Resumo: O presente trabalho trata, à luz do princípio da proporcionalidade, da relativização da impenhorabilidade do bem de família na execução trabalhista. A lei 8009/90 estabelece a impenhorabilidade absoluta do imóvel residencial com o fito de preservar o direito de moradia e o princípio do patrimônio mínimo do devedor. Não traz, contudo, qualquer distinção entre imóveis, resultando em uma tutela que ultrapassa a subsistência digna do executado. Aplicada na execução trabalhista, a medida, por vezes, impossibilita a eficácia processual, restringindo o direito do credor ver satisfeito seu crédito, majoritariamente composto por verbas de caráter alimentar, violando o princípio da proteção salarial e a própria dignidade do trabalhador. Destarte, imperativa uma interpretação finalística da medida, de modo a garantir proporcionalmente o direito de moradia e a proteção do salário, afastando a possibilidade da proteção desmedida do direito do devedor em detrimento da subsistência digna do credor, ampliando a tutela jurisdicional efetiva.
Palavras-chave: bem de família; impenhorabilidades; execução trabalhista; crédito trabalhista; proporcionalidade; tutela jurisdicional efetiva;
Sumário: 1. Introdução; 2. A efetividade jurisdicional na execução trabalhista; 3. A impenhorabilidade na execução trabalhista; 4. O conflito normativo na impenhorabilidade do bem de família frente ao crédito trabalhista e a aplicação do princípio da proporcionalidade; 5. Os critérios para a quantificação do valor a ser considerado absolutamente impenhorável e do excedente destinado à quitação do débito trabalhista; 6. Conclusão.
1 introdução
A tradição jurídica brasileira dogmatizou a impenhorabilidade absoluta do imóvel residencial, sendo seu principal fundamento na atualidade a garantia ao direito de moradia e, por conseguinte, a preservação do patrimônio mínimo e da dignidade do devedor.
O ordenamento pátrio estabelece, por meio da Lei 8009/90, a impenhorabilidade automática da morada, excepcionando tão somente raras hipóteses em que a impenhorabilidade não é oponível, dentre as quais se pode citar as dívidas contraídas em razão de trabalhadores da própria residência, o crédito oriundo da construção ou financiamento do próprio prédio e em caso de pensão alimentícia. Não há, todavia, qualquer diferenciação de proteção entre imóveis residenciais de alto e baixo valor, de grande e pequena extensão, ou cuja finalidade excede a mera moradia, todos são igualmente impenhoráveis.
Este trabalho, portanto, objetiva demonstrar que, à luz do princípio da proporcionalidade, tal medida se mostra inapropriada, vez que propensa a ocasionar injustiças e violação normativa quando aplicada de modo absoluto no âmbito da execução trabalhista.
A execução trabalhista é o mecanismo estatal para a satisfação de um direito resistido do trabalhador que, fazendo jus ao seu crédito já reconhecido judicialmente, não logrou percebê-lo. O crédito trabalhista consubstancia-se em sua maior parte em verbas de natureza salarial, possuindo caráter alimentar, de fundamental importância para a subsistência do credor e de sua família[1]. Em razão da essencialidade inerente à verba, a Constituição brasileira e o ordenamento jurídico prevêem uma série de proteções, tais como sua intangibilidade[2], obrigatoriedade[3] e preferência[4].
Nessa esteira, a impenhorabilidade do bem de família, em razão de seu caráter absoluto, quando aplicada na execução trabalhista, por vezes, revela-se desproporcional e inapropriada haja vista que, á luz da interpretação em conformidade com a finalidade do ordenamento, protege não somente o direito de moradia do devedor, mas o luxo e o excesso, obstando a execução e inviabilizando a tutela jurisdicional efetiva.
Impende aplicar a medida sob a égide do princípio da proporcionalidade, através dos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, compreendendo, numa perspectiva pós-positivista, a força normativa dos princípios, os quais possuem eficácia simétrica ou positiva, podendo ser aplicados diretamente ao caso concreto[5].
