Resumo: Breves considerações acerca do direito do menor sob guarda à pensão em decorrência da morte do segurado instituidor, o desacerto da extração desse direito da legislação de regência frente a vários princípios constitucionais, mormente o da dignidade da pessoa humana e o da proteção integral da criança e do adolescente e a cristalização da discussão nos tribunais superiores.
Palavras-chave: Menor sob Guarda. Pensão por Morte. ECA. Isonomia. Retrocesso de Garantias. Proteção Integral.
Abstract: Brief considerations about the right of the minor under guard to the pension due to the death of the insured the settlor, the mistake of extracting this right of legislation governing this front of several constitutional principles, especially the human dignity and the integral protection of children and adolescents and the crystallization of the discussion in the higher courts.
Keywords: Minor under guard. Death pension. ECA. Isonomy. Setback of Guaranties. Integral Protection.
Sumário: Introdução; 1. Da pensão por morte – requisitos e carência. 2. Os dependentes do segurado. 3. Das razões que levaram à modificação legislativa. 4. Princípios constitucionais arranhados. 5. O Estatuto da Criança e do Adolescente. 6. Da posição atual do Superior Tribunal de Justiça. 7. Da questão posta no Supremo Tribunal Federal. Conclusões.
Introdução
Trata o presente artigo da análise do direito à pensão do menor sob guarda, questão que, sem embargo da alteração na legislação previdenciária ocorrida em 1996, ainda hoje, quase vinte anos após, não se estratificou no horizonte jurídico brasileiro.
O tema não se limita e nem poderia se limitar à aceitação pura e simples da alteração legislativa efetivada na Lei de Benefícios, cuja redação original incluía no rol de dependentes do segurado, além do enteado e do tutelado, o menor sob guarda. Antes, devem ser revisitados, para maior compreensão da questão, dentre outros, os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, dignidade da pessoa humana, da máxima eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais, da segurança jurídica, da proteção integral do menor, da proteção da confiança, como elemento nuclear do Estado de Direito, da isonomia, e do não retrocesso, passando, também pela especialidade e eventual confronto de normas.
Desta maneira, não se pode aceitar a justificativa utilizada para a retirada do texto da Lei de Benefícios da proteção do menor sob guarda, calcada pura e tão somente na eventual existência de fraudes, posto que a utilização pelo Poder Público dessa razão equivale à confissão da negativa de vigência à ordem emanada da Constituição Federal e à confissão, ainda, da total incompetência e ineficiência para a fiscalização desse mesmo Poder Público. Nesta medida, não se pode mesmo aceitar a existência de fraudes como justificativa válida à retirada da proteção legal do menor sob guarda relativamente ao recebimento de pensão quando do falecimento do segurado instituidor.
1 Da pensão por morte – requisitos e carência
A pensão por morte, dentro do contexto da Constituição Federal e da legislação previdenciária, veio para não deixar em desamparo os dependentes do segurado quando de seu falecimento.
A morte, como sabemos, é, em 99% dos casos, evento totalmente imprevisto, não se podendo determinar ou conhecer previamente quando virá.
Portanto, é risco social cujo correspondente direito social subjetivo de resguardo tem previsão constitucional e legal. Neste diapasão, tratando-se de direito social, não admite retrocesso.
Sua previsão constitucional encontra-se no inciso V, do artigo 201, e sua inserção como direito social dá-se no artigo 6º, “caput”, ambos da Carta Maior.
Por seu turno, no âmbito legislação ordinária, regem o instituto da pensão os artigos 74 a 79, da Lei nº 8.213/91, recentemente alterados pela Medida Provisória nº 664, de 30-12-2014, regulamentados pelos artigos 105 a 115, do Decreto nº 3.048/99.
Os requisitos para a sua concessão são o óbito do segurado, sua qualidade de segurado ainda que anterior ao óbito e a qualidade de dependente de quem está a postular o benefício.
Quanto à carência, tal exigência vem se modificando no tempo. Assim, a Lei Eloy Chaves, de 1923, exigia, para a auferição do benefício pelos dependentes, mais de dez anos de efetivos serviços à empresa; a LOPS, de 1960, exigia um mínimo de doze contribuições mensais, independe de carência na redação atualmente em vigor do artigo 26, inciso I, da Lei nº 8.213/91, que está sendo alterada pela Medida Provisória nº 664/2014, para exigir, a partir de 01-03-2015, um mínimo de vinte e quatro contribuições, exceção feita àqueles segurados que estavam em gozo de auxílio-doença ou de aposentadoria por invalidez.
