Resumo: O Brasil é um país em desenvolvimento, dito “um país de todos”. Mais de metade da população brasileira admite que existe preconceito e discriminação no Brasil, no entanto menos de cinco por cento da população diz ser preconceituosa. O preconceito e a discriminação no Brasil é algo tão comum e enrustido nas pessoas que muitas delas não se consideram preconceituosas e acham normal pressupor, por exemplo, que um menino negro em uma loja de carros importados só poderia ser um pedinte. O objetivo desta pesquisa é analisar alguns precedentes históricos que contribuíram para a formação da atual mentalidade brasileira no que tange ao preconceito e a discriminação, bem como analisar detalhadamente o conteúdo da Lei 7.716/89 que trata dos crimes resultantes de preconceito ou discriminação por motivos de raça, de cor, etnia, religião ou procedência nacional. Procuraremos analisar os dispositivos da lei não só sob a ótica do direito penal e processual, mas também sob a ótica social e crítica, destacando os problemas que a lei apresenta.
Palavras-chave: Preconceito. Discriminação. Racismo. Crime. Lei.
Sumário: Introdução. 1. Do conceito de racismo, preconceito e suas variantes. 2. Das possíveis origens do preconceito e do racismo2.1 Da questão histórica e antropológica. 2.2 O negro e a escravidão. 3. O preconceito e o racismo na história do direito positivo pátrio: antecedentes legislativos. 3.1 Brasil Colônia. 3.2 Brasil Império. 3.3 Brasil República. 3.4 Brasil Contemporâneo. 4. Preconceito e direitos humanos. 5. Da lei 7716/89. 5.1 Da criação da lei de crimes de preconceito de raça e de cor. 5.2 Das disposições gerais e do objeto da lei. 5.3 Dos crimes em espécie. 5.3.1 Discriminação no trabalho. 5.3.1.1 Discriminação no serviço público. 5.3.1.2 Discriminação nas forças armadas. 5.3.1.3 Discriminação na iniciativa privada. 5.3.2 Discriminação na educação. 5.3.3 Discriminação no comércio. 5.3.3.1 Discriminação em estabelecimentos comerciais. 5.3.3.2 Discriminação em hotéis ou similares. 5.3.3.3 Discriminação em restaurantes ou similares. 5.3.3.4 Discriminação em clubes e casa de diversão. 5.3.3.5 Discriminação em cabeleireiros e similares. 5.3.4Discriminação na vida social. 5.3.4.1Discriminação em edifícios públicos e residenciais. 5.3.4.2 Discriminação em transportes públicos. 5.3.4.3 Discriminação no casamento e na convivência familiar. 5.3.5 Induzimento, incitação ou prática de discriminação. 5.3.6 Propaganda Nazista. 5.4 Conflito aparente de normas: Crime de racismo x Injúria qualificada pelo preconceito. 6. Da análise prática e crítica da Lei 7.716/89 frente a Realidade brasileira atual: casos recentes. Conclusão. Referências.
Introdução
Uma pesquisa realizada em 2010 no nosso país revelou que 91% dos entrevistados reconheciam que existe preconceito no Brasil, embora só 3% desses se julgavam preconceituosos.
Não há dúvidas de que existe preconceito no Brasil, além das recentes criações de comissões que visam combater essa espécie de crime, constantemente ficamos sabendo por meio da mídia de casos em que crianças, idosos, jovens ou adultos foram vítimas de alguma forma de discriminação.
O preconceito é um mal que atinge pessoas de diversas classes sociais e pessoas com diferentes níveis de instrução.
É bem verdade, que as primeiras leis penais brasileiras puniam aqueles que não eram preconceituosos, no entanto, felizmente, com o passar do tempo o legislador mudou este conceito e passou a criminalizar condutas racistas e preconceituosas.
O que se questiona é: será que em razão dessa cultura que incentivava uma população preconceituosa, o brasileiro hoje tem uma pré-disposição a ser preconceituoso, o que justificaria a criação de tantos crimes desta espécie? Ademais, em razão da lei não ter previsto expressamente hipóteses de bullyng e homofobia, esta necessitaria de reformas urgentes?
Por outro lado, alguns podem defender a idéia de que o legislador não precisa descrever e incriminar toda conduta. Alguns preceitos básicos de convivência e educação são inerentes à própria condição humana de modo que não precisam ser incriminados pelo legislador, pois constituem regras básicas da humanidade. Sob esta ótica, a lei de preconceito (lei 7716/89) e outras já existentes seriam suficientes para punir e incriminar toda forma de preconceito divulgada e praticada hoje em dia.
A verdade é que o nível cultural de um povo se mede pela quantidade de dispositivos penais que este povo possui. Neste trabalho, abordaremos não só a lei 7716/89 em si, no aspecto jurídico e didático, mas também teceremos algumas críticas a essa, bem como comentaremos certos projetos de lei que visam modificar o Código Penal e a própria Lei 7716/89 para que ao final possamos tecer algumas conclusões sobre a efetividade prática da referida lei.
Obviamente não deixaremos de esclarecer alguns conceitos fundamentais para a compreensão da lei, nem deixaremos de abordar algumas discussões penais/processuais que envolvem a mesma.
1Do conceito de racismo, preconceito e suas variantes
Conforme salientado na nota introdutória deste trabalho, o presente estudo tem como objetivo a análise da lei 7.716/89 que trata basicamente dos crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Assim, é fundamental a definição de alguns termos a fim de que o leitor possa compreender melhor o que se falará nos próximos capítulos.
As ideias de racismo e preconceito estão diretamente ligadas aos conceitos de discriminação, raça e etnia.
A palavra “raça” derivada do italianismo razzae este do latim ratio, segundo o dicionário da língua portuguesa, pode ser definida como o conjunto de indivíduos cujos caracteres corporais são semelhantes e se transmitem por hereditariedade.[1]
Etnia, por sua vez, pode ser definida como o agrupamento humano que possui uma estrutura familiar, econômica e social homogênea, e cuja unidade repousa na comunhão de língua cultura e de consciência grupal.[2]
A medicina legal classifica a humanidade basicamente em cinco tipos étnicos fundamentais, quais sejam: tipo caucásico (pele branca), tipo mongólico (pele amarela), tipo negróide (pele negra), tipo indiano (pele amarelo-trigueira) e tipo australóide (pele trigueira).
Embora biologicamente não há que se falar em raça superior, é certo que, conforme se verificará mais adiante, houve na história mundial como um todo um período em que se pregou a superioridade de algumas raças frente a outras o que ensejou inclusive a criação da lei objeto deste trabalho.
Feitas essas breves considerações acerca dos termos raça e etnia, podemos passar à análise dos conceitos de racismo, preconceito e discriminação.
O dicionário Michaelis[3] define preconceito como:
“conceito ou opinião formados antes de ter os conhecimentos adequados; superstição que obriga a certos atos ou impedem que eles se pratiquem; antipatia ou aversão a outras raças, religiões, classes sociais etc.”
Em outras palavras, podemos dizer que preconceito é a intolerância, o ódio irracional ou o prejuízo formado antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos.
O professor Christiano Jorge Santos, citando Fabio Medina Osório e Jairo Gilberto Schafer, comenta que “o preconceito representa uma idéia estática, abstrata, pré-concebida, traduzindo opinião carregada de intolerância, alicerçada em pontos vedados na legislação repressiva”.[4]
Discriminar significa diferenciar, distinguir ou separar. No tocante à discriminação racial, podemos defini-la como o “tratamento diferenciado, para pior, dado a pessoas de outra raça”.[5]
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, promulgada no Brasil pelo Decreto 65.810 de 8 de dezembro de 1969, considera que “discriminação racial” significa
“qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida.”
Já o racismo, pode ser conceituado como a doutrina que prega a superioridade de uma raça sobre as demais.
Claude Lévi-Strauss[6] aduz que o racismo pode ser definido como uma doutrina segundo a qual todas as manifestações culturais, históricas e sociais do homem e os seus valores dependem da raça. Ainda, segundo essa doutrina, existe uma raça superior (ariana ou nórdica) que se destina a dirigir o gênero humano.
A declaração da Organização das Nações unidas sobre “A Raça e os Preconceitos Raciais”, de 27 de novembro de 1978, preceitua em seu artigo segundo, in verbis, que:
“O racismo engloba ideologias racistas, atitudes motivadas por preconceitos raciais, comportamentos discriminatórios, disposições estruturais e práticas institucionalizadas causadoras de desigualdade racial, bem como a noção falaciosa de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificáveis; manifesta-se através de disposições discriminatórias na legislação e regulamentos, bem como de convicções e actosanti-sociais; compromete o desenvolvimento das suas vítimas, perverte quem o pratica, divide internamente as nações, impede a cooperação internacional e dá origem a tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais do direito internacional e, consequentemente, perturba seriamente a paz e a segurança internacionais.”
Maria Luiza Tucci Carnieiro ensina que racismo é algo muito mais grave do que apenas uma discriminação ou preconceito racial, uma vez que é uma doutrina que afirma haver relação entre características raciais e culturais, na qual algumas raças são, por natureza, superiores a outras. Afirma ainda a autora, que as principais noções teóricas do racismo moderno derivam das ideias desenvolvidas por Arthur de Gobineau e que o racismo deforma o sentido científico do conceito de raça, utilizando-o para caracterizar diferenças religiosas, linguísticas e culturais[7].
Definidos os conceitos que permeiam todo o conteúdo deste trabalho, o leitor pode estar se perguntando: como se desenvolveu o preconceito e o racismo? De onde eles surgem? Qual o fator ou fatores que contribuíram para a disseminação do preconceito? Essas e outras perguntas serão analisadas no próximo capítulo.
2 Das possíveis origens do preconceito e do racismo
2.1 Da questão histórica e antropológica
Numa concepção cristã, todos os humanos descenderam de um único casal criado por Deus, Adão e Eva. Estes tiveram filhos, povoaram a terra e assim seriam os originadores de todas as raças e etnias existentes no mundo.
Para uma concepção evolucionista, embora por muito tempo tenha se acreditado que cada tipo étnico tenha se desenvolvido independentemente, o que justificaria a existência dos chamados “genes brancos”, “genes negros” ou “genes amarelos”, estudos mais recentes comprovam que brancos, negros, índios e amarelos são todos parentes. Apesar das diferenças de cor e de traços, cada dia mais cientistas apostam na tese de que somos descendentes de um único ancestral, que há dez mil anos deixou a África para colonizar o mundo.
Os dois maiores especialistas no assunto, os geneticistas André Langaney, chefe do laboratório de Biometria de Genética da Universidade de Genebra e o célebre italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, após anos de pesquisas puderam afirmar que jamais encontraram genes que pudessem ser considerados característicos de uma única população, por mais isolada que ela fosse. Ou seja, os três bilhões de componentes do patrimônio genético são compartilhados pelos mais de sete bilhões de homens que ocupam a terra.