Nessa perspectiva, entende-se cabível a flexibilização da impenhorabilidade de modo a garantir a proteção salarial e a subsistência do credor, empregado, sem descuidar da proteção do direito de moradia e da preservação do mínimo existencial.
2 A efetividade jurisdicional na execução trabalhista
O Poder Judiciário possui dentre suas funções a de promoção da paz social. Significa que o Estado tomou para si a responsabilidade de composição de litígios, vergastando qualquer possibilidade de autocomposição, salvo raras exceções explicitadas em lei. Deste modo, o direito de ação, que constitui o pleno acesso do indivíduo ao poder judiciário, configura-se como essencial à garantia dos demais direitos. Sem o amplo acesso ao judiciário, inviável a consolidação de garantias reconhecidas juridicamente.
O devido processo legal impõe que o provimento jurisdicional resulte de um processo justo, equitativo, célere e adequado, que imuniza o cidadão de uma ação tirana do Estado, maximizando as possibilidades de um resultado efetivo para as partes.
Não há direito de ação sem resultado útil. De nada adianta a possibilidade de provocar o Judiciário se dele não advém uma solução eficaz de composição da lide. “Processo devido é processo efetivo” (DIDIER, 2010, p. 68).
Ao centralizar em si a competência para solucionar conflitos, farpeando qualquer possibilidade de autocomposição, salvo exceções pontualíssimas, torna-se imprescindível que o Judiciário não somente zele pelo reconhecimento do direito, mas, uma vez não cumprido voluntariamente, que o materialize, sendo esta talvez uma das suas principais funções, pois não é dada á parte a liberdade de, com armas próprias, forçar a satisfação do provimento sentencial.
Afirmam Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro, Paula Sarno e Rafael Oliveira que a efetividade processual garante o direito fundamental à tutela executiva, consolidada através de eficientes meios para o andamento da fase, resultando, ao final, na satisfação do direito objeto da execução. Ainda, a satisfação deve ser pronta e integral – resultado de um desenvolvido sistema processual (DIDIER, CARNEIRO, SARNO, OLIVEIRA, 2011, p. 47).
Humberto Theodoro Júnior assente com a ideia de que o processo deve servir fundamentalmente à realização do direito material, concretizando a função jurídica de pacificação social:
“(…)a preocupação maior do aplicados das regras e técnicas do campo do processo civil deve privilegiar, de maneira predominante, o papel da jurisdição no campo da realização do direito material, já que é por meio dele que, afinal, se compõem os litígios e se concretiza a paz social sob comando da ordem jurídica”. (JÚNIOR, 2011. p. 31).
O princípio da efetividade orienta a própria interpretação do ordenamento processual, de maneira que, existindo norma que obstaculiza a efetividade do processo, esta deve ser afastada, a menos que sua aplicação, à luz do princípio da proporcionalidade, assegure a proteção de outro direito fundamental.
Do mesmo modo, se mais de uma interpretação pode ser extraída da mesma norma, forçoso é lastrear a execução naquela que dará maior efetividade ao resultado final.
No âmbito da execução trabalhista, diante do caráter alimentar do crédito exequendo, salvo o de natureza indenizatória não habitual, acentua-se a inafastabilidade do princípio da efetividade no processo. Imprescindíveis os esforços por uma maior eficiência na fase de execução, não somente tornando-a mais célere, como também provendo meios adequados para a materialização do direito reconhecido.
Neste contexto, as impenhorabilidades absolutas, assim definidas com o intuito de salvaguardarem os direitos do executado, quando não analisadas restritivamente, podem se tornar excessivas, ao ponto de impedirem a satisfação executiva.
Relevante o exame cauteloso das impenhorabilidades e da possibilidade de relativizá-las, sob a égide do princípio da proporcionalidade, pois, por serem indiscriminadamente absolutas, por vezes resultam na inviabilidade da execução, tornando-a ineficaz, subjugando o credor trabalhador, possivelmente desempregado, a uma situação agravada de risco e miserabilidade.
A flexibilização da impenhorabilidade do bem de família na execução trabalhista, em uma análise caso a caso, aumenta a tutela jurisdicional efetiva sem desprezar o direito de moradia do devedor, promovendo a justiça no caso concreto em observância aos direitos fundamentais.
