Resumo: Um estudo a partir da História do Direito relativo ao livro “Xica da Silva”, de João Felício dos Santos, e ao filme “Xica da Silva”, dirigido por Carlos Diegues, realizando-se análises históricas e de institutos do Direito.
Palavras-chave: Institutos jurídicos. Análises históricas. História do Direito.
Abstract: A study from the Law of History on the book "Xica da Silva", John Felicio dos Santos, and the movie "Xica da Silva", directed by Carlos Diegues, performing historical analyzes and law institutes.
Sumário: 1. Análise histórica. 2. Críticas pormenorizadas acerca do livro “Xica da Silva”, de João Felício dos Santos, bem como do filme “Xica da Silva”, dirigido por Carlos Diegues. 3. Conclusão.
1. Análise histórica
Primeiramente, cabe realizar um apanhado histórico para compreender como se desenvolvia a sociedade no período em que viveu, e que se destacou Francisca da Silva. Sabe-se que a então escrava Francisca da Silva nasceu por volta do ano de 1731, na cidade de Arraial do Tijuco, hoje designada como Diamantina,no estado de Minas Gerais – Brasil. Ademais, Xica da Silva, como ficou conhecida, advinha de um relacionamento proibido entre um português Antônio Caetano de Sá e uma escrava, chamada Maria da Costa, portanto, não poderia pertencer, inicialmente, a sociedade aristocrata da época (CHICA…,2013).
Relevante acentuar que, no período do Brasil colônia, era corriqueiro se manter relacionamentos íntimos entre portugueses e escravas, notadamente pela liberdade e o domínio que exercia o senhor de escravos em face dos seus subjugados “bens”, pois os escravos eram tidos como coisas. Apresentam-se trechos esclarecedores da obra “Vida íntima entre senhores e escravos no Recife e na Lisboa Setecentistas:três histórias, três memórias”,de Suely Creusa Cordeiro de Almeida:
“Duas mulheres de cor e um senhor branco. Mãe e filha, muitos anos sob o domínio de um proprietário de escravos, nada mais comum no Brasil e em Pernambuco do século XVIII. Já haviam transcorrido dois quartéis do dezoito, quando se deu o ocorrido.6 Elas não têm nome na documentação que transitava entre o Juízo Eclesiástico de Pernambuco, o Conselho Ultramarino e a Mesa da Consciência e Ordem. Quem eram elas ou o que se sabe? Uma negra e a outra, a filha, referida como mulata, já fruto de um relacionamento interétnico. Talvez com outro membro da família de seu atual senhor ou até com o mesmo!? (ALMEIDA, 2011, p. 197). […]
O Bispo conta que, sempre durante períodos de missionação,mulheres escravas, e, em sua maioria, mulatas que viviam concubinadas com seus senhores tomavam consciência de seu estado de “pecado” esse negavam a continuar amancebadas, muitas sofrendo inúmeras violências.Talvez fosse uma estratégia dessas mulheres para conseguiremum casamento consagrado aos moldes tridentinos e reconhecerem umaprole parda e escrava.16 Seria uma forma de alcançar a libertação de sie de seus filhos. Caminhos de mulheres; sempre instadas em uma sociedademisógina, a encontrar uma saída através de labirintos nos quaisquase sempre foi impossível entrar carregando o fio de Ariadne. Mas,como já disse Marcus Carvalho, amor e sexo nem sempre andam juntos,as represálias desses senhores contra suas mulatas muitas vezes foibrutal.17 É claro que essas mulheres usaram o sexo como argumento,impondo a abstinência e gerando tensão na relação. Sabemos também
que a Igreja em sua trajetória para normatizar a vida moral de seu rebanhoentregou nas mãos das mulheres argumentos quase que incontestáveispara impor controle a seus homens. Abstinência para oração, dedicaçãoa jejuns e penitências que tinham como fim controlar o sexo, as mulheres usaram-nos a seu favor, embora, muitas vezes, tenham sofrido retaliações.18 As escravas em questão estavam usando o conceito de pecado para levarem seu senhor a tomar uma nova postura na relação
que mantinham. (ALMEIDA, 2011, p. 200). […]
Foi assim com a mulata pertencente a Antônio de Araújo, nosso terceiro nome masculino, habitante da Vila do Recife, submetida a brutais castigos, além de continuamente ser mantida presa em um tronco pelo pescoço. Segundo o relato, tudo para que voltasse a com ele se deitar.” (ALMEIDA, 2011, p. 200).
Para situar o tema, frisa-se que, no momento em que se desenvolveu os mais significativos pontos da história de Xica da Silva, o Brasil permanecia sob o domínio Português, que, por sua vez, era regido por Dom José I. O reinado de D. José I, que teve iniciou no ano de 1750, foi marcado por uma reestruturação econômica e reorganização política, tendo como figura central Marquês de Pombal. Ademais, outro traço marcante de seu governo é que teve preocupação em desenvolver a educação de Portugal, promovendo medidas para a consolidação do ensino superior, secundário e primário, conforme demonstra o seguinte excerto:
“Todo o reinado é caracterizado pela criação de instituições, especialmente no campo económico e educativo, no sentido de adaptar o País às grandes transformações que se tinham operado. Funda-se a Real Junta do Comércio, o Erário Régio, a Real Mesa Censória; reforma-se o ensino superior, cria-se o ensino secundário (Colégio dos Nobres, Aula do Comércio) e o primário (mestres régios); reorganiza-se o exército. Em matéria de política externa, D. José conservou a política de neutralidade adoptada por seu pai. De notar ainda, o corte de relações com a Santa Sé, que durou 10 anos”. (D. JOSÉ I…, 2013).
Noutra referência doutrinária, pode-se perceber a posição ocupada pelo Marquês de Pombal, como decisiva para o almejado desenvolvimento de Portugal, uma vez que a situação econômica, como já citado, andava não muito bem, desde os tempos de D. João V. A presença e a postura do primeiro-ministro Marquês de Pombal recolocaram Portugal nos trilhos para acompanhar o crescimento já vivenciado por outros países.Cabe trazer à baila outras características desse período do governo de D. José I que, certamente, marcaram a vida dos colonos brasileiros.
“O reinado de José I é sobretudo marcado pelas políticas do seu primeiro-ministro, o Marquês de Pombal, que reorganizou as leis, a economia e a sociedade portuguesas, transformando Portugal num país moderno. A 1° de novembro de 1755, D.José I e a sua família sobrevivem à destruição do Paço Real no Terremoto de Lisboa por se encontrarem na altura a passear em Santa Maria de Belém. Depois desta data, José I ganhou uma fobia de recintos fechados e viveu o resto da sua vida num complexo luxuoso de tendas no Alto da Ajuda em Lisboa. Outro ponto alto do seu reinado foi a tentativa de regicídio que sofreu a 3 de setembro de 1758 e o subsequente processo dos Távoras. Os Marqueses de Távora, o Duque de Aveiro e familiares próximos, acusados da sua organização, foram executados ou colocados na prisão, enquanto que a Companhia de Jesus foi declarada ilegal e os jesuítas expulsos de Portugal e das colónias”. (JOSÉ I…, 2013).
