Resumo: Através da interpretação sistemática do ordenamento jurídico, especialmente do sistema constitucional tributário, o presente trabalho descreve as inconstitucionalidades perpetradas pela limitação prescrita pela Lei 7.713/88, em seu artigo 6º, inciso XIV, ao instituir a isenção do Imposto sobre a Renda apenas para os proventos de aposentadoria ou reforma das pessoas físicas portadoras de doença grave. Após a identificação do critério de discrime da norma isentiva, ela foi submetida ao crivo dos princípios constitucionais da Igualdade, da Não Obstância do Exercício de Direitos Fundamentais por Via da Tributação, da Pessoalidade do Imposto Sobre a Renda, da Capacidade Contributiva, de tal sorte que se concluiu pela necessidade de se aplicar a isenção também aos portadores de doenças graves que recebem proventos decorrentes do trabalho, sob pena, de se subverter os valores almejados pela Carta Constitucional.
Palavras-chave: Imposto de Renda; isenção; doenças graves; Direitos fundamentais; princípios constitucionais.
Abstract: This paper describes the unconstitutionality of the systematic interpretation of the limitations prescribed by the law 7.713/88 article 6 section XIV, which institutes the exemption of income tax exclusively for the retirement pensions of severely ill individuals. The discriminatory criteria of the exceptive norm was judged under the constitutional principles of Equality, impediment of Fundamental Rights Exercise by Way of Taxation, the Personality of tax on income, and the Contributory capacity. Thus, it was concluded that in accordance to the values represented by the Constitution, the exceptive norm must be also applied to severely ill workers receiving income from their work.
Keywords: income tax; exceptive; serious illness; fundamental rights; constitutional principles.
Sumário: Introdução. 1. Direitos Fundamentais. 1.1 Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana. 1.2 Direito Fundamental à Saúde. 1.3 Direito Fundamental ao Mínimo Vital. 2. Sistemas e Princípios Constitucionais Tributários. 2.1 Princípio da Igualdade. 2.2 Princípio da Capacidade Contributiva. 2.3 Princípio da Pessoalidade do Imposto Sobre a Renda. 2.4 Princípio da Não Obstância do Exercício de Direitos Fundamentais por Via da Tributação. 3. Imposto Sobre a Renda de Portadores de Doenças Graves. 3.1 A Isenção do Imposto Sobre a Renda dos Portadores de Doenças Graves. 3.1.1 Alcance da Regra Isentiva. 3.1.2 Critério de Discrime Eleito pelo Legislador Infraconstitucional. 3.3 Violações Identificadas. Conclusões.
Introdução
Os direitos fundamentais são basilares em nossa sociedade e devem orientar todo o ordenamento jurídico, desde a produção de normas até a sua aplicação.
Neste sentido, o objetivo desse trabalho é estudar a intersecção entre os direitos fundamentais e a tributação, e, através do sopesamento de seus valores, identificar as necessárias posturas exigidas do Estado, sendo por vezes uma obrigação negativa, e, por outras, uma atitude positiva, todas voltadas para a efetivação da proteção aos direitos fundamentais.
O foco empírico do estudo será a análise do disposto no inciso XIV do artigo 6º da Lei nº 7.713/88, que isenta do imposto sobre a renda somente os proventos de aposentadoria ou reforma percebidos por pessoas portadoras de doenças graves, deixando ao largo da isenção, todas as outras remunerações percebidas também por pessoas físicas portadoras de doenças graves.
1. Direitos Fundamentais
O Ordenamento Jurídico Brasileiro é formado por normas de comportamento e de estrutura que, tomadas em conjunto, formam o sistema do direito positivo. Nesta medida, esse sistema possui subsistemas que se entrecruzam e encontram seu fundamento de validade na Constituição Federal.
Um dos subsistemas constitucionais de destaque é o sistema constitucional tributário, detentor de normas constitucionais tributárias, as quais mantêm entre si relações de coordenação horizontal justamente por se apresentarem no mesmo plano hierárquico. O subsistema tributário configura um grupamento de regras da mesma natureza lógica e que tratam da mesma temática.
O subsistema constitucional tributário dispõe sobre competências do Estado de tributar, mas também prevê limitações ao exercício desse poder. Para tanto, o sistema em foco utiliza-se de princípios para implementar as garantias almejadas.