Tanto Langaney quanto Sforza puderam concluir que se existem diferenças genéticas entre os grupos étnicos, elas estão somente na frequência com que cada gene ou grupos de genes se apresentam nas diversas populações. Uma simples questão de clima poderia ser a responsável pelo fato dos etíopes terem pele escura e os belgas terem pele clara. Langaney explica que, do ponto de vista bioquímico, por exemplo, não existem classificações como brancos, negros e amarelos: apenas pessoas com menos ou mais melanina. É essa substância, presente nas camadas profundas da epiderme, que responde pela coloração da pele, dos cabelos e dos olhos. Quanto mais melanina, mais escura a pele.
Assim, em que pese sejamos todos descentes de um mesmo ancestral e o fato de sermos “brancos” hoje não impede que nossas futuras gerações sejam “negras”, o que nos tornam todos iguais. Mas então como surge o preconceito e porque determinados grupos étnicos tornaram-se alvos constantes dessa prática?
Os primeiros estudos antropológicos somente começaram a ser desenvolvidos no século XVI na Europa, época em que a mesma foi invadida por escritos e crônicas a respeito dos povos até então desconhecidos. Em resumo, tais escritos giravam em torno de afinidades e diferenças entre os homens e seus mundos sociais e culturais, nos quais considerações precipitadas e idéias preconcebidas eram constantes.
Os homens da Renascença desenvolvem a denominada técnica do estranhamento que significa a perplexidade diante de uma cultura diferente. Segundo os professores Olney Queiroz Assis e Vitor Frederico Kümpel, essa perplexidade implica em reconhecer que algo, antes considerado natural, passa a ser problemático.[8]
Da técnica do estranhamento, derivam duas ideologias: a) o fascínio pelo estranho que significa enaltecer a cultura das sociedades primitivas, e a b) recursa do estranho que significa censurar e excluir tudo o que não seja compatível com a cultura europeia.
Essa segunda ideologia é a que especialmente nos interessa uma vez que muitos de seus idealizadores fizeram comentários desvalorizando outros povos, os quais serviram para dogmatizar preconceitos, justificar a colonização e suas práticas violentas, submeter os negros à escravidão e fundar doutrinas racistas.[9]
Stanley, no século XIX, chegou a afirmar que os africanos eram “macacos de um jardim zoológico”. Hegel, também no século XIX, em seu livro Introdução à história da filosofia, assevera que os nativos africanos viviam em estado de selvageria e em situação deplorável, sendo que suas religiões não passavam de meras superstições razão pela qual vacas e macacos seriam adorados.
Ainda que por essa simples análise superficial, podemos perceber que a ideologia da recusa do estranho forneceu uma justificativa para a desvalorização de determinados povos e para negar humanidade aos negros africanos, submetendo-os ao regime de escravidão e embora as concepções racistas sejam um fenômeno antigo, sua arquitetura teórica tem início no final do século XIX com o francês Gobineau, considerado o fundador da teoria racista.
Basicamente, as teorias racistas pretendem provas que: a) existem raças; b) que as raças são biológicas e geneticamente diferentes; c) que há raças atrasadas e adiantadas, inferiores e superiores; d) que as raças atrasadas e inferiores não são capazes de desenvolvimento intelectual e estão naturalmente destinadas ao trabalho manual, pois sua razão é muito pequena e não conseguem compreender as ideias mais complexas e avançadas; e) que as raças adiantadas e superiores estão naturalmente destinadas a dominar o planeta e que, se isso for necessário para seu bem, têm o direito de exterminar as raças atrasadas e inferiores; f) que, para o bem das raças inferiores e das superiores, deve haver segregação racial (separação dos locais de moradia, de trabalho, de educação, de lazer, etc.), pois a não segregação pode fazer as inferiores arrastarem as superiores para o seu baixo nível, assim como fazer as superiores tentarem inutilmente melhorar o nível das inferiores.[10]
As teorias racistas não são cientificas e sim falsas e irracionais, pois implicam práticas culturais, econômicas, sociais e políticas para justificar a violência contra seres humanos. Ainda que a ciência moderna conteste a existência de raças e a superioridade de umas sobre as outras, infelizmente é possível notar que a doutrina racista continua em evidência uma vez que a mesma além de ter sido o “carro-chefe” para implantação de determinadas políticas e regimes (à exemplo do que ocorreu na Alemanha com o nazismo), constantemente somos informados de situações em que determinada pessoa ou grupo foi discriminado por motivos banais tais como a cor da pele, a vestimenta ou a religião que segue.
2.2 O negro e a escravidão
Embora a lei 7.716 de 1989 não tenha sido criada especificamente para proteger determinada “raça”, é certo que até hoje os negros são os que mais sofrem com práticas racistas e preconceituosas razão pela qual se fez necessário a inclusão deste tópico no presente estudo a fim de que pudéssemos compreender melhor algumas questões legislativas que serão abordadas mais adiante.
Em 2010, o Brasil contava com uma população de aproximadamente 190.755.799 habitantes, dos quais 50,7% (cerca de 97 milhões de pessoas) se declaravam negros os pardos. Não obstante a superioridade numérica dos negros no Brasil e o fato do preconceito ser algo velado e subjetivo, as consequências dele são evidenciadas em diversas pesquisas.
Apenas para se ter uma idéia, o Mapa da Violência de 2012 constatou que 75% dos jovens vítimas de homicídios no Brasil em 2010 eram negros, ou seja 34.983 pessoas. O censo de 2010 verificou ainda que das 13,1 milhões de pessoas que possuem ensino superior completo no Brasil, somente 3,3 milhões são negros (menos de 26%). Já em relação às pessoas sem instrução ou com ensino fundamental incompleto, os números se invertem, pois são 40 milhões de negros contra 26,3 milhões de brancos. Atualmente, negros e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres de nossa população. No mercado de trabalho, com a mesma qualificação e escolaridade, eles recebem em média quase a metade do salário pago aos brancos, e as mulheres negras, até metade da remuneração dos trabalhadores negros.
Na Universidade de São Paulo, a maior universidade da América Latina, os alunos negros não ultrapassam 2%, e, dos 5.400 professores, menos de dez são negros.
Não há dúvidas de que o preconceito no Brasil existe e os números supramencionados evidenciam isto. Podemos asseverar que a desvalorização o negro no Brasil tem origem na escravidão, que em que pese tenha sido abolida há mais de 125 anos, ainda gera consequências devastadoras.
Conforme analisado no tópico anterior, no século XIX começaram a se desenvolver várias ideologias racistas as quais serviram de justificativa para a desvalorização de determinados povos.
A escravidão era uma prática aceita nas antigas culturas do Egito, Grécia e Roma. Os antigos egípcios impunham a escravidão aos prisioneiros dos povos conquistados independentemente das características físicas ou raciais dos mesmos, assim como faziam os romanos e os gregos. Tal prática ocorria desde 3200 antes da era cristã.
A escravização dos negros e a ideia de superioridade branca começa a concretizar-se entre os séculos XV e XVI com a conquista da África. Naquela época, os negros passam a ser considerados como “objeto”, não sendo mais “gente”.
Diferentemente do que se possa imaginar, entre os anos de 1200 e 1500 vários reinos negros africanos eram bem desenvolvidos e já existiam há centenas de anos. Alguns desses reinos e seus nobres viviam em grande opulência e esplendor, sendo que suas capitais às vezes se tornavam centros de cultura e comércio. Há relatos inclusive do desenvolvimento de uma universidade negro-árabe em Tombucto que tornou-se famosa por toda a Espanha e Oriente Médio.
Com a conquista do continente africano pelos europeus e a escravização do povo, houve uma desorganização cultural negra, parou-se o desenvolvimento da arte, derrubou os governos locais o que acabou ocasionando uma estagnação cultural desde 1600.
Aos serem capturados, os africanos eram entregues primeiro nas Índias Ocidentais, onde eram “adaptados” e reduzidos a escravos, antes de serem enviados para as Américas. Nesta etapa, havia uma preocupação em separar as pessoas da mesma origem tribal para impedir qualquer insurreição em massa.
Começava-se aí, a desenvolver-se um comércio escravista de ampla escala e altamente lucrativo.
A Enciclopédia Americana[11] afirma que nesta época foram formulados diversos códigos escravistas para garantir sua completa subordinação. Os escravos não podiam ter propriedades, possuir armas de fogo, empenhar-se no comércio, deixar a plantação sem permissão de seus donos, testemunhar num tribunal exceto contra outro negro, fazer contratos, aprender a ler e escrever, ou mesmo realizar reuniões sem a presença de pessoas brancas. O homicídio ou o estupro de um escravo ou de um africano livre por uma pessoa branca não era considerado crime grave.
O leitor talvez esteja se perguntando onde ficava a igreja ou a religião frente a toda esta brutalidade, afinal como justificar a escravidão dos negros se segundo as escrituras bíblicas e os ensinamentos cristãos seriamos todos criados à imagem de Deus e deveríamos amar ao próximo como a nós mesmos?
É fato que mesmo antes do começo da cristandade, rabinos judeus ensinavam uma “história” sobre a origem da pele negra. Segundo tais rabinos, o descendente de Cã, Cus, tinha a pele negra como castigo por Cã ter tido relações sexuais na arca de Noé.
Obviamente essa suposta “maldição” dos negros serviu para mais uma vez justificar a escravização dos africanos, com a consequente desvalorização dos mesmos. Por mais absurda que possa ser esta concepção, os clérigos e religiosos dos séculos XV e XVI trataram de enriquecer essa ideia, pois a superioridade branca era agora “divina” e “aprovada” por Deus.
O ensino da maldição de Deus sobre os negros pautava-se no livro de gênesis, capítulo 9, versículos 21 a 27, que reza:
“E [Noé] bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda. E viu Cão, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos os seus irmãos fora. . . . E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por servo[12]”
Embora a bíblia não mencione a cor da pele de Canaã nem mencione que os descendentes de Canaã seriam amaldiçoados com a negritude da pele, entendeu-se que a escravização dos negros e a sua cor preta cumpriam tal maldição bíblica. Desta forma, muitos brancos foram levados a presumir que os negros eram inferiores e que Deus propôs que eles fossem servos dos brancos.
Diversas pesquisas históricas puderam constatar que Canaã não tinha a pele negra e nem seus descendentes, que se fixaram na terra que posteriormente se tornou conhecida como Palestina. Os cananeus, com o tempo, foram subjugados pelos israelitas, descendentes de Sem, e, mais tarde, pela Medo-Pérsia, Grécia e Roma, descendentes de Jafé. Tal subjugação dos cananeus cumpriu a maldição profética sobre seu ancestral, Canaã. A maldição, assim, nada teve que ver com a raça negra.
