Resumo: Dentre a série de normas internacionais editadas sobre direitos humanos, ressalta-se a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2009, com status de Emenda Constitucional. Essa norma introduziu a visão social para fins de definição do que vem a ser deficiência. Entretanto, a principal norma brasileira – Decreto 3298, de 1999- que ainda hoje rege os concursos públicos em todo o país, no que tange à análise da condição do candidato a tais vagas, mantém a antiga visão biomédica da deficiência, suprimindo direitos e fomentando uma crescente judicialização, decorrente do conflito entre normas. O objetivo geral deste estudo é demonstrar a ocorrência do conflito entre normas, indicativo da necessidade de fazer valer aquela mais recente, de superior hierarquia normativa.[1]
Palavras-chave: Deficiência. Concurso. Decreto versus Convenção.
Abstract: Among the series of international human rights standards edited , it emphasizes the Convention on the Rights of Persons with Disabilities , ratified by Brazil in 2009 with Constitutional Amendment status. This standard introduced a social vision to define the purpose of coming to be disabled . However, the main Brazilian standard – Decree 3298 of 1999- that still governs public procurement across the country , regarding the applicant's condition analysis to such vacancies , keeps the old biomedical view of disability , suppressing rights and fostering increasing legalization , due to the conflict rules . The aim of this study is to demonstrate the occurrence of conflict between standards , indicating the need to assert that newer, higher legal hierarchy .
Keywords: Disabilities. Tender. Law versus Convention.
Sumário: Introdução. I. Breve histórico e análise conceitual. 1.1 Breve histórico. 1.2 Análise conceitual. II. Situações conflitivas entre normas. 2.1 O Decreto 3298 de 20 de dezembro de 1999: a visão biomédica. 2.2 A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência: a visão social. .III. A interpretação jurisprudencial.3.1 O Poder Judiciário julgando em consonância com o teor da Convenção. 3.2 O caso vivenciado pelo autor e jurisprudência a respeito. 3.3 A discriminação como crime. Considerações Finais. Referências.
Introdução
O objetivo desta pesquisa é demonstrar a ocorrência de possíveis descumprimentos de norma internacional em vigor no Brasil, tendo como foco específico os direitos da pessoa com deficiência que pretenda concorrer às vagas a ela reservadas nos concursos públicos. O tema foi selecionado em razão da experiência que o autor vivencia neste momento, justificando-se também pela constatação de profundas divergências entre o Decreto 3298, de 20 de dezembro de 1999 – alterada pelo Decreto 5296, de 02 de dezembro de 2004 – que ainda hoje rege os citados certames, e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2009, com status de Emenda Constitucional, nos moldes do parágrafo 3º. Do art. 5º. Da Constituição Federal, cujo teor mudou e ampliou a visão sobre o tema. Tal conflito normativo gera insegurança jurídica e suprime direitos, fomentando uma judicialização plenamente evitável, desde que observado o Princípio da Legalidade Estrita, segundo o qual a administração pública só pode fazer o que consta da lei. Não cabendo, em decorrência, interpretações que se desviem do texto da lei supra referida.
No primeiro capítulo, apresento um breve histórico da origem dos direitos humanos; em seguida, analiso alguns conceitos fundamentais sobre o tema central. No segundo, faço um cotejamento entre as referidas normas, seguido do relato da minha expediência pessoal nesta seara. Finalmente, no terceiro capítulo apresento o entendimento da recente jurisprudência, face à crescente judicialização dos impasses surgidos.
I Breve histórico e análise conceitual
1.1 Breve histórico
As ciências humanas e sociais oferecem um vasto conjunto de informações destinadas a mostrarem ao homem atual os caminhos pelos quais trilharam os antepassados, na direção da sociedade moderna, mormente no que tange a suas conquistas e seus direitos. Diante da amplitude do tema, faz-se indispensável a este trabalho uma delimitação, apresentando ao leitor alguns dos conceitos e institutos relacionados aos pontos principais que aqui serão abordados. Tal detalhamento objetiva oportunizar ao interessado, ainda que resumidamente, conhecer do significado dos tratados internacionais e da sua internalização na seara jurídica nacional, além da conceituação do que se entende por deficiência física e da referência aos direitos das pessoas com deficiência para, somente então, adentrarmos no cotejamento entre as normas alienígenas internalizadas e as de nascedouro pátrio.
A conscientização mundial sobre os direitos humanos não se deu de maneira instantânea, intuitiva. É fato relativamente recente e está em permanente evolução. No curso dessa evolução é que se deu um atentar mais consistente para a pessoa com deficiência, marcada por discriminações e exclusões que remontam a longínquas datas, a distantes momentos da vida humana. Segundo Damasceno,
“Em vários momentos essa visão excludente e preconceituosa chegou inclusive a ser positivada na legislação de alguns povos, como, por exemplo, no Código indiano de Manu (1500 a.C.), onde as pessoas com deficiência eram proibidas de suceder, tal como determinado em seu art. 612: “os eunucos, os homens degradados, os cegos, surdos de nascimento, os loucos, idiotas, mudos e estropiados, não serão admitidos a herdar”.[2]
Palumbo tem a seguinte visão sobre o assunto:
“A discriminação das pessoas com deficiência existe desde as civilizações antigas. Porém, com a positivação da dignidade da pessoa humana como um valor jurídico a ser protegido, o que ocorreu logo após a segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional passou a buscar respostas às atrocidades produzidas nas grandes guerras, dando ensejo a um sistema global de proteção aos direitos humanos”.[3]
De fato, o que se constata é que o Pós Guerra revelou-se um período de avanços muito significativos na defesa dos direitos humanos, trazendo consigo ações decisivas para o reconhecimento e adoção de políticas em relação aos direitos dos deficientes. Esclarecendo a causa dessa salutar mudança de paradigma, acrescenta Damasceno:
“[…] após o término da Segunda Guerra Mundial, a sociedade deparou-se com o problema de milhares de soldados vítimas de deficiências ocasionadas pelos combates. Com o fim da Guerra por volta de 1945, os soldados mutilados retornaram para seus lares como heróis e, cientes de tal condição, passaram a exigir serviços de reabilitação, infra-estrutura e acessibilidade das cidades para sua integração”.[4]
Para Joaquín Herrera Flores (apud Piovesan, 2006, p.08) “[…] os direitos humanos compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana.”