O direito, como objeto do mundo da cultura, está impregnado de valor. O sistema do direito positivo, tal como acima descrito, é presidido e governado por normas jurídicas de superior hierarquia. Referida superioridade sustenta-se na medida em que determinados enunciados prescritivos estão impregnados de carga axiológica bastante ampla e significativa e, por isso, acabam por determinar e subordinar a sorte das demais normas jurídicas que formam a integridade do referido sistema. Nessas normas, encontramos a disciplina dos Direitos Fundamentais que foram positivadas pela Constituição Federal.
Não podemos perder de vista a distinção entre direitos fundamentais e direitos do homem, eis que sua definição será relevante quando da demonstração do fundamento para sua aplicação.
Nesse contexto, o professor português Canotilho (1998) nos apresenta um critério para esta distinção. O Doutrinador enuncia que os Direitos Fundamentais são as normas vigentes em uma ordem jurídica concreta enquanto que os direitos do homem são aqueles derivados da própria natureza humana.
Podemos definir os Direitos Fundamentais, sintaticamente, como instrumentos de proteção do indivíduo frente à atuação do Estado, ou seja, essas normas são dirigidas ao Estado para orientar toda a sua atuação, e conforme falamos alhures, em todas as esferas de suas competências.
Por conseguinte, a identificação dos direitos fundamentais como aqueles dotados de regime jurídico diferenciado, por estarem estampados no conjunto de normas constitucionais imutáveis e aplicáveis de imediato, é que dão tamanha importância e destaque para o nosso estudo.
Ocorre que o Estado necessita tributar seus súditos para que ele possa efetivar os objetivos da república, e é justamente na intersecção entre o poder de tributar e o exercício dos direitos fundamentais que encontramos grande campo de tensão.
1.1 Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana
A dignidade da pessoa humana é alcançada quando tantos outros direitos são preservados. Sendo ela indispensável ao Estado Brasileiro, a dignidade da pessoa humana está prescrita positivamente como direito fundamental no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República[1].
A propósito, esclarecedoras são as palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2008): “A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade.”
Este direito assegura a todo cidadão uma existência digna. Neste sentir, a tributação guarda íntima relação com a dignidade da pessoa humana, eis que o poder tributante não poderá lançar mão de sua competência tributária além do limite da dignidade da pessoa humana, ou seja, a tributação nunca poderá ser tão escorchante a ponto de atingir a dignidade da pessoa humana.
1.2 Direito Fundamental à Saúde
O direito fundamental à saúde foi positivado na Constituição da República Federativa do Brasil, juntamente com uma série de outros direitos fundamentais sociais.
Integrado mas, não limitado, a Constituição correlacionou o direito fundamental à saúde com a garantia de assistência social, incluindo nesta as fontes de custeio e toda a sistemática política. Entrando no tema específico, a saúde é inserida no conceito de seguridade social e, portanto, como um direito fundamental da sociedade garantido por políticas sociais e financiado por contribuições e recursos federais, constitucionalmente assegurados.
É evidente que o direito fundamental à saúde não se limita a uma atuação estatal no sentido de proporcionar tratamentos curativos, mas também, de ações positivas no sentido da prevenção e orientação. Não ficando de fora o dever negativo, ou seja, o dever do Estado abster de determinadas condutas que são contrárias à saúde. Neste último caso podemos destacar a necessidade de conduzir a tributação de forma a não macular este direito tão caro à sociedade brasileira.
1.3 Direito Fundamental ao Mínimo Vital
O mínimo existencial, de acordo com Ricardo Lobo Torres (2005), consubstancia-se num direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas.
O direito ao mínimo existencial não está prescrito expressamente no texto constitucional, não obstante, é evidente que a disciplina constitucional abarca a proteção deste mínimo existencial.
Tal proteção baseia-se na ética e fundamenta-se na liberdade, na ideia de felicidade, nos direitos humanos e nos princípios da igualdade e da dignidade humana, sendo todos estes direitos escopo primordial do Estado Democrático de Direito Brasileiro.
Na Constituição Brasileira, o artigo 6º define os direitos sociais, e neste mesmo dispositivo, podemos identificar de modo implícito o mínimo existencial.
Nesse contexto, a Lei 8.742/93 tratou dos mínimos sociais, que também podem ser concebidos como mínimo existencial. Tais direitos são objetivamente mínimos por coincidirem com o conteúdo essencial dos direitos fundamentais e por serem garantidos a todos os homens, incondicionalmente.