Nessa perspectiva geral, convém retornar ao que se passava nesse período no Brasil, especialmente no estado de Minas Gerais, de onde se projetou a rica história de Xica da Silva. Para tanto, é imperioso entender como funcionava a sociedade mineira, e qual a relação estabelecida com os escravos. É cediço que o Brasil cresceu através da força das mãos dos menos desfavorecidos, inicialmente pelo trabalho duro exercido pelos escravos, que prestavam os serviços mais diversos, inclusive o da mineração, tudo com a finalidade de abastecer os cofres dos seus senhores e, por conseguinte, de Portugal.
“A base do trabalho na sociedade mineira foi o escravo. Cabia a eles o árduo trabalho de retirar o ouro da terra e dos rios. Eram obrigados a trabalhar muitas horas por dia em condições adversas, geralmente dentro d’água. Com expectativa de vida em torno de 30 anos, os escravos adoeciam com grande facilidade e sua vida útil era de aproximadamente sete anos. Os escravos tinham de entregar uma certa quantidade de ouro semanalmente aos seus donos e o que passasse disso, era do escravo. Assim, alguns poucos conseguiram fazer economia e comprar sua alforria. O escravo que achasse um diamante com mais de 20 quilates garantia sua alforria, o que raramente acontecia. Também recebiam a carta de alforria os que denunciassem seus donos pela sonegação de impostos. No auge da economia mineradora, os escravos alforriados não ultrapassavam 2% da população”. (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 323).
Com esses introitos, tem-se a noção de como era a realidade de Minas Gerais, Brasil, por volta do século XVIII, muito atrelada a extração de minérios, e isso dependia precipuamente do trabalho escravo. Mas, com essa forma de prover ganho de capital, centralizaram-se outros ramos da vida civil, com o fito de seguir o crescimento daquela região próspera, a qual garantia a manutenção da vida dos povos já abastados, ao passo que, também, permanecia escravizando a maior parcela da população.
“Milhares de pessoas não diretamente ligadas à extração aurífera mudaram-se para a região das minas. Assim, clérigos, advogados, artesãos, intelectuais, burocratas, militares e comerciantes instalaram-se nas vilas e cidades, formando um setor médio, consumidor de produtos internos da Colônia e alguns gêneros manufaturados importados. Os “ricos”, a elite, eram poucos, bem poucos, e representados por donos de muitas datas e, portanto, vastas áreas mineradoras, comerciantes de grosso trato e altos funcionários da administração real indicados diretamente pela Coroa. Existia ainda uma ampla massa de homens livres pobres que sobreviviam como faiscadores, pequenos roceiros, biscateiros e garimpeiros. Os escravos formavam a maioria da população, calcula-se que fossem 70% do total de habitantes da região”. (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 317).
Portanto, como se observa, Xica da Silva pertencia a uma sociedade dominada por brancos portugueses que se utilizavam dos préstimos de escravos para manter o crescimento social, ou, a bem da verdade, da pequena parcela da população formada por fidalgos etc. Relegados ao sofrimento, que, às vezes, redundava na morte, os escravos não podiam esperar muito da vida, a não ser obter uma carta de alforria para amenizar a dureza que eram submetidos.
O caso de Xica da Silva despertou bastante interesse da sociedade brasileira, inclusive sendo tratado por inúmeros livros de história e literatura, por mostrar que uma escrava podia lograr êxito na vida, especialmente naquele período, marcado pela crueldade a qual eram subjugados os escravos, sem qualquer tipo de atenção a dignidade da pessoa humana.
Por suas características, notadamente a personalidade forte, Xica da Silva conseguiu atrair, e definitivamente conquistar, o amor de um homem branco, que, por sinal, possuía grande fortuna e pôde proporcionar-lhe uma vida mais digna. Este homem rico, o contratador português João Fernandes de Oliveira, comprou-a na data de 1753, concedendo-lhe, quase que automaticamente por amor, a carta de alforria, que conferia a liberdade, a qual tanto Xica da Silva desejava. Empós, constituíram uma união firme, da qual advieram treze filhos, sendo todos devidamente admitidos pelo pai. Observe-se uma interessante abordagem histórica sobre a vida de Xica da Silva:
“Xica da Silva foi comprada em 1753, no Arraial do Tijuco (atual Diamantina) pelo contratador de diamantes, João Fernandes de Oliveira. Nesse mesmo ano foi alforriada e passou a viver maritalmente com o contratador. Teve 13 filhos com ele, que reconheceu a todos como legítimos, portanto passíveis de herdar sua imensa fortuna. Como qualquer mulher rica da sociedade mineira, colocou suas filhas para estudar no Recolhimento de Macaúbas, do qual saíram praticamente para se casar. Com a volta de João para Portugal para prestar contas de sua atuação, levando consigo quatro filhos homens que receberam títulos de nobreza da Coroa, Xica permaneceu nas Minas com os outros filhos, mas nunca foi desamparada pelo companheiro. Depois da morte de João, seus filhos herdaram a fortuna do pai.” (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 324).
Importante frisar que no livro “Xica da Silva” de João Felício dos Santos – uma das bases para esse trabalho -, não há qualquer referência aos filhos que Xica teve com o contratador, e de como ficou a vida dos dois após a partida de João Fernandes a sua terra natal, Portugal, assim como também se verifica no filme. O livro passa a imagem de que, após a partida de João Fernandes, Xica ficou perdida no mundo, mas como se vê no trecho acima, Xica teve todo o amparo de seu contratador.
Os autores José Alves de Freitas Neto e Célio Ricardo Tasinafo, historiadores brasileiros, expõem uma curiosa situação que ocorria na época citada, qual seja, que outras escravas também conquistaram os corações de homens portugueses, mas, diferentemente de Xica da Silva, os filhos oriundos dessa relação não conseguiam obter o registro do nome dos pais. Daí é possível constatar porque essa história permanece até hoje narrada em livros, seguramente porque Xica da Silva adquiriu, forçadamente, o respeito de toda uma sociedade escravagista, que não considerava as condições mínimas para se ter uma vida digna. A diferença de Xica da Silva que a tornou especial, e certamente um exemplo, foi ocuparuma posição social que lhe retirava de um patamar subumano, ou seja, mostrou que todos somos iguais e que temos direitos a usufruir do bem-estar, da saúde, de uma vida digna etc.