3 A Impenhorabilidade na execução trabalhista
O art. 648 do Código de Processo Civil define que os bens impenhoráveis não estão sujeitos à execução. São os bens dotados legalmente, voluntariamente ou por meio de testamento, do privilégio de não serem suscetíveis à penhora.
Em seguida, o art. 649 do CPC lista os bens absolutamente impenhoráveis, dentre os quais se encontram os declarados por ato voluntário, não sujeito à execução; os móveis, pertences e utilidades que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor e que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida; os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor; os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiros e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, dentre outros bens.
Tendo em vista a lacuna normativa na legislação trabalhista acerca do tema, aplica-se o previsto no Código de Processo Civil, legislação subsidiária, conforme estabelece o art. 769 da Consolidação das Leis Trabalhistas[6].
As impenhorabilidades supramencionadas são oponíveis na execução trabalhista, independente da natureza do crédito e sem qualquer relativização além daquela já trazida pela própria lei, comum a qualquer execução.
A Lei 8009/90 revestiu de impenhorabilidade o bem de família, independente de qualquer iniciativa do particular. A proteção abrange o imóvel de residência da família, bem como “o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”. (BRASIL, 1990).
Trata-se de uma proteção que se adéqua ao conceito e estruturação da sociedade moderna. Mais do que a família, o instituto protege o cidadão, sendo o ser humano o enfoque central do ordenamento jurídico. (DIAS, 2010, p. 598).
É entendimento sumulado do STJ que o bem de família é instrumento de tutela do devedor, ainda que este more sozinho[7].
Desta forma, o fundamento do instituto se estrutura não como proteção ao núcleo familiar, mais principalmente garante o direito de moradia. É finalidade da norma preservar a morada de todo indivíduo, elidindo possibilidades de sua extorsão por meio da penhora.
É controversa, entretanto, à aplicação da lei 8009/90 na execução trabalhista. Em razão da natureza alimentar do crédito trabalhista, este se torna imune à referida lei. Oportuno trazer à baila o comentário de Carlos Henrique Bezerra nesse sentido:
“Não é pacífica a aceitação da aplicabilidade da Lei n. 8009/90 nos domínios do processo do trabalho. Para uns, a regra da impenhorabilidade do bem de família seria incompatível com a natureza alimentícia do crédito trabalhista. Para outros, a norma ora focalizada visa assegurar a dignidade da pessoa do devedor e sua família, com o que a citada incompatibilidade não existiria.” (LEITE, 2010, p. 991).
Ao analisar a finalidade e os princípios que fundamentam o bem de família, vê-se que considerar o imóvel residencial absolutamente impenhorável em prejuízo da satisfação trabalhista revela-se medida excessiva, pois ambos protegem direitos constitucionais de igual relevância.
São corolários do princípio da dignidade da pessoa humana tanto a necessidade de garantia da moradia como o direito de percepção da remuneração laboral, haja vista que a moradia e a remuneração constituem direitos imprescindíveis para a subsistência digna. Questiona-se deste modo por que razão deveria a dignidade do credor ser protegida em detrimento da dignidade do devedor? Daí a necessidade de análise da questão à luz do princípio da proporcionalidade.
4 O conflito normativo na impenhorabilidade do bem de família frente ao crédito trabalhista e a aplicação do princípio da proporcionalidade
Conforme já mencionado, em razão da necessidade de tutela do direito de moradia, o bem de família é impenhorável. O ponto fulcral na proteção ao devedor é o princípio da preservação do mínimo essencial para existência e da tutela da moradia, imprescindíveis para a garantia da vida digna.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê, através da Lei 8009/90, em paralelo às demais proteções ao executado, a impenhorabilidade automática do imóvel residencial único, sendo a interpretação doutrinária e jurisprudencial no sentido de que a família possui uma concepção ampla, de modo que o solteiro, a viúva, a família monoparetal etc., todos são destinatários da proteção.