Ao contrário do que os clérigos e religiosos ensinavam, a raça negra proveio dos outros filhos de Cã, Cus e provavelmente de Pute, cujos descendentes se fixaram na África. De todo modo, embora a Bíblia nada diga a respeito dos descendentes negros serem amaldiçoados, ela mesma foi usada e interpretada por alguns religiosos como lei para aprovar e justificar as mais severas atrocidades contra os negros.
No Brasil, por volta do ano de 1700, somente na cidade de Salvador, 57% da população eram escravos (mais de 22.800 pessoas). Estima-se que mais de 6 (seis) milhões de escravos africanos tenham sido trazidos para o Brasil, embora avaliações mais conservadoras afirmem que na verdade o número tenha sido de 3,5 milhões.
Os escravos no Brasil trabalhavam até 16 horas por dia, eram punidos com até 300 (trezentas) chibatadas por dia, em que pese o Código Criminal do Império só permitir cinquenta.
O tempo de vida do escravo brasileiro no eito nunca ultrapassou 12 anos, e a mortalidade sempre superou a natalidade. Razão pela qual era constante incentivo ao tráfico negreiro.
O fato é que embora tenhamos abolido a escravidão em 13 de maio de 1888, as consequências desta permanecem marcadas até hoje, seja em nossos costumes, mentalidade social e relações econômicas. A simples menção aos números apresentados no início desse tópico já são suficientes para demonstrar as consequências que os negros sofrem até hoje decorrentes da escravidão.
A este respeito, imperioso destacar o comentário feito pelo ilustre Doutor Fábio Konder Comparato[13]:
(…) “o preconceito que tisna os brasileiros de origem africana não é neles marcado apenas fisicamente, como se fazia outrora com ferro em brasa. Ele aparece registrado como uma degradação social permanente em todos os levantamentos estatísticos.
Que as nossas classes dominantes tenham, enfim, a mínima hombridade de reconhecer que esse colossal passivo de nossa herança histórica ainda nem começou a ser pago!”
3 O preconceito e o racismo na história do direito positivo pátrio: antecedentes legislativos
Embora sempre presentes na história do país, o preconceito e a discriminação só começaram a ser objeto de preocupação do legislador tardiamente.
Na verdade, durante muito tempo o preconceito e a discriminação foram amplamente divulgados e incentivados como algo “positivo”.
Neste capítulo abordaremos brevemente as principais legislações pátrias que trataram da questão do racismo e preconceito e que precederam a criação da Lei 7.716/89 nos diferentes períodos da história do Brasil.
3.1 Brasil colônia
Até 1340, Portugal ainda presenciava os resquícios da vingança privada, uma vez que o país ainda carecia de leis no âmbito penal. Com a vitória alcançada na batalha do Rio Salado por D. Afonso IV, Portugal sofreu profundas modificações estruturais, inclusive no direito.
Entre 1500 e 1822, vigoraram no Brasil as ordenações portuguesas que levavam o nome do soberano português da época.
A primeira dessas ordenações foram as Afonsinas, as quais contemplavam em seu livro V os delitos, as penas e o processo penal. José Henrique Pierangeli comenta que as Ordenações Afonsinas apresentavam imperfeições, contradições e mesmo falta de unidade de plano e contemplava grande número de infrações religiosas, às quais cominava penas atrozes[14].
Em 1505, após 59 anos de promulgação das Ordenações Afonsinas, D. Manuel I, mandou revisá-las. As Ordenações Manuelinas foram publicadas em 11 de março de 1521 e vigoraram até 11 de janeiro de 1603. Em síntese, as Ordenações Manuelinas seguiram o esquema anterior, com modificações no que tange à organização das leis.
Tanto as Ordenações Afonsinas quanto as Manuelinas só vigoraram no Brasil no papel.
Diferentemente das anteriores, somente as Ordenações Filipinas tiveram real aplicabilidade prática no país e vigoraram até algum tempo depois de 1822.
Nas Ordenações Filipinas, a pena de morte era cominada para a maior parte dos delitos. Esta poderia ser executada mediante quatro formas: morte cruel, morte atroz, morte simples e morte civil[15].
As Ordenações Filipinas consagravam expressamente o preconceito, impondo a prática de condutas discriminatórias. Dirceu de Melo comentou em uma de suas aulas que nesta época era crime não ser preconceituoso e tal preconceito deveria envolver os ciganos, os judeus, os árabes, mouros, entre outros.
Maria Patrícia Vanzolini Figueiredo comenta que quantos aos escravos vigia a mais absoluta discriminação. No âmbito civil eram considerados semoventes, assegurando-se que os senhores tivessem sobre eles poderes ilimitados. Na esfera penal, por sua vez, os escravos ocupavam uma curiosa posição híbrida: eram considerados como pessoas quando sujeito ativo de crimes, cabendo-lhe dura responsabilização criminal, mas quando vítimas eram tratados como coisas, de modo que podiam ser objeto material de furto e outros crimes contra o patrimônio[16].
3.2 Brasil império
Até 1823 a legislação penal brasileira não havia sido substancialmente modificada, vigorando ainda as Ordenações Filipinas.
Com a proclamação da Independência em 1823, D. Pedro I deu início aos trabalhos para elaboração de uma Constituição. Após um ano de serviço, em 25 de março de 1824, inspirada na Constituição francesa, foi proclamada a primeira Constituição Federal do Brasil. Esta fora elaborada por apenas dez pessoas, contava com cento e sessenta e nove artigos e beneficiava em grande parte fazendeiros e comerciantes.
A Carta Magna de 1824 acabou influenciando o Código Criminal do Império elaborado em 1830. Tal código teve como projetistas Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Clemente Pereira e embora não tenha abolido a pena de morte, é considerado por muitos como o melhor diploma penal do Brasil, guardadas as devidas proporções.
Embora avançadíssimo para à época e inovador em muitos pontos, o Código Criminal mantinha a desproporção e a discriminação que já se vinha adotando nas legislações anteriores.
Valorizava-se a pena de morte como meio de submissão do braço escravo e este ainda era considerado como “coisa” que pertencia ao seu senhor[17]. Nos crimes praticados contra o escravo, era o próprio dono que estabelecia a pena, caso desejasse.
Não obstante a consagração do princípio da igualdade na Constituição de 1824, na prática, a lei valia de forma diferente a depender do agente que cometesse o crime.
3.3 Brasil república
Com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, a Constituição Imperial de 1824 é revogada. O governo provisório convoca uma nova Assembleia Constituinte com a tarefa clara de elaborar uma nova Carta Magna que atendesse à nova realidade política do país e os interesses dos poderosos fazendeiros de café de São Paulo e Minas Gerais.
Neste período, antes mesmo da outorga da Constituição de 1891, em 1890 é elaborado um novo Código Penal, intelectualmente inferior ao Código de 1930.
Não obstante o fato do novo Código consagrar o princípio da insignificância e acabar com as penas de morte e perpétua, este novamente não só não estabelecia qualquer conduta punitiva aos autores de discriminação, como também incriminava manifestações culturais, como a capoeira, com pena de prisão.
A Lei Áurea havia sido proclamada em 1888 e embora o tráfico de escravos houvesse acabado, os que já se encontravam no país continuavam a ser vítimas dos mesmos abusos e viviam sob o mesmo regime de escravidão.
3.4 Brasil contemporâneo
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 foi a primeira a enunciar expressamente a igualdade racial. Em seu segundo capítulo, ao tratar dos direitos e garantias individuais, previa, in verbis:
(…) “Art. 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.” (…)
Em dissonância àquilo que previa o artigo supracitado e àquilo que a nova Constituição parecia querer combater, o artigo 138 da mesma lei estimulava a educação eugênica, que é considerada por muitos como a clara postura racistaorientada pela teoria do embranquecimento[18].
A Lei Magna posterior, de 1937, em um movimento de retrocesso, volta a empregar a velha fórmula lacônica, prevendo simplesmente que todos eram iguais perante a lei[19].
Três anos depois, em 1940 entra em vigor um novo Código Penal, o qual vige até os dias atuais.
Nosso Código Penal inicialmente nada dispunha acerca da tipificação de condutas discriminatórias ou racistas. Foi somente em 1997 que passou a conter o crime de injúria qualificada pelo preconceito.
Foi somente a partir do ano de 1946 que o legislador brasileiro começou a encarar, de fato, o preconceito e a discriminação como algo negativo.
Não há dúvidas de que esta mudança decorreu do “espírito mundial” que pautava a humanidade naquela época. Entre 1939 e 1945 o mundo havia presenciado os horrores da segunda guerra mundial que teve como principais vítimas os povos menos favorecidos e os judeus que foram cruelmente aniquilados em razão do antissemitismo existente na Alemanha, bem como em razão da disseminação da ideia da raça ariana que seria superior às demais.
Com o fim da guerra, os povos passaram a se preocupar com a questão do preconceito e começaram a criar mecanismos capazes de evitar novas atrocidades semelhantes àquelas presenciadas durante a segunda guerra mundial.
A Constituição de 1946, ao nosso ver, foi a primeira legislação pátria que realmente buscou combater o preconceito. A Constituição como lei máxima do Brasil inovava pela primeira vez e dava passos para estabelecer uma sociedade livre, justa e igualitária. Mais imponente e efetiva que qualquer outra lei, a Constituição consagrava em seu artigo 141, parágrafo 5º que não seria tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.[20]
Em 1951 surgiu no Brasil a primeira legislação antidiscriminação de autoria do Deputado Federal Afonso Arino de Melo Franco. A lei 1.390/51, também conhecida como Lei Afonso Arinos, tipificava como contravenções penais os atos resultantes de preconceito de raça ou cor, punindo-os com pena de prisão simples de até um ano, de multa ou de perda do cargo público.
Não obstante o evidente avanço que a Lei Afonso Arinos representou, esta foi alvo de muitas críticas em razão da pouca aplicabilidade prática da mesma e devido a pouca severidade das sanções[21].
A Constituição de 1967 foi a primeira a constar uma punição em relação ao racismo. A Constituição de 1967, além de manter os dispositivos da Constituição anterior naquilo que era positivo, recepcionou a Lei Afonso Arinos ao dispor:
“§ 1º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.”
A Constituição de 1969 manteve o texto da anterior, acrescentando somente que não seria tolerada a propaganda de preconceito de religião.
Em 1978 a Lei de Segurança Nacional (lei 6.620/78) passou a tipificar como crime à segurança nacional a incitação do ódio e da discriminação racial.
No ano 1988, após o fim do regime militar e uma grande movimentação nacional, é promulgada a nova e atual Carta Magna, a chamada “constituição cidadã”.