“Xica não foi a única a viver com um branco poderoso; muitas ex-escravas também fizeram o mesmo. Por serem impedidas de casar com um branco, seus filhos tinham as certidões de batismo com o nome do pai em branco. No caso de Xica, o poderoso contratador reconheceu a paternidade, o que deve ter chamado a atenção da sociedade”. (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 324).
A vida de Xica da Silva foi um prenúncio de um acontecimento que firmaria de vez a dignidade da pessoa humana no Brasil, com a abolição da escravatura, datada de 13(treze) de maio de 1888, através da Lei Áurea. Não se trata de uma fórmula mágica, posto que muitos ex-escravos permaneceram olvidados pela sociedade, sem trabalho ou posses, mas, mesmo que tardia, concretizou os fundamentos assegurados desde a Declaração de direitos do homem e do cidadão, datada de 26(vinte e seis) de agosto de 1789, principalmente o que se estabelece no seu art. 1º: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. (FRANÇA, 1789).
De fato, inicialmente, o Brasil não coadunou com as mudanças ocorridas no mundo no período supracitado. Essas alterações no cenário mundial rejeitavam qualquer tipo de servidão por parte do ser humano, considerando princípios como o da igualdade e o da liberdade para fundamentar a necessidade de se estabelecer a dignidade da pessoa humana. Exibem-se algumas visões e a conjuntura social mundial:
“Entre 1776 e 1848, grandes transformações socioeconômicas reconfiguraram o mundo moderno. Revoluções políticas puseram abaixo o Antigo Regime europeu e seu correlato americano, o Antigo Sistema Colonial. Movimentos sociais e políticos de trabalhadores passaram a demandar liberdade civil, liberdade política e igualdade social, e a reivindicar, entre outras reformas, a abolição do tráfico internacional de escravos e, pouco depois, da própria escravidão. […]
No entanto, nesse mesmo período, em Cuba, ainda uma possessão espanhola, na maioria dos estados do sul dos Estados Unidos e no Império do Brasil, a instituição servil não só foi mantida, como também conheceu notável expansão. Nesses dois últimos casos, assistiu-se ao que se pode designar como ascensão do escravismo nacional. Ascensão que se deu em íntima conexão com o desenvolvimento do mercado mundial capitalista e com a construção dos Estados nacionais nessas regiões”. (SALLES, 2008, p. 43).
O Brasil infelizmente se manteve persistente ao comportamento social implantado, não acolhendo as patentes e necessárias transformações. Vê-se que o autor Ricardo Salles expõe, nas citações acima, que o Brasil participou da “ascensão do escravismo nacional” (SALLES, 2008, p. 43), que, verdadeiramente, tal expressão demonstra a inobservância aos mais básicos elementos atinentes ao respeito humano, uma vez que a ascensão social estava atrelada ao desrespeito humano.
Ocorre que tal situação não correspondia aos anseios da sociedade brasileira – onde somente os poucos brancos tinham voz -, a qual desejava, como se infere, que fosse mantida aquela estrutura para satisfazer os caprichos dessa elite. Da mesma forma, deduz-se que seria subterfúgioconservar o trabalho escravo como sendo a maneira mais adequada para o desenvolvimento social, sob esses moldes violentos e desumanos.
“Do ponto de vista externo, enquanto nos estados do sul dos Estados Unidos a tensão era resultado direto da convivência com uma opinião pública antiescravista e logo abolicionista que se desenvolvia nos estados nortistas, no Império do Brasil – onde uma opinião pública abolicionista só viria a tomar corpo na década de 1880 – a tensão resultava da pressão inglesa pela extinção do tráfico internacional de escravos”. (SALLES, 2008, p. 44).
O que se percebe é que a sociedade brasileira não estava preocupada com a condição dos escravos – não fosse a pressão externa -, e sim com o ganho de capital, tendo em vista que as terras se mostravam muito prósperas. Além disso, a maneira mais fácil de se alcançar os frutos da terra seria através do trabalho escravo, sobretudo por ser mais barato. Xica da Silva como os seus irmãos escravos pertenciam a uma classe de seres vivos, enquadrados socialmente como “objetos”, que somente conseguiam certa expressão social quando obtinham a carta de alforria, o instrumento que “conferia” a dignidade.
Curiosamente, avesso aos movimentos sociais mundiais, o Brasil se revelou ser um país muito acomodado com o estado da escravatura, corroborando tal assertiva pela abolição da escravatura, datada somente de 13(treze) de maio de 1888, por meio da Lei Áurea, ou seja, quase cem anos depois da morte de Xica da Silva. Caso não sofresse pressão internacional da Inglaterra, certamente o Brasil teria permanecido nessa condição por mais anos.
“Em pleno processo de emancipação política, as principais lideranças político-econômicas no Brasil estabeleceram negociações com a Grã-Bretanha no sentido de que, a partir de 1831, o tráfico de escravos no Atlântico seria formalmente abolido pelo império do Brasil. Entretanto, a matéria permaneceu sem solução definitiva, e o tráfico continuou a ocupar a posição de principal fonte de suprimento de mão-de-obra da agricultura de exportação. No final da década de 1840, porém, a Grã-Bretanha passou a pressionar as autoridades brasileiras para que a suspensão efetiva do tráfico fosse implementada”. (GOUVÊA, 2008, p.25).
A pressão parece não ter surtido muito efeito no âmbito interno, pelo menos naquele instante, posto que cresceu a entrada de escravos com o fito de suprir a necessidade de mão-de-obra. Tais atitudes foram realizadas para manter a produção de frutos e especiarias, como, por exemplo, de café, isso por volta do ano de 1845.
“Nesse período, um grande número de escravos ingressou no Brasil em reação à demanda gerada pela rápida expansão da produção do café e o aumento correspondente do tráfico de escravos no Atlântico. O enorme aumento da população escrava do Brasil contribuiu certamente para que as autoridades optassem por suspender em definitivo a importação forçada de escravos africanos para o país.” (GOUVÊA, 2008, p.25).
Importante observar as considerações de Ênio José da Costa Brito, quando trata do crescimento de atividade dos escravos:
“Em 1825, o tráfico negreiro mesmo ameaçado, continuava a crescer paraatender as grandes lavouras espalhadas pelas colônias das nações européias e do império Brasileiro. Experiências de trabalho livre ainda não se impunham como alternativa, deixando claro que a desintegração do sistema escravista seria lenta”. (BRITO, 2013, p. 13).
Assim, a população de escravos aumentava a níveis incontroláveis, o que certamente inquietava as autoridades brasileiras, especialmente pelo receio de ocorrer insurreições, como se pode notar nesse excerto: “O desequilíbrio demográfico entre as populações branca e negra se constituía em uma preocupação com a ordem social. Havia fortes temores de que grandes revoltas escravas pudessem se verificar no país.” (GOUVÊA, 2008, p.25 e 26).