Assim, por serem tão caros aos homens, esses direitos não podem ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos, pelo contrário, eles reclamam por prestações estatais positivas.
2. Sistemas e Princípios Constitucionais Tributários
Vivemos em um Estado Democrático de Direito, e como tal, vige no território brasileiro uma ordem jurídica, em outro falar, as relações intersubjetivas são reguladas por normas previstas no ordenamento jurídico. Este ordenamento jurídico pode ser visto como um sistema onde habitam normas de comportamento e de estrutura que, tomadas em conjunto, formam o sistema do direito positivo.
O sistema em referência possui subsistemas que se entrecruzam e que buscam fundamento de validade na Constituição Federal. O texto constitucional, por sua vez, prescreve inúmeras normas que balizam a conformação do ordenamento jurídico, especialmente, no que toca à tributação.
As normas presentes no Sistema Constitucional Tributário são conhecidas como normas constitucionais tributárias, as quais mantêm entre si relações de coordenação horizontal justamente por se apresentarem no mesmo plano hierárquico. Dentro desse subsistema predominam as normas de estrutura, mas também são encontradas as de comportamento.
O subsistema em referência disciplina a tributação no Brasil na medida em que dispõe sobre os poderes do Estado de tributar, mas também prevê garantias aos direitos fundamentais das pessoas diante do exercício desse poder[2].
Ao tratar de princípios, inevitavelmente, temos que lidar com valores, eis que, por vezes, os princípios não podem ser traduzidos como regras. Necessário frisar que o ordenamento é regido por normas e princípios de superior hierarquia (constitucional).
Por conseguinte, é jurídico enunciar que os princípios são diretrizes normativas, possuindo força para prescrever e direcionar toda a produção de normas do ordenamento jurídico.
2.1 Princípio da Igualdade
O Sistema Jurídico Brasileiro adota o princípio da igualdade, o qual não admite discriminações arbitrárias entre pessoas iguais, conforme prescrições contidas no artigo 5º da Constituição Federal, que estampa a regra geral, aplicável a toda e qualquer norma jurídica.
Como corolário deste princípio, especificamente no âmbito do Sistema Tributário, há previsão de que não poderá haver instituição e cobrança de tributos de forma desigual entre contribuintes em condições de igualdade jurídica.
Neste ponto, existe um quanto de contrariedade na efetivação do princípio da igualdade, pois nem sempre a desigualdade é contrária à igualdade. A pedra de toque deste princípio repousa, então, em saber quais as diferenças relevantes para se adotar um critério de distinção, de discrime.
O princípio da igualdade constitui, ao lado de outros princípios tributários, uma vedação ao arbítrio do Estado, e, portanto, garantia assegurada ao contribuinte. É definido, como cláusula pétrea da Constituição, não podendo ser abolida nem mesmo através do expediente da Emenda Constitucional.
Por conseguinte, podemos entender que o principal destinatário do princípio da isonomia é o próprio legislador, cabendo a ele distinguir sempre que houver desigualdade. Não obstante, o aplicador do Direito também está vinculado a este mandamento. A igualdade tributária está garantida em todos os tributos.
Assim, o principal desafio quando lidamos com o princípio da igualdade é identificar e eleger o critério de discrime necessário à implementação dos tratamentos distintos que culminam na igualdade.
2.2 Princípio da Capacidade Contributiva
O princípio da capacidade contributiva está positivado no artigo 145 da Constituição Federal, mediante a prescrição textual a qual ordena que sempre que possível os impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.
Trata-se de princípio limite objetivo: é limite objetivo destinado ao legislador tributário, ordenando que seus comandos devem se ater à capacidade econômica do contribuinte quando da eleição tanto do critério material, quanto do critério quantitativo do tributo. Dessa forma fica clarividente que a observância da capacidade contributiva do contribuinte na edição do tributo prestigia e tem como corolário lógico o princípio da igualdade.
Ademais, o princípio da capacidade contributiva deve ser compreendido no âmbito dos impostos que, para atendê-lo plenamente, terão que respeitar a capacidade econômica do contribuinte, de forma que seu critério quantitativo será equalizado com o critério material em equilibrada medida do fato-signo presuntivo de riqueza. Ou seja, um acontecimento que, per si, indique capacidade de contribuir eis que dotado de conteúdo econômico positivo. Adicionalmente, vale mencionar que a capacidade contributiva é revelada pelo acréscimo obtido por meio da aquisição de rendas ou proventos de qualquer natureza.