Vê-se, portanto, que a impenhorabilidade do imóvel residencial consubstancia-se em uma medida de proteção adotada pelo legislador com a finalidade de tutelar a existência digna do devedor e não apenas da família, sendo a denominação “bem de família” limitada. Trata-se de regra constante no ordenamento jurídico que, imediatamente, proíbe a penhora do bem imóvel e, mediatamente, assegura o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, ao priorizar o direito do devedor, inevitavelmente, há restrições ao direito do credor, o qual não mais dispõe do imóvel como garantia do pagamento da dívida. Não somente isto, mas, reduz a eficácia da tutela jurisdicional, pois inviabiliza a execução em sua fase de penhora. Uma vez não encontrados os bens suficientes para a satisfação do crédito devido, ainda que o devedor possua imóvel residencial, este é absolutamente impenhorável, sem qualquer distinção de valor, tamanho ou utilidade do bem.
São consagrados pela Constituição Federal os princípios da valorização do trabalho e da proteção ao salário. Ora, o salário reveste-se de importância em razão, principalmente, de sua natureza alimentar.
Orlando Gomes, ao tratar acerca da proibição de descontos no salário, afirma categoricamente a função alimentar da verba:
“O salário deve ser integralmente pago. Esse é o princípio. Proíbe a lei que sejam efetuados descontos, mediante os quais se reduziria efetivamente o montante da remuneração ajustada. As conseqüências de tal redução seriam desastrosas para o trabalhador. Como se sabe, o salário é o meio único de sua subsistência, tendo, por conseguinte, indiscutível caráter alimentar. A possibilidade de ser diminuído, por descontos, retenção ou compensação, constituiria grave ameaça ao equilíbrio do orçamento doméstico do empregado. […]” (grifos aditados). (GOMES, 1996, p. 103).
A destinação primordial da remuneração pelo trabalho prestado é o sustento do trabalhador e de sua família. Ressalte-se que alimentos não é somente o que se come, mas tudo aquilo direcionado ao suprimento das necessidades básicas daqueles que o recebe.
Conclui-se, portanto, que a medida adotada para a defesa do direito de moradia e do princípio da preservação do patrimônio mínimo do devedor ocasiona a violação do princípio da proteção ao salário e, por conseguinte, da dignidade da pessoa do credor, que dele necessita também para a subsistência.
Apresentado o conflito normativo, inafastável a necessidade da ponderação à luz do princípio da proporcionalidade.
No sistema jurídico, a proporcionalidade ganha destaque no pós-positivismo, fase marcada pela força dos princípios e das normas constitucionais. Antes, figurava-se imprescindível a normatização dos preceitos principiológicos (mediante edição de regras), sob pena de serem destituídos de qualquer eficácia. Atualmente, reconhece-se progressivamente a eficácia plena dos princípios na atuação jurídica, almejando, sobretudo, o império da justiça e da equidade entre as máximas constitucionais.
A equidade entre os princípios se observa através dos mecanismos de ponderação entre eles, buscando sempre otimizá-los. Esta ponderação se dá principalmente pela aplicação da proporcionalidade em seus três aspectos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Nesta esteira, merece destaque a doutrina lecionada por Daniel Sarmento:
“O princípio da proporcionalidade é essencial para a realização da ponderação de interesses constitucionais, pois o raciocínio que lhe é inerente, em suas três fases subseqüentes, é exatamente aquele que se deve utilizar na ponderação. […]
Com efeito, na ponderação, a restrição imposta a cada interesse em jogo, num caso de conflito entre princípios constitucionais, só se justificará na medida em que: (a) mostrar-se apta a garantir a sobrevivência do princípio contraposto, (b) não houver solução menos gravosa, e (c) o benefício logrado com a restrição a um interesse compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico”. (SARMENTO, 2003, p. 96).
Logo, a crescente utilização do princípio da proporcionalidade provém da objetividade metodológica por ela trazida à ponderação dos princípios através de suas três dimensões acima referidas.