Vale dizer, o direito do portador de deficiência existe antes mesmo de reconhecidos e outorgados pelo Estado. Esta, em verdade, é uma concepção de direitos humanos contemporânea, trazida a lume pela Declaração Universal de 1948, reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, em 1993. Sobre o assunto, assim entende Piovesan (2006, p.8):
“Essa concepção é fruto da internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história,surgindo a partir do Pós-Guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana.”
Prossegue Piovesan (2006, p.09), ressaltando que “É nesse cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea.”
Piovesan destaca as grandes mudanças ocorridas nessa fase da história.
Segundo a autora (2006, p.10) o esforço realizado no Pós-Guerra no sentido de reconstruir os fundamentos dos direitos humanos provocou “a emergência do Direito Internacional dos Direitos Humanos”, trazendo consigo (2006, p.11) “a emergência da nova feição do Direito Constitucional ocidental, aberto a princípios e a valores, com ênfase no valor da dignidade humana”.
Canotilho (apud Piovesan, 2006,p.12) acrescenta:
“Os direitos humanos articulados com o relevante papel das organizações internacionais fornecem um enquadramento razoável para o constitucionalismo global. […] É como se o Direito Internacional fosse transformado em parâmetro de validade das próprias Constituições nacionais (cujas normas passam a ser consideradas nulas se violadoras das normas do jus cogens internacional).”
A relevância mundialmente atribuída à atuação dos organismos internacionais, na dinâmica do tema ora estudado, recomenda que elenquemos os diplomas que sobre ele versaram, chegando ao momento atual:
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: dignidade humana é proclamada como valor fundamental, passando a sociedade, a partir de então, a criticar o modelo de isolamento das pessoas com deficiência. A propósito desse diploma, opina Gugel (2006, p.54):
“É consenso que a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) constitui-se no marco da nova concepção mundial sobre o direito de se ter oportunidades, propondo como ideal comum, a ser atingido por todos os povos e todas as nações, que cada indivíduo e cada órgão da sociedade se esforce para promover o respeito aos direitos e liberdades. Entre eles o direito de trabalhar e viver sem ser alvo de humilhações, violência, agressões, desrespeito, perseguições e discriminação.”
Recomendação nº 99 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1955: trata da reabilitação das pessoas deficientes.
Declaração (ONU) dos Direitos do Retardado Mental, de 1971: afirmação de
que as pessoas com deficiência intelectual devem gozar dos mesmos direitos
que os demais seres humanos;
Declaração (ONU) dos Direitos das Pessoas Deficientes, de 1975: pessoas deficientes gozam dos mesmos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais que os demais seres humanos;
Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 1976: proclamou o ano 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD);
Declaração da Assembléia Geral da Onu da Década das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência (1983/1992): finalidade de executar ações do Programa de Ação Mundial relativo a Pessoas com Deficiência, baseado no seguinte tripé: prevenção, reabilitação e equiparação de oportunidades;
Convenção OIT nº 159, da “Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes”, de 1983: informa Maria Aparecida Gurgel (2006, p. 59), dando conta de que tal documento objetivava a reabilitação profissional da pessoa com deficiência, levando-a a obter e conservar um emprego digno, além de induzir os Estados a implementarem políticas de igualdade para os trabalhadores com deficiência devidamente reabilitados;
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1978: ratificada pelo Brasil em 1992, é conhecida por Pacto de São José da Costa Rica; define os direitos humanos que os Estados ratificantes se comprometam internacionalmente a respeitar, configurando verdadeira garantia de respeito a esses direitos;
Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de Discriminação contra as pessoas Portadoras de Deficiência, de 1999: conhecida por Convenção de Guatemala, foi o primeiro documento regional que assumi o caráter vinculante no tocante aos direitos das pessoas com deficiência;
Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde, de 2001: trata-se do resultado da revisão, pela OMS, d seu critério de classificação internacional sobre o tema da deficiência. Conforme Damasceno:
“Esta classificação traz uma alteração substancial relativamente à classificação anterior, a qual era pautada no critério biomédico. Passa a usar o termo “deficiência” para expressar o fenômeno multidimensional resultante da interação entre as pessoas e seus ambientes físicos e sociais, ou seja, adota de forma explícita o modelo social de deficiência.” [5]
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006:
conhecida por Convenção de Nova York sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; diploma que, juntamente com seu Protocolo Facultativo foi assinado em março de 2008. Ratificado pelo Congresso Nacional Brasileiro através do Decreto Legislativo n.º 186/2008, promulgado através do Decreto n.º 6.949, de 25 de agosto de 2009.
A respeito da citada Convenção, afirma Damasceno:
“Um ponto importante a ser destacado é que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi a primeira convenção internacional sobre direitos humanos a ser incorporada com status de Emenda Constitucional, uma vez que seguiu os termos do novo §3º, do art. 5º, do texto constitucional de 1988”.[6]
1.2 Análise conceitual
Para Maria Aparecida Gugel (2006,p.6),
“O primeiro fundamento da ordem jurídica é o Direito Natural. Direito que decorre da natureza das coisas. Engloba os direitos humanos fundamentais, ou seja, aqueles que são condição de existência da pessoa humana”.
Pensamento que Gugel (2006, p.11) complementa da seguinte maneira:
“Em relação aos direitos humanos fundamentais, nos quais se incluem aqueles dos portadores de deficiência, não é o Estado que os outorga, mas apenas os reconhece como ínsitos à pessoa humana. Assim, em relação a esses direitos, não há que falar em natureza constitutiva do direito de declarações, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), formulada na Revolução Francesa e a declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), formulada pela ONU. Daí se percebe a natureza declaratória desses atos, reconhecendo algo que preexiste ao Estado”.
Nesse contexto evolutivo, o Brasil, enquanto membro de vários organismos internacionais, participa, vota, decide e internaliza conceitos e posturas relativas a direitos humanos e pessoas com deficiências.