O primado da capacidade contributiva tem como uma de suas pilastras a proteção ao mínimo vital. E, especificamente no âmbito do imposto sobre a renda, destacamos um princípio fundamental à implementação daquele e que também guarda estreita sintonia com toda a disciplina constitucional, o princípio da pessoalidade.
2.3 Princípio da Pessoalidade do Imposto Sobre a Renda
O princípio da pessoalidade, expressamente positivado pelo artigo 145, §1º, da Constituição Federal, prescreve que a incidência dos impostos deverá observar as características pessoais daquele que irá sofrer o gravame. Nesse ponto, a pessoalidade aparece ligada à capacidade contributiva, eis que, à norma tributante caberá graduar a sua incidência segundo a particularidade daquele contribuinte praticante do fato hipotético, aferimento de renda.
Neste sentido, Mary Elbe Queiroz (2004, p. 35) enuncia as principais características do princípio da pessoalidade: “Em relação ao Imposto sobre a Renda, a pessoalidade assume extrema importância, pois as características das pessoas deverão ser levadas em conta quando da fixação de alíquotas e possibilidade de serem feitas deduções. Para que seja respeitado o princípio, mister se faz que possam ser considerados, em cada caso, as condições pessoais no tocante a gastos e deduções familiares e aqueles necessários à percepção dos rendimentos e manutenção da respectiva fonte produtora, para que a incidência não se torne confiscatória e possa assumir caráter mais isonômico.”
O cotejo deste primado nos cria a noção de que na instituição do imposto sobre a renda não basta observar apenas a quantia angariada pelo contribuinte, mas também é imprescindível observar e respeitar a sua condição pessoal, pois é evidente que a capacidade contributiva de um indivíduo solteiro que aufere, hipoteticamente, R$ 3.000,00 (três mil reais) mensais não é igual à de um indivíduo casado e pai de três filhos aferindo os mesmo R$ 3.000,00 (três mil reais).
2.4 Princípio da Não Obstância do Exercício de Direitos Fundamentais por Via da Tributação
Este princípio não está explícito na Constituição Federal, mas é perfeitamente construído conforme nos ensina Regina Helena Costa (p. 92, 2013): da combinação das normas que afirmam diversos direitos e liberdades individuais e coletivos consagrados no bojo da Carta Magna e as normas que regram a atividade tributante.
Significa dizer que a tributação não deve ser desempenhada em descompasso com os ditames constitucionais, ou seja, tal princípio não tolera a aplicação da tributação em desapreço aos direitos fundamentais. Se o ordenamento constitucional abarca em seu contexto normativo determinados direitos fundamentais, não pode, ao mesmo tempo, compactuar com a obstância ao seu exercício, mediante uma atividade tributante desvirtuada.
Deverá ser obedecido tal princípio pelo legislador infraconstitucional quando da instituição dos tributos. Desse modo, ao eleger os fatos que serão apreendidos pelas hipóteses normativas, deve considerar os direitos cujo exercício eventualmente poderão ser afetados pela exigência fiscal, de modo a não obstaculizá-lo.
Diante da ideia desenvolvida acerca do princípio da não obstância do exercício de direitos fundamentais por via da tributação, revela-se, ao nosso talante, que tal concepção ocupa o patamar de um verdadeiro sobreprincípio em Direito Tributário, abarcando todo o arcabouço normativo positivado, considerando, para tanto, a tributação em todas as suas concepções (instituição, arrecadação e fiscalização).
Toda a gama de princípios e direitos individuais carreados pelo texto constitucional, somados às demais normas de direito tributário convergem para um fim ou objetivo preponderante, a prevalência do princípio da não obstância do exercício de direitos fundamentais por via da tributação, impedindo que não haja prejuízo no exercício de tais direitos.
3. Imposto Sobre a Renda de Portadores de Doenças Graves
A primeira lei instituidora do imposto sobre a renda no Brasil foi a Lei n. 4.625, de 31 de dezembro de 1922. Posteriormente, uma série de modificações legislativas e regulamentares moldaram o imposto sobre a renda até a estrutura atual.
Após a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 153, III, que outorgou a União Federal a competência para instituição do Imposto, a Lei n. 7.713, de 22 de dezembro de 1988, alterou sensivelmente as regras matrizes do imposto sobre a renda, existentes na ordem jurídica anterior.