In casu, vê-se que a interpretação legal em favor da impenhorabilidade absoluta do bem de família frente aos créditos trabalhistas não se coaduna com os ideais constitucionais. Tal interpretação ocasionaria enormes discrepâncias entre os direitos fundamentais tutelados pela Constituição. Permitiria que, e.g., fossem os devedores mantidos em situação de conforto e até mesmo luxo em detrimento da dignidade do credor, o qual, sem seus ganhos alimentares, se quedaria em completo desabrigo jurídico, juntamente com sua família.
Necessária, então, a otimização dos princípios. Nem se entende pela possibilidade de penhora da integralidade do valor referente à residência do devedor, tampouco pela interpretação da impenhorabilidade absoluta em caso de execução trabalhista.
Dois princípios contrapostos no caso concreto devem ser preservados ao máximo. Daí, outra solução não há senão a flexibilização da regra da impenhorabilidade absoluta do imóvel familiar.
Deste modo, a partir da interpretação finalística da impenhorabilidade do bem de família, propõe-se a seguinte medida: parte do valor da penhora deve ser resguardada, aí sim, sob a proteção da impenhorabilidade absoluta, com o fito de tutelar o direito de moradia do devedor e, em contrapartida, outra parte deve ser destinada à quitação do débito trabalhista, a fim de proporcionar a subsistência do credor e o respeito pelo princípio da proteção do salário.
Á luz do princípio da proporcionalidade, considerando que adequação é o subprincípio que verifica a capacidade de um meio promover o fim eleito, tem-se por adequada a relativização da impenhorabilidade do bem de família, haja vista que não deixa de viabilizar a moradia do devedor, aumentando as possibilidades de preservação da proteção ao salário e da vida digna do trabalhador e de sua família.
Ainda, o meio é necessário. A necessidade, segundo subprincípio da proporcionalidade, impõe que o operador do direito adote a medida menos restritiva possível de direitos colaterais, desde que concretize o fim anelado.
Nesta perspectiva, observa-se que o entendimento pela absoluta impenhorabilidade da residência em hipótese de execução contra o empregador na Justiça do Trabalho é que não se coaduna com o subprincípio da necessidade.
O direito que se visa a tutelar ao determinar a impenhorabilidade da residência é o direito de moradia, do patrimônio mínimo e da existência digna. Tais direitos, entretanto, são consolidados com um mínimo necessário. Uma residência suntuosa, de alto valor, por exemplo, excede a mera proteção dos princípios elencados.
Cabe, portanto, que o operador do direito, ao aplicar a impenhorabilidade do imóvel residencial, assegure estritamente os direitos relatados sem restringir desnecessariamente outros princípios. No caso, ao se tratar de execução trabalhista, em que se busca a satisfação do crédito do trabalhador, a impenhorabilidade deve ser assegurada até o limite em que se preserve a moradia, oportunizando atender também ao direito do empregado.
A incidência do princípio da proporcionalidade, deste modo, estabelece a limitação da impenhorabilidade com o fito de atenuar restrições à vida digna do trabalhador.
A medida ora defendida, contudo, mostra-se necessária, pois otimiza a aplicação dos princípios da eficácia jurisdicional e da proteção ao salário, ao fundamento do valor do trabalho e preserva o direito de moradia do devedor. Logo, reduz a limitação aos princípios contrapostos.
Por fim, cabe analisar a proporcionalidade em sentido estrito das referidas medidas. O subprincípio em análise prevê que os benefícios advindos da finalidade engendrada devem ser superiores aos prejuízos causados pelas restrições inerentes à medida adotada. Significa que, avaliado o custo-benefício do meio e do fim, o saldo deve ser positivo.
A caracterização da impenhorabilidade do bem de família como absoluta, em confronto com o crédito trabalhista enseja restrição tão desmesurada que resulta em violação evidente ao princípio da proporcionalidade. Ainda, o fim não compensa o meio, vez que a não excepcionalidade da medida restringe a dignidade do empregado e a proteção do salário em troca de garantir, por vezes, mais que a suficiente moradia do devedor.