Tais direitos se consolidam no arcabouço jurídico representado pela Constituição Federal de 1988, seguida de normas internacionais internalizadas a partir da apreciação e aprovação pelo legislador pátrio, conforme salienta Maria Aparecida Gurgel (2006, p.53):
“Os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem os tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (5º, § 2º). Portanto, os tratados e convenções internacionais, definitivamente analisados e resolvidos pelo Congresso Nacional na forma de decreto legislativo, com ratificação presidencial por meio de decreto, passam a integrar nosso sistema jurídico com eficácia plena”.
Prossegue a autora, qualificando o atual papel da norma alienígena inserida no contexto normativo nacional:
“A alteração produzida pela Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, ao acrescentar o § 3º, ao artigo 5º da Constituição, destaca o novo valor dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, equivalendo-os às emendas constitucionais, desde que aprovados, seguindo o rito de proposta a emenda constitucional (Art. 60, § 2º), em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.”
Seguindo os passos evolutivos das nações do chamado primeiro mundo, o Brasil vem, ao longo das últimas décadas, de forma consistente e por vezes bastante arrojada, modernizando seus diplomas legais. Essa modernização se dá por duas vias: a primeira, pela criação de normas jurídicas internas, editadas em respostas às demandas sociais que ganhem repercussão judicial e/ou a atenção do legislador pátrio, via de regra, após a adesão de segmentos com forte visibilidade; a segunda, pela internalização de normas emanadas em sede de acordos multinacionais, dos quais o Brasil tenha participado ou aos quais opte por aderir.
Segundo Maria Aparecida Gugel (2006, p.25), as mudanças em relação aos vocativos empregados para fazer referência ao portador de deficiência refletem não somente a influência das normas alienígenas internalizadas, mas também uma considerável participação da sociedade:
“Ao longo do tempo termos como aleijado, inválido, incapacitado, defeituoso, desvalido (Constituição de 1934), excepcional (Constituição de 1937 e Emenda Constitucional n. 1 de 1969) e pessoa deficiente (Emenda Constitucional 12/78) foram usados (e ainda são, infelizmente!) para designar a pessoa com deficiência. Continham em sua essência, o preconceito de que se tratavam de pessoas sem qualquer valor, socialmente inúteis e dispensáveis do cotidiano social e produtivo. A principal preocupação do Estado, refletida na consciência da sociedade, era o amparo por comiseração e a assistência como proteção dessas pessoas, reunidas em grupos de iguais, apartados do contexto comum e institucionalizados. Essas terminologias foram sendo alteradas por exigência e pressão constante dos movimentos sociais.”
Constata-se que a mais recente definição de deficiência física acha-se declinada no teor do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, o qual promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. A letra dessa lei é de absoluta relevância, porquanto representa, a nosso ver, o principal fundamento dos direitos dos portadores de deficiência, interesse maior deste estudo:
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.”
A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência ampliou o enfoque, ultrapassando a visão meramente biomédica. Na avaliação de Diniz,
“O conceito de deficiência, segundo a Convenção, não deve ignorar os impedimentos e suas expressões, mas não se resume a sua catalogação. Essa redefinição da deficiência como uma combinação entre uma matriz biomédica, que cataloga os impedimentos corporais, e uma matriz de direitos humanos, que denuncia a opressão, não foi uma criação solitária da Organização das Nações Unidas. Durante mais de quatro décadas, o chamado modelo social da deficiência provocou o debate político e acadêmico internacional sobre a insuficiência do conceito biomédico de deficiência para a promoção da igualdade entre deficientes e não deficientes.”[7]
O modelo social de definição do que seja deficiência, trazido pela Convenção internalizada no Brasil em 2009, carreou novas idéias a respeito do tema. Segundo Cesar Augusto Baldi (2009), a Convenção
“procura conjugar o antigo modelo biomédico de deficiência, vinculado às lesões que incidiam sobre o corpo, reforçando a estigmatização, com o modelo social, vinculado às práticas e estruturas excludentes da sociedade”.[8]
No entender de Baldi, o texto ali convencionado modifica o conceito introduzido pela Convenção Interamericana de 1999, estabelecendo nova ótica de leitura para a própria Constituição brasileira, que até então utilizava a expressão “portador de deficiência”, além de tornar inválida toda norma infraconstitucional que seja com ela incompatível.
Afinado com o pensamento acima citado, Celso Duvivier de Albuquerque Mello tece o seguinte questionamento: “Qual o valor de um tratado se um dos contratantes por meio de lei interna pode deixar de aplicá-lo?” (2000, p.119).
A respeito do modelo social da conceituação de deficiência, acrescenta Diniz (2009):
“Com o modelo social, a deficiência passou a ser compreendida como uma experiência de desigualdade compartilhada por pessoas com diferentes tipos de impedimentos: não são cegos, surdos ou lesados medulares em suas particularidades corporais, mas pessoas com impedimentos, discriminadas e oprimidas pela cultura da normalidade. Assim como há uma diversidade de contornos para os corpos, há uma multiplicidade de formas de habitar um corpo com impedimentos. Foi nessa aproximação dos estudos sobre deficiência dos estudos culturalistas que o conceito de opressão ganhou legitimidade argumentativa: a despeito das diferenças ontológicas impostas por cada impedimento de natureza física, intelectual ou sensorial, a experiência do corpo com impedimentos é discriminada pela cultura da normalidade. O dualismo do normal e do patológico, representado pela oposição entre o corpo sem e com impedimentos, permitiu a consolidação do combate à discriminação como objeto de intervenção política, tal como previsto pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.”[9]
II SITUAÇÕES CONFLITIVAS ENTRE NORMAS.
2.1 O Decreto 3298, de 20 de dezembro de 1999: a visão biomédica.
O normativo em tela tem raiz constitucional. Sua essência guarda consonância com mandamentos da Carta Magna no tocante a proteção de direitos fundamentais. Gurgel (2009, p.45) esclarece:
“Compreender a aparente dicotomia entre o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei e o tratamento diferenciado que a própria Constituição da República confere às pessoas com deficiência é fundamental para a eficácia e aplicabilidade das normas que lhes são dirigidas.