O imposto sobre a renda possui várias materialidades e regras matrizes distintas, porém, focaremos apenas aquele incidente sobre a renda e proventos da pessoa física (IRPF), deixando de lado o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza da pessoa jurídica (IRPJ) e o Imposto Retido na Fonte.
A hipótese de incidência do imposto sobre a renda é o fato de uma pessoa física verificar, ao final de um período – no caso eleito pelo artigo 8º da Lei n. 9.250, de 1995, o ano-calendário – acréscimo patrimonial, tendo sido esse acréscimo fruto de seu trabalho, capital ou combinação de ambos.
Uma vez conformada a hipótese de incidência do imposto sobre a renda, tal e qual determina a Constituição Federal em sua rígida repartição de competências tributárias, estamos aptos a confrontá-la às situações que passaremos a tratar adiante.
3.1 A Isenção do Imposto Sobre a Renda dos Portadores de Doenças Graves
A isenção é uma norma de estrutura, veiculada por lei em que o ente tributante opta, por qualquer que seja o motivo, em excluir determinado evento da hipótese de incidência do tributo, no caso do imposto sobre a renda.
Assim, para que haja a isenção, é necessário que o imposto esteja instituído, ou seja, deve existir no ordenamento positivações necessárias à construção da regra matriz de incidência da exação. Cabe, então, ao ente tributante competente pela instituição do imposto, optar por editar a norma isentiva, aplicada juntamente com a norma de incidência resultando na mutilação de um, vários ou todos os critérios da regra matriz de incidência.
A regra de isenção reduz a abrangência de um ou mais critérios da regra matriz de incidência tributária, que segundo doutrina do professor Paulo de Barros Carvalho (2012), são cinco: critérios material, espacial e temporal no antecedente; critérios pessoal, composto por sujeitos ativo e passivo, e quantitativo, composto por base de cálculo e alíquota, no consequente.
A norma de isenção de imposto sobre a renda aos portadores de doenças graves está prescrita pela Lei n. 7.713/88, alterada pela Lei n. 11.052/04, que, entre outras providências, instituiu a isenção do imposto sobre a renda de pessoa física aos contribuintes portadores de doença grave.
Por conseguinte, para aquelas pessoas portadoras de doenças graves descritas no texto legal, a União excluiu da base de cálculo do imposto sobre a renda os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço.
Assim, certamente em cotejo ao sistema constitucional tributário, a norma isentiva buscou dar efetividade à proteção de primados da sociedade brasileira prescritos pela constituição, especialmente ao direito à vida, à saúde, à dignidade da pessoa humana e ao mínimo vital. Legitimando ainda os princípios da capacidade contributiva, da pessoalidade do imposto sobre a renda.
Louvável foi a atitude do legislador ao primar pela leitura sistemática da Constituição Federal, porém, não andou com tamanha distinção ao limitar a isenção apenas aos proventos decorrentes de aposentadoria ou reforma de portadores de doenças graves, não abarcando aquelas pessoas portadoras das mesmas moléstias, porém não aposentadas.
Vejamos então, o alcance da norma isentiva em testilha.
3.1.1 Alcance da Regra Isentiva
A prescrição textual da Lei n. 7.713/88, refere-se tão somente aos proventos de aposentadoria e reforma percebidos por portadores de doenças graves, silenciando em relação a outros tipos de rendimentos percebidos por estas mesmas pessoas.
Via de consequência, parte significativa da doutrina e também da jurisprudência enuncia que referida norma isentiva incide apenas nestas situações.
O principal fundamento para esta interpretação literal está alicerçado no artigo 111 do Código Tributário Nacional:
“ Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:[…]
II – outorga de isenção;”
Por via de consequência, aquelas pessoas que são portadoras das mesmas doenças descritas no artigo 6º, XIV, da Lei n. 7.713/88, porém que não percebem proventos de aposentadoria, mas sim salário ou qualquer outro tipo de rendimento, não se enquadram na isenção em comento.
É este, também, o entendimento da Autoridade Fiscal -representada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, – e também de grande parcela da jurisprudência e doutrina, de que a isenção instituída pela Lei n. 7.713/88, deve ser interpretada literalmente, restringindo a isenção do imposto sobre a renda apenas aos proventos de aposentadoria e reforma percebidos por portadores de doenças graves.
