadania ativa, ou seja, transformar “a cidadania acostumada a exigir em uma cidadania que queira participar de projetos comuns, assumindo responsabilidades”.[44]
Para que se possa compreender um tanto mais a fundo o que seria a perspectiva ativa da cidadania é preciso compreender suas dimensões de ação, o seu alcance. Não se limitando a tratar do ponto de vista político ou social, mas observando aspectos que nos permitem evoluir não só conceitualmente, mas objetivamente.
a)Cidadania Econômica
A cidadania econômica é imprescindível para que os membros de uma sociedade se sintam pertencentes a ela, muito embora exista um consenso global de que para tratar de economia é preciso pertencer a esse mundo:
“O conceito de ‘cidadão’, apesar de ter sido criado no âmbito político, foi se estendendo paulatinamente a outras esferas sociais, como é o caso da econômica, para indicar que, em qualquer uma delas, os afetados pelas decisões nelas tomadas são ‘seus próprios senhores’ e não súditos; isso implica propriamente que devem participar de forma significativa da tomada de decisões que os afetam. Qual deva ser a maneira de participar é algo a determinar nos casos concretos, mas, seja como for, ela deve ser significativa”.[45]
Ainda que não se tenha determinado os meios de participação nesta dimensão econômica, suas decisões afetam de forma significativa seus cidadãos, o justifica a importância de sua participação.
b) Cidadania Civil
A cidadania civil, por sua vez, não se limita às dimensões política, social e econômica, crendo que o ser humano não é apenas um sujeito das duas primeiras gerações, leia-se, direitos a cidadania política e social, nem tampouco se limita a ser produtor de riqueza, leia-se cidadania econômica. O ser humano é antes de tudo um “membro de uma sociedade civil, parte de um conjunto de associações não políticas nem econômicas, essenciais para a sua socialização e para o desenvolvimento cotidiano de sua vida”.[46]
A sociedade civil se caracterizaria mais por sua natureza espontânea e voluntária que por ser fonte de egoísmo, desejando fomentar a partir da sociedade civil a civilidade, a participação social e a solidariedade. Os comunitaristas, também chamados “teóricos da sociedade civil” defendiam que “os cidadãos não podem aprender a civilidade necessária para levar adiante uma democracia saudável nem no mercado nem na política, mas apenas nas organizações voluntárias da sociedade civil”.[47]
“Estão equivocadas, portanto, as explicações economicistas do comportamento humano, que veem no incentivo econômico o motor essencial das ações, e também os que confiam no chicote, na sanção legal, porque a aprovação ou rejeição das associações, das comunidades em que vivemos, é um incentivo muito maior. As razões do coração superam em muito as do medo e do cálculo. Participar das comunidades e associações da sociedade civil é, em consequência, o melhor modo de aprender a ser um bom cidadão, segundo os teóricos da sociedade civil.” [48]
Nesta perspectiva o desenvolvimento do cidadão se dá com sua experiência de participação em comunidade, sendo as experiências cotidianas as responsáveis pela vinculação do cidadão à sua sociedade e não experiências numéricas ou punitivas.
c) Cidadania Intercultural
Um conceito pleno de cidadania deveria integrar em seu radical um status legal, ou seja, um conjunto de direitos, e um status moral, que seria a contra partida do indivíduo, leia-se suas responsabilidades. Conjuntamente com sua identidade, processo no qual um homem se sente cidadão, se sente pertencente a uma sociedade.
Este pertencimento gera um vínculo entre os diversos grupos da sociedade e por consequência caracterizam a cidadania de maneira complexa, pluralista e diferenciada. Quando este pertencimento se dá em sociedades que vinculam a convivência de culturas distintas, o que pode se dizer de quase todas as sociedades contemporâneas, deveria se gerar uma “cidadania multicultural, capaz de tolerar, respeitar ou integrar as diferentes culturas de uma comunidade política de tal modo que seus membros se sintam ‘cidadãos de primeira classe’”.[49]
Este multiculturalismo compreende um “conjunto de fenômenos sociais, que derivam da difícil convivência e/ou coexistência em um mesmo espaço de pessoas que se identificam com culturas diferentes”.[50] A dificuldade primordial não se resume a existência de diversas culturas, mas da convivência de pessoas com bagagens culturais diferentes partilhando de um mesmo espaço social.
A cidadania multicultural não quer buscar uma conservação das mais diversas culturas. Trata-se primeiramente de se conscientizar de que não há uma única cultura com soluções para todas as vicissitudes essenciais e ainda, existe a possibilidade de se aprender com as outras práticas, tanto para as soluções das quais necessita como para a compreensão de si mesma:
“Nesse sentido, uma ética intercultural não se contenta em assimilar as culturas relegadas à vencedora, nem tampouco com a coexistência das culturas, mas convida a um diálogo entre as culturas, de forma que respeitem suas diferenças e esclareçam conjuntamente o que consideram irrenunciável para construir, a partir de todas elas, uma convivência mais justa e mais feliz. Tendo em conta, por outro lado, que a compreensão de outros obtida por meio da convivência e do diálogo é indispensável para a autocompreensão”.[51]
Este legítimo diálogo seria capaz de construir uma teoria, que conservasse o melhor do universalismo e da sensibilidade diante do diferente, além de superar o já existente, sem desperdiçar as riquezas peculiares que a individualidade de cada um pode oferecer. Este terceiro seria a cidadania intercultural.
d) Cidadania Cosmopolita
É perfeitamente possível observar os alcances que o conceito de cidadania vai tomando, que se busca a cada nova dimensão uma maior abrangência, uma evolução, um aprimoramento, um ideal, uma cidadania ideal, também chamada por Kant de cidadania cosmopolita.
Não obstante se faça necessário desenvolver um conceito ainda mais puro para o termo:
“esse ideal deve estar de algum modo entranhado na natureza humana, já que, do contrário, teríamos dificuldade em extraí-lo dessa natureza, por mais que nos esforçássemos. Afortunadamente, porém ele faz parte da natureza humana e consiste em criar uma cidadania cosmopolita, um modo em que todas as pessoas se saibam e se sintam cidadãs”.[52]
E para que se possa, não apenas contemplar a mais bela teoria sobre o que seria um ideal de cidadania, mas vivenciar esta idealização é preciso primeiramente contemplar um ideal de cidadão. A partir do momento em que se compreende o cidadão como agente e responsável direto pelo curso e proporção que a cidadania toma, é irrefutável que se comece o aperfeiçoamento por ele, para que seu exercício se aprimore por consequência.
As distinções entre homem e cidadão nos auxiliam na percepção de um caráter genuinamente egoísta no homem, que apesar de inocente e pueril, busca seu contentamento acima da satisfação de outrem. O cidadão, uma vez deturpado pela sociedade acumuladora, esboça atitudes cada vez mais individualistas levando a pico conquistas sociais como a democracia e o capitalismo.
Nesta perspectiva é preciso instigar, anteriormente, o aperfeiçoamento do cidadão, homem por natureza, mas cidadão por condição. Indivíduo este que tem enraizado em si a necessidade de evoluir, ao mesmo tempo em que prescinde da felicidade para continuar a viver.
2. 4. O Ideal de Cidadão
Foi Aristóteles que deu cunho ao que poderíamos chamar de Cidadão Ideal. Filósofo, nascido em 384 a. C. na cidade de Estagira, foi classificado por boa parte dos historiadores da filosofia como realista. Partindo do pensamento platônico “Aristóteles tenta edificar um sistema realista, em que as coisas possam ser explicadas a partir do real, ou seja, a partir das coisas mesmas e não de formas ideais”.[53]
Dentro desta perspectiva retirou-se de seus pensamentos um modelo ateniense de cidadão ideal. A ideia de que o cidadão é o membro de uma comunidade política que participa ativamente nela, nasce na experiência da democracia ateniense nos séculos V e IV a. C[54]. Neste contexto cidadão não se limitava àquele que vivia na cidade, mas era aquele que participava da esfera pública:
“Sob essa perspectiva, o cidadão é o que se ocupa das questões públicas e não se contenta em se dedicar a seus assuntos privados, mas é também quem sabe que a deliberação é o procedimento mais adequado para tratar dessas questões, mais que a violência, mais que a imposição, mais até que a votação, que será apenas o recurso último, quando já se tiver empregado convenientemente a força da palavra”.[55]
Sob esta ótica só estaria apto a uma vida digna o “cidadão que participa ativamente da legislação e da administração de uma boa polis, deliberando junto com seus concidadãos sobre o que é para ela o justo e o injusto porque todos eles são dotados de palavra e, em consequência, de socialidade”.
Aqueles que se restringem aos seus assuntos particulares perdem sua cidadania real, mas, principalmente, perdem sua humanidade, quando não se está em convivência, deixa-se de participar da construção de uma sociedade mais justa, na qual seus partícipes podem desenvolver suas qualidades e adquirir virtudes.
A cidadania seria, por assim dizer, “não um meio para ser livre, e sim o modo de ser livre, e o bom cidadão é aquele que tenta construir numa boa polis, buscando o bem comum em sua participação política”,[56] o qual possui seu direito de se pronunciar na assembleia de governo e ainda de exercer seus direitos, participando ativamente e exercendo cargos públicos, se a cidade assim o exigir.
Diante do exposto convém concluir que a teoria racionalista de Aristóteles não se parece muito realista quando observado o contexto no qual foi desenvolvida. A realidade ateniense possuía uma cidadania puramente excludente, o cidadão era apenas os atenienses e a sua liberdade não era tão livre assim. Contradições à parte, ainda que o conceito de Aristóteles tenha suas limitações, não podemos nos limitar a elas.
Apesar desta teoria não ter tido de fato uma aplicação é necessária a compreensão do que seria um cidadão ideal, para que se possa chegar a ideia do que seria uma cidadania ideal. Apesar das divergências, Aristóteles defendia uma ideia muito propícia ao objetivo que o presente se presta, afirmava ele que “a felicidade da cidade depende da felicidade do cidadão, em outras palavras, uma cidade somente será virtuosa se tiver cidadãos virtuosos”.[57] Tais palavras nos permitem concluir aquilo que já se expôs. Para que se contemple uma cidadania ideal, é preciso buscar cidadãos ideais.