O tratamento diferenciado está evidenciado, entre outros direitos de ordem social, na reserva de cargos e empregos públicos para pessoas com deficiência prevista no artigo 37, VIII da Constituição[…]”
A autora complementa seu raciocínio (p.49):
“A discriminação positiva em favor das pessoas com deficiência está em perfeita consonância com os objetivos fundamentais estabelecidos na Constituição que impõe a ação positiva do Estado de erradicar a pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais, regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (3º, III e IV), oferecendo meios institucionais diferenciados para o acesso de grupos de excluídos do sistema e, portanto, viabilizar-lhes o gozo e o exercício de direitos fundamentais, alcançando, assim, a ‘igualdade real’.”
Concluindo a sua exposição acima, Gurgel esclarece os fundamentos que justificam a existência do Decreto 3298/99 (p.49):
“Nesse contexto, a Constituição amálgama, para as pessoas com deficiência, o direito à isonomia, estabelecendo que o acesso aos cargos, empregos
e funções públicas da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios é de todos os brasileiros e estrangeiros e, sua investidura depende de aprovação prévia em concurso público, delegando à lei a fixação de reserva de cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência.”
Em decorrência da política adotada pelo Estado brasileiro, temos que empresas públicas nacionais, no tocante ao acesso às vagas reservadas para pessoas com deficiências aprovadas em concursos públicos, agem baseadas em lei infraconstitucional em vigor, a saber, o Decreto 3298/99. Os referidos certames, que impõem a observância do teor do citado decreto, via de regra, informam que além das regras nele contidas hão de serem observadas as suas alterações, como o Decreto 5296, de 02 de dezembro de 2004. Todavia, a rigor é a lei mencionada que baliza todo e qualquer certame envolvendo pessoas com deficiências.
Deficiência é assim definida pelo Decreto 3298/99:
“toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade dentro do
padrão considerado normal para o ser humano”.
Do teor da lei já se depreende o enfoque biomédico que orienta a avaliação da deficiência. Assim define o decreto a pessoa portadora de deficiência:
“Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:
I – deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
II – deficiência auditiva – perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte:
a) de 25 a 40 decibéis (db) – surdez leve;
b) de 41 a 55 db – surdez moderada;
c) de 56 a 70 db – surdez acentuada;
d) de 71 a 90 db – surdez severa;
e) acima de 91 db – surdez profunda; e
f) anacusia;
III – deficiência visual – acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20º (tabela de Snellen), ou ocorrência simultânea de ambas as situações; IV – deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização da comunidade;
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho;
V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.”
Os concursos públicos, quando oferecem vagas para pessoas com deficiência, determinam que os candidatos a tais vagas deverão, no ato da inscrição para o certame, enviar laudo médico que comprove a alegada deficiência, laudo este contendo uma série de especificidades. Conforme esclarece Gurgel (2009, p.100):
“No ato da inscrição será exigido do candidato com deficiência o laudo médico, atestando a espécie e o grau da deficiência, com expressa referência ao código correspondente da CID e a provável causa da deficiência. A comprovação da deficiência justifica-se uma vez que o candidato concorrerá, se for sua livre opção, às vagas reservadas destinadas exclusivamente às pessoas com deficiência.”
Também constará do Edital, invariavelmente, a obrigação do candidato aprovado e classificado de se submeter a uma avaliação por equipe multidisciplinar, a qual irá confirmar ou não a condição de pessoa com deficiência. Tal avaliação decidirá, finalmente, pela existência ou não da deficiência, bem como se a deficiência é ou não impeditiva do exercício do cargo para o qual o candidato se inscreveu.
E qual a justificativa para se promover uma discriminação positiva em relação à pessoa com deficiência? Valemo-nos das palavras de Gurgel (2009, p.52):
“A reserva de cargos e empregos públicos na administração pública direta e indireta é uma forma de discriminação positiva e um meio para que a pessoa
com deficiência recupere o tempo de exclusão, eis que participará do concurso público, observadas as necessárias adaptações no modo em que o prestará em
face de deficiência declarada, em igualdade de condições com os demais candidatos, quanto ao conteúdo das provas, à avaliação, aos critérios de aprovação, ao horário, ao local de aplicação das provas e à nota mínima exigida para todos os demais candidatos.”
Em todo o território nacional, os Editais informam qual a legislação que orienta a avaliação supra referida, para fins de acesso às vagas reservadas às pessoas com deficiência, a saber, o Decreto 3298/99, alterado pelo Decreto 5296/04. A jurisprudência, por seu turno, é unânime no entender que o Edital faz lei entre as partes. Entretanto, o que ocorre na prática, é que tem-se tomado por norte o rol declinado no inciso I do art 4º., transcrito acima. De tal forma que o citado rol é, muitas vezes, considerado taxativo, levando a negativas de enquadramento e exclusões de aprovados no concurso, sob justificativa de inexistência da alegada deficiência.