Necessário frisar que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido da restrição da interpretação da norma isentiva, prescrevendo a exclusão da incidência, tanto em relação a renda, quanto em relação à abrangência da isenção às outras doenças não relacionadas no texto legal (v.g. REsp 1.254.371/RJ, relator Min. Mauro Campbell, Segunda Turma, j. 02/08/2011, DJe 09/08/2011 e REsp 1.221.275/SC, relator Min. Teori Zavascki, Primeira Turma, j. 08/02/2011, DJe 16/02/2011).
Isto significa que uma mesma pessoa portadora de doença grave sofrerá a incidência de imposto sobre a renda quando sua renda não decorrer de provento de aposentadoria e não sofrerá a incidência quanto a estes.
Vejamos a regulamentação da matéria pelo Decreto n. 3.000, de 26 de março de 1999, denominado Regulamento do Imposto de Renda:
“ Art. 39. Não entrarão no cômputo do rendimento bruto:[…]
Pensionistas com Doença Grave
XXXI – os valores recebidos a título de pensão, quando o beneficiário desse rendimento for portador de doença relacionada no inciso XXXIII deste artigo, exceto a decorrente de moléstia profissional, com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída após a concessão da pensão;[…]
Proventos de Aposentadoria por Doença Grave
XXXIII – os proventos de aposentadoria ou reforma, desde que motivadas por acidente em serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estados avançados de doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome de imunodeficiência adquirida, e fibrose cística (mucoviscidose), com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria ou reforma;”
Do exposto, conclui-se que apenas os portadores de doenças graves, os quais não estão mais na ativa, têm o direito à isenção de imposto sobre a renda, eis que somente a pensão e os proventos da aposentaria são isentos da aludida exação.
Com esta afirmação, podemos encontrar dois critérios necessários para a concessão da isenção do imposto sobre a renda.
3.1.2 Critério de Discrime Eleito pelo Legislador Infraconstitucional
O Legislador infraconstitucional ao editar a Lei n. 7.713 e suas alterações posteriores, elegeu dois critérios necessários para a concessão da isenção do imposto sobre a renda: o primeiro relaciona-se ao sujeito, ou seja, trata-se de uma isenção pessoal, destinada a determinados sujeitos passivos; o segundo associa-se à renda, à base de cálculo do imposto.
O primeiro critério, o pessoal, leva em consideração a condição de portador de doença grave, residindo neste critério o verdadeiro fundamento constitucional do benefício. Em razão deste fator, o legislador infraconstitucional pode, segundo a disciplina constitucional, destinar tratamento desigual a tais indivíduos.
Desta feita, para que o contribuinte seja enquadrado na isenção do imposto, é imprescindível ser portador de alguma doença grave relacionada no texto legal.
Muito embora a condição de portador de doença grave seja necessária, supostamente não é suficiente à concessão da isenção. A norma isentiva apenas tem incidência quando o portador de doença grave percebe pensão ou provento de aposentadoria.
Ocorre que, a Ordem Constitucional não outorgou à conformação da norma infraconstitucional estes moldes, prestigiando este último critério de discriminação, pois o fator que realmente fundamenta o tratamento desigual é aquele relacionado à doença grave.
Ora vejamos, a doença exige da pessoa maiores necessidades financeiras para custear tratamentos de saúde, custos elevados com o próprio dia a dia. O Legislador não poderia tratar de maneira desigual os deficientes apenas em razão de estarem aposentados ou não. Aqueles que estão na ativa e os aposentados possuem necessidades especiais diferenciando-os das outras pessoas sem deficiência.
É justamente neste ponto que deveria residir o critério de discrime, ou seja, apenas a condição de portador de doença grave.
É jurídico o emanar da Constituição Federal a fundamentação para a concessão da isenção, eis que a Ordem Constitucional prescreve em seu artigo 1º[3], que o Estado Brasileiro tem como fundamentos, entre outros: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores do trabalho e da livre iniciativa.
A Constituição Federal, por conseguinte, exige que a conformação da ordem jurídica – conjunto de normas vigentes em nosso território -, tome por norte o tratamento digno e a igualdade entre os cidadãos.
Como exemplo, a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social, reproduz expressamente o comando constitucional, também em seu artigo 1º, §1º, prescrevendo que na intepretação e aplicação do comando legal, devem ser considerados os princípios da dignidade da pessoa humana, justiça social, bem estar, dentre outros, remetendo à Carta Magna, para a observância de outros primados.