Quando se idealiza o cidadão se parte da prerrogativa que o indivíduo se limita a ser cidadão, entretanto o indivíduo é mais, ele é, também, homem. Este, “é um ser desejoso de felicidade, que tem a oportunidade de esclarecer inteligentemente quais tendências convém fortalecer e quais devem ser refreadas para alcançar a meta” [58] de sua felicidade:
“O homem […] transcende em muito sua dimensão política, que é apenas uma, por mais relevância que possa ter para sua vida. A pessoa é um membro de uma família, de uma comunidade […] que ingressa voluntariamente, e em todos esses casos estabelece vínculos sociais com os membros desses grupos, que são essenciais para sua identidade pessoal. Também é membro de uma comunidade política, qualidade que a vincula aos que compartilham sua mesma cidadania, e que lhe confere assim outro traço de identidade. Mas é impossível reduzir a pessoa ao cidadão”.[59]
O cidadão ideal será aquele que conseguir conciliar o desejo, natural do homem, com a inteligência, natural do cidadão. Aquele que não se dividir em si mesmo, mas estiver apto a concatenar seus ideais de vida particular e vida em sociedade, levando para sua comunidade a deliberação de assuntos comuns. Utilizando-se de sua prerrogativa de detentor da comunicação para conviver com os diferentes, sem levar a cabo a antiga premissa de que cidadania é a “aproximação dos semelhantes e separação em relação aos diferentes”.[60]
O homem, por natureza, é um ser dotado de palavra, e por mais que o multiculturalismo constate que a convivência de diferentes pessoas é um tanto quanto conflituosa, há uma habilidade inerente ao homem que é a comunicação, meio que o capacita a “se relacionar com outros homens, de conviver com eles, e também de discernir junto com eles o que é bom e o que é mau, o que é justo e o que é injusto”.[61]
É fato que nós nos vinculamos mais facilmente àqueles a quem somos semelhantes, este é o homem desejoso de sua própria felicidade, assim como é natural que o cidadão encontre o ápice da sua satisfação quando se desloca para exercer as atividades próprias à sociedade. Ideal será aquele que conviver satisfatoriamente com sua dualidade, se afeiçoando naturalmente aos que lhe assemelham, mas buscando a todo tempo uma melhor convivência com o diferente, objetivando torná-lo seu semelhante. Apreendendo e ensinando, este é o ciclo que constituí a dinâmica da vida e vida em comunidade, ou seja, de cidadania.
2.5 O Ideal de Cidadania
A devida compreensão do que seria um cidadão ideal torna simples o entendimento do que seria uma cidadania ideal. Cidadania cosmopolita é aquela que segundo Kant “pode converter o conjunto de seres humanos em uma comunidade (…) porque o que cria comunidade é, sobretudo ter uma causa comum”,[62] um propósito comum.
“Nosso propósito essencial [enquanto indivíduos] é nos tornarmos as melhores pessoas que podemos ser. É realizar o mais plenamente possível nosso potencial como seres humanos”, ou o que os comunitaristas chamariam de alcançar o máximo de felicidade. Atingir nosso propósito enquanto indivíduos nos leva a atingir nosso propósito como cidadãos, ou seja, nos leva a construir a comunidade, atingindo a esfera mais plena de cidadania. É esta tarefa conjunta, assumida livremente, que cria laços comuns, “é o que cria comunidade”,[63] o pertencimento a uma etnia ou a uma nação deixa de ser de primordial estima, passando a importar os propósitos comuns aos quais esta sociedade avoca.
É nesta comunidade que liberais e comunitaristas poderão encontrar seus dias de glória. À medida que ambos buscam concentrar ideais do que seria uma cidadania plena, a comunidade vem a proporcionar espaço para que estes ideais se concretizem. É na comunidade que os mínimos de justiça, dos liberais, poderão ser encontrados. “Partir destes mínimos de justiça, compartilhados por distintos Estados, partir do que as diferentes culturas e os diferentes credos religiosos já têm em comum seria um bom caminho para construir essa paz duradoura sonhada desde muito”.[64]
E também será na comunidade que os cidadãos plenos encontrarão o ápice de sua felicidade, como desejam os comunitaristas: “porque exige de cada uma delas o respeito por culturas que só se encontram dentro dos limites de sua comunidade; e não apenas o respeito, mas também o diálogo”.[65]
Para verdadeiramente vivenciá-la Kant propôs duas dimensões a serem desenvolvidas. Primeiramente a formação de habilidades necessárias, quais sejam, aprender os meios que precisam ser adotados para atingir uns ou outros fins, algo que segundo ele é apreendido e exercitado mecanicamente. Em segundo lugar a educação para a prudência. Virtude “necessária para saber adaptar-se à vida em sociedade, para conseguir ser amado e ter influência”,[66] compreendendo as boas maneiras, amabilidade e certa prudência para saber se servir das outras pessoas para os próprios fins. “Quem sabe servir-se dos outros é prudente e cívico e, portanto, compõe a imagem de um bom cidadão, porque sabe se comportar com destreza no âmbito público”.[67]
Tendo como referência uma comunidade universal, o autêntico cidadão deseja participar de uma comunidade justa, que “faça com que todos os homens se sintam e se saibam cidadãos do mundo”.[68] “‘Aprender a conviver’ não basta; é preciso aprender a conviver com justiça”.[69]
3. Criar espaço para a cidadania
Para que a cidadania em seu sentido pleno, ora denominada cidadania cosmopolita, aconteça de fato, é imprescindível que se crie um espaço capaz não só de abrigá-la, mas permitir que ela aconteça e se desenvolva, uma vez que “quem não é tratado como cidadão tampouco se identifica a si mesmo como tal”.[70]
Entres às décadas de 1960 e 1970, Daniel Bell, propôs como outrora havido sugerido Rousseau, a promoção da religião civil e o fortalecimento do espaço público, como tentativa de que se insurgisse o espaço público.
A religião civil consiste em atrair os cidadãos pelos símbolos que supostamente unem a todos, leia-se bandeira, hino, acontecimentos históricos. Algo muito similar ao que se passa conosco em época de copa do mundo, estes períodos, aglomerados em eventos que acontecem de quatro em quatro anos, geram mais comoção e sentimento nacionalista do que as eleições, também dispostas nesses períodos e que determinam muito mais de nossas vidas. Desta feita a religião civil passa a funcionar como um novo ópio do povo. Proposta, esta, que se parece um tanto quanto duvidosa.
Por outro lado a sugestão de se fortalecer o espaço público soa mais convincente. Promover o espaço público é assegurar uma administração que supra as carências coletivas, como tentativa de incutir nas pessoas uma vontade por participar. “O espaço público é o setor da administração dos rendimentos e dos gastos do Estado que satisfaz as necessidades e aspirações públicas, e se situa além do espaço doméstico e da economia de mercado.”
No entanto, como já constatado pelas exposições supracitadas, fornecer um mínimo decente não leva o cidadão a oferecer todo seu potencial ou tornar-se melhor, é preciso à criação de uma identificação do cidadão com este espaço público. “Adquirimos nossa identidade e nossa auto-estima (sic) no interior de uma comunidade que nos reconhece direitos ou os nega, que nos faz saber que somos seus membros ou faz com que nos sintamos estranhos”.[71]
A identidade com a sociedade se dá através da disposição desta em proteger a autonomia de seus cidadãos concedendo-lhes direitos civis e políticos, os reconhecendo como cidadãos e não mais como vassalos ou súditos, ou seja, através do fortalecimento do espaço público.
Porém, também se dá o sentimento de reconhecimento com a comunidade, quando esta se propõe a torná-los partícipes deste espaço por intermédio dos instrumentos de participação popular. É esta participação no espaço público que torna este local verdadeiramente frutífero. “A chamada ‘opinião pública’, hoje se revela um dos lugares mais adequados para exercer a cidadania”.[72]
Neste contexto a Teoria do Discurso de Habermas, traz que, “toda e qualquer construção humana, quer seja política, ética ou econômica, que não passe pela apreciação e pelo debate livre e racional entre todos os envolvidos no processo constitui aviltamento da condição humana”,[73]ou seja, a opinião pública é único meio capaz de legitimar a vida política.[74] Esta, “transformada em poder comunicativo, pode de certa forma, direcioná-lo”:[75]
“Habermas [1984] afirma que a existência humana, à medida que se empenha ativamente em fazer algo, tem raízes no mundo de homens ou de coisas feitas por homens. […] É na órbita da construção política feita por homens reais no mundo real, que segundo Habermas, a racionalidade comunicativa se estabelece como instrumento de consenso social da realidade […] o que a ação comunicativa busca explorar é […] o universo subjetivo, a ação política e a racionalidade dos indivíduos [que] constituem elementos estruturados de formação e revitalização da esfera pública, na busca da emancipação social”.[76]
Esta esfera pública, segundo Habermas, seria “uma arena na qual a deliberação transforma os interesses individuais em entendimento mútuo, e a própria possibilidade de um ponto de vista consensual oferece uma base normativa para a legitimidade política”.[77] Arendt acrescenta que esta deliberação não deve envolver concessões de caráter excludente, prejudicando os que falam menos, mas “a deliberação na esfera pública está relacionada a um processo em que as pessoas reconhecem simultaneamente aquilo que as singulariza e aquilo que as une. É o que permite que se reconheça como um ser social e, ao mesmo tempo, reconhecer os outros atores com suas subjetividades plurais”.[78]
A cidadania desde sua concepção mais primitiva até sua conceituação mais plena só encontrará lugar, quando este detiver uma administração bem estruturada, com um espaço público bem fortalecido e acrescido da expressão da opinião pública plural. Com o intuito perene de, através da comunicação com toda a esfera da sociedade abrangida, se alcançar um bem capaz de atingir o homem e a sociedade em todos os seus âmbitos:
“Se a cidadania é algo que cresce à medida que é adquirida nos espaços de participação, tem também a ver com algo mais que o aumento da ação política em relação aos Estados. Tem a ver também com as maneiras pelas quais as pessoas se sentem parte da sociedade. Numa mistura tão heterogênea de pessoas, a experiência de negociar posições, ouvir os argumentos e conhecer as experiências dos outros, identificar-se com eles de outras formas, aprender a assimilar perspectivas múltiplas e chegar a um ponto de vista comum […] em relação à deliberação na esfera pública”.[79]
“No caso da realidade brasileira, vários aspectos se apresentam como dificultadores não só da participação popular no processo de discussão e deliberação de políticas, mas de sua participação efetiva”.[80] “Cidade e cidadania são o mesmo tema, e não há cidadania sem a democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades”:[81]
“A sociedade brasileira necessita buscar novos caminhos para a cidadania. Uma das alternativas é a reorganização do próprio espaço, ou comunidade em que vive. Com o processo de ‘desmonte’ ou fragilização do Estado tradicional, que não atende mais às necessidades da população, é preciso criar novas formas de organização social. A tendência atual é que os municípios e, principalmente as cidades, assumam, gradualmente boa parte dos encargos que eram de competência dos governos estaduais e da União. É no espaço da comunidade que os cidadãos, através da prática associativa e da participação na tomada de decisões, podem conquistar melhores condições de vida”.[82]
É nesta realidade mais próxima, leiam-se municípios e cidades, que se observa com mais facilidade as dificuldades, mas também se caracterizam como local propício para a aplicação direta destes instrumentos de criação de espaço para a cidadania. Local que permite uma reorganização de sua estrutura física e administrativa e ainda comporta a deliberação em seu espaço público.