A atual Constituição contemplou a temática do racismo em diversos dispositivos. Instituiu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, estabeleceu como objetivo a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, apontou como postura a ser adotada pela República nas relações internacionais o repúdio ao terrorismo e ao racismo, além de estabelecer o princípio a igualdade, sem distinção de qualquer natureza e conceder ao crime de racismo o status de crime imprescritível e inafiançável.
Apenas três meses após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, foi sancionada a Lei 7.716/89 que tipifica as condutas racistas como crimes punidos com pena de reclusão de até cinco anos e que será mais detalhadamente abordada no capítulo 5 deste trabalho.
4 Preconceito e direitos humanos
É impossível tratar da matéria preconceito sem abordar a questão dos direitos humanos e consequentemente da dignidade da pessoa humana. Isto porque a prática de qualquer forma de discriminação atinge diretamente a dignidade individual.
Guilherme Amorim Campos da Silva[22] destaca que a dignidade da pessoa humana proclama o valor distinto da pessoa humana e tem, como consequência lógica, a afirmação de direitos específicos de cada ser humano, sem distinções de gênero, raça, cor, credo, sexo e outras. Acrescenta ainda que embora o conceito esteja sujeito a múltiplas interpretações, trata-se de princípio de direito fundamental, o qual determina interpretação sobre os direitos da pessoa, revelando um minimunjurídico invulnerável que todo estatuto político deve assegurar.
Não restam dúvidas de que qualquer forma de preconceito e discriminação por motivo de raça, cor, etnia, religião, determinação sexual e etc., ofende diretamente a dignidade da pessoa humana.
A escravidão foi universalmente abolida somente no século XX, como visto no capítulo anterior, por muito tempo os escravos foram considerados como “coisa” e não como pessoa possuidora de direitos e garantias. Fábio Konder Comparato[23] comenta que a “dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pela leis que ele próprio edita”.
A dignidade é uma qualidade inerente a toda pessoa, assim nenhuma justificativa de utilidade pública ou reprovação social pode legitimar sua extinção ou mesmo minorar sua extensão.
O conceito de direitos humanos está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana uma vez que esse é o conjunto mínimo de direitos necessários para assegurar a vida digna do ser humano.
Os direitos humanos são os direitos comuns a todos. A doutrina comumente considera que a expressão “direitos humanos” serve para definir os direitos estabelecidos em tratados internacionais. Em que pese o fato de tal consideração não ser unanime, nos utilizaremos deste conceito a fim de tratarmos o que se pretende neste capítulo.
A compreensão da dignidade da pessoa humana e de seus direitos tem sido, na maioria das vezes, fruto da dor física e do sofrimento moral. Vimos este fato ocorrer após milhões de mortes resultantes das duas guerras mundiais, além de outros fatos menos abrangentes como o apartheid, os massacres ocorridos na Indonésia em 1965 e no Camboja entre 1975 e 1977.
A este respeito, Fabio Konder Comparato[24] menciona:
“A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal de abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, as mutilações em massa, os massacres coletivos e as explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos.”
Três anos após a Organização das Nações Unidas ter sido criada, em 1948, esta tratou de convocar uma Assembleia Geral a fim de consolidar a declaração universal dos direitos humanos.
Embora a declaração universal dos direitos humanos não tenha sido aprovada por todos os países do mundo e tenha sido criada somente após a segunda guerra mundial, é certo que esta foi um marco importante para o combate ao preconceito.
Dentre as várias disposições constantes da declaração, destacamos os seguintes artigos que tem relação direta com o objeto da lei 7.716/89:
(…) “Artigo II
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (…)
(…) Artigo IV
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
(…) ArtigoVII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (…)
(…) Artigo XVIII
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. (…)
(…) Artigo XXVI
(…) 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”.(…)
Em 1965 a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas por meio da Resolução 2.106-A adotou a “Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial”, a qual foi ratificada pelo Brasil em 1968 e passou a valer a partir de 8 de dezembro de 1969.
Dentre as várias disposições, a Convenção define aquilo que se entende por discriminação racial, bem como estabelece que os Estados-partes devem se empenhar em adotar políticas destinadas a eliminar a discriminação e promover o entendimento entre todas as raças. Os Estados-partes comprometem-se ainda a condenar a segregação racial, o apartheid, propagandas baseadas na superioridade de raças e a incriminar práticas racistas.
Posteriormente, na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, ocorrida em Paris em 27 de novembro de 1978 é aprovada e proclamada a “Declaração sobre raças e preconceitos raciais”.
Não obstante a criação dos mecanismos internacionais supracitados, observava-se que estes ainda não eram suficientes para combater as práticas discriminatórias que assolavam o mundo, tanto que esta preocupação fora destacada no preâmbulo da declaração, que reza:
(…) “Observando com a mais viva preocupação que o racismo, a discriminação racial, o colonialismo e o apartheid continuam causando estragos no mundo sob formas sempre renovadas, tanto pela manutenção de disposições legais, de práticas de governo, de administração contrária aos princípios dos direitos humanos como pela permanência de estruturas políticas e sociais e de relações e atitudes caracterizadas pela injustiça e o desprezo da pessoa humana e que engendram a exclusão, a humilhação e a exploração, ou a assimilação forçada dos membros de grupos desfavorecidos” (…)
A “Declaração sobre raça e preconceitos raciais” possui apenas dez artigos que são quase que perfeitos em seu conteúdo haja vista que destaca a igualdade das pessoas de uma forma emocionante e cria um ideal a ser buscado que se fosse de fato aplicado pelos países sequer haveria a necessidade da criação de leis tais como a Lei 7.716/89.
Pelo notável conteúdo, convém reproduzirmos o artigo primeiro da referida declaração ipisis litteris:
“Artigo 1
1. Todos os seres humanos pertencem à mesma espécie e têm a mesma origem. Nascem iguais em dignidade e direitos e todos formam parte integrante da humanidade.
2. Todos os indivíduos e os grupos têm o direito de serem diferentes, a se considerar e serem considerados como tais. Sem embargo, a diversidade das formas de vida e o direito à diferença não podem em nenhum caso servir de pretexto aos preconceitos raciais; não podem legitimar nem um direito nem uma ação ou prática discriminatória, ou ainda não podem fundar a política do apartheid que constitui a mais extrema forma do racismo.
3. A identidade de origem não afeta de modo algum a faculdade que possuem os seres humanos de viver diferentemente, nem as diferenças fundadas na diversidade das culturas, do meio ambiente e da história, nem o direito de conservar a identidade cultural.
4. Todos os povos do mundo estão dotados das mesmas faculdades que lhes permitem alcançar a plenitude do desenvolvimento intelectual, técnico, social, econômico, cultural e político.
5. As diferenças entre as realizações dos diferentes povos são explicadas totalmente pelos fatores geográficos, históricos, políticos, econômicos, sociais e culturais. Essas diferenças não podem em nenhum caso servir de pretexto a qualquer classificação hierárquica das nações e dos povos.” (grifos nossos)
Conforme verificado neste capítulo, o combate ao preconceito e ao racismo são assuntos de fundamental importância ao direito internacional. Ainda que nem sempre os mecanismos internacionais consigam atingir plenamente os seus fins, tal como ocorre com a maioria das leis, é certo que estes são ferramentas importantes no combate às práticas que devem ser repudiadas pela humanidade.
5 Da lei 7.716 de 5 de janeiro de 1989
5.1 Da criação da lei de crimes de preconceito de raça e de cor
No Brasil é comum que muitas leis surjam a partir do chamado “direito penal de emergência” que seria aquele direito criado “às pressas” para atender a uma necessidade momentânea ou para acalmar os ânimos da população. Esse direito nem sempre acaba tendo efetividade prática ou quando tem, acaba sendo em muitas das vezes uma verdadeira aberração jurídica.
No país, também são frequentes as leis que são criadas a partir de grandes manifestações populares, clamores públicos ou após acontecimentos violentos que chocam a população como um todo ou que tem grande repercussão nacional. Como exemplo desse fato, podemos citar as leis de crimes hediondos e de tortura que foram criadas, respectivamente, após a morte da atriz Daniella Perez e após o caso da favela naval ocorrido em 1997.
Curiosamente, a lei 7.716/89 não foi criada a partir de nenhum clamor público específico ou de alguma tragédia próxima que precedeu à edição da mesma. Na verdade, a “tragédia” ou o fato determinante da criação da lei já ocorria há muito tempo, pois conforme verificado alhures, desde a colonização os negros já eram abusivamente explorados, discriminados e ultrajados e infelizmente a situação nos anos 80 não se encontrava plenamente resolvida e nem muito diferente.
A situação era ainda pior em outros países haja vista que até 1994 na África do Sul, os negros sequer podiam votar. O país, ainda enfrentava as consequências do apartheid[25]que vigorava desde 1948.
Em 1988 o Brasil completava cem anos da Lei Áurea que libertara os escravos no dia 13 de maio de 1888. Foi justamente este centenário que ensejou a criação da lei ora em estudo. Viu-se naquele momento a necessidade de pensar e repensar o Brasil, bem como reavaliar a questão da discriminação no país, a qual tinha (e ainda tem) o negro como maior vítima.
Na justificação apresentada ao projeto de lei 668 de 1988 (projeto este que seria o precursor da Lei 7.716/89), Carlos Alberto Caó[26], deputado responsável pelo esboço inicial, destacava as desigualdades que sofriam os negros, os quais não teriam ainda conquistado a cidadania e embora não fossem mais escravos, não tinham acesso a diferentes planos da vida econômica e política.
Carlos ainda ressaltava que até aquele momento a discriminação racial era tratada como mera contravenção penal a qual não mais surtia efeitos práticos. O país precisava criminalizar o racismo para que seus autores pudessem ser verdadeiramente punidos com penas mais duras, de modo que pudessem sentir as consequências de seus atos.
Apresentado em 11 de maio de 1988, o projeto de lei 668 teve um trâmite rápido, sem grandes modificações do texto original (somente quatro vetos), sendo que sua redação final foi concluída em 15 de setembro de 1988.
Em 5 de janeiro de 1989 foi publicada e começou a vigorar a lei 7.716/89, a qual passaremos a estudar mais detalhadamente.
5.2 Das disposições gerais e do objeto da lei
Num primeiro momento, talvez influenciados pela epígrafe da lei 7.716/89, poderíamos ser levados a concluir que a referida lei somente define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Todavia, após as modificações incluídas pelas Leis nº 9.459 de 1997, 12.288 de 2010 e 12.735 de2012 a lei passou a punir também os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de etnia, religião ou procedência nacional.
Conforme visto, os conceitos de raça, cor e etnia foram estabelecidos logo no primeiro capítulo deste trabalho, cabendo agora definirmos os termos religião e procedência nacional.