Com essas considerações, nota-seque a preocupação central do governo brasileiro não estava em acabar com uma situação degradante a qual os escravos eram submetidos, mas sim manter a ordem ou evitar maiores problemas com outros países aliados. Em outros países a realidade era parecida, conforme dispõe essa citação:
“A escravidão foi sempre um problema de baixa prioridade, mesmo no período mais intenso da luta pela independência (1780-1820), a Espanha continuou comprometida com a continuidade da dominação e com a escravidão. Fato que ofereceu uma base sólida para a escravidão no Novo Mundo. A prática do tráfico de escravos nas sociedades latino-Americanas enraizara-se de tal modo que, só na década de 1830, sob forte pressão inglesa diminuiu.” (BRITO, 2013, p. 10).
Por isso, sem muito empenho da sociedade aristocrática brasileira, o processo de humanização e inclusão social dos ex-escravos perdurou por longos anos, promovendo reflexos na sociedade hodierna, que, em dados momentos, teima em desprestigiar os nossos irmãos afrodescendentes. Contudo, a dívida social é eterna, e o povo brasileiro tem de acolher todas as medidas legais, sobretudo as mais rigorosas, para impedir tratamentos discriminatórios.
Foram muitas as atrocidades cometidas contra os escravos, mas Xica da Silva soube e teve a oportunidade de reconstruir sua vida a partir de um sentimento que iguala as pessoas, o amor. Se ama no Brasil, no continente Africano, em Portugal, e em qualquer parte do mundo da mesma maneira, dessa forma o contratador português João Fernandes de Oliveira percebeu, como outros brancos daqueletempo, que o amor pode ultrapassar barreiras e propiciar o desejo de aproximar os seres humanos.
O sublime sentimento do amor, sentido pelo homem, certifica que todos somos iguais e podemos exercer e ocupar o mesmo lugar na sociedade, por isso Xica da Silva, contra todos os prognósticos, surpreendeu ao se colocar em condição bem privilegiada socialmente, inclusive acima de alguns brancos. Naquele período, enquanto a maioria dos escravos permanecia sendo tratado como “objeto”, Xica da Silva mostrou um fio de esperança e que dias melhores viriam, haja vista o reconhecimento de um contratador português quanto à igualdade e demais direitos inerentes à condição humana.
Desta feita, como a elite brasileira ignorava ou, mais provavelmente, fingia desconhecer a condição dos escravos como seres humanos, estes era tidos como “coisas”, recebendo o tratamento como tal, ou seja, eram constantemente feridos em sua dignidade e em seus direitos inatos, próprios dos seres humanos. Aplicavam-se penas excessivamente rigorosas pelo descumprimento de obrigações ditadas por seus senhores, tudo com anuência legal, com açoitamentos de todos os níveis, ablações, e até mesmo a pena capital.O artigo “A Lei da Morte:a pena capital aplicada aos escravos no Brasil Imperial” expõe o caso da pena de morte, disposto no Código Criminal de 1830:
“O artigo 113 [*8] , que enquadra o crime de insurreição, parece ter um cunho escravocrata, pois indica que no momento em que se reunissem vinte ou mais escravos para haverem por meio da força sua liberdade, aos cabeças destinava-se a sorte do grau máximo: a forca. E houve a necessidade de no artigo posterior explicitar que teriam a mesma penalidade, a de morte, quando os líderes do levante fossem pessoas livres [*9].” (PIERANGELIapud SANTOS, 2010, online)
Vejamos os artigos supracitados, do Codigo Criminal do Imperio do Brazil, datado de 16(dezesseis) de dezembro de 1830, para se ter uma noção da desproporção das penas aplicadas aos escravos insurgentes:
“Art. 113. Julgar-se-hacommettido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força.
Penas – Aos cabeças – de morte no gráomaximo; de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; – aos mais – açoutes.
Art. 114. Se os cabeças da insurreição forem pessoas livres, incorrerão nas mesmas penas impostas, no artigo antecedente, aos cabeças, quando são escravos. (BRASIL, 1830).”
Daí se extrai uma cruel realidade, do abismo que separava o homem branco do afrodescendente. A maior parte dos castigos e penas mais severas era direcionada aos pequenos atos cometidos pelos escravos que se rebelavam contra o sistema. A injustiça e a desumanidade saltavam aos olhos, só não dos “cegos” aristocratas brasileiros, que não queriam perder tamanha regalia que o trabalho escravo oferecia. Em troca de todas as vantagens auferidas – frise-se pelos trabalhos forçados -, retribuíam-lhes com o mais baixo tratamento e com o mínimo de condição para a subsistência.
Inicialmente, quando os escravos chegavam ao Brasil, recebiam tratamento diferenciado, mas somente para se tornarem apresentáveis aos possíveis compradores (infelizmente, não por serem considerados seres humanos):
“Assim que chegavam ao Brasil, eles eram postos em quarentena, a fim de evitar mais perdas por doenças. E, para causarem boa impressão, submetidos à engorda e besuntados em óleo de palma, que escondia feridas e dava vigor à pele. Faziam exercícios para combater a atrofia muscular e a artrose. Depois, seguiam para os mercados de negros da cidade, como o Valongo, na Gamboa, região central do Rio de Janeiro. De cabelos raspados, velhos, jovens, mulheres e crianças eram avaliados pela clientela, que apalpava dentes, membros e troncos. Um viajante alemão, em viagem à Bahia no século 19, descreveu: "Assim, pelados, sentados no chão, observando, curiosos, os transeuntes, pouco se diferenciam, aparentemente, dos macacos".(DEURSEN, 2009, online).
Nesse pequeno relato acima mencionado, de um alemão no Brasil do século XIX, observa-se a consideração dada aos escravos, dizendo que “pouco se diferenciam, aparentemente, dos macacos”(DEURSEN, 2009, online). Só pelas palavras, vê-se que o tom é depreciativo, insinuando, talvez, que seriam seres inferiores, não pertencentes ao mesmo patamar dos brancos brasileiros. Hoje, no Brasil, um insulto dessa proporção leva um indivíduo à cadeia, por crime de racismo, conforme dispõe o art. 5º, inciso XLII –“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;” (BRASIL, 1988).
Numa visão social e jurídica, vê-se que naquela fase a sociedade brasileira tinha os escravos como se fossem objetos, que poderiam ser vendidos, trocados, escolhidos etc. Na forma mais usual, firmava-se um pacto, geralmente escritura pública, pelo qual era transmitido o objeto e o vendedor recebia o preço combinado.
“O escravo era tratado como objeto e como tal podia ser vendido, alugado, emprestado comouma mercadoria qualquer, nem tinha permissão de ir e vir por conta própria não tendo destaforma a suprema propriedade do seu próprio corpo.” (CRUZ, 2007, p. 6).