4. Papel do município
“Poderíamos dizer que a cidadania, de certa forma, começa nos municípios. Neste sentido: antes de ser um cidadão brasileiro consciente (ou uma cidadã brasileira consciente), a pessoa tem de ser um munícipe consciente”.[83]
Atualmente os municípios vêm assumindo um local de destaque na construção de sua própria sociedade, bem como no desenvolvimento da cidadania, “os Estados e a União têm, nas últimas décadas, transferido para os municípios diversas atribuições e serviços de que antes se ocupavam diretamente”.[84]
Quando analisado, sob a perspectiva social e política, o município deixou de se limitar a uma aglomeração de pessoas possuidoras de subsídios públicos, passando a ser responsável pela ordenação da cidade, pela organização de seus serviços e sua proteção, realizando seu próprio governo, delibera e executa tudo quanto respeite ao interesse local:
“A cidade, neste sentido, se apresenta como local propício para o debate e tomada de decisões em complementação ou até mesmo em substituição às práticas administrativas estatais que se mostram invariavelmente ineficazes na solução das demandas sociais contemporâneas, pois é nela que as pessoas estão mais, próximas, travam vínculos de afetividade e se sentem partes de um conjunto de pessoas estruturado”.[85]
Ainda que o crescimento exacerbado das cidades modernas tenha destituído muitas das relações de vizinhança e do espírito comunitário mais comum aos municípios da antiguidade, a administração municipal contemporânea não se restringe apenas à ordenação da cidade, mas se estende a todo o território do Município – cidade-campo – em tudo que concerne ao bem-estar da comunidade”.[86]
Antes de passarmos para a compreensão de como se dá o papel da cidade no seu desenvolvimento em conjunto com o de seus cidadãos, é preciso entender a diferença dos vocábulos município e cidade:
“O que é uma cidade, o que é um município? Há vinte e cinco séculos, o teatrólogo grego Aristófanes respondeu: as cidades são as pessoas. Cidades nada mais são do que grupos de pessoas que se reúnem em um determinado espaço físico para se protegerem mutuamente, trocar entre si os produtos de suas habilidades próprias, cumprir em conjunto tarefas e trabalhos que não podem ou não querem realizar sozinhos.[…] E municípios, embora sejam mais do que uma cidade, obedecem à mesma dinâmica: indivíduos que compartilham um determinado espaço físico, político legal e institucional para se protegerem e se auxiliarem mutuamente e para realizarem juntos tarefas que estejam adiante do alcance de cada um deles individualmente”. [87]
Para Robert Ezra Park:
“A cidade é algo mais do que um amontoado de homens individuais e de convivências sociais […] Antes, a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana”. [88]
Por ter um caráter mais amplo, o conceito de município precisa ser observado sob os aspectos sociológico, político e jurídico, na explicação de Meirelles:
“Do ponto de vista sociológico, o Município brasileiro, como qualquer outro, é o agrupamento de pessoas de um mesmo território, com interesses comuns e afetividades recíprocas, que se reúnem em sociedade para a satisfação de necessidades individuais e desempenho de atribuições coletivas de peculiar interesse local. Sob o aspecto político, o Município brasileiro é entidade estatal de terceiro grau, na ordem federativa, com atribuições próprias e governo autônomo, ligado ao Estado-membro por laços constitucionais indestrutíveis […]. Na ordem legal, o Município brasileiro é pessoa jurídica de Direito Público interno […] e, como tal, dotado de capacidade civil plena de exercer direitos e contrair obrigações em seu próprio nome, respondendo por todos os atos de seus agentes”.[89]
O município abarca toda a “extensão territorial, constituída em divisão administrativa de um Estado federado”.[90] O termo município é muito mais do que a cidade, compreendendo seu conceito e possuindo competências constitucionais que vão muito além. O município engloba cidade e campo, ou seja, a cidade está dentro do município, representando sua zona urbana, seu “aglomerado urbano que serve como sua sede”, enquanto que o campo designa sua zona rural, este conjunto compõe a dimensão municipal.
Não seria correto reduzir o município, tão somente, a sua área urbana, visto que “os poderes municipais têm de se preocupar igualmente com as áreas rurais sob sua jurisdição, [para] promover e fomentar a economia municipal”, [91] entretanto os assuntos pertinentes ao seu âmbito são majoritariamente urbanos, restando à União a competência para legislar sobre a zona rural.
4.1 Competência Municipal
A Constituição Federal de 1988 trouxe algumas mudanças em relação aos municípios. Além de integrá-lo como entidade de terceiro grau, ampliou sua autonomia e expandiu suas competências, além de sua competência privativa para as hipóteses do art. 30,[92] ainda lhe compete comumente com a União, os Estados e o Distrito Federal o disposto no art. 23[93] da supracitada Carta.
Tratando da competência privativa dos Municípios, o art. 30 elenca nove incisos com situações nas quais o município deve ser competente para agir. Circunstâncias em que impera a autonomia administrativa para gerir “tudo quanto repercutir direta e imediatamente na vida municipal […] embora possa interessar também indireta e mediatamente ao Estado-membro e a União”.[94]
Contudo nos interessa o disposto no primeiro inciso[95] que versa sobre a competência municipal no que concerne aos assuntos de interesses locais, hipóteses caracterizadas pela predominância do interesse Municipal em face do Estadual e Federal e no oitavo[96] que disciplina sobre o planejamento municipal, norma de caráter urbanístico.
É competência da União “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”.[97] Assim como estabelecer normas gerais de urbanismo, com princípios urbanísticos ou princípios capazes de obrigar tanto as legislações regionais como locais a se submeterem a padrões mínimos abrangentes em todo o território nacional. Enquanto que “aos municípios cabem a normatividade edilícia e a imposição do plano diretor local”.[98]
Sobre esta competência municipal dispõe o art. 182[99]da Constituição Federal, o qual institui para cidades com mais de vinte mil habitantes a obrigatoriedade do Plano Diretor, como instrumento da política urbana. Tal como consta no texto constitucional, a obrigatoriedade do plano diretor se dá às cidades enquanto que para os municípios a adoção teve ser de um planejamento integral, ou seja, mais amplo:
“Cabe ao Município editar normas de atuação urbanística para o seu território, especialmente para a cidade, promovendo concretamente todos os assuntos […] dos quais dependem a vida e o bem-estar da comunidade local. […] As atribuições municipais, no campo urbanístico, desdobram-se em dois setores distintos: o da ordenação espacial, que se consubstancia no plano diretor e nas normas de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano e urbanizável […]; e o de controle da construção. […] Sua ação urbanística é plena na área urbana e restrita na área rural, pois que o ordenamento desta […] compete à União”. [100]
O dispositivo constitucional foi disposto sob a necessidade de regulamentação posterior e esta se deu através da Lei Federal n° 10.257 de 2001,[101] denominada Estatuto da Cidade, subsídio legal destinado substancialmente para o município, oferecendo diretrizes gerais para a fixação da política urbana, tema que será futuramente abordado.
4.2 Planejamento Municipal
Por contemplar uma seara mais ampla, ao Município é imprescindível a existência de um planejamento que faça jus a sua abrangência. Para que haja uma condução efetiva do planejamento estratégico municipal nos dias de hoje, Rezende e Castor[102] elencam uma série de pressupostos necessários, entre eles:
O planejamento estratégico municipal deve ter caráter integral e integrado. Abordando tanto questões econômicas como sociais, culturais e territoriais na área urbana e na área rural, extrapolando assim os limites de um simples plano diretor municipal, em que são fundamentalmente tratados problemas espaciais e econômicos relacionados com o uso do solo e a distribuição das atividades produtivas. Deve igualmente ser integrado no sentido de que todas as suas dimensões devem ser compatibilizadas entre si, produzindo uma abordagem equilibrada entre elas.
O planejamento estratégico municipal deve contemplar as ações e políticas cooperativas com demais entes federativos. Primeiro, porque a solução dos problemas municipais não se circunscreve às competências típicas e exclusivas do município. Segundo, porque as informações revelam a enorme interação entre finanças municipais, as estatuais e os recursos federais, para não mencionar a crônica dependência das primeiras em relação às demais.
O planejamento estratégico municipal deve ter um caráter duplo, sendo a um tempo técnico e político. Os planos não podem abstrair seu papel racionalizador das condutas humanas, mas igualmente devem atentar para o caráter negociador que deve ser levado em conta na ordenação das coletividades. Um plano exclusivamente racionalizador pode se mostrar politicamente inviável [..]. Um bom plano municipal é aquele capaz de conciliar essas duas dimensões sem prejuízo para o fim último de propiciar melhores condições de sustentabilidade social e ambiental para a coletividade à qual pretende se aplicar.
O planejamento estratégico municipal deve ser guiado pela racionalidade substantiva, ou seja, deve levar em conta os fatores de economia e efetividade na utilização dos meios, mas preocupando-se primordialmente com a qualidade substantiva dos fins almejados. […]
O planejamento estratégico municipal não pode prescindir da participação ativa da comunidade em sua elaboração, acompanhamento e permanente avaliação, uma vez que a população não é apenas o objeto de suas preocupações, mas igualmente o sujeito político da determinação de prioridades e preferências.
“Independente da obrigação legal, o planejamento municipal se justificaria por várias necessidades indissociáveis da vida humana: planeja-se para que se mantenham as condições de “convivialidade” – palavra que etimologicamente tem o significado de “viver em comum com outrem” – e de “habitabilidade” – que etimologicamente significa “que pode ser habitado” na área do município”.[103]
O planejamento municipal perpassa o texto legal, atingindo a vida social de seus munícipes inclusive no tocante a sua vida privada, além de dizer sobre sua organização espacial.
4.3 Planejamento da Cidade
“Toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação”.[104]
O planejamento desta cidade, por sua vez, se dará pelas diretrizes do Plano Diretor, espécie de planejamento municipal, o qual por ser espécie deste possui uma área de atuação restrita à zona urbana.
4.4 Estatuto da cidade
Após mais de uma década de discussões, a Lei federal n° 10.257, promulgada em 10 de julho de 2001, foi sancionada pelo Presidente da República, contendo em sua ementa que: “Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências”. A lei autodenominada Estatuto da Cidade também foi chamada por alguns de Lei de Responsabilidade Social, em comparação com a Lei de Responsabilidade Fiscal, devido sua importância.