Religião é a crença ou culto praticado por determinado grupo social ou a manifestação de crença praticada por meio de ensinos, cerimônias ou rituais próprios.
Procedência nacional, como o próprio nome indica, é o lugar de origem da pessoa, ou seja, a nação de onde provém. Cabe aqui uma ressalva, tendo em vista que embora o termo procedência nacional sugira que o preconceito neste caso decorre da nacionalidade da vítima, deve-se fazer uma interpretação extensiva do termo uma vez que o legislador disse menos do que deveria isto porque procedência nacional deve abranger também a região de onde provém o ofendido, ainda que no mesmo país do ofensor.
A este respeito, destacamos o entendimento do ilustre professor Christiano Jorge Santos, in verbis[27]:
“Caso fosse entendida a expressão procedência nacional como proveniência de outro país, estar-se-ia penalmente protegendo situação pouco significativa no Brasil, em detrimento de hipótese casa vez mais preocupante e facilmente verificada no dia a dia, qual seja, a discriminação e o preconceito contra brasileiros de determinadas regiões do país, principalmente os migrantes nordestinos.”
Todo fato humano que propositada ou descuidadamente lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social é considerado crime.[28] A lei 7.716/89 possui treze crimes os quais estão previstos nos artigos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10, 11, 12, 13, 14 e 20.
Convém destacarmos que para a configuração de todos os crimes previstos na “Lei Antipreconceito” (7.716/89) é necessário que a conduta ocorra em razão de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (artigo 1º).
Assim, a pessoa que nega ou obsta emprego em empresa privada a pessoa homossexual por motivo de discriminação, não incorrerá na pena prevista no artigo 4º da Lei 7.716/89 uma vez que a lei não abrangeu a discriminação ou o preconceito resultante de opção sexual.
Falando ainda dos aspectos gerais da lei, importante ressaltar que os crimes nela previstos, em regra, são de forma livre, ou seja, podem ser cometidos por qualquer meio elegido pelo agente.
Admite-se a coautoria e a participação em todos os crimes previstos na “Lei Antipreconceito” e a ação penal será sempre pública incondicionada.
O elemento subjetivo é comum a todos os delitos sendo este o dolo que consiste na vontade de discriminar, segregar, mostrar-se superior a outro ser humano.
O bem jurídico tutelado pela lei ou aquilo que ela visa proteger é a igualdade uma vez que é um direito fundamental de todo ser humano, devendo todas as pessoas serem tratadas da mesma forma haja vista que a Constituição Federal não criou distinções entre as pessoas e que a República Federativa do Brasil tem como objetivo a criação de uma sociedade livre, justa e solidária, além de ter o repúdio ao racismo como princípio (Constituição Federal, art. 3º, I; art. 4º, VIII e art. 5º, “caput”).
Os crimes de preconceito e racismo não são considerados hediondos ou equiparados, de modo que os agentes que os praticarem poderão ser beneficiados com a progressão de regime de pena mediante o cumprimento de mais de 1/6 ainda que reincidentes e poderão obter o livramento condicional após o cumprimento de mais de 1/3 ou ½ da pena caso seja, respectivamente, primário ou reincidente.
Em razão do disposto no artigo 5º, inciso XLII, os crimes previstos na lei 7.716/89 são imprescritíveis e inafiançáveis, sujeitos à pena de reclusão.Por este motivo, não há qualquer possibilidade de se tolerar leis penais voltadas à punição de atos de discriminação racial com figuras típicas de contravenção penal ou com delitos apenados, tão somente, com detenção[29].
Em que pese a lei em estudo não disponha acerca da possibilidade de concessão dos institutos da graça, indulto e anistia, entendemos ser tais institutos incompatíveis com a finalidade da lei.
A graça é a clemência individual concedida pelo Presidente da República à determinada pessoa enquanto que o indulto é a clemência destinada a um grupo de sentenciados em caráter de generalidade por meio de decreto. Os decretos que concedem indulto geralmente são taxativos quanto a não extensão do benefício aos condenados por crimes de racismo, tortura, terrorismo e de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.
A anistia é a declaração pelo Poder Público de que determinados fatos se tornaram impuníveis por motivo de utilidade social. Embora a “Lei Antipreconceito” não vede expressamente a aplicação da anistia aos crimes nela contidos, pela própria definição do instituto podemos concluir que este jamais será aplicado aos crimes de racismo e preconceito.
A Constituição Federal tratou o crime de racismo como um dos únicos dois crimes imprescritíveis existentes no Brasil. Isso serviu para destacar a preocupação que o legislador tinha em repudiar e evitar tais condutas haja vista que o Estado poderá punir o agente responsável em qualquer tempo.
Assim, tendo em vista a preocupação que o legislador exarou no texto constitucional, por óbvio que jamais os crimes de racismo e preconceito se tornarão impuníveis por motivo de utilidade social, sendo, por esse motivo, a anistia incompatível com os crimes previstos na Lei 7.716/89.
Outra questão que merece nosso destaque diz respeito à aplicação da suspensão condicional do processo previsto na lei 9.099/95.
O professor Christiano Jorge Santos entende ser incabível a aplicação do “sursis processual” aos crimes da lei 7.716/89, pois ainda que presentes os requisitos do artigo 89 da Lei 9.099/95[30], o agente criminoso não conseguiria preencher os requisitos do artigo 77 do Código Penal[31], em especial no tocante aos motivos e as circunstâncias do crime. No entendimento do autor, não haveria justificativa ou motivo plausível autorizador para discriminar alguém.
Não obstante a nobreza e propriedade dos argumentos suscitados pelo ilustre professor, ousamos,data vênia, discordar de seu entendimento.
As reformas introduzidas na lei 7.716/89 não fizeram qualquer ressalva quanto à aplicação do instituto da suspensão condicional do processo, assim como também não fez a lei 9.099/95 ou qualquer outra lei ordinária. Ainda que se considere a interpretação sistemática da Constituição Federal, da Lei 9.099/95, da Lei 7.716/89 e do Código Penal, devemos lembrar que não existe analogia in malam partem no Direito Penal e que no tocante ao direito de punir e à liberdade das pessoas deve sempre prevalecer a interpretação mais favorável ao réu. Desta forma, presentes os requisitos autorizadores da suspensão condicional do processo, mister sua aplicação. Neste sentido:
“RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE RACISMO. ACEITAÇÃO DO SURSIS PROCESSUAL. DESCLASSIFICAÇÃO. DESCABIMENTO.
1. "O benefício da suspensão condicional do processo, acordado pelas partes nos termos do artigo 89 da Lei 9.099/95, retira, dos recorrentes, o interesse de agir, condição precípua para o conhecimento da ação." (RHC 9.121/SP, da minha Relatoria, in DJ 9/4/2001).
2. Precedentes do STF e do STJ.
3. Recurso improvido. (RHC 12416 SP 2002/0015015-2. Relator(a):Ministro HAMILTON CARVALHIDO Julgamento: 19/09/2002 Órgão Julgador:STJ T6 – SEXTA TURMA Publicação: DJ 23/06/2003 p. 442) (grifos nossos)”
Conforme disposto no artigo 16 da Lei 7.716/89, são efeitos da condenação: a) perda do cargo ou função pública, para o servidor público, e b) a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular por prazo não superior a três meses. Estes efeitos não são automáticos, razão pela qual devem estar expressos e devidamente motivados na sentença condenatória.
Por fim, em relação à competência para julgar os crimes de preconceito e discriminação, estes incumbirão, em regra, à justiça comum estadual.
5.3 Dos crimes em espécie
5.3.1 Discriminação no trabalho
5.3.1.1 Discriminação no serviço público
“Art. 3º Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos.
Pena: reclusão de dois a cinco anos.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar a promoção funcional.”
O artigo 3º, “caput”, trata-se de um tipo alternativo misto haja vista que a prática de qualquer um de seus núcleos, já configura o crime.
Os tipos objetivos são impedir, que significa interromper, e obstar que significa causar dificuldade ou embaraço.
Neste delito, o sujeito ativo será a pessoa que detém poder suficiente para impedir ou obstar esse acesso, não sendo qualquer um[32], tratando-se, portanto, de crime próprio.
O objeto jurídico é a preservação da igualdade dos seres humanos perante a lei[33].
Não se exige o efetivo prejuízo para a pessoa discriminada, razão pela qual estamos diante de um crime formal.
Interrupção ou o embaraço a qualquer cargo da Administração Direta, Indireta ou das concessionárias de serviços públicos pode ser cometidos por qualquer meio, desde que comissivos.
O parágrafo único prevê a aplicação da mesma pena de reclusão de 2 a 5 anos para aqueles que por motivos de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstam a promoção funcional.
Tal como ocorre com o “caput”, aqui o crime também é próprio já que somente pode ser praticado pelo encarregado apto a conceder a promoção.
Os delitos previstos no artigo 3º não são passíveis de aplicação da suspensão condicional do processo em razão da pena mínima ser superior a um ano de reclusão.
5.3.1.2 Discriminação nas forças armadas
“Art. 13. Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas.
Pena: reclusão de dois a quatro anos.”
As Forças Armadas são o conjunto de instituições e forças nacionais permanentes de defesa e combate. Fazem parte das forças armadas, o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, as polícias militares e os corpos de bombeiros.
O sujeito ativo é a pessoa que tem a incumbência de admitir o ingresso de alguém ao serviço militar. Pode ser tanto um funcionário subalterno, como um alto dirigente[34].
Assim como no caso do artigo anterior, trata-se de delito formal, de forma livre e comissivo, no qual não se admite a aplicação do sursis processual.
5.3.1.3 Discriminação na iniciativa privada
“Art. 4º Negar ou obstar emprego em empresa privada.
Pena: reclusão de dois a cinco anos.
§ 1oIncorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes do preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica:
I – deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores;
II – impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional;
III – proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário.
§ 2oFicará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.”
O proprietário da empresa, gerente, presidente ou a pessoa responsável pela contratação de funcionários que recusa ou dificulta a obtenção do emprego em empresa privada pelo candidato por motivo de discriminação ou preconceito de raça, de cor, etnia, religião ou procedência nacional incorre nas penas previstas no artigo 4º da Lei 7.716/89.
Trata-se de tipo misto alternativo em que a prática de uma ou mais condutas implica no cometimento de uma só infração penal, desde que no mesmo cenário com relação à mesma pessoa.
O delito previsto no artigo 4º “caput” é classificado ainda como próprio, formal, de forma livre, comissivo, instantâneo, unissubjetivo ou plurissubsistente, o qual admite tentativa.
O parágrafo primeiro do artigo em estudo traz uma figura equiparada a qual se comina a mesma pena de reclusão de dois a cinco anos, para o agente que por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes do preconceito de descendência ou origem nacional ou ética deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado, impedir a ascensão funcional ou proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, principalmente em relação ao salário.