Com relação à taxatividade do rol discriminado no citado inciso, temos que a jurisprudência condena a sua supervalorização, como se percebe no julgado abaixo:
“ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA. DEFINIÇÃO. ROL NÃO EXAUSTIVO. 1. O Decreto 3.298/99 deve ser interpretado à luz da norma que regulamenta, qual seja, a Lei nº 7.853/89, que assegura igualdade de oportunidade às pessoas portadoras de deficiência, bem como tratamento prioritário tendente a viabilizar sua inserção no mercado de trabalho, sem fazer maiores distinções acerca das deficiências. Dessa forma, não caberia ao decreto determinar restrições que fossem de encontro ao espírito da norma legal, razão pela qual se impõe a leitura do inciso I do art. 4º do Decreto nº 3.298/99 como rol não exaustivo.(grifo nosso) 2. Corroboram tal entendimento os seguintes itens do referido decreto: inciso I do art. 3º – considera deficiência toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano, e primeira parte do inciso I do art. 4º – enuncia deficiência física como alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física […]. 3. A deficiência da autora, Distonia por Tarefa -Específica (câimbra ou mal dos escrivães e músicos), a impede, conforme perícia judicial, de realizar a escrita normal ou convencional com caneta ou lápis, o que compromete sua capacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano. Logo, nos termos das normas supracitadas, a autora está apta a concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência física. 4. Além disso, Projeto de Lei em curso no Senado acrescenta dispositivos à Lei nº 7.853/89, para incluir as definições de deficiência e estabelecer que a síndrome do escrivão constitui modalidade de deficiência física. 5. •O trânsito em julgado é condição sine qua non para nomeação de candidato cuja permanência em concurso público foi garantida por meio de decisão judicial. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA. DEFINIÇÃO. ROL NÃO EXAUSTIVO. 1. O Decreto 3.298/99 deve ser interpretado à luz da norma que regulamenta, qual seja, a Lei nº 7.853/89, que assegura igualdade de oportunidade às pessoas portadoras de deficiência, bem como tratamento prioritário tendente a viabilizar sua inserção no mercado de trabalho, sem fazer maiores distinções acerca das deficiências. Dessa forma, não caberia ao decreto determinar restrições que fossem de encontro ao espírito da norma legal, razão pela qual se impõe a leitura do inciso I do art. 4º do Decreto nº 3.298/99 como rol não exaustivo. 2. Corroboram tal entendimento os seguintes itens do referido decreto: inciso I do art. 3º – considera deficiência toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano, e primeira parte do inciso I do art. 4º – enuncia deficiência física como alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física […]. 3. A deficiência da autora, Distonia por Tarefa – Específica (câimbra ou mal dos escrivães e músicos), a impede, conforme perícia judicial, de realizar a escrita normal ou convencional com caneta ou lápis, o que compromete sua capacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano. Logo, nos termos das normas supracitadas, a autora está apta a concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência física. 4. Além disso, Projeto de Lei em curso no Senado acrescenta dispositivos à Lei nº 7.853/89, para incluir as definições de deficiência e estabelecer que a síndrome do escrivão constitui modalidade de deficiência física. 5. •O trânsito em julgado é condição sine qua non para nomeação de candidato cuja permanência em concurso público foi garantida por meio de decisão judicial (STJ, AgRg no REsp 1074862/SC). Precedentes do STF: RMS 23.820-DF e RMS 23.692-DF. 6. Remessa e apelação da União parcialmente providas.” (TRF-2 – REEX: 200851010200547, Relator: Desembargador Federal LUIZ PAULO DA SILVA ARAUJO FILHO, Data de Julgamento: 17/10/2012, SÉTIMA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 31/10/2012)
De sorte que, embora guarde a essência da ação afirmativa, cujo objetivo maior é a proteção dos direitos reconhecidos às pessoas com deficiência, temos que o Decreto 3298/99 se revela inadequado, demandando a interpretação jurisprudencial que realinhe a sua aplicabilidade à pretensão do legislador, mormente para frear injustiças decorrentes da impropriedade de se considerar exaustivo o rol de limitações apresentado no inciso I do artigo 4º. Do Decreto 3298/99.
2.2 A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência: a visão social
Para esclarecer o significado da nova conceituação de deficiência, Diniz (2009) esclarece:
“[…] o modelo biomédico afirmava que a experiência de segregação, desemprego, baixa escolaridade, entre tantas outras variações da desigualdade, era causada pela inabilidade do corpo com impedimentos para o trabalho produtivo”.[10]
Prossegue a autora:
“O modelo social da deficiência, ao resistir à redução da deficiência aos impedimentos, ofereceu novos instrumentos para a transformação social e a garantia de direitos. Não era a natureza quem oprimia, mas a cultura da normalidade, que descrevia alguns corpos como indesejáveis. Essa mudança de causalidade da deficiência, deslocando a desigualdade do corpo para as estruturas sociais, teve duas implicações. A primeira foi a de fragilizar a autoridade dos recursos curativos e corretivos que a biomedicina comumente oferecia como única alternativa para o bem-estar das pessoas com deficiência. A segunda implicação foi a de que o modelo social abriu possibilidades analíticas para uma redescrição do significado de habitar um corpo com impedimentos. O drama privado e familiar da experiência de estar em um corpo com impedimentos provocava os limites do significado do cuidado na vida doméstica, muitas vezes condenando as pessoas com maior dependência ao abandono e ao enclausuramento. Ao denunciar a opressão das estruturas sociais, o modelo social mostrou que os impedimentos são uma das muitas formas de vivenciar o corpo. A tese central do modelo social permitiu o deslocamento do tema da deficiência dos espaços domésticos para a vida pública”.[11]
O conceito culturalista, que apontava para a constatação da existência de uma cultura da normalidade e seus perniciosos efeitos, são destacados por Diniz:
“Com o modelo social, a deficiência passou a ser compreendida como uma experiência de desigualdade compartilhada por pessoas com diferentes tipos de impedimentos: não são cegos, surdos ou lesados medulares em suas particularidades corporais, mas pessoas com impedimentos, discriminadas e oprimidas pela cultura da normalidade. Assim como há uma diversidade de contornos para os corpos, há uma multiplicidade de formas de habitar um corpo com impedimentos. Foi nessa aproximação dos estudos sobre deficiência dos estudos culturalistas que o conceito de opressão ganhou legitimidade argumentativa: a despeito das diferenças ontológicas impostas por cada impedimento de natureza física, intelectual ou sensorial, a experiência do corpo com impedimentos é discriminada pela cultura da normalidade. O dualismo do normal e do patológico, representado pela oposição entre o corpo sem e com impedimentos, permitiu a consolidação do combate à discriminação como objeto de intervenção política, tal como previsto pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”.[12]
Para Baldi (2009) a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é marcada por algumas características importantes:
“a) ao contrário da “Convenção Interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência”, incorporada pelo Decreto Legislativo 198/2001, as disposições procuram ter em conta as “formas múltiplas ou agravadas de discriminação por causa de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de outra natureza, origem nacional, étnica, nativa ou social, propriedade, nascimento, idade ou outra condição” (prêambulo, letra “p”), do que se seguiu a normatização específica para estas situações de discriminação (por exemplo, previsões para mulheres — artigo 6, crianças, artigo 7, acessibilidade, artigo 9, exploração, artigo 16, educação, artigo 24 e saúde, artigo 25);
b) fica reconhecida a diversidade das pessoas com deficiência (preâmbulo, letra “i”);
c) não obstante todos os instrumentos internacionais, reconhece que as pessoas com deficiência “continuam a enfrentar barreiras contra sua participação como membros iguais da sociedade e violação de seus direitos humanos”.[13]