“O Estatuto da Cidade é assim denominado por refletir um conjunto de regras jurídicas que condicionam e pontuam a atividade urbanística, criando verdadeiro pacto entre governos, suas Administrações, a população e a própria cidade”:[105]
“O Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001) é, sem dúvida, uma das mais importantes e inovadoras leis das que recentemente entraram em vigor no país, como parte de um processo de transformação e modernização da estrutura jurídica, da Administração Pública, da sociedade e dos costumes […] O Estatuto da Cidade está destinado a ser instrumento pelo qual a Administração Pública Municipal, atendendo aos anseios da coletividade, finalmente poderá determinar quando, como e onde edificar de maneira a melhor satisfazer o interesse público, por razões estéticas, funcionais, econômicas, sociais, ambientais etc”.[106]
No artigo 2° do referido diploma estão dispostas suas diretrizes, elencadas em dezesseis incisos, que têm por objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, bem como “a fixação da política urbana e, também, condicionando o exercício do direito de propriedade, bem como elegendo institutos jurídicos e administrativos facilitadores da ação estatal em matéria de urbanismo”.[107]
O Estatuto tem sua incidência concentrada às limitações da cidade, enquanto conceito anteriormente estudado:
“No Município, qualquer que seja, só há uma cidade, que é a sua sede, conforme definido pelo Decreto Lei Federal n° 311, de 2.3.38, que dispõe sobre a divisão territorial do País, podendo haver, isto sim, mais de uma vila. Assim, a incidência dessa lei há de ser tanto sobre a cidade como sobre as vilas. A política urbana deve ser, desse modo, ampla, sem, por óbvio, incluir a área rural, mesmo que o plano diretor tenha essa abrangência. […] Assim deve ser para possibilitar a integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socio-econômico do Município e do território sob sua área de influência […] sem, no entanto, que a política urbana deva alcançar a rural”.[108]
O Estatuto da Cidade foi concebido com o intuito de regulamentar os dispositivos constitucionais, direcionando os PDP’s – Planos Diretores Participativos a analisar suas realidades, buscando uma melhor compreensão de sua própria realidade, com suas carências e potencialidades, riquezas e pobrezas.
5. Plano diretor
A primeira vez que se utilizou o termo Plano Diretor data de 1930, no qual o urbanista francês Alfred Agache, elaborou um planejamento para a cidade do Rio de Janeiro, conhecido como Plano Agache. Naquela circunstância foi utilizado pela primeira vez o termo em francês plan directeur:
“A ideia de plano diretor existe no Brasil, pelo menos desde 1930. Nesse ano foi publicado, em francês, o conhecido Plano Agache, elaborado por esse urbanista francês para a cidade do Rio de Janeiro. Nesse plano aparece pela primeira vez a palavra ‘plan directeur’”[109]
A história do plano diretor poderia ser colocada em dois momentos no qual o divisor de águas seria a Constituição Federal de 1988, culminando com seu ápice em 2001 com a promulgação da Lei n° 10.257, a qual se autodenominou como o Estatuto da Cidade.
5. 1 Histórico
O primeiro período data da década de 1960, ocasião em que foi criado o SERFHAU – Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, pela Lei n° 4.380 de 1964, no Governo de João Goulart, dando aos planos uma maior importância. Os Planos Diretores Integrados – PDDI’s, ou Plano de Desenvolvimento Local Integrado – PDLI, nomenclatura então utilizada, deveria ter como campo de intervenção os aspectos sociais, econômicos, físicos e institucionais. Tal planejamento iniciava-se com um estudo preliminar e a partir deste se desenvolvia um plano de ação imediato, ou delimitava-se um plano de ação integrado.
“A política de planejamento local integrado realizada pela SERFHAU, foi fornecer assessoria técnica aos municípios interessados, e financiar, com recursos do Banco Nacional de Habitação – BNH – a contratação do plano diretor”.[110] Em contra partida o setor privado forneceu grupos técnicos e empresas de consultoria para prestarem serviços aos municípios que desejavam o financiamento e estavam deslumbrados com o discurso tecnocrata.
Nos anos 60 e 70 o planejamento municipal era externo a Administração Pública, não adentrando a sua seara, esta se limitava a comparecer apenas ao final para definir diretrizes e sua instrumentalização. Este planejamento clássico carregava em si uma forte tendência tecnocrata e racionalista, cuja inspiração era o pensamento modernista de Le Corbusier, arquiteto cuja filosofia se baseava no princípio da funcionalidade.
“Acrescente-se a isto o fato de que as matérias abordadas pelo planejamento e a gestão territorial não são facilmente compreendidas pelos cidadãos”,[111] que são deixados de lado nos processos de debate sobre as questões concernentes ao seu município, surgindo “desarmonias entre o interior de um escritório e a realidade externa, […] que não corresponderá às expectativas de quem planejou e nem de longe atenderá as necessidades e aspirações de quem habita a cidade”.[112]
Por se encontrar fora da Administração Pública visando apenas à funcionalidade da cidade, estes planos não contemplaram a realidade social à qual buscavam se inserir “planos desconectados com as lógicas e práticas reais, ignorando os conflitos a realidade das desigualdades, apresentando estratégias de regulação urbanística como objetos puramente técnicos”.[113] A visão tecnocrata destacava apenas o papel do técnico em sua elaboração, no entanto este não era capaz de entender os problemas sociais que permeavam todo o planejamento.
Por certo que este planejamento neutro não poderia ter sucesso, a desconsideração da realidade política e social do município tornava o plano belo na teoria, mas sem qualquer aplicação na prática, o que levou a extinção do SERFHAU em 1974, bem como dos PDDI’s:
“Os dados expostos acima nos dão um quadro bastante esclarecedor dos motivos do fracasso dos PDDI’s […] dos quais podemos considerar dois como os principais: 1) A obrigatoriedade da elaboração do plano diretor não conscientizou os agentes públicos municipais da importância do planejamento enquanto um processo mais eficiente de gestão, os quais encararam o plano apenas como uma exigência burocrática e inútil ou como um instrumento útil apenas para facilitar a obtenção de financiamentos públicos. 2) A elaboração da maioria dos planos diretores por órgãos ou empresas estranhas à administração pública local, o que tente a acarretar os seguintes problemas que inviabilizam sua implementação: a) os panos ficam interessantes tecnicamente mais inviáveis politicamente; b) os planos não ficam bons nem tecnicamente nem politicamente pois os elaboradores não conhecem a realidade local e; c) o plano diretor torna-se um corpo estranho à administração local que não participou de sua elaboração e, portanto, não o encara como um instrumento legítimo, não tendo assim interesse na sua implementação. O fracasso dos PDDI’s deveu-se, resumindo, à uma má concepção de planejamento por parte das autoridades legislativas, que resolveram instituí-lo por decreto e também de uma consequente não compreensão de seu significado pelas prefeituras”.[114]
“A experiência dos erros e acertos do SFH [Sistema Financeiro de Habitação] até hoje repercute acerca do caráter tecnocrático somado à desconsideração dos direitos sociais e à negação de valores democráticos, conduzidos nos PDLI”.[115]
Os planos diretores passaram por um longo período de descrédito em todo o país, como resultado do fracasso ocorrido. Não obstante: “com a promulgação da Constituição de 1988, o Plano Diretor volta a ser amplamente discutido, mesmo por que o parágrafo primeiro do artigo 182 deixa claramente explícito que os Planos Diretores são obrigatórios para os municípios”,[116] sendo um instrumento básico para a política de desenvolvimento e crescimento urbano.
Com a promulgação da CF/88, o município foi consolidado como ente autônomo da federação, dando-se início ao processo de feitura das Leis Orgânicas Municipais – LOM, que passaram a ser exigidas pelo Poder Executivo Federal, nas quais deveria conter um capítulo exclusivo sobre a política urbana local. Além da exigência da implementação dos arts. 182 e 183, cujo Capítulo trata Da Política Urbana, dispondo da obrigatoriedade do Plano Diretor para os municípios com mais de vinte mil habitantes. Ambos os dispositivos deram uma nova perspectiva ao planejamento municipal, bem como para o planejamento das cidades.
Estes novos planejamentos deixaram à clássica visão tecnocrata e passaram a olhar para o Plano Diretor como um instrumento que deve considerar mais do que a funcionalidade, deve considerar as contradições do sistema capitalista e toda a problemática social que o circunscreve. O planejamento técnico passou a ser democrático e participativo, devendo contemplar três aspectos, leia-se o técnico-científico, o político-institucional e o econômico-financeiro.
“Os instrumentos deverão se constituir de três naturezas: técnico-científica, contendo os referenciais metodológicos de coleta, tratamento e interpretação de dados; político-institucional, suportando as relações entre as forças políticas constituídas e as articulações entre diversificados segmentos; e econômico-financeira, abrangendo os recursos orçamentários e de outras origens, previstos para o processo”.[117]
O advento da Lei n°10.257, autodenominada Estatuto das Cidades, trouxe potencialidades capazes de reconstruir a ordem urbanística “com forte viés redistributivo e includente, objetivaram possibilitar: ampliação da intervenção do poder público municipal na questão da terra, […] democratização da gestão das cidades, entre outras”.[118]
5.2 Conceito
Não há um conceito amplamente difundido para o que seja plano diretor, por não existir um consenso entre os atores envolvidos sobre o que exatamente seria este instrumento, contudo algumas tentativas foram feitas e ajudam a entender um pouco mais do que se trataria tal termo:
“O Plano Diretor pode ser definido como um conjunto de princípios e regras orientadoras de ação dos agentes que constroem e utilizam o espaço urbano”.[119]
“É plano, porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados […], as atividades a serem executadas e quem deve executá-las. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município”.[120]
“O plano diretor […] é o complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do município, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo. Desejado pela comunidade local”.[121]
“O plano diretor […] não é mais apenas um simples instrumento técnico de trabalho, mas sim, também, um instrumento jurídico de atuação do governo local. O plano diretor é um instrumento pelo qual a Administração Pública Municipal poderá determinar quando, como e onde edificar de maneira a melhorar satisfazer o interesse público, por razões estéticas, funcionais, econômicas, sociais, ambientais etc”.[122]
“Plano diretor é um documento que sintetiza e torna explícitos os objetivos consensuados [sic] para o Município e estabelece princípios, diretrizes e normas a serem utilizadas como base para que as decisões dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento urbano convirjam, tanto quanto possível, na direção desses objetivos”.[123]
O Plano Diretor é um planejamento que não contempla apenas e tão somente a espaço físico de uma cidade, mas este toca toda a dualidade de seus cidadãos, ou seja, o homem e o cidadão. Este planejamento não é responsável apenas pela organização e crescimento estrutural de sua cidade, mas pelo envolvimento e desenvolvimento de seus habitantes, no que diz respeito a sua vida em sociedade e particular.
5. 4 Ficha Técnica
a) Natureza Jurídica
O Estatuto da Cidade, em seu artigo 40, dispõe:
“Art. 40. O Plano Diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”. (grifo nosso)
Em conjunto com o art. 182 da CF, a natureza do Plano Diretor é de lei, devendo ser aprovado pela Câmara Municipal e sancionado pelo Prefeito, Chefe do Executivo.
b) Abrangência
O §1° do art. 182 da CF[124] prevê a obrigatoriedade do Plano Diretor às cidades com mais de vinte mil habitantes. O Estatuto da Cidade, no entanto, dispôs em seu art. 41 de forma mais abrangente, incluindo neste rol: integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; para cidades em que o Poder Público pretenda lançar mão dos instrumentos de edificação ou parcelamento compulsório, do IPTU e desapropriação; áreas de especial interesse turístico; cidades sujeitas à influencia de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental e medidas de compensação.