As formas de negociação demonstram como o ser humano servia ao próprio ser humano, e como o “objeto” tinha várias utilidades para os seus proprietários, sem, contudo, estes observarem que se tratavam de seres humanos iguais, com as mesmas dores, sentimentos etc. Chegava-se ao cúmulo da insignificância humana quando, por exemplo, se vendia somente parte do “objeto”.
“No desenvolvimento da pesquisa nos documentos referentes à compra e/ou venda de escravos registrados nos Livros do Notariado de São Mateus, constatamos a existência de variados tipos e/ou formas de efetivação de tais atos comerciais, dentre os quais predominaram as escrituras de vendas ou compras individuais de escravos, sendo que também identificamos a ocorrência significativa de casos envolvendo compras ou vendas coletivas, ou seja, de vários escravos negociados em uma mesma escritura.
Ainda acerca da variação nos tipos de escrituras de compra ou venda de escravos, verificamos a ocorrência, em menor proporção, dos casos de compra e/ou venda da metade do escravo, além de outras situações mais atípicas, tais como a negociação de três quintas partes, da quinta parte e/ou da décima parte do valor de determinados escravos. Também foram identificados casos peculiares, como a venda “condicional” de um escravo, a venda de escravos que já se encontravam hipotecados com os respectivos compradores e uma escritura relativa à venda de escravos juntamente com bens imóveis.” (RUSSO, 2012, p.5).
2. Críticas pormenorizadas acerca do livro “xica da silva”, de joão felício dos santos, bem como do filme “xica da silva”, dirigido por carlos diegues
Empós essa análise sobre o contexto ao qual estava inserida a história de Xica da Silva, compatibilizando com acontecimentos relevantes para facilitar a compreensão da vida de Xica da Silva, passa-se a ponderar fatos narrados no livro e outros eventos ocorridos no filme:
O início do filme traz uma narrativa do lugar, tempo e uma simples explicação da história do local. A história se passa na segunda metade do século XVIII, nas proximidades do Arraial do Tijuco (hoje cidade de diamantina em minas gerais), sem maiores explicações sobre a realidade da época.
O diamante era tirado nos rios e servia à coroa portuguesa, tratava-se de bens de propriedade da coroa já que o Brasil da época era colônia e por lei 1/5 de toda a riqueza deveria ser enviada à Portugal, como se percebe em varias passagens do filme em conversas entre o contratador e os demais integrantes da nobreza.
O filme tem início com uma música de flautas e violino com negros servindo aos senhores brancos.O contratador de diamentes era a patente mais alta do local e no filme ele chega sozinho a cavalo sem nenhuma escolta armada, apenas com escravos. Para a época um senhor de tão grande importância e representante do Rei de Portugal que iria administrar a terra mais rica do Brasil, não estaria apenas com escravos, correndo riscos de ser roubado ou até mesmo morto.
Ainda colocado no livro, o Senhor Contratador era:
“Para o intendente, para o sargento-mor e até mesmo para o pároco do Carmo, os mais elevados poderes da terra, se não considerarmos o maior – o poder econômico que era o próprio contratador dos diamantes, com sua fabulosa riqueza (…)”(SANTOS, 2007,p.17)
No filme o contratador de diamantes chega como um homem simples, tanto é verdade que não é tido como alguém da alta nobreza pelos músicos que no início do filme tocam com o contratador recém chegado.
Após tocar a música, os músicos (no meio do campo) informam que no local eram sonegados impostos e que diamantes e ouro eram tidos como roubados para que os próprio governantes do local (intendente) obtivessem essas riquezas e não as enviassem a coroa de Portugal, incriminando ainda outras pessoas. Aqui já a existência de corrupção, sonegação de imposto, apropriação indébita e imputação de crime.
O roteiro do filme teve como integrante o próprio escritor do livro: João Felício dos Santos, atuando ainda como ator no filme, sendo o pároco do Carmo.
Inicialmente, vê-se que a história de Xica da Silva, apesar de um acontecimento verídico, é envolvida por muitos mitos e episódios curiosos, que, certamente, não condiziam com a realidade da época. Tanto o livro como o filme supramencionados forçam muito para o lado da sexualidade de Xica da Silva, como sendo uma mulher que praticava livremente o sexo, cheia de artimanhas para conquistar os homens. Em certos momentos do livro, parece até haver um certo exagero nas palavras ao citar a sensualidade de Xica:
“Jogando adivinhação aflita no que positivamente não conseguia ver (a vaca da Hortênsia que se danasse!), o Mucó, do apelido-vingança do povo, não atinava perceber que Xica, filha-da-puta mais traiçoeira do que leite posto a ferver em fogo alto, realçava o macio enxuto de suas curvas em sortidos gingos de inocentes cores. (SANTOS, 2007, p. 20). […]
Buscava e se ria. Se ria nervoso. Se ria e mordia aqui e ali ou onde calhasse que Xica era doce e tinha sabor na pele aflorada. E Xica gostava de ser bem mordida, por isso passava no corpo umburana..”(SANTOS, 2007, p. 14).
No primeiro aparecimento de Xica da Silva, ela é chamada pelo filho do sargento-mor (seu proprietário) como se fosse uma galinha (animal) já estava junto delas realizando trabalhos domésticos, no interior do Brasil as galinhas são chamadas dessa forma.”tititititiiiiiiii ou txitxitxitxitxi” e no filme a xica escrava era chamada em um tom de brincadeiras pelo filho do sargento-mor “xiiiiiica, xiiiiiiiica, xiiiiiiica, xiiiiiiiiiica”. O filme traz a realidade de como os escravos eram tratados, como animais, sem nenhum respeito.
E logo que foi chamada como uma galinha, xica é atacada pelo filho do sargento-mor e usada também como escrava sexual, sendo que no filme, xica aparentemente gosta de ser usada sexualmente por seus senhores.
No filme o escravo tratado como mercadoria no qual se herdavam também os escravos assim como se faz com os semoventes, podendo ainda estes serem comprados e apenas seus donos darem a sua liberdade (carta de alforria).
Todo esse inicio não consta no livro. O livro começa a abordagem histórica e fala um pouco dos personagens da historia. Mas o filme somente se encontra com o livro na cena do sargento-mor chamando por Xica da silva para dizer-lhe onde colou as calças do sargento-mor.
Houve um acontecimento que marcaria a vida de Xica da Silva, a chegada do contratador português João Fernandes de Oliveira, enviado pelo Marquês de Pombal para regularizar a situação pertinente aos garimpos e à negociação de pedras preciosas. Isso se deu no dia 10(dez) de setembro de 1758, mobilizando toda a cidade e suas autoridades para a chegada do importante e rico português.