III A interpretação jurisprudencial
3.1 O Poder Judiciário julgando em consonância com o teor da Convenção .
O reconhecimento, pela comunidade internacional, de que persistem, no Brasil, as barreiras contra direitos das pessoas com deficiência encontra eco nos tribunais pátrios, como se depreende do julgado abaixo:
“STF – AG.REG. NO RECURSO ORD. EM MANDADO DE SEGURANÇA RMS 32732 DF (STF)
Data de publicação: 31/07/2014
Ementa: CONCURSO PÚBLICO ESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA – RESERVA PERCENTUAL DE CARGOS E EMPREGOS PÚBLICOS (CF, ART. 37, VIII) – OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS AO RECONHECIMENTO DO DIREITO VINDICADO PELA PESSOA PORTADORA DEDEFICIÊNCIA – ATENDIMENTO, NO CASO, DA EXIGÊNCIA DE COMPATIBILIDADE ENTRE O ESTADO DE DEFICIÊNCIA E O CONTEÚDO OCUPACIONAL OU FUNCIONAL DO CARGO PÚBLICO DISPUTADO, INDEPENDENTEMENTE DE A DEFICIÊNCIA PRODUZIR DIFICULDADE PARA O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE FUNCIONAL – INADMISSIBILIDADE DA EXIGÊNCIA ADICIONAL DE A SITUAÇÃO DE DEFICIÊNCIA TAMBÉM PRODUZIR DIFICULDADES PARA O DESEMPENHO DAS FUNÇÕES DO CARGO” – PARECER FAVORÁVEL DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. PROTEÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL ÀS PESSOAS VULNERÁVEIS. LEGITIMIDADE DOS MECANISMOS COMPENSATÓRIOS QUE, INSPIRADOS PELO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE PESSOAL (CF, ART. 1º, III), RECOMPÕEM, PELO RESPEITO À ALTERIDADE, À DIVERSIDADE HUMANA E À IGUALDADE DE OPORTUNIDADES, O PRÓPRIO SENTIDO DE ISONOMIA INERENTE ÀS INSTITUIÇÕES REPUBLICANAS . – O tratamento diferenciado em favor de pessoas portadoras de deficiência, tratando-se, especificamente, de acesso ao serviço público, tem suporte legitimador no próprio texto constitucional (CF, art. 37, VIII), cuja razão de ser, nesse tema, objetiva compensar, mediante ações de conteúdo afirmativo, os desníveis e as dificuldades que afetam os indivíduos que compõem esse grupo vulnerável. Doutrina . – A vigente Constituição da República, ao proclamar e assegurar a reserva de vagas em concursos públicos para os portadores de deficiência, consagrou cláusula de proteção viabilizadora de ações afirmativas em favor de tais pessoas, o que veio a ser concretizado com a edição de atos legislativos, como as Leis nº 7.853/89 e nº 8.112/90 (art. 5º, § 2º), e com a celebração da Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007), já formalmente incorporada…”
Também nos tribunais estaduais, já se constata a formação de jurisprudência muito clara e firme na aplicação da Convenção. Senão vejamos:
“TJ-MG – Ap Cível/Reex Necessário AC 10027120106169001 MG (TJ-MG)
Data de publicação: 29/04/2014
Ementa: REEXAME NECESSÁRIO – APELAÇÃO CÍVEL – MANDADO DE SEGURANÇA – DIREITO LÍQUIDO E CERTO COMPROVADO – CANDIDATAPORTADORA DE DEFICIÊNCIA VISUAL – NECESSIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PROMOVER ADAPTAÇÃO RAZOÁVEL PARA QUE A CANDIDATA POSSA REALIZAR SUAS ATIVIDADES – ADEQUAÇÃO À DEFICIÊNCIA APRESENTADA PELA CANDIDATA – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – VALOR SOCIAL DO TRABALHO – PRECEDENTE DO EGRÉGIO STJ. – O Mandado de Segurança é a ação constitucional, que visa a garantir direito líquido e certo, id est, contra ato eivado de ilegalidade ou ameaça de lesão a tais direitos, praticado por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. – De acordo com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto nº. 6.949 /09, a Administração deve promover "adaptação razoável" das condições de trabalho para que os candidatos deficientes possam exercer satisfatoriamente suas atividades. Isso significa que a Administração deve realizar modificações e ajustes necessários e adequados, que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, observado cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. – A reserva de vagas a candidatos portadores de deficiências tem caráter eminentemente social e busca atender princípios constitucionais como, por exemplo, o da isonomia, do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana.”
Embalado pela própria experiência, Dantas (2005) tece as seguintes considerações:
“Outro aspecto a ser considerado está relacionado com a definição de deficiente contida no citado parecer. Há uma confusão entre deficiente e inválido, adotando-se equivocadamente o conceito do segundo para definir aquele. Apenas para ilustrar, cumpre consignar que o eminente Juiz Federal Francisco Eduardo Guimarães, da 3ª.Vara da Justiça Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, ao apreciar o pedido de liminar, o deferiu, determinando à Autoridade Coatora que se abstenha de praticar qualquer ato tendente a obstaculizar o exercício do cargo de analista previdenciário no qual a Impetrante foi investida, garantindo-lhe, inclusive, o direito a perceber vencimentos a partir de entrada em exercício, esta ocorrida em 11.04.2003, até decisão posterior ou até o julgamento de mérito do presente mandamus”.[14]
O autor prossegue a narrativa:
“Insatisfeito com o teor da decisão, o Instituo Nacional do Seguro Social – INSS recorreu, por meio de Agravo de Instrumento, ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª. Região. Devidamente distribuído, o ilustre Relator, Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, concedeu efeito suspensivo ao recurso, cassando a liminar deferida em primeiro grau. Em breve exposição, com base nas razões de recurso apresentadas pelo Recorrente, o Relator concluiu que: está provado, tanto por laudo do instituto agravante, quanto pelos exames particulares que instruem a inicial que, de fato, a candidata é portadora de escoliose. Entretanto, esta moléstia não a impossibilita d praticar os atos do cotidiano, inclusive, exercer o cargo de analista previdenciária .