Este é rol que está obrigado a disciplinar um plano diretor, no entanto nem texto Constitucional, tampouco, o texto legal, alegam que as cidades não elencadas nos dispositivos estejam, sob qualquer circunstância, proibidas de fazê-lo, atitude que seria exemplar e construtiva.
c) Objetivo
O objetivo está expressamente exposto no caput do art. 182, o qual dispõe que este deverá ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. “O plano diretor não tem a pretensão de resolver todos os problemas das cidades”,[125] no entanto seu objetivo não se limita ao dispositivo, por ser um instrumento político objetiva a transparência e democratização da política urbana:
“O grande objeto do Plano Diretor é construir cidades com uma qualidade urbana para todos […] Objetiva, ainda, ser um instrumento vivo, verdadeiro e legítimo para promover o fim das injustiças que o modelo de desenvolvimento econômico-social legou para as atuais gerações […] o Plano Diretor tem por finalidade orientar a atuação do poder público na construção participativa de iniciativas, para ampliar e reformular ofertas de serviços públicos essenciais, assegurando melhores condições de vida para a população. […] O que se pretende com o Plano Diretor é espelhar não um plano de governo […] mas um plano da cidade, abordando seus problemas de forma abrangente, considerando a cidade informal, os processos expansivos espontâneos, as irregularidades urbanísticas, edilícias e seus reflexos econômicos e sociais […] tem de ser um instrumento que ao indicar caminhos e traçar rumos, coloca o desafio para o município de atuar não apenas como um simples ordenador do espaço territorial das atividades, mas alargando horizontes […] deve revelar uma análise das transformações em processo no município e suas consequências”.[126]
d) Características
São vários os aspectos que caracterizam o Plano Diretor, contudo três se ressaltam: são eles o político, a transparência e o democratização. O aspecto político considera o contraponto entre a participação do ente político e dos técnicos. Apesar de ter um papel fundamental, a técnica por si só, torna, por vezes, o plano de difícil elaboração e entendimento pela comunidade. Os estudos técnicos são necessários sim, mas somente na medida em que dão subsídios e/ou avaliam a viabilidade técnica das propostas discutidas politicamente.
O segundo aspecto trata da transparência, elencado como o mais importante, constituindo em si, além de característica, o principal objetivo do plano diretor, ou seja, dar transparência à política urbana, tornando pública, suas diretrizes e prioridades, para melhor avaliação e participação da sociedade. Por fim está a democratização como terceiro aspecto, de fundamental importância uma vez que é este o garantidor da transparência com a participação da sociedade, leva o planejamento de estritamente técnico e elitizado, para acessível e difundido.
e) Elaboração
Cabe ao Município elaborar seu plano diretor, por ser este “mais aparelhado tecnicamente, mais conhecedor da realidade local e mais próximo dos desejos da comunidade”.[127] Ao processo de elaboração cabe a participação efetiva dos agentes da Administração Pública, como conhecedores de realidades específicas, leia-se aspectos legais, e para melhores condições de uma implementação efetiva, bem como dos técnicos, restringindo-se sua atuação a medida em que subsidiam o planejamento:
“Pode-se dizer que, intelectualmente (quer dizer, no que se referem aos conhecimentos técnicos científicos que podem se mostrar úteis na prática do planejamento e da gestão), o planejamento e a gestão constituem um campo interdisciplinar, e não o monopólio de uma única profissão. E, do ponto de vista político, o desejável é que os cidadãos tenham a oportunidade de decidir, eles próprios, sobre os destinos de seus espaços e de suas cidades”.[128]
Os atores principais desta peça são os cidadãos, a participação da comunidade, através dos próprios indivíduos ou de entidades representativas, na elaboração do planejamento, é fundamental para o seu sucesso. Há “decisões judiciais que reconhecem a importância política desse processo de elaboração dos planos diretores, […] no sentido de anular os que foram aprovados sem terem sido submetidos à participação popular efetiva”.[129]
A elaboração se dará, respeitando as particularidades de cada comunidade, em quatro etapas: estudos preliminares, diagnóstico, plano de diretrizes e instrumentação do plano.
José Afonso da Silva[130] indica alguns requisitos a serem observados na elaboração do Plano Diretor:
a) O processo de planejamento é mais importante que o plano;
b) O plano deve ser exatamente adequado à realidade do Município;
c) O nível de profundidade dos estudos deve ser exequível;
d) O nível de profundidade dos estudos deve ser o necessário para orientar a ação da municipalidade;
e) A elaboração do plano converge para dois documentos principais:
1) O plano de diretrizes – que fixa a política global do desenvolvimento do Município e as perspectivas mais gerais para o Planejamento do Município (médio e longo prazo);
2) O plano de ação do prefeito que representa a decisão e o compromisso assumido pelo Prefeito, quanto às metas de sua administração. Além de dois requisitos fundamentais: a) que as prioridades e as diretrizes, em termos de despesas para o Poder Público municipal, sejam previstas e conectadas com o plano plurianual, com as diretrizes orçamentárias e com os orçamentos anuais; b) que haja a efetiva e inafastável participação popular na elaboração do plano diretor. (grifo nosso)
f) Aprovação
“A elaboração e aprovação do plano diretor exigem a dupla atuação do Poder Público, uma vez que o Poder Executivo é responsável pela elaboração, e o Poder Legislativo pela sua aprovação na Câmara Municipal”.[131]
É de suprema importância que os legisladores, ao votar a aprovação do Plano, não hajam sorrateiramente incluindo inúmeras emendas que venham a alterar a constituição outorgada pela sociedade partícipe, fato que desconfigura a necessidade da participação popular, tornando os cidadãos marionetes iludidas por falsas promessas. Assim como é de responsabilidade do Prefeito analisar estas situações antes de sancionar o Plano.
g) Conteúdo Mínimo
“O Plano Diretor é um documento técnico, contudo, o seu conteúdo deve expressar o resultado de uma discussão política sobre a cidade”.[132]
O art. 42[133] do Estatuto traz como conteúdo mínimo:
“a delimitação das áreas urbanas para aplicação do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, pela existência de infraestrutura e de demanda para utilização; direito de preempção; outorga onerosa do direito de construir; operações urbanas consorciadas; transferência do direito de construir; e acompanhamento e controle do plano diretor”.
O Plano Diretor deve conter minimamente os seguintes tópicos: uso do solo urbano, expansão urbana, parcelamento do solo urbano, habitação, saneamento básico e transportes urbanos. Todo o conteúdo administrado pelo Plano Diretor deve ser apropriadamente apresentado e discutido pela comunidade.
h) Implementação
Assim como a elaboração e aprovação, caberá ao município sua implantação, “que não é outra coisa senão a observância e execução de suas disposições”.[134] Etapa de maior preocupação aos seus elaboradores, uma vez que não há valia ou efeitos práticos de um plano elaborado e aprovado se este não for viável e exequível.
“A principal virtude de qualquer plano está na sua exequibilidade e viabilidade. Um plano que não seja exequível é pior do que a falta de plano, porque gera custos sem resultados”.[135] Diante destas observações, mais uma vez se ressalta a necessidade dos agentes planejarem em conjunto.
O Plano não pode, sob qualquer circunstância, ser meio de condutas ímprobas, com políticas de favorecimento pessoal, através da Administração Pública, com promessas impossíveis de serem cumpridas, legal ou tecnicamente. Assim como os técnicos não podem fazer do planejamento uma criptografia, entendida apenas por eles, e que agrega todo o seu imaginário de mundo perfeito, mas que não atende, necessariamente, as carências da sociedade. Nesse meio, a participação popular, precisa ser o contraponto, de um planejamento implementável.
i) Sanções ao Descumprimento
O art. 52[136] do Estatuto da Cidade estipula um prazo de cinco anos para a aprovação de seu respectivo Plano Diretor, do descumprimento deste o Prefeito, na pessoa de representante do município, responsável por este, incorrerá em improbidade administrativa. Ao Município, cabe a punição de crescer desorganizadamente, ônus pago por toda a sociedade.
j) Atualização
Mesmo após todo o processo de elaboração, aprovação e implementação, com prazo de cinco anos, sob pena de punição ao Chefe do Executivo Municipal, o art. 40 §3°[137] do Estatuto da Cidade institui uma revisão do plano diretor a cada dez anos.
Ainda que o Estatuto preveja revisões a cada decênio, existe a possibilidade de atualizações em períodos menores, na medida em que as mudanças da sociedade sobre o local, assim o exijam “O plano diretor não é estático, exigindo, assim, constantes atualizações pontuais”.[138]
6. Participação popular
Comumente, participação é definida pelo dicionário de língua portuguesa como “2. Ter ou tomar parte. 3. Ter parcela em um todo, ou receber, em divisão ou em partilha, parte de um todo”.[139] O dicionário jurídico acrescenta “é a ação de participar ou de intervir, em qualquer condição. É, portanto, a ação de ser parte, ou ter cooperado para que alguma coisa se fizesse ou fosse feita”.[140]
Dentro da perspectiva abordada no presente trabalho, tem o sentido de “projeto construído em torno da ampliação da cidadania e do aprofundamento da democracia”.[141] “O entendimento da participação como um processo através do qual as pessoas se organizam, se mobilizam e agem sobre o Estado para reivindicar os direitos que a Constituição lhes garante”.[142]
Assim como a cidade só faz sentido se nela habitarem os cidadãos, o plano diretor só fará sentido se a população estiver entrelaçada a ele, permeando todo o seu processo, desde sua primeira análise para elaboração, passando por sua implementação até suas atualizações e revisões.
“Para a implementação dos planos diretores participativos, primeiramente é necessário identificar e entender a realidade do município, sua potencialidade, problemas, cultura e contradições, pois assim como define Lefebvre a cidade é a “projeção da sociedade sobre um local” (2001, p. 56, destaque do autor) e não devemos entendê-la como a soma de partes isoladas, mas sim como um todo”.[143]
É esta compreensão unitária da cidade, através da atuação de sua sociedade, ou seja, de seus cidadãos, que permite observar a complexidade deste planejamento, mas, sobretudo, a significância da participação popular.
6. 1 Disposições Legais
a) Previsão Constitucional
A participação popular é um ato previsto tanto no texto constitucional como nas legislações infraconstitucionais relacionadas ao tema. A Constituição Federal prevê já em seu art. 1°[144] a necessidade da participação popular, seja ela na constituição do Estado Democrático de Direito, na soberania popular, no exercício da cidadania, ou ainda quando afirma categoricamente que o poder emana do povo. Restringindo ao tema ora proposto, o art. 29,[145] do mesmo texto, expressa, nas disposições a cerca da competência municipal, sobre a cooperação das associações nos assuntos de planejamento municipal e sobre a possibilidade de se ter projetos de leis municipais de iniciativa popular.
b)Previsão Legal
Mais especificamente, o Estatuto da Cidade dispõem em seu Capítulo III, art. 40[146] e seguintes, sobre circunstâncias de participação popular. O referido artigo começa disciplinando a atividade do Poder Executivo e Legislativo, quando da obrigação destes em promover audiências públicas, debates, disponibilização para a população de todos os documentos e informações necessárias para sua melhor participação, tanto na elaboração como na implementação sob pena de desobediência à Constituição.