Guilherme de Souza Nucci comenta que a descrição formulada no “caput” do parágrafo primeira é desnecessária, pois todas as figuras previstas nesta Lei, tem como padrão a discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Entretanto, por razão inexplicável o legislador inovou neste parágrafo, introduzindo a expressão “práticas resultantes do preconceito de descendência”, algo inexistente no artigo primeiro da Lei[35].
Assim como no “caput” do artigo 4º, o sujeito ativo também é qualificado uma vez que precisa ter o poder para realizar os núcleos do tipo (deixar de conceder os equipamentos, impedir a ascensão funcional e proporcionar ao empregado tratamento diferenciado). Trata-se, portanto, de crime próprio.
Por fim, o parágrafo segundo traz outro crime próprio, na qual o agente encarregado de recrutar trabalhadores estará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade se nos anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento exigir aspectos e aparência próprios de raças ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.
5.3.2 Discriminação na educação
A Constituição Federal assegura a todos o direito à educação. Todavia, a lei 7.716/89 previu a hipótese da recusa desta por motivos de discriminação em seu artigo 6º que reza:
“Art. 6º Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau.
Pena: reclusão de três a cinco anos.
Parágrafo único. Se o crime for praticado contra menor de dezoito anos a pena é agravada de 1/3 (um terço).”
O sujeito que não aceitar, que proibir ou interromper a inscrição ou a entrada de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau por motivos de discriminação ou preconceito estará incorrendo no crime do artigo 6º da lei em estudo.
Trata-se novamente de tipo misto alternativo, no entanto, deve-se lembrar que as condutas são excludentes (quem recusa, está negando; quem impede, está recusando; quem nega, está impedindo).
O sujeito passivo é a pessoa discriminada e o sujeito ativo é o responsável pelo estabelecimento, podendo ser o dirigente ou o funcionário encarregado de efetivar as matrículas.
A pena será aumentada de um terço se o sujeito passivo for menor de dezoito anos.
O delito pode ser classificado como próprio, formal (já que independe da ocorrência de prejuízo), de forma livre, comissivo e instantâneo. Admite-se ainda a tentativa na forma plurissubsistente (quando cometido por mais de um ato).
5.3.3 Discriminação no comércio
A “Lei Antipreconceito” tipificou como crime a conduta de recusar ou impedir o acesso a diversos estabelecimentos comerciais por motivos de preconceito ou discriminação em razão da raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Com exceção da discriminação ocorrida em hotéis ou similares, a pena a todos os demais crimes ocorridos em estabelecimentos comerciais estão sujeitos à reclusão de um a três anos, sendo passíveis de suspensão condicional do processo.
Conquanto os crimes sejam bem parecidos em razão de todos possuírem o mesmo tipo objetivo (recusar ou impedir acesso), passaremos a estudar cada artigo destacando aquilo que for mais relevante.
5.3.3.1 Discriminação em estabelecimentos comerciais
“Art. 5º Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador.
Pena: reclusão de um a três anos.”
O termo estabelecimento comercial deve ser entendido como qualquer lugar de venda de bens ou serviços de qualquer natureza, que não seja um daqueles previstos nos artigos 7º, 8º, 9º ou 10º.
Desta forma, o comerciante ou comerciário que não permitir a entrada, o trânsito ou permanência de pessoa no estabelecimento comercial ou que negar servir, atender ou receber cliente ou comprador por motivos de discriminação estará incorrendo no crime do artigo 5º.
Christiano Jorge Santos entende que pela má redação do artigo, para a configuração do mesmo faz-se necessário que se recuse ou impeça o acesso de alguém à loja e também que ocorra negativa de atendimento, recebimento ou serviço ao cliente ou comprador[36].
Todavia, esse não é o entendimento majoritário da doutrina uma vez que reconhecer a necessidade da ocorrência de todos os verbos do tipo numa única redação reduziria em muito o âmbito de ocorrência deste crime.
Com relação à consumação do delito, a doutrina diverge em três correntes: a) trata-se de crime formal, se consuma com a negação do atendimento, mesmo que a vítima consiga ser atendida por outra pessoa[37], não admitindo tentativa já que a conduta de negar é unissubsistente; b) é crime formal, mas se a conduta for realizada de forma plurrisubsistente admite tentativa[38]; c) trata-se de crime material, que exige resultado naturalístico, de modo que se a vítima conseguir ser atendida por outra pessoa haverá tentativa[39].
5.3.3.2 Discriminação em hotéis ou similares
“Art. 7º Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar.
Pena: reclusão de três a cinco anos.”
Aquele que impede a entrada ou a permanência ou não aceita como hóspede qualquer pessoa pelos motivos constantes no artigo 1º da lei em comento incorre nas penas do artigo 7º.
Ricardo AntonioAndreucci[40] entende que o sujeito ativo deste crime pode ser qualquer pessoa. Guilherme de Souza Nucci, por sua vez, destaca que o sujeito ativo sempre será o proprietário ou o responsável pelo hotel, pensão, estalagem ou estabelecimento similar[41].
No tocante à consumação do delito, observa-se novamente diversos entendimentos doutrinários: a) na modalidade impedir o crime é material e só se consuma se houver o efetivo embargo, na modalidade recusar o crime é formal, se consuma com a mera recusa ainda que a vítima consiga a hospedagem[42]; b) o crime é material nas duas modalidades[43]; c) o crime é formal nas duas modalidades[44].
Com relação à tentativa, esta só é possível em relação ao verbo impedir.
5.3.3.3 Discriminação em restaurantes ou similares
“Art. 8º Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público.
Pena: reclusão de um a três anos.”
No tocante ao tipo objetivo, aqui cabe os mesmos comentários feitos ao artigo anterior em relação aos verbos do tipo, relembrando-se, contudo, que aqui a discriminação ocorrerá em restaurantes, bares, confeitarias ou locais semelhantes abertos ao público.
Como no caso do artigo anterior, há duas posições doutrinárias sobre quem pode ser o sujeito ativo deste crime. A primeira corrente entende que qualquer pessoa interna ou externa ao estabelecimento pode impedir o acesso da vítima, mas a recusa somente pode ser praticada por funcionário do estabelecimento. A segunda corrente entende que em qualquer das modalidades (impedir ou recusar) o crime é próprio e só pode ser cometido por funcionário do hotel.
5.3.3.4 Discriminação em clubes e casa de diversão
“Art. 9º Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público.
Pena: reclusão de um a três anos.”
O agente que não permitir a entrada ou permanência ou ainda não disponibilizar a fruição dos serviços prestados em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público a qualquer pessoa por motivos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional estará incorrendo no crime previsto no artigo 9º e consequentemente estará sujeito à pena de reclusão de um a três anos.
Em relação ao sujeito passivo e à consumação do delito, vigoram as mesmas discussões estudadas nos artigos anteriores razão pela qual remetemos o leitor aos mesmos.
5.3.3.5 Discriminação em cabeleireiros e similares
“Art. 10. Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades.
Pena: reclusão de um a três anos.”
Aquele que interrompe a entrada ou passagem ou que se recusa a atender e prestar o serviço em salões de cabelereiros, barbearias, termas, casas de massagem ou estabelecimentos similares pessoa por motivos de preconceito e discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, incorre neste crime do artigo 10.
No que diz respeito a quem pode praticar este crime, novamente há duas posições. A primeira corrente, defendida por Christiano Jorge Santos, entende que na modalidade de impedir o acesso qualquer pessoa, interna ou estranha ao estabelecimento poderá praticar o crime, enquanto que na modalidade recusar somente funcionário do estabelecimento poderá praticar o crime. A segunda corrente, que tem como um de seus idealizadores Guilherme de Souza Nucci, diz que o crime será sempre próprio, independentemente da modalidade, de modo que somente o funcionário do estabelecimento poderá ser sujeito ativo deste crime.
O sujeito passivo em primeiro lugar é a sociedade e em segundo a pessoa cujo direito de usufruir os serviços fora negado.
Com relação à consumação, as posições são as seguintes: a) na modalidade impedir o crime é material, na modalidade recursar o crime é formal[45]; b) o crime é formal nas duas modalidades. A tentativa só será possível para o verbo impedir[46].
5.3.4.Discriminação na vida social
5.3.4.1.Discriminação em edifícios públicos e residenciais
“Art. 11. Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos:
Pena: reclusão de um a três anos.”
O sujeito que impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos a qualquer pessoa pelos motivos constantes no artigo 1º da Lei 7.716/89, estará sujeito à pena de reclusão de um a três anos.
No que tange ao sujeito ativo deste crime, a doutrina contempla duas posições: a primeira indica que qualquer pessoa poderia praticar esse crime, ainda que não trabalhe ou more no edifício, enquanto que a segunda posição entende que o crime só pode ser cometido pela pessoa que tem o encargo de disciplinar a entrada em prédios públicos ou privado (v.g. síndicos e encarregados da segurança).
A doutrina diverge em relação ao momento consumativo, sendo que parte dela compreende que o crime é material e só se consumaria com a efetiva obstrução à entrada, permanência ou ao uso de escadas ou elevadores, e outra parte entende que o crime é formal e consuma-se mesmo que a vítima consiga o ingresso no edifício.
Independentemente da posição adotada em relação ao momento consumativo, a tentativa é perfeitamente possível.
5.3.4.2. Discriminação em transportes públicos
“Art. 12. Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido.
Pena: reclusão de um a três anos.”
Transportes públicos são veículos destinados ao uso do povo. O sujeito que se vê impedido de entrar ou usufruir desses transportes seja em aviões, navios, ônibus, trens e etc. em razão de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional estará sendo vítima do crime previsto no artigo 12 da Lei 7.716/89.
Tendo em vista que o dispositivo consignou somente o termo “transportes públicos”, surge a questão se o serviço de táxi estaria ou não incluído neste termo.
Aqui novamente a doutrina se diverge. Guilherme de Souza Nucci[47] entende que o serviço de táxi estaria incluído neste artigo uma vez que o mesmo se vale da interpretação analógica do artigo, qual seja “qualquer outro meio de transporte concedido”. Para o autor o taxista presta um serviço público uma vez que esta atividade é autorizada e fiscalizada pelo poder público.
Christiano Jorge Santos[48], por sua vez, ensina que o artigo não previu os meios de transportes particulares, como os táxis que funcionam após a obtenção de licenças, de tal sorte que pelo princípio da reserva legal a conduta seria relativamente atípica nessa hipótese, cabendo somente eventual condenação pelo crime subsidiário previsto no artigo 20 da “Lei Antipreconceito”.
As mesmas divergências e argumentos são verificados em relação ao ônibus escolar e o fretado, disponibilizados por empresa para transporte de seus trabalhadores ou alunos.