Há fatos peculiares contados no livro, como, por exemplo, de que a esposa do intendente, dona Hortênsia era uma mulher que punha “chifres até no capeta”(SANTOS, 2007, p. 11), o que de fato não se vê explicitamente na apresentação do filme. Outro fato bastante curioso, não exposto no filme, é que Xica da Silva possuía dois filhos, quando tinha apenas dezessete anos, juntamente com o pároco daquela comunidade:
“Acontecia que, alizinho, bem justamente no porão da casa, Xica, bata e saia não guardando dezessete anos de idade e sacanagens diversificadas, bastante demonstradas nos seus já dois mulatinhos tidos e havidos do padre que, agora, por imprestabilidade para seus carinhos inconclusos, de íncubo, a vendera (barato até) ao sargento viúvo pra dar-lhe cor à casa solteira de fêmea, ergueu-se num ímpeto quente bem da raça africana, como se desmanchasse, no chão, um bolo de muçuns.” (SANTOS, 2007, p. 13 e 14).
O livro passa maiores informações sobre como era a vida na terra de Demarcação, e as arbitrariedades cometidas pelas autoridades da região, conforme o trecho:
“de um povo coitado, morador na Demarcação, possesso da força de grave injustiça, papando cadeia por dá-cá-aquela-palha! e, de sobremesa, despejos, devassas, e o mais, sem provas nem nada, só por suspeição das autoridades, incluso sumiço sem termo…”(SANTOS, 2007, p. 12).
A ida ao Brasil do contratador João Fernandes de Oliveira tinha por objetivo controlar a situação da comercialização de pedras preciosas, notadamente para repassar tais benefícios à Coroa. Contudo, a questão possuía um lado problemático, a dos garimpeiros e dos contrabandistas, que comprometiam o fluxo desses bens a Portugal. No filme não se vê a morte dos contrabandistas, que, do contrário, fazem uma espécie de “negociata” com o contratador, ou mesmo há uma tolerância por parte deste.
“O resultado é que a história não guardou um único exemplo de algum daqueles contraventores que tivesse escapado com vida, ainda que mutilado, das unhas dos canalhas do Conselho Ultramarino…” (SANTOS, 2007, p. 17).
Noutro momento, vê-se mais uma vez que Xica da Silva chama a atenção dos homens da região, desta vez do intendente, Francisco José Pinto de Mendonça, que, no livro, demonstra bastante interesse por comprar a escrava, como se estivesse hipnotizado por sua beleza. Já no filme, não há tanto interesse assim. Xica da Silva é “analisada” rapidamente pelo intendente no filme, enquanto que no livro a análise é bastante minuciosa, e sem intervenção de Xica, que somente pensou em aplicar-lhe uma mordida. Mas, quando já tinha posição social (como companheira do contratador), Xica aplicou-lhe, com gosto, a merecida mordida na mesa da Casa do Contrato, para a vergonha do intendente, conforme o trecho: “Xica, ajoelhada a seus pés que curvavam pra dentro de dor, dentes fortemente cerrados em seu indicador, tinha um jeito singular de beleza e ferocidade, não obstante sorrir.” (SANTOS, 2007, p. 120).
No livro há referência a um “cerimonial” executado pelas autoridades locais para receber alguma autoridade de Portugal, onde ficavam num dado espaço, qual seja: “os círculos abertos no claro varrido entre a folhagem verde que atapetava todo o chão, desde a entrada da vila” (SANTOS, 2007, p. 27). Observe-se que no filme as autoridades locais não esperam o contratador no ambiente segundo consta no livro. Ademais, no livro há uma longa recepção, com cortejos infindáveis, que já cansavam o contratador: “Passava das onze horas quando João Fernandes, bufando calores da serra e não se agüentando mais de tanta chateação, perguntou-afirmando ao difuso de em roda: – Bem…por hoje, basta!” (SANTOS, 2007, p. 39). Tal fato não ocorre na mesma proporção no filme.
Na chegada do contratador músicas africanas são tocadas, com tambores, o que para a época não seria apropriada, principalmente quando se verifica que o contratador no início do filme toca flauta e é amante de musica européia e pelo preconceito com os negros que havia na época não seria uma música africana a tocada para dar boas vindas ao contratador de diamantes.
Lembrando que na época as leis vigentes em Portugal e no Brasil era as Ordenações Filipinas e estas continuaram até 1830. E dentre as previsões legais tinha-se uma proibição legal dos nos quais os negros não poderiam se juntar para realizar qualquer baile seja durante o dia ou a noite.
“Os escravos africanos, que chegavam a Portugal em grande número nesse século, trariam um tipo de música que não se enquadrava nos princípios de civilização adotados nas cidades renascentistas. Por isso, as Ordenações Filipinas ainda contém, no Livro 5º, Título 60, uma determinação intitulada “Que os escravos não vivam per si e os negros não façam bailes em Lisboa” que, mesmo aplicada somente àquela cidade, inspirou adaptações para o caso brasileiro, como abaixo veremos:10
“E bem assim na cidade de Lisboa, e uma légua ao redor, se não faça ajuntamento
de escravos, nem bailes, nem tangeres seus, de dia, nem de noite, em dias de festas, nem pelas semanas, sob pena de serem presos, e de os que tangerem, ou bailarem, pagarem cada um mil réis para quem os prender, e a mesma defesa se entenda nos pretos forros.” (CASTAGNA, 1998, p.3 e 4)
Entretanto no filme, por diversas vezes as musicas e festas africanas são constantes o que não tem qualquer semelhança com o que realmente se passava na época. Principalmente quando essas músicas eram usadas em festas para os militares e pessoas da mais alta nobreza Portuguesa.
Fato que possivelmente não ocorreria na época seria a cena do sargento-mor sem as calças e sem se preocupar muito com a visita do intendente (homem de maior patente da coroa no local na ausência do contratador). Para os costumes da época seria muito mais que uma imoralidade, sendo também um caso de prisão, entretanto o filme tenta dar aos telespectadores um ar mais cômico, brincando com uma situação que não se veria na época.
“As Ordenações Filipinas8 compreendem o conjunto das leis civis em vigor,durante quase todo o período colonial. Influenciadas pelo Direito Canónico, considera os crimes que se seguem como sendo contra a moral. (…) Quando se procede contra públicos adúlteros, barregueiros, concubinarios, alcoviteiros, e os que consentem as mulheres fazerem mal de si em suas casas, incestuosos, feiticeiros, benzedeiros, sacrílegos, blasfemos, perjúrios, onzeneiros, simoniacos, e contra quaesquer outros, que commetterem públicos delictos… os que dão publicas tabolagens de jogo em suas casas (…).' (DA SILVA, link, p. 223)
O código Filipino foi criado em 1602 e teve vigência até 1830 quando foi promulgado o Código criminal do Império. Junto e parelamente às Ordenações, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, formavam o conjunto de disposições legais a que estavam sujeitos os habitantes da capitania das Minas Gerais.” (DA SILVA, link, p. 223)
No livro, Zezé, filho do sargento-mor, faz duras críticas ao explicar a Xica a função de contratador e, por conseguinte, aos portugueses. Todavia, no filme não há tanta polêmica quanto a essa questão, nem mesmo a discussão alongada que há no livro – Xica, esperta, sabia que não era apropriado fazer tais críticas, uma vez que Zezé poderia sofrer ameaças etc.