2 Os dependentes do segurado
Como dissemos, são os destinatários da pensão advinda do vínculo do segurado com a Previdência Social seus dependentes, que, na redação original do artigo 16, da Lei nº 8.213/91, eram os seguintes:
“a) o cônjuge;
b) a companheira e o companheiro;
c) o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos;
d) o filho inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;
e) os pais;
f) o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos;
g) o irmão inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;
h) por equiparação a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação.”
Havia, ademais, a menção de que era presumida a dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I (cônjuge, companheira, companheiro; filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente).
Nesse passo, nem o enteado, nem o menor sob guarda e nem o tutelado necessitavam comprovar a dependência econômica do segurado, posto que equiparados a filho nas condições do inciso I.
Porém, a partir da edição e reedição da Medida Provisória nº 1.523, de 13-10-1996, convertida na Lei nº 9.528/97, excluiu-se do direito à pensão por morte o menor que estava sob a guarda judicial do segurado instituidor, ficando mantidos, na nova redação do § segundo, o enteado e o menor tutelado, sem prejuízo de ser imposta a estes últimos a obrigatoriedade de comprovar a dependência econômica do segurado. Na verdade essa exigência de comprovação da dependência econômica, atenta contra a própria natureza da equiparação destes ao filho, na medida em que, relativamente ao filho, a dependência econômica é presumida.
3 Das razões que levaram à modificação legislativa
A modificação legislativa que veio excluir do rol de dependentes do segurado o menor sob guarda teve por escopo, unicamente, a existência de supostas fraudes, consistentes no número crescente de avós que pediam a guarda de seus netos, não porque os mesmos fossem órfãos ou abandonados, mas, antes, com o fito exclusivo de garantir a eles o recebimento do benefício previdenciário da pensão por morte.
Por óbvio que tal justificativa não poderia e nem deveria servir de base à alteração legislativa, vez que além de constituir retrocesso de garantias, lesa diretamente o sistema constitucional de proteção integral ao menor, que goza do “status” de prioridade absoluta, e é incompatível, dentre outros princípios constitucionais, com o da dignidade da pessoa humana.
Demais disso, a nefasta justificativa evidencia a confissão do Poder Público de sua total incompetência e ineficiência para a atividade de fiscalização.
4 Princípios constitucionais arranhados
A modificação legislativa levada a cabo através de medida provisória que, sem embargo de sua posterior conversão em lei, excluiu o menor sob guarda do direito à auferição do benefício previdenciário da pensão por morte do instituidor, feriu diversos princípios constitucionais, o que tem causado sucessivos questionamentos judiciais, já aportados no Egrégio Superior Tribunal de Justiça e também no Pretório Excelso.
De plano, quando excluiu o menor sob guarda do rol dos dependentes que têm direito à pensão por morte e nele manteve o enteado e o tutelado, o legislador arranhou o princípio constitucional da isonomia, eis que todos os menores estão dentro da política de proteção do Estado, não sendo lícito ao legislador infraconstitucional fazer distinção onde a própria Constituição Federal não fez.
De outro canto, retirar o menor sob guarda da proteção das normas previdenciárias representa verdadeira agressão ao princípio que proíbe o retrocesso de garantias, até porque o referida tutela tem o “status” de direito social, consoante previsão do artigo 6º, “caput”, da Constituição Federal.
Nesse sentido, é assente que as normas da seguridade social têm em mira realizar e proporcionar uma melhor condição de vida aos segurados e àqueles que dele dependem. Ao revés, a norma que retirou o menor sob guarda da proteção da previdência social fez exatamente o contrário, ou seja, restringiu norma que, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, merecia ampliação, ferindo, por conseguinte, o princípio da máxima eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais.