Desta feita, deveria o Legislador infraconstitucional, especialmente aquele detentor da competência tributária e responsável pela a instituição das normas de conformação do tributo, dentre elas a norma de isenção, observar os comandos constitucionais que consagram os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana, entre outros.
Nesta senda, a conformação da isenção do imposto sobre a renda dos portadores de doenças graves não poderia diferenciar as pessoas a partir da sua atividade, se aposentadas ou não. Com efeito, a isenção fiscal tem fundamento no acometimento de doença grave, porquanto visa desonerar o sujeito num momento extremamente delicado da vida, qual seja, quando acometido por uma séria enfermidade.
3.3 Violações Identificadas
A vedação da norma isentiva do imposto sobre a renda aos deficientes da ativa afronta a isonomia, pois discrimina deficientes ativos, daqueles que são aposentados, destinando a estes um tratamento mais benéfico.
Entretanto, este critério de discrime não justifica o tratamento diferenciado, eis que ambos são portadores das mesmas enfermidades, e, por conseguinte, são portadores das mesmas necessidades, sempre mais custosas, como por exemplo, tratamentos médicos, equipamentos de acessibilidade, acompanhamentos de outros profissionais da saúde, pessoas para auxiliar nas mais diversas atividades, dentre outros.
Segundo o professor Luís Roberto Barroso (2006, p. 155) o princípio da razoabilidade é um mecanismo para alcançar a isonomia e controlar a discricionariedade legislativa.
Classificando a razoabilidade das normas, o efusivo professor enuncia a necessidade de se verificar a razoabilidade externa da norma, que pode ser entendida facilmente através de suas claras palavras: “De outra parte, havendo a razoabilidade interna da norma, é preciso verificar sua razoabilidade externa, isto é: sua adequação aos meios e fins admitidos e preconizados pelo texto constitucional.”
Conclui-se, portanto, que mesmo que a norma possua razoabilidade interna, caso ela não possua o mesmo atributo frente à Constituição Federal, estará fadada ao insucesso quando verificada a sua constitucionalidade.
Considera-se inconstitucional o dispositivo legal e a interpretação que exclua de pessoas em situações iguais ou equivalentes, direitos iguais, ferindo assim os princípios constitucionais da isonomia tributária, dignidade da pessoa humana.
Não olvidamos que a emprego da equidade não pode resultar na dispensa do pagamento de tributo, consoante prescrição do artigo 108, § 2º do Código Tributário Nacional, porém, não se trata de dispensa de pagamento de tributo, mas sim, de conformação de normas infraconstitucionais às balizas do ordenamento constitucional.
Ademais, é vedada a utilização de restrições casuísticas, pois, se assim o fizesse estaria a ferir o postulado material da igualdade, o qual veda o tratamento discriminatório ou arbitrário, seja para favorecer ou para prejudicar. Significa dizer que a elaboração de normas de caráter casuística afronta o princípio da isonomia.
E como não bastasse a violação à isonomia do tratamento, há violação também aos princípios da capacidade contributiva e da não obstância do exercício de direitos fundamentais por via da tributação.
O legislador ao não permitir a incidência da norma isentiva aos portadores de doenças graves na ativa, acabou por tributar contribuintes com reduzida capacidade contributiva, obstando o exercício de seus direitos fundamentais, como o da saúde, do bem estar, da dignidade da pessoa humana etc.
Conclusões
Por todo o exposto, partimos da premissa de que o fenômeno tributário não pode ser analisado e conformado apenas a partir da legislação infraconstitucional. Deveras, a tributação deve desenvolver-se com apoio na Constituição Federal, primando por seus fundamentos e princípios, cabendo ao legislador infraconstitucional obedecer a todos estes preceitos ao tempo da edição das normas tributárias.
Neste diapasão, segundo ensinamentos do professor Roque Antonio Carrazza, é justamente a Constituição, com seus grandes princípios, que mantém a ação de tributar dentro do Estado Democrático de Direito.
Por conseguinte, a Lei 7.713, de 22 de dezembro de 1988, não poderia diferenciar os portadores de doenças graves por um critério tão desconexo ao fim legítimo da isenção, – aposentadoria -, eis que, é a doença que justifica o tratamento diferenciado em relação aos outros contribuintes.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Edson Franciscato Mortari
Graduação em Direito pela Instituição Toledo de Ensino. Especialização em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários onde atualmente é professor. Mestrando em Direito Tributário na PUC/SP.