Assente com o mesmo entendimento Ana Paula Souza:
“Por fim, no tocante ao exame da proporcionalidade em sentido estrito, verifica-se que, sem aniquilar completamente o direito à preservação da dignidade da pessoa humana do devedor, mas reconhecendo a prevalência do interesse do credor trabalhista em receber as verbas a que faz jus, justamente por ter despendido a sua força laboral em benefício de quem deveria ter lhe retribuído os serviços que lhe proporcionaram lucros, a penhora dos proventos salariais deste, fixada a um limite, à vista das circunstâncias do caso concreto, mais uma vez se mostra a medida mais coerente e sensata a ser adotada como solução para o conflito de valores em apreço.” (SOUZA, 2011, P. 48).
A autora ressalta que o direito de perceber os proventos salariais, em decorrência do contrato de emprego, que se reverteu em lucro para o empregador, prevalece em relação ao próprio direito do executado, sendo a medida proporcional em sentido estrito por privilegiar direito de maior peso no caso concreto, sem, contudo, implicar na completa violação ao direito de moradia do devedor.
Se o devedor é insolvente e adquiriu um imóvel de alto valor no decorrer do período em que esteve lucrando com suas atividades (em função da força e energia dispensada por seus trabalhadores), a execução não pode ser obstada em razão de ser a impenhorabilidade do bem interpretada como absoluta. Tal leitura do ordenamento resultaria em uma violação ao direito do trabalhador que não seria compensada pela finalidade alcançada. Não somente isto, mas, o fim atingido suplantaria o socialmente reconhecido como necessário para a mera subsistência digna, consolidando uma tutela excessiva do direito do executado.
Bruno Garcia Redondo esposa entendimento neste mesmo sentido:
“Em que pese ser esse posicionamento defendido por ilustres autores, nada justifica a injustiça que o exagero dessa corrente pode conduzir, quando mantém o dogma da impenhorabilidade absoluta do imóvel residencial. A interpretação deste dispositivo deve levar em conta o seu objetivo, que é o de garantir, apenas, o mínimo necessário à sobrevivência digna do executado. Dignidade, evidentemente, que não significa luxo nem ostentação que, quando presentes, devem excluir o devedor do âmbito de incidência da proteção constante da norma.” (REDONDO, 2008, p. 24).
Não obstante, o entendimento no sentido da relativização da impenhorabilidade da residência garante que ao devedor seja resguardado o valor para assegurar o direito de moradia, sendo este limitado ao mínimo necessário à subsistência digna. Ao mesmo tempo, tutela também a dignidade do empregado, que terá maior eficácia na execução de seu crédito alimentar. Revela-se, portanto, em concordância com a proporcionalidade em sentido estrito, em que os benefícios superam os prejuízos.
Ressalte-se que em se tratando de imóvel de valor insuficiente ao resguardo do direito de moradia e da proteção ao salário, resta inviável o seguimento da execução. Do mesmo modo, deverá o magistrado atentar para que o bem não seja penhorado a preço vil. Impende ter em mente a necessidade da efetividade da medida e da máxima preservação da dignidade de ambas as partes litigantes.
Outro ponto necessário é que a medida somente deve ser eleita quando não houver outros bens livres e desimpedidos, por ser excepcional e mais gravosa ao executado.
Bruno Garcia Redondo destaca a cautela devida na relativização do bem:
“Não dispondo o executado de outros bens móveis que sejam capazes de garantir a execução e possuindo seu imóvel residencial valor elevado, que ultrapasse significativamente o médio padrão de vida, deve o magistrado permitir a penhora e a expropriação desse bem, cabendo-lhe entregar ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade absoluta, uma parcela do produto dessa expropriação capaz de proporcionar, ao executado, a aquisição de outro imóvel, no qual também consiga residir de forma digna. (Idem, p. 24).
[…] a parcela restante, que exceder o indispensável à digna subsistência do executado ou do fiador, somente poderá ser penhorada se não houver outros bens livres e desimpedidos, já que se trata de hipótese excepcional e mais gravosa ao executado”. (Idem, p. 27-28).
O que se defende não é a supressão do direito de moradia e do mínimo patrimônio para a subsistência do executado, mas a otimização dos princípios à luz da proporcionalidade.