Na sequência o art. 42[147] traz, como conteúdo mínimo ao Plano Diretor, um sistema de acompanhamento e controle, que é composto, certamente, por membros do legislativo e executivo, por técnicos com áreas de especialização determinadas, mas, sobretudo, pela população, a qual esta diretamente vinculada, que experimenta diariamente os acertos e erros do planejamento e que compreende muito melhor a sua realidade.
Por fim o Capítulo IV do Estatuto tem como título Da Gestão Democrática da Cidade, com os arts. 43[148] a 45, nos quais expressa como instrumento garantidor da gestão democrática a existência de debates, audiências e consultas públicas, conferências para tratar dos assuntos de interesse urbano e a iniciativa popular como fomentadora de projetos de leis, planos, programas e projetos que viabilizem o desenvolvimento urbano.
O art. 44[149] ainda traz como inovação o orçamento participativo, no qual a população pode colaborar com propostas aos planos plurianuais, nas leis de diretrizes orçamentárias e ainda no orçamento anual, tudo submetido a aprovação posterior pela Câmara Municipal:
“Mais do que um instrumento técnico, normalmente hermético ou genérico, distante dos conflitos reais que caracterizam a cidade, o Plano passa a ser um espaço de debates dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e negociadas, por uma estratégia de intervenção no território. Não se trata aqui da tradicional fase de “consultas” que os planos diretores costumam fazer – a seus interlocutores preferenciais, clientes dos planos e leis de zoneamento que dominam sua linguagem e simbolização. O desafio lançado pelo Estatuto incorpora o que existe de mais vivo e vibrante no desenvolvimento de nossa democracia – a participação direta (e universal) dos cidadãos nos processos decisórios”.[150]
O art. 45 por sua vez traz a prerrogativa da inclusão obrigatória e significativa participação popular para o pleno exercício da cidadania:
“Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania”.[151]
Ressalta-se que esta participação devera ser significativa, em quantidade e pluralidade de representação, abrangendo os mais diversos segmentos da sociedade, para que se garanta a transparência, mas, especialmente, um exercício efetivo de cidadania.
c)Previsão na Carta Mundial pelo Direito a Cidade
A proposta de uma Carta dos Direitos Humanos na Cidade foi apresentada pela ONG FASE na VI Conferência Brasileira de Direitos Humanos, em 2001, apoiada no uso ativo dos instrumentos internacionais de direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.[152]
Além de outras matérias atinentes a cidade, a Carta Mundial pelo Direito a Cidade traz em seus dispositivos, art. III,[153] o compromisso das cidades em efetivar espaços que proporcionem a ampla participação social, de maneira direta e democrática, tanto nos processos de elaboração e aprovação, como na gestão e avaliação das políticas e orçamentos públicos. A cidade também deve garantir que as audiências públicas, conferências, consulta à população e debates funcionem, bem como permitir à iniciativa popular o reconhecimento de seus projetos e planos.
Seu art. VIII,[154] por sua vez, estende a participação à vida política local, através da eleição e todas as decisões que puderem, de alguma forma, afetar as políticas locais de planejamento e gestão da cidade.
A participação popular como exercício de cidadania tem dispositivo específico. A Carta Mundial pelo Direito à Cidade traz:
“Artigo II. Princípios e Fundamentos Estratégicos do Direito à Cidade, Do Exercício Pleno da Cidadania e Gestão Democrática da Cidade: 1.1 As cidades devem ser um espaço de realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, assegurando a dignidade e o bem estar coletivo de todas as pessoas, em condições de igualdade, equidade e justiça, assim como o pleno respeito a produção social do habitat. Todas as pessoas têm direito de encontrar nas cidades as condições necessárias para a sua realização política, econômica, cultural, social e ecológica, assumindo o dever de solidariedade. 1. 2 Todas as pessoas têm direito a participar através de formas diretas e representativas na elaboração, definição, implementação e fiscalização das políticas públicas e do orçamento municipal das cidades, para fortalecer a transparência, eficácia e autonomia das administrações públicas locais e das organizações populares”.[155]
Uma vez reconhecida à importância da cidade para o desenvolvimento humano, ressalta-se a participação popular, não apenas como direito, mas como instrumento de uma administração pública eficaz, transparente e fortalecida.
6. 2 Instrumentos de Participação
Em um rol diverso de possibilidades, podem-se apontar alguns exemplos de situações em que a participação popular figura como polo ativo da relação. Ramos[156] destaca:
a)Iniciativa legislativa popular: direito reconhecido a certo número de cidadãos de apresentarem projetos de lei ou propostas de emendas constitucionais, podendo ser apreciada pelo eleitorado (iniciativa direta) ou pelo órgão do Poder Legislativo (iniciativa indireta), como é mais usual;
b)Plebiscito: consulta ao eleitorado concernente a alguma questão de natureza política, podendo gerar ou não a necessidade de providências legislativas;
c)Referendum constitutivo: consiste na apreciação de um projeto de lei em tramitação no Parlamento pelo eleitorado, a pedido de certo número de cidadãos, antes da deliberação do órgão legiferante regular ou depois da aprovação da propositura, o que pode dar ensejo ao chamado veto popular;
d)Referendem ab-rogativo: consiste na apreciação de uma lei pelo eleitorado, desde que solicitado por determinada parcela dos cidadãos;
e)Recall ou revogação: manifestação popular no sentido da cassação do mandado de representante legislativo ou de funcionário eletivo, podendo, ainda, ter por objetivo decisão judiciária no sentido da inconstitucionalidade de lei;
Além destas hipóteses de participação direta, há de se recordar a existência de múltiplas possibilidades de participação popular indireta. “É o caso, em certas circunstâncias, do vetusto direito de petição e, também, […] da ação popular”.[157]
É possível exemplificar instrumentos, que por meio da participação popular possibilitam a ampliação da democracia, bem como de um exercício efetivo da cidadania, pode-se citar a participação popular em conselhos, comitês, plebiscitos e orçamento participativo, na esfera do Poder Executivo. No que tange o Poder Legislativo pode-se frisar as audiências públicas e iniciativas populares em matéria de lei urbanística, tal como prevê o Estatuto da Cidade. Além da ação civil pública para defesa de ordem urbanística, concebida como interesse difuso, e reconhecida a legitimidade ativa de ONG’s, movimentos sociais e do Ministério Público na alçada do Poder Judiciário.
Observados alguns exemplos de ações afirmativas no sentido de inserir a população em um ambiente um tanto quanto inóspito para a grande parte dela, ou ainda, retirar a atmosfera jurídica de seus palacetes e inseri-la na sociedade à qual pertence e para a qual deveria atuar. É de grande valia apreciar exemplos concretos, de situações nas quais a população de fato se inseriu com o objetivo de expressar sua opinião, de ser verdadeiramente ouvida.
6. 3 Participação no Plano Diretor
A participação popular no desenvolvimento do Plano Diretor parte do fundamento de que o interesse social se configura como grande mentor das definições das políticas públicas, especialmente no que concerne à aplicação de investimentos, verbas públicas e da própria atenção da Administração Pública.
A efetiva participação da comunidade no planejamento, seja ele local ou municipal, é capaz de minimizar desigualdades sociais e ainda ser canal para o cumprimento das metas objetivadas pelo Plano Diretor. “Verifica-se assim, que o cidadão tem autorização expressa constitucional de exercer diretamente o poder, ou seja, de deliberar por uma determinada linha de atuação no alcance dos fins pré-estabelecidos”[158]. A “participação na elaboração de planos diretores deve ser encarada como uma forma de defesa do compromisso do Poder Público em assegurar um determinado nível de bem-estar coletivo”.[159]
“Não se trata de convencer a população a aceitar as propostas da administração pública, mas sim, de ouvir as propostas trazidas pela população e analisar as possibilidades técnicas e jurídicas de incluir tais anseios no bojo do plano diretor. Essa participação deve englobar diversos segmentos da sociedade, evitando que qualquer segmento seja excluído do processo de tomada de decisões que interessam à coletividade. Assim deve ser garantida a participação de indivíduos ou grupos de indivíduos; de organizações e movimentos populares; de associações representativas dos vários segmentos da comunidade”.[160]
“Torna-se um desafio encontrar um novo formato de planejamento capaz de gerar intervenções governamentais efetivas na promoção da melhoria das condições de vida urbana, especialmente no que tangencia o conjunto dos trabalhadores”.[161]
Muito embora se tenham um alcance menor, as ações locais não podem ser minimizadas em sua importância. Os temas para as conferências, debates e audiências públicas são os mais diversos possíveis, como as conferências sobre o planejamento habitacional ocorridas em Londrina, no Estado do Paraná, nos anos de 2006 e 2009, bem como as audiências públicas com os temas saúde, direitos da mulher, juventude, segurança pública.
Dentre elas cita-se a 1ª Conferência Municipal de Habitação, foi estabelecida com o intuito de discorrer sobre o planejamento urbano local, teve suas atividades dispostas no ano de 2006, contanto com uma preparação pré-conferência de julho de 2005 a fevereiro de 2006, com a produção de seminários de nivelamento de conceitos, para que a participação pudesse ser de fato efetivada por todos, levando em consideração as desigualdades, especialmente entre as regiões da cidade.
A 2ª Conferência Municipal de Habitação, em conformidade aos objetivos da anterior, teve com tema Morador Legal, e sub-temas: a regularização fundiária como política urbana de desenvolvimento e a elaboração e implantação de uma legislação urbanística adequada a área local, buscando uma continuidade dos debates:
“esses direitos da população à participação política ativa vêm sendo reconhecidos nos instrumentos legais mais recentes; com efeito, além da obrigação de realização de audiências públicas para a aprovação de vários assuntos […] a Lei 10257/2001 (Estatuto da Cidade) foi além e institucionalizou a participação popular no planejamento municipal”.[162]
Especificamente sobre o planejamento urbano, em consonância com o disposto no Estatuto da Cidade, as duas primeiras conferências que trataram do tema foram de âmbito nacional. A 1ª Conferência das Cidades, que aconteceu em 2003, sob o lema Cidade para Todos e tema Construindo uma política democrática e integrada para as cidades. Já nesta primeira conferência houve uma grande participação popular de todos os municípios brasileiros, na qual foi debatido e definido as bases e contornos iniciais do processo de formação de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, estabelecendo os princípios, diretrizes e objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – PNDU, a criação e constituição do Conselho Nacional das Cidades, a sistemática de realização de conferências municipais, estaduais e nacional:
“No ano de 2003, o governo do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva criou o Ministério das Cidades, dando prosseguimento à conquista do capítulo da Política Urbana na Constituição brasileira e à conquista da lei nacional do Estatuto da Cidade. Sua missão é formular e executar uma política urbana integrada – uma política de desenvolvimento urbano para o Brasil mediante articulação de parcerias com a sociedade civil e o poder público municipal, estadual e federal, com o objetivo de assegurar o acesso e o direito à cidade sustentável aos milhões de habitantes das cidades brasileiras […] A convicção na necessidade da participação da sociedade na formulação das políticas públicas de desenvolvimento urbano fundamentou a realização da 1ª Conferência das Cidades em 2003. […] O processo de sua realização mobilizou cerca de 320 mil representantes da sociedade civil organizada e do poder público em 3.457 dos 5.563 municípios brasileiros”.[163]
“A 2ª Conferência Nacional das Cidades foi realizada em Brasília no final de 2005, debatendo-se além das políticas setoriais de habitação, […] questões mais abrangentes relativas à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano”.[164]
A 3ª Conferência das Cidades foi convocada pelo Ministério das Cidades em 2007, a ser realizada em etapas municipais, estaduais e nacional, oportunizando a toda a sociedade brasileira a participação nas discussões. O lema foi: Desenvolvimento urbano com participação popular e justiça social, com o tema: Avançando na gestão democrática das cidades.