Outro episódio engraçado tratado no livro é o do animal que trouxe o contratador, um burrinho – uma vez que o cavalo reservado a ele fora apanhado por Teodoro, este denominado no livro como assaltante -, que no fim da jornada extenuante resolveu urinar próximo às autoridades, pegando-as a urina, e se viram desconcertadas com a situação, sem reclamar. Tal fato não ocorre no filme.
O contratador percebeu que Teodoro era como uma figura emblemática local, portanto, desejava, ao contrário do que muitos pensavam, conhecer tal pessoa. Nesse momento de divagação pessoal, o contratador recordou-se de seu pai, também contratador, ao citar as seguintes frases: “Veja bem, meu filho, que o homem é o único animal que persegue o seu semelhante…que serve a outro homem, quer como escravo, quer como criado, quer como sabujo” (SANTOS, 2007, p. 34). Talvez sem perceber, fez alusão à dignidade da pessoa humana, tão desgastada e desrespeitada naquele tempo pelo domínio do homem ao próprio homem.
As cenas de encantamento entre o contratador e Xica da Silva demonstram que o envolvimento era mais sublime que o mesmo momento tratado no filme. Xica da Silva verdadeiramente se apaixonou pelo homem, e ele por ela, com trocas de olhares e gestos que enlaçavam cada vez mais os corações dos dois. No filme, do contrário, trata o momento do contato dos dois como excessivamente sexual, uma vez que Xica tira a roupa para chamar a atenção do contratador, que, só depois disso, encanta-se pela moça. Frise-se que, no livro, também Xica da Silva tira a roupa, contudo, deduz-se que João Fernandes já reparava a escrava antes disso. O romance de Xica da Silva com o contratador foi mais sutil e encantado no livro do que no filme.
“Xica teve então a mais viva certeza nascida das cores mais claras da realidade, que o mozambo das ásperas críticas de Zezé, naquele momento separado de alegria, não estava pensando em mais nada senão nela; que o contratador era um homem muito formoso com aqueles fios de cabelo branco de puro enfeite, e que, evidentemente, ainda a buscava entre aquela gente aborrecida que teimava em o cercar. (SANTOS, 2007, p. 37 e 38).
Por fim, em passos quase dançados e volteios de mil graças, Xica ia rasgando aos poucos a roupa pouquinha:” (SANTOS, 2007, p. 69).
Em razão desse encantamento, Xica se mostrava agressiva a qualquer ataque a imagem do contratador, sendo hostil ao repreender Zezé. No filme tal atitude não é tão rude. Vejamos um trecho do livro: “Xica, uma fúria, atirando-se de mãos e pés contra Zezé, crescia em raivas soltas pelo que o rapaz lhe havia mentido sobre o contratador, na figura geral dos contratadores e outras autoridades de seu malquerer.” (SANTOS, 2007, p. 38).
No livro, vê-se que há muitos momentos de estripulias sexuais de Xica, reforçando, mais que no filme, que Xica era uma mulher que tinha muito apetite sexual. Como demonstrado alhures na análise histórica, infere-se que as escravas geralmente eram forçadas a ter relações com seus senhores, e não realizavampor livre vontade, assim como Xica, relações sexuais com tanta frequência com homens brancos. Outro fato relevante observado nesta citação é que no filme, diferentemente do livro, o padre Rolim não era explicitamente lançado às relações sexuais, sendo mais recatado.
“Quando Xica viu que o amo estava quietinho no chão, apenas mal respirando satisfações conclusas a duras penas, o camisolão enrolado no pescoço e as amostranças inteiramente derrotadas, ergueu-se, sorriu vitórias, enxugou na barra da saia seu pecado retumbante nos mais acentuados ruídos e, pé ante pé, saiu ao encontro de Manelote, o filho mais taludinho do padre Rolim, também já a caminho do seminário, e que, seguindo os passos de Zezé, iniciava jornadas floridas pela mão de Xica.” (SANTOS, 2007, p. 46).
Apesar do envolvimento de Xica e do contratador, o romance foi cercado, estranhamente, por momentos de indiferença, talvez por razões culturais ou por medo, pois o contratador quis evitar uma maior profusão de sentimentos. Por fim, acabou cedendo aos encantos de Xica. No filme não se observam esses momentos de indiferença.
“Por mais que diligenciasse ser percebida, João Fernandes não a olhava. Ao contrário, virando-se para dentro, perguntou ao escravo das duras fidelidades, como se falasse para si mesmo, buscando encher o tempo doce do cair da noite: (SANTOS, 2007, p. 47).
Foi quando Cabeça resolveu explicar. Nesse momento, João Fernandes tornou a olhar a rua e seus olhos pararam na figura de Xica, como por acidente.[…]
Cabeça parou um pouco sua fala para seguir os olhos do amo, esquecidos maquinalmente na figura de Xica, recortada nas primeiras sombras noturnas, erguida, sozinha, bem no meio da praça: cabeça bem levantada nas afrontas, peitos empinados, nádegas tesas, Xica encarava firme para o homem da janela. (SANTOS, 2007, p. 48).
Enquanto João Fernandes, ao rebrilho das primeiras estrelas, se recolhia indiferente, para desespero da mulata mais atrevida da Vila do Príncipe,” (SANTOS, 2007, p. 49).
A esposa do intendente, dona Hortênsia, mostrou-se no livro demasiadamente encantada pelo contratador, o que a levou a escrever uma carta evidenciando, entre outras coisas, o seu desejo em trair o marido. Tal episódio não ocorreu no filme, somente se pode notar uma certa atração de dona Hortênsia pelo contratador. A mesma senhora aproveita a carta para expor o poder que seu marido e, por conseguinte, ela exercem naquela terra.
“- Isto, meu contratador das dúzias, é pra que tu não me ponhas as manguinhas de fora e queiras ser o rei cá da Demarcação. Hás de me respeitar e obedecer que, se o Mucó não der de si (o que não há de dar mesmo), terás, por trás dele, minha vontade e minha ordem. – Agora, com menor diversão, dona Hortênsia terminou apressada: “Porém o que mais nos aterra nesse oferecimento libertino para a traição ao marido, é que ao cujo supracitado, pouco se lhe dava o que ia mesmo por debaixo de sua penca.” (SANTOS, 2007, p. 51).