Mais à frente fez a seguinte ponderação: Pretender concorrer a certame na qualidade de deficiente físico, e se valer da proteção constitucional garantida àqueles, inclusive logrando ser aprovada em detrimento de outros candidatos com deficiências mais graves, é esvaziar por completo o conteúdo da norma.”[15]
Dantas (2005) conclui sua análise do julgado, com as seguintes considerações:
“Ao nosso ver a decisão do Ilustre Relator é que fere os dispositivos constitucionais. Seus argumentos violam o princípio da isonomia na medida em que sustenta que deve haver diferenciação entre os próprios deficientes, e não apenas entre eles e as demais pessoas ditas normais. Explica-se: existem pessoas com diferentes graus de deficiência; no entanto, a legislação não as diferencia, tratando simplesmente dos deficientes latu senso. O intuito da norma é o de tratar de maneira especial pessoas que, de alguma forma, possuem limitações, enquadrando-as em cargos compatíveis com a sua deficiência. […] Há uma confusão de significados entre deficiência e aptidão/capacidade para o trabalho.Um deficiente pode ser apto o não para determinado cargo ou função, mas será sempre deficiente”.
3.2 O caso vivenciado pelo autor e jurisprudência a respeito.
Em 2010 o autor participou do certame promovido pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, concorrendo para o cargo de Técnico Executivo, na categoria de pessoa com deficiência, para a qual estavam reservadas 03 (três) vagas. Foi aprovado e classificado em 1º. lugar. Tendo sido convocado para submeter-se a uma avaliação por equipe multidisciplinar, cumpriu essa etapa, sendo orientado a aguardar a comunicação do resultado. Comunicação essa que jamais ocorreu.
Intrigado com a demora, dias depois o autor compareceu à Gerência de Recursos Humanos da autarquia, onde foi informado pelo chefe da unidade que, embora estranhasse a demora, eu deveria continuar aguardando uma resposta por email. Inconformado com a posição o autor, ato contínuo, redigiu manualmente uma petição, requerendo o cumprimento do Edital, com a prestação de informações acerca da avaliação da sua deficiência. Protocolou o requerimento administrativo e manteve-se no aguardo. Dias depois a autarquia federal publicou no Diário Oficial a convocação de dezenas de candidatos, dentre eles o 2º. e o 3º. aprovados na condição de pessoas com deficiência. Buscou o autor a necessária orientação jurídica, sendo acolhido pela Defensoria Pública da União.
Ocorre que o autor tratava-se de neoplasia maligna de pulmões. Em 2007, quando da primeira cirurgia, foi submetido a uma broncoplastia, quando teve seccionada parte do seu pulmão esquerdo. Em razão da interferência cirúrgica, muito invasiva, adquiriu seqüelas que resultaram em limitação de movimentos do membro superior esquerdo, quadro diagnosticado e declarado pelo Instituto Nacional do Cancer – INCA e pelo Hospital dos Servidores do Estado, ambos hospitais federais, além de Pneumologista do Município. Dois anos depois, sofreu uma recidiva, com novo tumor, desta feita no pulmão direito, tratada no INCA com emprego de técnica experimental inovadora, que foi bem sucedida, evitando o trauma anterior.
À época do certame da CVM, a deficiência foi confirmada em laudo médico-pericial do DETRAN/RJ. Desde então, a perícia do órgão estadual obriga o autor a somente dirigir carros adaptados. Investido na delegação que lhe confere a Receita Federal, o órgão faz constar dos seus laudos a concessão ao autor de isenção de tributos federais, estaduais e municipais para fins de aquisição de automóvel com a necessária adaptação. Tal laudo foi juntado ao processo movido pela DPU.
Entretanto, apesar da farta prova documental, a medida interposta pela Defensoria da União não teve acolhimento pelo juiz singular, que negou a tutela antecipada, conforme se extraído site da Justiça Federal, Seção Judiciária do Rio de Janeiro:
“No caso, o Autor alega que foi portador de neoplasia maligna, e teve que se submeter a uma cirurgia para retirada de parte de um dos pulmões. Como resultado desta cirurgia, teria ficado com os movimentos do braço esquerdo reduzidos. Os laudos médicos apresentados às fls. 24/28 atestam a ocorrência da cirurgia, e informam que o Autor apresenta restrições de movimentos do membro superior esquerdo. Todavia, não há como se saber, no presente estágio do processo, se tais restrições dos movimentos são suficientes para caracterizar uma das situações previstas no citado inciso I, do art. 4º do Dec. nº 3.298/99, o que exige dilação probatória, com a realização de perícia médica. Ausente, portanto, no atual momento processual, a prova inequívoca da verossimilhança do direito alegado, o que impede que seja deferida antecipação dos efeitos da tutela, na forma do art. 273 do CPC. Formula o Autor também pedido subsidiário, para que seja deferida medida cautelar, reservando-se uma das vagas do cargo de Agente Executivo destinadas a deficientes físicos, até a decisão do presente processo. Conforme o item 1.3.3 do Edital, à fl. 36, foram destinadas três vagas para deficientes físicos relativas ao cargo de Agente Executivo, na cidade do Rio de Janeiro. E de acordo com o Edital ESSAF nº 8/2011, à fl. 60, apenas três candidatos com deficiência foram considerados aprovados, não havendo nos autos notícia de que a Primeira Ré tenha convocado outro candidato para preencher a vaga pretendida pelo Autor. Portanto, não restou demonstrado o periculum in mora, motivo pelo qual indefiro a medida cautelar pretendida.” (JUSTIÇA FEDERAL SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO DE JANEIRO.24ª Vara Federal do Rio de Janeiro processo n. 0014693-34.2011.4.02.5101(2011.51.01.014693-0). 28.10.2011).[16]
Entretanto, em contraponto à avaliação do Ilustre Julgador, destacando-se a similaridade das situações, temos uma série de jurisprudências, algumas das quais reconhecem a condição de pessoa com deficiência, e casos que guardam grande similaridade com o do autor, em especial o Agravo de Instrumento 186235-3/02, que tramitou na 8a Vara da Fazenda Publica da Comarca de Recife, autuado em 25.05.2009. Ressalte-se que o processo em que é parte o autor segue tramitando no Tribunal Regional Federal, em sede de Apelação.