Nas palavras do eminente Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no voto proferido no Recurso em Mandado de Segurança nº 36.034 – MT (2011/0227834-9), que sensibilizou a todos no dia do julgamento:
“6. Senhor Presidente, peço desculpa a V. Exa. e à Seção por falar nesses termos, mas é o que me vem à mente, porque conheço a realidade do Nordeste do Brasil, do interior do Ceará, e isso ocorre no Ceará. Conheço pessoas, Senhor Presidente, que vendem objetos, vendem bicicleta, vendem cabra, vendem bode, vendem jumento, para pôr em dia a Previdência, para deixar o benefício em favor de um dependente. Aí vem o Poder Público, depois, com argumentos de hierarquia de norma, norma específica, Lei geral, Lei não sei o quê, para suprimir direito do menor, quando se deveria fazer toda essa ginástica e hermenêutica jurídica, para alargar o benefício, a meu ver.
7. Peço desculpa a V. Exa. e ao Ministro BENEDITO GONÇALVES. Ministro BENEDITO GONÇALVES, desculpe-me por falar desse jeito, não estou, de maneira alguma, dizendo isso de V. Exa., pois sabe da estima que lhe tenho e do bem que lhe devoto, mas um caso desses não pode ser julgado como se fosse apenas uma relação jurídica. Isso é uma relação de proteção, de inclusão e de sobrevivência do menor. …” (grifos nossos)
Feriu-se, ademais, além da dignidade da pessoa humana, eis que a alteração legislativa retirou, justamente no momento de maior precisão do menor, a garantia de inclusão e sobrevivência, o princípio constitucional da proteção integral e preferencial do menor, pilares que se nos afiguram ser o sustentáculo do Estado Democrático de Direito.
Em síntese, a alteração legislativa atinente à retirada do menor sob guarda da proteção previdenciária com o pagamento da pensão quando do falecimento do segurado é totalmente avessa à disciplina constitucional, abalando a confiança que todo cidadão deve ter no Estado e fazendo ruir a segurança jurídica.
E é por todos esses motivos que a questão ainda não se resolveu no horizonte jurídico brasileiro, dando azo inúmeros arrazoados.
5 O Estatuto da Criança e do Adolescente
Do ponto de vista previdenciário, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) está em harmonia e sintonia com os princípios constitucionais antes mencionados, mormente o da proteção integral e preferencial do menor, tanto que, em seu artigo 33, § 3º, expressamente afirma:
“Art. 33. …
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários….” (grifo nosso)
Como se vê, não há qualquer dúvida acerca da proteção que o Estatuto dispensou ao menor, inclusive o sob guarda, deixando expressa e claramente insculpido que a dependência do menor é reconhecida sob todos os pontos de vista, frisando o previdenciário.
Ao nosso sentir, tendo-se em mira a previsão expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente, que data de 1.990, ou seja, seis anos antes da malfadada alteração legislativa na Lei nº 8.213/91 levada a cabo pela Medida Provisória 1.523/96, convertida na Lei nº 9.528/97, referida alteração legislativa é absolutamente inoportuna e está em franca oposição e desarmonia com os princípios constitucionais já mencionados e em oposição direta à legislação protetiva do menor.
E nem se diga aqui da especialidade da legislação previdenciária frente ao Estatuto da Criança e do Adolescente, vez que o mesmo também é norma específica de proteção ao menor e tem caráter muito mais ampliando que a norma previdenciária que, ao revés de ampliar, contrariamente aos postulados constitucionais, restringe o acesso do menor sob guarda ao benefício previdenciário da pensão por morte do segurado do qual dependia.
6 Da posição atual do Superior Tribunal de Justiça
À Terceira Seção, que congrega as Quinta e Sexta Turmas, eram custodiadas as questões previdenciárias e referidas Turmas vinham pacificando o entendimento de que a garantia de acesso do menor sob guarda ao benefício previdenciário pensão por morte estava adstrita à observação se o evento morte do segurado se dera antes ou depois da edição da Medida Provisória nº 1.523, ocorrida em 14-10-1996, convertida na Lei nº 9.528/97. A análise se prendia unicamente ao princípio “tempus regit actum”.
Na referida Terceira Seção era pacífica a aceitação da exclusão do menor sob guarda da proteção previdenciária, não se questionando acerca da aplicabilidade do Estatuto da Criança e do Adolescente em prejuízo da alteração legislativa referida e nem tampouco do acerto da referida alteração legislativa em análise amplificada de todo o ordenamento jurídico que envolvia a questão.