O empregado, enquanto parte hipossuficiente, tem de ser protegido pelo direito trabalhista, com o propósito de equiparar o trabalhador e empregador na relação empregatícia. Este é o pensamento de Daniel Natividade de Oliveira e Narbal Antônio Mendonça Fileti: “Para atender a tais postulados firmou-se o conteúdo do direito do trabalho com seu inerente compromisso histórico de promover a justiça social e a valorização da pessoa humana, harmonizando as relações sociais”. (OLIVEIRA, FILETI, 2007, p. 183).
Portanto, a medida de relativização da impenhorabilidade do bem de família concede maior efetividade à execução trabalhista, permitindo ao trabalhador a percepção dos seus proventos e, então, sua subsistência digna. Tal princípio consolida a justiça social e a valorização da pessoa humana, conforme supramencionado.
5 Os critérios para a quantificação do valor a ser considerado absolutamente impenhorável e do excedente destinado à quitação do débito trabalhista
Questão de alta complexidade é a estipulação de um critério para a fixação do valor penhorado a ser destinado ao pagamento do débito e da quantia a ser resguardada para o exercício do direito de moradia pelo devedor.
Cogita-se a quantificação do rendimento médio real habitual da população ocupada como um critério de base para a definição do valor a ser considerado absolutamente impenhorável. Nesta esteira, com a média do rendimento brasileiro seria possível estabelecer o padrão mínimo de moradia no contexto nacional. Este é o entendimento esposado por Vanessa Lima Bacilieri Oliveira:
“Haja vista a preocupação em manter um padrão de vida acima da linha da pobreza, assegurando o mínimo material para se viver dignamente, e, considerando a realidade sócio-econômica da maioria da população brasileira, acredita-se ser razoável a proteção no limite de 200 (duzentos) salários mínimos, equivalente, atualmente, a R$ 93.000,00 (noventa e três mil reais).
Considerando que de acordo com índices atuais do IBGE, o rendimento médio real habitual da população ocupada é estimado em R$ 1.188,90 (hum mil, cento e oitenta e oito reais e noventa centavos), de modo que, então, o valor de R$ 93.000,00 (noventa e três mil reais) corresponde a mais de 78 (setenta e oito) vezes o valor da média do rendimento da população ocupada no Brasil”. (OLIVEIRA, 2010, p. 101).
A autora leva em conta que o rendimento médio da população se presta para o custeio de todas as necessidades básicas a uma vida digna, tais como, alimentação, saúde, educação, lazer etc. e não somente a aquisição de um bem para fins de moradia. E, também considera a possibilidade de financiamento e até mesmo aluguel como meio de acesso à habitação, considerando ser esta uma realidade comum no país. Nesses pilares, considera razoável o valor de 200 salários mínimos para a preservação do direito de moradia.
Bruno Garcia Redondo, por sua vez, ao tratar de hipótese análoga, se manifesta pela discricionariedade do juiz. Veja-se:
“Guardando o Brasil dimensões continentais, com trágicos contrastes sócio-econômicos, mais efetivo será conceder ao magistrado a necessária margem de discricionariedade para que possa concretizar a norma abstrata observando os critérios de razoabilidade e de proporcionalidade, bem como a dignidade da pessoa humana, tanto do exequente, quanto do executado”. (REDONDO, 2008, p.24).
De fato o Brasil é um país de enormes desigualdades regionais, de maneira que estabelecer um valor fixo para a reserva destinada à moradia seria como fixar um percentual da remuneração de um alimentante para cobrir as despesas do alimentado. Resultaria fatalmente em uma violação à isonomia. Seria conceder tratamento igual a desiguais.
Não somente isto, mas outros fatores devem ser levados em conta. Por exemplo, o número de residentes no imóvel. Uma moradia que abriga bem uma pessoa não comporta cinco ou seis dignamente.
Deste modo considera-se pertinente conceder ao magistrado certo grau de discricionariedade para arbitrar um valor razoável e proporcional a cada caso. A decisão, todavia, deve ser fundamentada. Para fins de fundamentação da decisão o critério do rendimento médio da região pode ser um bom referencial, bem como as facilidades de financiamento e aquisição de novo imóvel.