Ainda em correlação com o caso do autor, interessante consignar a manifestação do julgador, no caso abaixo:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CARGO DE TÉCNICO JUDICIÁRIO DO TSE. DIREITO A PROSSEGUIR NO CERTAME. INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA. RECONHECIMENTO DA DEFICIÊNCIA.
II – Há que se estabelecer distinção entre a pessoa plenamente capaz, o deficiente e o inválido. O deficiente é a pessoa que, não sendo totalmente capaz, não é, todavia, inválida. (Precedente Colendo STJ, RMS 22.459/DF, TRF – 1ª Região AMS n. 1998.01.00.061913-2) III – Ao candidato, acometido de insuficiência renal em fase de hemodiálise, enfermidade que enseja deficiência física, deve ser resguardado o direito à reserva de vaga na lista para pessoa portadora de deficiência, com fundamento no princípio da isonomia que rege a Administração Pública (Precedente desta 6ª Turma Apelação/REO 0016425-44.2008.4.01.3400). IV – A adaptação do candidato à sua limitação física não é idônea a afastar a deficiência, uma vez que, precisando fazer hemodiálise três vezes por semana, não lhe retira a dificuldade de conviver em sociedade quando comparado com um cidadão que não necessita de cuidados diários. V – Apelações e remessa oficial tida por interposta não providas. Ressalvada posterior avaliação de compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência física (Lei n. 8.112/90 art. 20, Decreto n. 3.298/99 art. 43 § 2º). AC 15585-DF-0015585-68.2007.4.01.3400. Des.Fed.JIRAIR ARAM MEGUERIAN, 25.01.2013.Sexta Turma. E-DJF1 p.87, de 25.02.2013.”
3.3 A discriminação como crime.
O eventual impedimento, por ação ou omissão do administrador público, é passível de ser enquadrado como crime, conforme esclarece Gurgel (2009, p.143)
“Obstar ou impedir que a pessoa com deficiência (sujeito passivo) acesse cargo ou emprego público pode decorrer de ação do administrador público (sujeito ativo) que, sem justificativa alguma, obsta – do latim obstare, estar diante ou contra; impedir, causar embaraço, dificultar o acesso a cargo público, caracterizando o crime. Também pode decorrer de omissão que, segundo o Código Penal, é penalmente relevante quando o administrador, por força do disposto na lei, deveria ou poderia agir para evitar o resultado (§2º, Art. 13). Somente a justa causa ou, as condutas justificadas, poderão impedir que a pessoa com deficiência acesse cargos e empregos públicos. Ressalte-se que para esse justo motivo não poderá concorrer qualquer elemento, ou causa, ligado à deficiência da pessoa.”
Cabe ressaltar que a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência se fez acompanhar de um Protocolo Facultativo, que foi subscrito pelo Brasil. Esclarecendo a importância desse diploma complementar, temos a visão de Baldi (2009):
“De salientar, por fim, que ao aderir ao protocolo facultativo, restou reconhecida a competência do Comitê para receber e considerar comunicações “submetidas por pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome deles, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de violação das disposições da Convenção”, desde que obedecidos os critérios de admissibilidade (artigo 2) :
a)Não ser anônima;
b)Não constituir abuso de direito ou ser incompatível com as disposições da Convenção;
c)Não tenha sido examinada pelo Comitê anteriormente ou esteja sendo examinada por outro procedimento internacional;
d)Tenham sido esgotados todos os recursos internos disponíveis, salvo tramitação que se prolongue injustificadamente ou cuja solução efetiva seja improvável;
e)Não estar precariamente fundamentada;
f)Os fatos não tenham ocorrido antes da entrada em vigor do protocolo para o Estado- parte, “salvo se os fatos continuaram ocorrendo após aquela data.”
Como se percebe, a internalização dos dois instrumentos internacionais encerra consequências de âmbito legal e constitucional, inclusive em termos de indivisibilidade, interdependência e universalidade dos direitos humanos, a partir da matriz “pessoas com deficiência”, que ainda não tem merecido a necessária atenção.”[17]
Considerações finais
De todo o exposto, resta evidenciado que o Decreto 3298/99, atual diploma legal a reger, em todo o território nacional, a política de acesso da pessoa com deficiência às vagas para esse grupo reservadas, carece de eficácia. Isto porque mantém limitações de direitos hoje não mais aceitas. Seu conteúdo apresenta um rol de deficiências muitas vezes entendido como exaustivo. Esse entendimento, equivocado, gera insegurança jurídica, leva milhares de pessoas a recorrerem ao judiciário, objetivando assegurar direitos, em face da sua real condição. Tal providência, como se sabe, pode demandar anos de espera por uma definição do poder judiciário-como acontece com este autor, há 03(três) anos aguardando o posicionamento do judiciário sobre seu direito a uma vaga para a qual foi aprovado.
A nosso ver, esta é uma celeuma que tem solução muito prática, factível, apropriada e juridicamente indispensável: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo e promulgada pelo Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, tem força normativa de Emenda Constitucional, eis que atendeu ao preconizado no parágrafo 3º. do art. 5º. da Constituição Federal. Como versa sobre o cerne da problemática, qual seja, a definição do que se deva entender por pessoa com deficiência, não há mais que se falar dos conceitos biomédicos ultrapassados, contidos no atual decreto-regente.
A medida prática, capaz de por termo ao conflito normativo, eliminando a insegurança jurídica que o mesmo proporciona àquelas pessoas que o legislador pretendeu atender, demanda uma iniciativa legislativa que altere o teor do Decreto 3298/99, para que este passe a ter a redação da norma internacional abarcada pelo Brasil.
Entretanto, até que tal providência seja adotada, havemos de lamentar que direitos sejam suprimidos e que batalhas judiciais intermináveis se propaguem, pois no atual estado de coisas não se pode, com segurança, saber se o país respeitará a norma que internalizou, apesar de esta normatizar, a nível federal, sobre tão relevante tema.
Informações Sobre o Autor
Alfredo Guimarães de Oliveira
Bacharel em Direito