O objetivo era dar continuidade às primeiras discussões ocorridas nas conferências anteriores, “com vistas à construção da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano PNDU para o país, sem deixar de abordar temas centrais relacionados ao cotidiano da gestão do poder”.[165] A Etapa Municipal foi convocada pelo Executivo Municipal através do Decreto nº 286, de maio de 2007, realizada nos dias 26, 27 e 28 de julho.
A 4ª Conferência Municipal da Cidade aconteceu no dia 12 de dezembro de 2009, na Câmara Municipal de Londrina, com o lema Cidade para todos e todas com Gestão Democrática, Participativa e Controle Social e com o tema Avanços, Dificuldades e Desafios na Implementação da Política de Desenvolvimento Urbano:
“Seus objetivos foram identificar os avanços e resultados das Conferências anteriores e quais as questões centrais em torno dos problemas e dificuldades na implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e propor a reflexão sobre a integração das políticas setoriais e sua relação com a participação democrática, no Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, notadamente da criação e consolidação dos Conselhos Estaduais e Municipais das Cidades, buscando a discussão sobre as especificidades de cada gestão”.[166]
Posteriormente foram realizadas seis conferências no ano de 2010, sob o slogan “Londrina do Futuro – Plano Diretor Participativo”. Nominadas Conferência para aprovação das minutas das leis complementares do Plano Diretor, foram debatidas as leis que devem ser incorporadas ao Plano Diretor:
– Lei de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural (30/01/2010);
– Código de Posturas (09-10/02/2010);
– Código Ambiental e Lei do Perímetro Urbano (17-18/04/2010);
– Código de Obras (07-08-09/05/2010);
– Lei do Sistema Viário e Lei do Parcelamento do Solo (25-26-27/06/2010);
– Lei do Uso e Ocupação do Solo.
A última conferência para tratar de assuntos tangentes ao Plano Diretor foi a I Conferência Municipal de Planejamento, realizada em 07 de novembro de 2010, ocorrida com o objetivo de efetivar o Plano Diretor, auxiliando na coordenação da implementação, além da recorrente discussão sobre temas específicos.
7. Plano diretor participativo do município de londrina – pdpml
O primeiro Plano Diretor de Londrina foi sancionado em julho de 1998. Como prevê o Estatuto da Cidade, sua revisão deveria ter sido feita com o prazo de 10 anos, datando de julho de 2008.
A lei geral do Plano Diretor de Londrina, Lei n° 10.637/08, foi aprovada e sancionada em 24 de dezembro de 2008, ficando sob discussão suas leis complementares, leia-se: Lei de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural, Código de Posturas, Código Ambiental e Lei do Perímetro Urbano, Código de Obras, Lei do Sistema Viário, Lei do Parcelamento do Solo e Lei do Uso e Ocupação do Solo. Destas, até a data presente, faltam ser aprovadas a Lei de Sistema Viário (projeto 285/2010) e a nova Lei de Uso e Ocupação do Solo (projeto 398/2010), ainda sob discussão na Câmara de Vereadores.
Jogos políticos a parte, a falta de uma prestação efetiva do Poder Público, leia-se Legislativo e Executivo, tem afetado diretamente a cidade. “O fato é que o Plano Diretor faz muita falta”,[167] segundo atesta Nilson Capucho, diretor da Ceal – Clube de Engenharia e Arquitetura de Londrina.
“Entre setores organizados da sociedade, a avaliação é de que o atraso na aprovação do plano diretor traz prejuízos para a cidade. Para a presidente do Conselho Municipal, Margareth Pongelupe, a não aprovação do plano diretor “cria uma insegurança jurídica muito grande”. […] Segundo ela, com essa insegurança, “a cidade deixa de crescer”.[168]
Mesmo com todas as conferências, debates e audiências públicas, ainda é preciso que a população participe, “[…] os vereadores concluíram que apesar da nova proposta de Plano Diretor ter sido amplamente discutida entre 2005 e 2006, quando houve dezenas de reuniões e audiências, seis anos mais tarde ainda há quesitos obscuros nos projetos, merecedores de esclarecimentos públicos para a cidade”.[169] Requerer estes esclarecimentos é papel da sociedade, assim como cobrar a implementação efetiva do planejamento para que a cidade seja prejudicada por sua falta.
Sua opinião é de vital importância e motivadora de um grande diferencial. A discussão em plano se refere as 97 emendas propostas pelo Legislativo, capazes de desconfigurar a opinião populacional emitida anteriormente, representando um retrocesso em todo o processo de discussão e planejamentos anteriores, sobrepondo-se a participação popular:
“Com o grande número de emendas, 97 ao todo […] a presidente do Ippul, Regina Nabhan, afirmou que a principal preocupação da administração é o fato de muitas emendas apresentadas pelos vereadores “representarem um retrocesso”. […] Regina destacou ainda que com essa postura de retrocesso por parte dos vereadores ignora a vontade da população. A presidente do Ippul argumentou que o documento foi elaborado depois de seis anos de trabalho, envolvendo oficinas, audiências públicas e conferências e que a sociedade não quer o retorno de determinadas situações. “Com esse posicionamento, os vereadores estão passando por cima da participação popular”, ressaltou”.[170]
O que se documenta são reclamações da população, mas estas não geram qualquer efeito jurídico. À população são dados instrumentos capazes de reverter esta situação, mas para isso é preciso uma mobilização. A participação é voluntária, o que não poderia ser diferente, já que a imposição de sua presença descaracterizaria a democracia e a própria cidadania:
“As reuniões eram abertas e havia representantes da comunidade. Se as pessoas não comparecem, não podem agora achar ruim porque eram reuniões públicas” […] A advogada do Ippul atesta que a discussão do Plano Diretor foi aberta e contou com ampla divulgação, mas afirma como impossível “obrigar moradores a participar de tudo”. […] Segundo a advogada, a própria Caixa Econômica Federal, financiadora da discussão do Plano, aprovou o modelo de inserção popular no debate. “A divulgação foi intensa. Mas por mais que a gente se esforce, nem todo mundo vem. Infelizmente poderíamos ter muito mais gente participando. Poderia ter sido melhor, mas não há como obrigar”.[171]
Parece-me que a grande crítica a ser pontuada ao Plano Diretor de Londrina é o resquício de um caráter tecnocrata, “a discussão feita na Câmara entre técnicos, engenheiros e arquitetos foi pouco receptiva para moradores comuns que não entendem gabaritos construtivos e outros padrões da engenharia necessários à discussão técnica”,[172] como outrora havido no período pré-constituição. Assim como fora anteriormente afirmado, não se dispensa a presença dos técnicos, mas estes precisam subsidiar o conhecimento necessário, para melhor implementação do Plano Diretor, ou seja, para que o planejamento possa ser exequível na prática, no entanto o que se observou foi a predominância de aspectos puramente técnicos os quais tornaram o planejamento inacessível a comunidade em geral.
O estudo destas experiências concretas fornecem subsídios tamanhos, capazes de aperfeiçoar o exercício da cidadania na sociedade, assim como propicia meios concretos da cidadania cosmopolita, sair do mundo das ideias e passar ao mundo real:
“o alcance do termo “cidadania” vem se ampliando no Brasil ao longo dos últimos anos vinte anos. Do simples exercício dos direitos civis elementares, como escolher seus governantes por meio do voto popular, a população passou a exigir ser ouvida nas decisões tomadas por seus representantes eleitos. Com isso, a tradicional equação público-privado, em que cabia ao munícipe meramente exercer um papel reivindicatório junto aos governantes, vem sendo substituída por uma presença mais ativa dos cidadãos na condução dos assuntos públicos”.[173]
Contudo é preciso mais. Os avanços e evoluções pelas quais a cidadania passou são visíveis, mas ainda há substancialmente incutido na população uma ideia de cidadania de direitos e reclamações, se carrega uma comodidade eminente, uma posição muito passiva, permissiva e omissa, que apenas se põe em ação, na defesa de seus direitos, quando lesada diretamente.
Sobretudo, a ignorância de uma população com poucos recursos, educacionais e culturais, que por vezes desconhece a estima de seu papel enquanto partícipe da sociedade, põe a cabo sua existência. A “participação facilmente se constituirá em letra morta se a população não exercer seus direitos e exigir a participação que lhe é garantida por lei”.[174]
O que o Plano Diretor Participativo destaca são “processos através dos quais as pessoas, enquanto agentes políticos e atores coletivos, formulam as decisões que afetam suas vidas, como exercício da cidadania e da ação política”.[175] “a conscientização, a ação e a capacidade de luta são vistos como evidência de sua cidadania […] Para aqueles que nunca haviam participado das instituições, a experiência da participação pode ser a experiência dessa dimensão realmente diferente da cidadania”.[176]
8. Participação popular como escola de cidadania
Não se pretende descaracterizar a importância das normas cogentes, constitucionais e infraconstitucionais, já que são estas que delineiam este universo cidadão. No entanto o exercício da cidadania vai além do que qualquer norma poderia propor.
“Contextualizar os significados e as práticas da cidadania significa ir além dos direitos estabelecidos na Constituição ou associados a questões de nacionalidade e pertencimento. As ações que nascem de, e contribuem para, um senso de cidadania também estão na micropolítica cotidiana, nas arenas nas quais os indivíduos vão reivindicar o que consideram que lhes é devido e nos relacionamentos nas comunidades em que vivem ou por onde circulam. A cidadania é menos uma identidade, e mais algo que é exercido, afirmado e reconstituído de diferentes maneiras em diferentes espaços. Está intimamente relacionada com as formas pelas quais as pessoas se constituem como atores sociais e a visão que tem dos domínios sociais de que fazem parte”.[177]
A multiplicidade de possibilidades que a participação popular abarca gera diversos efeitos na sociedade. Pode-se citar como exemplo o aprendizado que a participação proporciona, melhorando o conhecimento do indivíduo sobre sua perspectiva na comunidade, assim como um melhor entendimento sobre suas ações, as consequências do ativismo e do comodismo, do seu entorno, das possibilidades até então desconhecidas.