Guilherme de Souza Nucci defende que o crime em análise é próprio haja vista que só poderia ser cometido pela pessoa responsável por controlar o acesso e o uso do meio de transporte. Christiano Jorge Santos compreende que trata-se de um crime comum uma vez que qualquer pessoa poderia impedir a vítima de ingressar naquele meio de transporte por motivos preconceituosos.
Cabe aqui as mesmas observações feitas ao artigo anterior em relação ao momento consumativo já que há divergência quanto ao crime ser formal ou material. Seja qual for o entendimento, o crime admite a tentativa.
5.3.4.3 Discriminação no casamento e na convivência familiar
“Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social.
Pena: reclusão de dois a quatro anos.”
Aquele que interrompe ou dificulta por qualquer meio ou forma a união solene civil ou religiosa de duas pessoas ou mesmo a convivência familiar ou social por motivos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional estará incorrendo no crime previsto no artigo 14 da Lei 7.716/89.
A doutrina é unânime ao afirmar que qualquer pessoa poderá ser sujeito ativo deste crime.
Todavia, há grande discordância tanto na doutrina quanto na jurisprudência em relação ao momento consumativo. Há quem entenda que o crime é material e só se consuma com o efetivo impedimento do casamento ou da convivência[49]. Por outro lado, há quem defenda que o crime é formal e se consuma mesmo que não se consiga impedir o casamento ou a convivência[50]. Qualquer que seja o caso, a tentativa é possível.
5.3.5 Induzimento, incitação ou prática de discriminação
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.”
O artigo 20 é um crime subsidiário uma vez que o agente que praticar condutas discriminatórias que não estejam expressamente consignadas nos artigos anteriores, incorrerá no crime deste artigo.
O legislador se preocupou em incriminar a conduta daqueles que incentivam terceiros a praticar a discriminação, bem como daqueles que induzem e estimulam tal prática.
O agente que induzir ou incitar terceiro somente estará sujeito às penas do artigo 20 caso o terceiro não opte por praticar a conduta discriminatória. Isto porque caso o terceiro induzido cometa a prática discriminatória o agente que o induziu responderá como partícipe pelo mesmo crime desse.
Qualquer pessoa pode cometer o crime previsto do artigo 20, razão pela qual estamos diante de um crime comum.
O sujeito passivo é tanto a sociedade quanto a pessoa que sofreu o ato discriminatório.
É um crime formal que independe de um prejuízo concreto, sendo perfeitamente possível a ocorrência da tentativa.
Importante salientar que caso o crime seja cometido por meio de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, a pena será de reclusão de dois a cinco anos e multa, nos termos do parágrafo 2º do artigo 20 da Lei 7.716/89.
Sendo o caso do crime ser praticado por meio de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo, a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio ou a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. A destruição do material apreendido constituirá efeito da condenação.
5.3.6 Propaganda nazista
“§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.”
O parágrafo primeiro trata-se de uma especialização da conduta prevista no “caput” do artigo 20 haja vista que a divulgação do nazismo é uma forma de induzir e incitar a discriminação e o preconceito.
O dicionário Aurélio, define nazismo como “movimento chauvinista de direita, alemão, nos moldes do fascismo, imperialista, belicista, e cuja doutrina consiste numa mistura de dogmas e preconceitos a respeito da pretensa superioridade da raça ariana, sistematizados por Adolf Hitler (1889-1945) em seu livro Minha Luta; o fascismo alemão [sin. Nacional-socialismo]”.
Assim, o agente que produz, vende, oferece, compra, troca, entrega, disponibiliza ou mostra emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada para fins de divulgação do nazismo estará cometendo o crime do §1º do artigo 20 da lei em comento.
Trata-se de crime comum e formal, sendo possível a punição em sua forma tentada.
5.4 Conflito aparente de normas: crime de racismo x injúria qualificada pelo preconceito.
A chamada injúria qualificada pelo preconceito, prevista no artigo 140 § 3º do Código Penal é comumente confundida com os crimes previstos na Lei 7.716/89. Este erro é mais comum quando praticado por meios televisivos que noticiam, por exemplo, que certo jogador de futebol foi xingado de “macaco” durante evento futebolístico sendo que o agente estaria supostamente incorrendo no crime de preconceito previsto da lei 7.716/89. Todavia, seria este o caso?
Dispõe o artigo 140 §3º do Código Penal, in verbis:
“§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
Pena – reclusão de um a três anos e multa.”
Segundo Cezar Roberto Bitencourt injuriar é ofender a dignidade ou o decoro de alguém. A injúria, que é a expressão da opinião ou conceito do sujeito ativo, traduz sempre desprezo ou menoscabo pelo injuriado. É essencialmente uma manifestação de desprezo e de desrespeito suficientemente idônea para ofender a honra da vítima no seu aspecto interno[51].
Na injúria, ao contrário da calúnia e difamação, não há imputação de fatos, mas emissão de conceitos negativos sobre a vítima.
Para a caracterização do crime, é necessário que a injúria chegue ao conhecimento do ofendido ou de qualquer outra pessoa, pois a ofensa proferida ou executada que não chega ao conhecimento de ninguém não existe juridicamente[52].
Quando a injúria for cometida mediante a utilização de elementos referentes a raça, cor, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, estaremos diante da injúria qualificada pelo preconceito.
Fernando Capez explica que qualquer ofensa à dignidade ou decoro que envolva algum elemento discriminatório, como, por exemplo, “preto”, “japa”, “turco” ou “judeu”, configura o crime de injúria qualificada. Se, porém, a hipótese envolver segregação racial, o crime será de racismo (lei n. 7.716/89); por exemplo: “impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos” (art.3º); “impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos” (art. 11); “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (art. 20)[53].
O racismo constitui delito mais grave que a injúria. André Estefam[54] salienta que na injúria há o assaque de expressões ofensiva enquanto que no racismo o agente nega o exercício de algum direito ao ofendido por motivos de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional.
Devemos ainda ressaltar que a injúria deve ser direcionada a uma pessoa específica. Quando o agente proferir palavras pejorativas genericamente a toda uma raça, etnia etc. estaremos diante do crime previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89.
No caso do crime de injúria qualificada pelo preconceito, a ação penal será pública condicionada à representação da vítima ou de seu representante legal.
Se num mesmo contexto fático o agente praticar injúria qualificada pelo preconceito e o crime de racismo da lei 7.716/89, aquele será absorvido por este em razão do princípio da consunção. Não é outro o entendimento jurisprudencial:
“QUEIXA-CRIME – INJÚRIA QUALIFICADA VERSUS CRIME DE RACISMO – ARTIGOS 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL E 20 DA LEI Nº 7.716/89. Se a um só tempo o fato consubstancia, de início, a injúria qualificada e o crime de racismo, há a ocorrência de progressão do que assacado contra a vítima, ganhando relevo o crime de maior gravidade, observado o instituto da absorção. Cumpre receber a queixa-crime quando, no inquérito referente ao delito de racismo, haja manifestação irrecusável do titular da ação penal pública pela ausência de configuração do crime. Solução que atende ao necessário afastamento da impunidade. (STF. Processo: Inq 1458 RJRelator:MARCO AURÉLIO Julgamento:14/10/2003Órgão Julgador:Tribunal Pleno Publicação:DJ 19-12-2003PP-00050 EMENT VOL-02137-01 PP-00077)”
Pelo que fora exposto, podemos concluir que o agente que xinga especificamente um jogador de futebol de “macaco” durante uma partida, não incorre no crime de racismo e sim no de injúria qualificada pelo preconceito, nos termos do artigo 140 §3º do Código Penal.
6 Da análise prática e crítica da lei 7.716/89 frente a realidade brasileira atual: casos recentes
No começo do ano de 2013 fomos “surpreendidos” com dois casos de racismo que foram (com razão) alvos de muitas críticas por meio da mídia televisiva e impressa. O primeiro caso ocorreu em uma farmácia, quando um menino negro, de 11 anos, foi interpelado por um dos funcionários da loja, que não percebeu que o garoto estava acompanhado pela avó e começou a perguntar se aquele “negrinho” estaria incomodando. O outro caso ocorreu na Barra da Tijuca, bairro nobre do Rio de Janeiro, quando o consultor Ronald Munk e a mulher Priscilla Celeste denunciaram que seu filho mais novo, de sete anos, foi vítima de racismo na concessionária BMW. O menino negro é filho adotivo do casal e enquanto conversavam com o gerente de vendas sobre a compra de um novo carro, o filho se aproximou e foi enxotado pelo gerente. Em seguida, o funcionário voltou para o casal e justificou a atitude com a seguinte frase: "eles pedem dinheiro, incomodam os clientes".
No final de 2011, um garoto negro estrangeiro de seis anos de idade foi retirado de um restaurante em São Paulo enquanto aguardava sentado a refeição que sua mãe traria. A justificativa do funcionário: achou que o garoto era um pedinte. Em 2012, a professora de religião da Universidade Estadual do Pará chama o segurança da universidade de “macaco” e é denunciada por alunos.
Em abril de 2013, a polícia de Minas Gerais consegue prender um neonazista após o mesmo divulgar fotos em rede social nas quais enforcava um morador de rua. Posteriormente, o acusado foi beneficiado com um habeas corpus e encontra-se respondendo ao processo em liberdade por formação de quadrilha, racismo e divulgação do nazismo[55].
Em meados de 2010, a copeira Sônia ia de ônibus para casa quando, no meio do caminho, um passageiro levantou-se, cuspiu no rosto dela e a chamou de “negra safada”. “Depois disso, ele veio para cima de mim, como se fosse me bater. A minha sorte é que um homem impediu a agressão. Ele pediu ao motorista que não parasse o veículo e descemos direto na delegacia para prestar queixa”, conta Sônia. “Passei muito tempo sem andar de ônibus para me recuperar do medo e da vergonha pelos quais passei. O homem que me ajudou também é negro e ouviu xingamentos do rapaz que cuspiu em mim. Nunca pensei que a discriminação por causa da cor da pele pudesse chegar a esse ponto.” Quem agrediu Sônia hoje responde por injúria racial no processo que corre na Justiça[56].
Mais recentemente, um vereador do município do Rio de Janeiro foi indiciado por apologia ao crime após tecer comentários em que defendia a cassação do direito de voto aos mendigos e ainda incentivava que todos deveriam ser mortos e virar ração para peixe[57].
As situações mencionadas acimas são apenas alguns exemplos da discriminação existente no Brasil. Esses casos, sem dúvida nenhuma, não representam nem dez por cento da quantidade de casos de preconceito que deve ocorrer diariamente no país, os quais sequer chegam, na maioria das vezes, a ser registrados perante as autoridades.