Carlos Henrique Bezerra Leite afirma que certos conceitos como “médio padrão de vida” são indeterminados, cabendo ao juiz defini-los, em função da realidade concreta. No entanto, para além desses conceitos, o magistrado seguirá os critérios estabelecidos pela norma (regra ou princípio):
“Ora, “elevado valor” e “médio padrão de vida” são, evidentemente, conceitos legais indeterminados, cabendo ao juiz “no momento de fazer a subsunção do fato à norma, preencher os claros e dizer se a norma atua ou não no caso concreto. Preenchido o conceito indeterminado (…), a solução já está estabelecida na própria norma legal, competindo ao juiz apenas aplicar a norma, sem exercer nenhuma função criadora.” (LEITE, 2010. p. 989).
Os conceitos indeterminados existem para possibilitar o julgamento em consonância com a realidade histórica, cultural, econômica e social de cada localidade. Não significa, entretanto, que o juiz julgará do modo que melhor entender, seguindo um padrão unicamente subjetivo.
Necessária a desconstrução da ideia da impenhorabilidade absoluta do imóvel como um dogma ou uma tradição. A proteção não possui um fim em si mesmo, mas visa à garantia do direito de moradia do executado. Neste sentido, importa ao julgador analisar cautelosamente o caso concreto para definir o valor suficiente para a tutela do devedor sem descuidar dos direitos do credor. Para ilustrar a questão é pertinente trazer à baila o exemplo da fixação de alimentos, em que se observa tanto a capacidade do alimentante como a necessidade real do alimentado.
Desta forma, quanto maior a necessidade de recebimento do crédito exequendo pelo credor, maior poderá ser a relativização da impenhorabilidade, desde que resguardado o direito de moradia.
Destarte, mais propício conceder ao julgador, conhecedor do caso concreto e da realidade social da região, a incumbência da determinação do valor absolutamente impenhorável a ser destinado à moradia, e o excedente que servirá ao pagamento do débito trabalhista.
6 Conclusão
A garantia da tutela jurisdicional efetiva depende de maior eficiência nos meios adotados para o andamento regular do processo. Necessário, para tanto, elidir obstáculos ao fim útil da execução. A impenhorabilidade absoluta do imóvel residencial, sem qualquer critério de discriminação, na execução trabalhista, conduz à diminuição da eficácia jurisdicional, ocasionando a violação aos princípios fundamentais da proteção salarial e valorização do trabalho.
O crédito trabalhista de natureza alimentar deve ser tão protegido quanto o direito de moradia, vez que ambos são igualmente imprescindíveis à subsistência digna do indivíduo e de sua família. Deste modo, não se pode salvaguardar de modo absoluto o bem de família em detrimento do crédito trabalhista, sob pena de incorrer em injustiça, vez que, por vezes, será tutelado bem que excede o necessário à estrita moradia digna deixando desabrigado o trabalhador, credor.
A flexibilização da impenhorabilidade do bem de família mostra-se medida necessária, adequada e proporcional em sentido estrito ao fim de garantir o princípio da proteção salarial e a tutela jurisdicional efetiva.
Para a aplicação da medida, necessária a concessão de certo grau de discricionariedade ao julgador, que poderá analisar os aspectos singulares de cada caso, tais como a realidade sócio-econômica da região, a necessidade do exequente e a capacidade do executado. O princípio da proporcionalidade, indispensável na construção argumentativa da decisão, afasta a possibilidade do subjetivismo excessivo, conferido critérios objetivos para a incidência da medida ao caso contrário.
Por fim, a impenhorabilidade absoluta do bem de família não prevalece diante da execução do crédito trabalhista, ensejando maior possibilidade de efetividade jurisdicional, proteção ao salário e à dignidade do credor, sem desmerecer o direito de moradia e do patrimônio mínimo do devedor.
Informações Sobre o Autor
Mírian dos Reis Ferraz de Souza
Advogada formada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Estado da Bahia UFBA