Em 2011 o Regimento Interno foi alterado e, pela Emenda Regimental nº 14/2011, a competência para conhecer e julgar as questões previdenciárias foi modificada, carreando-se ditas questões à Primeira Seção.
Referida Primeira Seção vinha mantendo o mesmo entendimento da Terceira Seção, qual seja o de que, pelo critério da especialidade, a lei previdenciária se sobreporia ao Estatuto da Criança e do Adolescente, não sendo possível a concessão de pensão por morte a menor sob guarda após a alteração legislativa havida.
Felizmente, em 26-02-2014, no julgamento do Recurso em mandado de Segurança nº 36.034 – MT (2011/0227834-9), acórdão da lavra do eminente Ministro Benedito Gonçalves, foi inaugurada uma nova ordem, reformulando o STJ sua orientação acerca do tema, ainda que o julgamento tenha sido por maioria, para fazer prevalecer sobre a norma previdenciária o Estatuto da Criança e do Adolescente, garantindo a percepção do benefício da pensão por morte pelo menor sob guarda quando do falecimento do segurado.
Prevalecendo o § 3º, do artigo 33, do Estatuto sobre as normas previdenciárias, deve, também, prevalecer, a presunção de dependência do menor sob guarda, não se devendo exigir-lhe prova dessa dependência, por duas razões, a saber: a primeira porque é o próprio § 3º, do artigo 33, que afirma que a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente e, a segunda, porque volta o menor sob guarda a ser equiparado ao filho, sendo certo que, em relação a este último, a relação de dependência é presumida.
7. Da questão posta no Supremo Tribunal Federal
Em decorrência da supressão do rol de dependentes para o fim de concessão da pensão por morte ao menor sob guarda na legislação relativa ao Regime Geral seguiu-se a ela a mesma exclusão em vários regimes próprios.
Verificando a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal acerca do temo, constatamos que duas situações tem se apresentado: ou se determina a concessão da pensão por morte (é o caso, por exemplo, do Mandado de Segurança 31770/DF, da relatoria da Ministra Cármen Lúcia, cuja segurança foi concedida por votação unânime para anular acórdão do Tribunal de Contas da União) ou se invoca a Súmula 279, do STF, no caso de Recurso Extraordinário, para não decidir a questão sob o argumento de que a mesma demandaria análise de normas infraconstitucionais e o reexame do conjunto fático-probatório (é o caso, por exemplo, do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 718191/BA, da relatoria do Ministro Luiz Fux, onde foi negado provimento à unanimidade).
Há, de outro lado, tramitando no STJ a ADI nº 5083, originária do Distrito Federal, cujo Relator é o Ministro Dias Toffoli, aforada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ainda pendente de julgamento.
Conclusões
A questão trazida aqui em coleção, sem prejuízo do salto de qualidade, no nosso entender, que foi dado com o julgamento, pelo STJ, em fevereiro do ano passado, pela Primeira Seção, do Recurso em Mandado de Segurança nº 36.034 – MT (2011/0227834-9), da relatoria do eminente Ministro Benedito Gonçalves, ainda demandará longos e novos estudos.
É que o respeito à política pública de proteção à criança e ao adolescente, decorrente da Carta Maior, parcial, mas bem traduzida no ECA, é dever do Estado e tem absoluta prioridade, fazendo-se necessário que a cada dia o Judiciário, em todos os seus níveis, aproveitando as poucas questões que lhe são apresentadas, eis que a gama de violações aos direitos do menores é muito larga, dê à sociedade a resposta almejada pela inspiração constitucional.
Particularmente, a questão do menor sob guarda, seja no Regime Geral, seja nos Regimes Próprios, cujo direito foi extraído da legislação de regência há quase vinte anos, merece, de fato, intensivo debate, festejando-se a iniciativa da OAB Federal quando ajuizou a ADI referida.
Espera-se que o debate da questão não se limite ao Poder Judiciário, mas avance pelo Legislativo e, porque não dizer, pelo Executivo, eis que a iniciativa de retirar da legislação de regência o direito do menor sob guarda à percepção do benefício previdenciário pensão por morte nos foi trazida justamente por Medida Provisória do Poder Executivo.
Informações Sobre o Autor
Aguinaldo do Nascimento
Advogado graduado pela Universidade de Mogi das Cruzes e pós graduando em Direito Previdenciário pelas Faculdades Legale