A participação gera uma organização da sociedade local para tomada de decisões, provocando mais autossuficiência, tanto individual, do cidadão, que deixa de ser vítima da situação e se torna ativo, como coletivo, reforçando os vínculos e a filiação comunitária, que se aproxima, não apenas para buscar, mas para alcançar novos objetivos. Além de ser meio efetivo para o exercício da cidadania, para que se ensine e se aprenda a ser cidadão.
A identidade de cidadão se dá, na medida em que, este passa do polo passivo ao polo ativo na relação política e social. As tensões entre interesses sempre existirão e acontecem porque nossas intuições pessoais fazem parte de quem somos e se fazem presentes em nossas atitudes. Contudo nossa capacidade única para a comunicação é capaz de superá-las, nos levando ao encontro da justiça mínima, mas, sobretudo, permitindo que, respeitados os limites da boa convivência, a sociedade enquanto conjunto de indivíduos possa buscar, com prudência, sua suprema felicidade, para se chegar à vivência em comunidade. Local, no qual o cidadão não se fecha em suas aspirações particulares, mas é convidado a se abrir a comunidade que pode lhe oferecer uma melhor qualidade de vida.
“A experiência da vida comunitária pode constituir-se em ponto de partida para a própria reorganização da sociedade, a reformulação de suas instituições políticas, e a construção de um novo Estado que esteja, de fato, a serviço de seus cidadãos”.[178] Neste contexto é imprescindível que se “com-viva”, ou seja, que a vivência aconteça com a comunidade e, por derrogação, com o Estado.
É fato notório que Estado possui responsabilidades e deveres de prover o bem-estar de seus cidadãos, no sentido mais lato do termo. No entanto, “o que o caso brasileiro mostra é que a simples aprovação de leis e criação de espaços de participação é só uma parte do que o Estado pode fazer para facilitar o envolvimento dos cidadãos na governança”,[179] mais do que a obrigação legal é preciso querer a cidadania, criar vínculos, é imprescindível que se deseje ser cidadão.
Entretanto para que se possa cobrar é preciso dar sua contraprestação, ainda que nunca se tenha feito, sempre há novas oportunidades de se começar. A participação popular, no exercício da cidadania, mais do que um dever é uma necessidade do homem, indivíduo, que prescinde de sua cidadania plena para sua satisfação pessoal, enquanto homem e cidadão. Desvencilhar estas pessoas as tornam, ambas, incompletas, uma não terá possibilidade de existência sem a outra. Nas palavras de Miguel Etinger de Araujo Junior:
“A falta de experiência, portanto, não pode ser motivo de não participação, até porque experiência é algo que se conquista com a prática. […] Eventuais dificuldades devem servir de estímulo para o aperfeiçoamento dos mecanismos de deliberação dos cidadãos, buscando implementar uma conscientização do cidadão, não só de seu direito, mas sobretudo no seu dever de efetivamente participar da gestão de sua cidade com o objetivo de solidificar as instituições, reafirmar os princípios constitucionais e alcançar a pacificação social”.[180]
“A cidadania não consiste apenas em usufruir dos direitos sociais conquistados por outros cidadãos em outros tempos. A cidadania é uma construção continua, com o Estado e a sociedade, pela qual os homens são responsáveis”.[181] São nossas próprias conquistas que nos edificam enquanto homens-cidadãos e, por consequência, edificam nossa comunidade.
A possibilidade de participar, sem dúvida, é uma aquisição de cidadãos de outros tempos, mas as conquistas que os cidadãos de hoje terão. Este é o grande desafio.
Talvez os atuais cidadãos não alcancem o que outrora se idealizou, contudo terão subsídios que os permitirão chegar ao ápice do que se pretende, uma cidadania plena, composta de cidadãos plenos capazes de construir uma comunidade. Sem almejar uma simplória conquista de metas, mas, sobretudo, se empenhando para edificar uma comunidade sólida, cuja fundação já nos foi dada, e que possa abrigar cidadãos do amanhã.
Conclusão
Este trabalho teve como objetivo avistar este primeiro degrau, não se teve a pretensão de subi-lo, mas encontrá-lo. Sob uma perspectiva sociológica, tratou-se de um tema, visto por muitos como estritamente técnico, mas que traz em seu âmago um forte caráter social e comunitário, o qual não deveria ser manuseado sem estas considerações.
Partindo da ótica do indivíduo, enquanto ator social, ou ainda ator principal no desempenho deste projeto, conheceu-se do ser enquanto homem e cidadão, com suas distinções, diferentes perspectivas, mas incontestável dependência, observados atentamente por diferentes correntes filosóficas. Uma vez conhecida à perspectiva particular, este homem-cidadão passa a ser inserido no ambiente que o circunda e do qual não é possível se apartar, neste contexto se dá a cidadania.
Cidadania, esta, que teve sua origem desde o momento em que o homem se submete a vivência em sociedade para sobreviver, evoluindo com este até o presente momento, demonstrando novas fontes de interesse para a vida em sociedade. Assim como a evolução da sociedade se deu através da evolução das cidades, o conceito de cidadania teve de evoluir para acompanhar suas novas perspectivas e objetivos. O tão aclamado conceito de cidadania social passou a ser insuficiente permitindo novas acepções para o termo.
De conceito bidimensional, de direitos e deveres, a cidadania passou a ganhar novas dimensões, dentre elas, foram citadas a econômica, civil, intercultural, até alcançar uma nova nomenclatura, denominada cidadania cosmopolita. Uma vez compreendida que a cidadania acontece na medida exata e proporcional ao crescimento do homem enquanto cidadão, para que se contemple a nova conceituação de cidadania ideal é imprescindível que se detenha um cidadão ideal. Não é de hoje que se busca esta idealização, Aristóteles já o tentara. Ilusões a parte, o que se pretende não é fantasiar um individuo, mas encontrar o caminho para se chegar ao ideal de cidadania, e este, indubitavelmente, passa pelo cidadão.
Não obstante ainda se faz necessária a criação de um lugar, no qual esta cidadania possa acontecer, uma vez que esta só faz sentido no seio de uma sociedade. Para tanto já se observou algumas tentativas, que apesar de muito utilizadas não geram significativas conquistas. A religião civil traz uma valorização superficial e falsa do cidadão, com artifícios baratos que não são capazes de gerar vínculos verdadeiramente fortes culminando com uma sociedade ainda mais egoísta.
O fortalecimento do espaço público encontra-se como uma opção pouco mais assertiva, uma vez que é neste que a vida comunitária se dá, que a cidadania acontece. Porém é preciso mais. Para que a população verdadeiramente se envolva e queira estar presente ativamente neste local, um bom lugar de convívio não basta, é necessário que o cidadão se identifique com esta realidade. Esta identificação é capaz de gerar vínculos de pertença, os quais se dão através da opinião pública.
Esta vinculação se dá primeiramente em nossa realidade mais próxima, em nossa cidade, nosso município. Respeitadas as devidas distinções o município é competente para gerenciar sua realidade e a de seus cidadãos, tornando-se responsável pela vinculação dos mesmos em sua dinâmica. O planejamento municipal é título deste tema, planejamento este que deve apreciar não só as carências e aspirações da cidade, enquanto organismo social, mas, especialmente, de seus cidadãos que fazem parte desta rotina.
Enquanto artifício legal, o Estatuto da Cidade, vem sob a égide da Constituição Federal de 1988, viabilizando os meios possíveis para que a cidade/município contemple seu melhor desenvolvimento, concatenado com a ampla participação de seus habitantes. O Plano Diretor, denominação de tal planejamento, existe desde longa data. Com pontuais fracassos no período pré Constituição, resurgiu com a nova Carta Magna sob uma nova roupagem, com um novo conceito, objetivos e metas.
O Plano Diretor, constituído enquanto lei municipal, deve ser aprovado pela Câmara e sancionada pelo Prefeito, nas cidades com mais de vinte mil habitantes. Observando problemas locais, objetiva soluções pontuais para uma melhor qualidade estrutural e social. Observando os princípios pertinentes à administração pública como um todo, deve ter sua elaboração executada por um conjunto de participantes que contemplem toda sua complexidade, leiam-se técnicos, administradores, investidores, dando-se a todo o tempo potencial atenção à população que figura em foco nesta atuação.
Respeitadas as exigências legais, o Plano Diretor deve contemplar as dificuldades locais com soluções reais, buscando sua possível implementação, para não se tornar apenas uma bela teoria. Suas atualizações devem acontecer a cada dez anos, de modo que, as metas de planejamento acompanhem a dinâmica da realidade da cidade. Caso estas disposições deixem de acontecer o chefe do executivo municipal será responsabilizado, incorrendo em improbidade administrativa.
Superadas as questões técnica, necessárias para a melhor compreensão do assunto exposto, a contribuição do Plano Diretor se dá com a participação popular no seu exercício. Sua importância se faz disposta no texto constitucional, legal, alcançando perspectiva internacional. Ao longo da história, diversos foram os meios utilizados pela população para tomar partido em questões sociais, a legislação traz diversos caminhos para tal. O Plano Diretor Participativo é mais um destes instrumentos. Observando a evolução desta participação, em especial a realidade do nosso Município, é perceptível o quanto se desenvolveu este caminhar até chegar aos parâmetros que encontramos atualmente.
No entanto ainda há obstáculos a serem superados. Muito já se conquistou em interação e vinculação da sociedade, mas ainda não é o bastante. As camadas dominantes, cominadas com um legislativo elitista em constante confronto com o executivo municipal, resultam em sérias perdas, tanto no crescimento da cidade como no desenvolvimento de seus cidadãos, os quais ainda se apresentam em número inexpressivo. Tendo sua opinião por vezes desvalorizada, gera-se um total retrocesso em sua vinculação com a comunidade, levando a cabo o exercício de sua cidadania.
Ainda há muito a ser feito, no entanto a participação popular agrega em si um grande potencial de desenvolvimento da cidadania, não só como meio para que esta aconteça, mas como escola de cidadania. Ainda que se tenham diversas teorias sobre o tema, esta só acontece na realidade prática. Na vida e vida em comunidade. Teorias, leis e dispositivos norteiam seus caminhos, mas são incapazes de fazê-la acontecer isoladamente.
Ao longo deste processo se observaram erros que já foram superados e outros que ainda precisam ser corrigidos, porém os acertos provêm em grande parte de experiências frustradas. É preciso que se continue a buscar estes ideais, não como objeto de insatisfação por não serem encontrados, mas como metas capazes de impedir a acomodação em uma realidade que por vezes se apresenta de forma medíocre. É preciso querer mais.
Referências
Informações Sobre o Autor
Camila Guandeline Ribeiro de Souza
Advogada Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina e Pós-Graduanda em Direito Internacional e Econômico pela Universidade Estadual de Londrina