Alguns mais céticos talvez argumentassem que o Brasil é um país “subdesenvolvido”, que carece ainda de educação e que por isso seria natural que as situações supramencionadas ocorressem aqui.
De fato, o Brasil é um país em desenvolvimento, todavia o racismo não é um problema somente nacional.
Na Alemanha, a quarta maior economia do mundo, sofre com a proliferação de grupos neonazistas em razão da política frouxa do governo.
Na Suíça, país considerado “de primeiro mundo”, vigésima economia mundial e nono país com melhor índice de desenvolvimento humano, a apresentadora Oprah Winfrey, (uma das mulheres mais ricas dos Estados Unidos e considerada uma das mais influentes no mundo) foi vítima de racismo ao lhe ser negada a exibição de uma bolsa, que segundo a vendedora seria “cara demais para ela”.
Esses dois exemplos servem para demonstrar que o preconceito e o racismo são problemas que assolam o mundo como um todo e que não está necessariamente relacionado ao desenvolvimento econômico de um país.
Voltando a atenção para o Brasil, que é o objetivo deste trabalho, observamos que embora pregue-se que o Brasil é “um país de todos”, a realidade diverge “um pouco” deste slogan.
No capítulo dois verificamos alguns números referente as consequências do preconceito no país. Obviamente que os negros não são o único grupo discriminado no país, mas são um dos que mais sofrem com esta prática. Dentre os grupos que também são comumente vítimas do preconceito podemos citar os homossexuais, os pobres, as mulheres, os idosos, os índios e as pessoas com necessidades especiais.
Conforme verificado no capítulo anterior, a lei 7.716/89 somente tutela os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, de modo que nem todos os grupos sociais supracitados podem se valer dela para garantir seus direitos.
Embora os casos mencionados no início deste capítulo sejam recorrentes na mídia, pouco se houve acerca da punição de seus agentes.
Não há um levantamento oficial sobre as punições pela lei, mas em 2009 o próprio ministro da Igualdade Racial admitiu que são poucos os casos punidos pela lei 7.716/89[58].
Segundo especialistas, a maior parte dos casos de discriminação racial é tipificada pelo artigo 140 do Código Penal, como injúria, que prevê punição mais branda: de um a seis meses de prisão e multa, tornando a lei “Antipreconceito” quase uma lei morta. A falta de punição acaba incentivando práticas racistas.
A falta de punição pode ser exemplificada ao buscarmos decisões jurisprudenciais sobre a aplicação da lei 7.716/89. Ao realizarmos tal pesquisa junto aos Tribunais nacionais encontraremos pouco mais de quarenta decisões.
Em razão da raridade destes, colacionamos abaixo o julgado na qual o Relator Moreira Alves do Superior Tribunal de Justiça expressa um pouco daquilo que fora abordado neste trabalho:
“HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pelé, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais.4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País.6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática.8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma.9. Direito comparado.A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo.10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéiasanti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (Processo: HC 82424 RSRelator(a):MOREIRA ALVESJulgamento: 16/09/2003Órgão Julgador:Tribunal PlenoPublicação: DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524) (grifos nossos)”
Esperamos que com o passar do tempo, a lei 7.716/89 venha a ser aplicada de maneira mais efetiva punindo os responsáveis por práticas discriminatórias. Felizmente, em razão do momento que vive o país no qual se discute muito o debate sobre a diversidade sexual, verifica-se um aumento no registro de queixas de racismo.
De 2011 a 2012, o número de reclamações de discriminação racial feitas à Ouvidoria da Secretaria de Políticas e Promoção da Igualdade Racial (Seppir) praticamente dobrou, de 219 em 2011 a 413 no ano de 2012, um aumento de 88%. Em 2013, até março, haviam sido registradas 78 denúncias. Na internet, as reclamações contra sites com cunho discriminatório também é expressiva. Em 2012, a ONG Safernet, que recebe denúncias de violações dos direitos humanos na web, identificou 5.021 comunidades no Facebook que abrigavam conteúdo racista[59].
Acreditamos que o reconhecimento do problema existente no Brasil por meio de denúncias é o primeiro passo para a solução do problema da discriminação no país.
Não obstante a lei 7.716/89 tenha problemas, os quais serão comentados na conclusão deste trabalho, ela pode ser melhor aplicada.
Atualmente corre no Senado o projeto de alteração do Código Penal (PLS 236/12) que pretende tipificar como crime as condutas de homofobia, bullyng e incluir o racismo no rol de crimes hediondos.
A mera criação e alteração de leis não é suficiente para diminuir os casos de preconceito e discriminação existente no país. O governo deve adotar campanhas, criar comissões, educar a população e criar políticas públicas a fim de tornar realmente o Brasil num país de todos.
Conclusão
Este trabalho procurou abordar de forma sucinta a Lei 7.716/89, tratando dos principais aspectos penais que a permeiam. Foi necessário trazermos a lume alguns conceitos essenciais para a compreensão da lei, bem como levantarmos alguns dados históricos e estatísticos.
No primeiro capítulo definimos alguns termos tais como racismo, preconceito, raça, etnia e discriminação.
No capítulo seguinte, tentamos identificar as possíveis origens do preconceito por meio de uma análise histórica e antropológica. Lá verificamos que somos todos iguais biologicamente e que não existem genes brancos, negros ou amarelos.
Verificamos também que as primeiras ideologias racistas surgiram a partir do século XIX e que estas não possuem qualquer base científica. Ainda no segundo capítulo tratamos da temática do negro e da escravidão e as consequências desta na vida de milhares de pessoas que vivem hoje no Brasil. Vimos por fim que por muito tempo a igreja divulgou que os negros seriam um povo amaldiçoado por Deus devido a uma má interpretação que fizeram a um texto bíblico.
No terceiro capítulo, analisamos o preconceito e o racismo na história do direito positivo pátrio, trazendo os aspectos mais relevantes referente ao tema do trabalho desde as primeiras Ordenações que regeram no Brasil até a Constituição Federal de 1988 e o consequente advento da Lei 7.716/89.
Posteriormente, continuamos com uma análise legislativa sobre o preconceito e o racismo porém baseado em tratados e convenções internacionais do final do século XX. Neste capítulo tratamos um pouco da questão da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos.
No penúltimo capítulo passamos a examinar, de fato, a Lei 7.716/89. Fizemos uma breve referência ao momento histórico do país e os fatos que precederam a criação da lei, falando sobre as discussões ocorridas durante o processo legislativo e tecendo alguns comentários sobre o idealizador da lei.
Numa segunda parte do capítulo cinco, discorremos sobre as disposições comuns da lei e os aspectos penais e processuais, para enfim passarmos ao exame de artigo por artigo da “Lei Antipreconceito”.
No sexto e último capítulo relatamos alguns casos de preconceito no Brasil justamente para evidenciar o problema no país e no mundo, bem como tentamos trazer alguns números acerca da aplicação da Lei 7.716/89.
Diante de tudo o que fora exposto na presente monografia, podemos concluir que o racismo embora velado no país, ele existe e tem consequências devastadoras.
A discriminação e o preconceito é um problema atual e mundial que atinge tantos países de primeiro mundo quanto países em desenvolvimento e toda forma de preconceito e discriminação deve ser combatida por ofender diretamente a dignidade da pessoa humana.
Dentre as problemáticas existentes na lei 7.716/89, destacamos que muitas situações previstas serão dificilmente verificadas na prática face a dificuldade de angariar provas e a interpretação dúbia que a redação de alguns dispositivos permite.
Mister destacar que embora a Constituição tenha previsto o crime de racismo como sendo imprescritível e inafiançável, o que demonstra a intenção do legislador em conceder maior rigidez a tal delito, esta intenção cai por terra frente as penas previstas para os crimes da Lei 7.716/89.
A pena máxima prevista na “Lei Antipreconceito” é a de reclusão de cinco anos. Com as mudanças introduzidas pela Lei 12.403/2011 para um agente primário é praticamente impossível que o mesmo fique preso.
A lei tentou ser rígida, mas na prática o agente condenado por crime da Lei 7.716/89 poderá, na maioria dos casos, ser beneficiado com o sursis processual ou na pior das hipóteses poderá cumprir a pena em regime aberto ou semiaberto. Vale relembrar que em alguns estados, como São Paulo, o regime aberto é cumprido em casa como se fosse um livramento condicional. E se não bastassem tais facilidades, é perfeitamente possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos quando presentes os requisitos.
Atualmente a lei 7.716/89 encontra-se defasada uma vez que necessitaria abordar o preconceito e a discriminação resultantes de outras razões além daquelas previstas no artigo primeiro.
Não há dúvidas de que a lei 7.716/89 foi criada com o objetivo principal de proteger a dignidade das pessoas negras, que são uma das maiores vítimas de racismo e preconceito, tanto que isso é confirmado na justificativa de apresentação do projeto de lei.
Cem anos não foram suficientes para acabar com as conseqüências originárias da escravidão e isso foi verificado por meio dos números apresentados no capítulo dois, de modo que não é absurdo afirmar que os brasileiros possuem uma pré-disposição em serem preconceituosos.
Os desequilíbrios históricos continuam afetando grupos de discriminados, fazendo com que as gerações sucessivas herdem as desvantagens e os problemas de seus antecessores.
É bem verdade que o governo tem tentado minorar as diferenças e tem criado programas a fim de promover a igualdade. Como exemplo de tais programas, podemos citar as cotas raciais nas universidades públicas.
Obviamente que todos esses programas devem ser adotados com cautela para que não se crie uma desigualdade em relação a outras pessoas com outra origem étnica que se encontrem na mesma situação.
A temática das cotas raciais é uma questão muito discutível e controvertida que foge ao objetivo pretendido neste trabalho.
De qualquer forma, o que devemos ter em mente é que o racismo e o preconceito é um mau que só se combate com educação e com penas mais severas que punam efetivamente os responsáveis por tais crimes.
Devemos reconsiderar aquilo que é aceitável, aquilo que é engraçado e nos reavaliarmos quando fazemos alguns comentários depreciativos ou rimos de piadas de humor negro que muitas vezes possuem um cunho pejorativo ou preconceituoso a determinadas raças ou pessoas de determinadas regiões.
Ainda, em razão dos recentes acontecimentos noticiados na mídia, o legislador deveria reavaliar o limite das imunidades parlamentares e punir os agentes, independentemente de quem for, pelas palavras e opiniões que manifestam as quais fogem totalmente de suas funções.
A população e o país como um todo deve estar empenhada em combater toda forma de preconceito, discriminação e racismo a fim de que possamos, enfim, construir uma sociedade livre, justa e igualitária!
Informações Sobre o Autor
Aline Albuquerque Ferreira
Advogada em São Paulo. Especialista em direito penal pela Escola Superior do Ministério Público