No livro de João Felício dos Santos, “Xica da Silva”, tem-se a impressão de que o intendente possui um porte de homem forte para gordo, haja vista que em dados momentos o denomina como “pesadão” e “engordava”. Já no filme, o intendente Mucó é tratado como um homem de porte médio.
Importante ainda demonstrar que o Senhor contratador dos diamantes estava cometendo o crime de adultério o que poderia levá-lo a uma condenação, entretanto não se observa no filme qualquer menção quando ao crime praticado.
“As Ordenações Filipinas8 compreendem o conjunto das leis civis em vigor,durante quase todo o período colonial. Influenciadas pelo Direito Canónico, considera os crimes que se seguem como sendo contra a moral. (…) Quando se procede contra públicos adúlteros, barregueiros, concubinarios, alcoviteiros, e os que consentem as mulheres fazerem mal de si em suas casas, incestuosos, feiticeiros, benzedeiros, sacrílegos, blasfemos, perjúrios, onzeneiros, simoniacos, e contra quaesquer outros, que commetterem públicos delictos… os que dão publicas tabolagens de jogo em suas casas (…).” (DA SILVA, link, p. 223)
No livro citado, a figura do pároco é vista como um homem cheio de defeitos, com atitudes que vão de encontro à conduta esperada pela sociedade quanto a um padre. Vejamos: “o pároco do Carmo, sacana, gozador e manata até da bacia das almas, tratava de comer bem, beber do melhor e marretar à vontade;” (SANTOS, 2007, p. 54). No filme, o padre não mostra este comportamento.
Percebe-se também que, no livro, o ouvidor é tido como o homem menos considerado pela comunidade, uma vez que reunia características repugnantes para todos. Já no filme, o ouvidor mal faz parte do elenco, portanto, com pouca interferência no enredo.
“o ouvidor, pior ainda, peco de inteligência, passava seu tempo a papar o que podia, tanto de pratos como de cama. E note-se que a palavra “cama” aí entra como mera força de expressão porque o malandro trepava mesmo aonde calhasse, em quem calhasse, e como calhasse, sem qualquer preferência por local, maneira ou pessoa.” (SANTOS, 2007, p. 54).
Um grande acontecimento naquela cidade foi o dia da audiência geral oferecida pelo contratador, a contragosto das autoridades locais, pois algumas acabaram se submetendo às suas análises. Tal situação ocorre no filme, mas não tão repleta de detalhes como no livro, este com episódios inusitados como da devolução do cavalo branco por um homem, a mando de Teodoro, o garimpeiro, acompanhada de presentes, diamantes.
A audiência geral ocasionou uma reunião entre o contratador, o intendente e o sargento-mor, na qual o contratador solicitou uma série de exigências às autoridades locais, sobretudo para compreender a retirada de materiais preciosos e os devidos tributos da localidade, com o fito, ainda, de entender alguns fatos ocorridos, como, por exemplo, o roubo do cofre da Intendência (contado pelos músicos Matias e mestre Raimundo). Além disso, o contratador requereu rever contas etc., mas tal fato não aconteceu, desta maneira, no filme.
“- Deixemos os garimpeiros pra lá…por enquanto. Isso será um outro assunto. É que, antes, temos coisas a verificar dentro de casa mesmo, me entendem? – João Fernandes passa a examinar livros que folheia por alto, como a ordenar suas idéias. – Passem-me os balanços anuais… o caderno de lançamentos… as guias de recolhimento de julho em diante…” (SANTOS, 2007, p. 66).
Xica da Silva mostra-se, além de muito esperta, bastante inteligente, não é à toa que ganhou o coração do contratador, contra todas as expectativas. Essas qualidades certificam a condição de Xica como ser humano igual a todos, sendo fatores que ajudaram a promover a suadignidade tão almejada. Vejamos: “Sem tirar os olhos do contratador, a ver até que ponto poderia chegar com segurança, começou a cantar um lundu de barrigada.” (SANTOS, 2007, p. 70).
“Xica, as amêndoas negras dos olhos voltadas para as estrelas que se viam dali, enormes como rosas de luz, sentiu que não só já havia conquistado sua carta de alforria, como ganho de presente seu primeiro escravo de verdade”. (SANTOS, 2007, p. 79).
Xica da silva invadindo uma reunião dos mais importantes patentes da época não seria possível tendo em vista a grande escolta militar. Xica ainda fica nua na frente de todos, o que na época poderia até levá-la a morte. Entretanto nenhum castigo foi dado a ela ou ao seu dono. O contratador acaba por comprar xica da silva realizando um contrato de compra e venda de uma escrava.
Vê-se que o contratador, aproveitando o momento delicado da reunião com o intendente e o sargento, demostrou interesse em ter Xica da Silva, o que lhe calhou como oportuno para possui-la. O contratador já vislumbrava algo maior com Xica. Ou seja, um homem branco, sem preconceito, diferentemente dos demais daquela cidade que abusavam de todos os modos dos escravos, queria verdadeiramente dar uma vida melhor a Xica da Silva.
“- Enquanto os amigos pensam na transação, quero dizer-vos que, dívidas particulares, em minha gestão, não tiram o sono às pessoas que eu estimo, como é o caso aqui. Na verdade, as coisas bem apuradas, em uma devassa, por exemplo, que eu posso ordenar uma devassa, podem dar até em degredo para a África, senão coisa pior!”(SANTOS, 2007, p. 73 e 74).
Um exemplo dos maus tratos aos escravos pode ser ver na conversa do sargento com o filho, Zezé, sobre Xica da Silva, devassando a imagem dela:
“- Era contigo…era comigo…
– Com Vossa Mercê também?! Era com o arraial…com a vila em peso…com a comarca! Aquilo vai longe… e, como não é de perder tempo, já deve estar, uma hora dessas, enfiada na cama do valdevinos…” (SANTOS, 2007, p. 76).
Apesar de se envolver definitivamente com o contratador, Xica ainda guardava carinho por Zezé, tanto no livro como no filme se vê esse apreço, conforme o seguinte excerto: “E Xica lembrava Zezé, tão menino, no estouro da idade mas tão frouxo já! Pior do que o pai, mas tão bom menino… Saudade de Xica pairava em Zezé.” (SANTOS, 2007, p. 80).
Xica da Silva era moça que criava várias artimanhas para conquistar ainda mais o contratador e, nesse sentido, às vezes praticava atos naturalmente, como por instinto, ou por aprendizado da vida. Nesse momento, apresenta-se mais uma vez a relação de Xica com o padre, algo que não aparece no filme.
“- Xica forçava o amante nos descaminhos rasgados do sexo florido na raça estrumada na África. E Xicalembrava de mais novidades aprendidas com o padre que lhe pôs um filho na barriga novinha, quando ainda não tinha nem jeito de gente…” (SANTOS, 2007, p. 81).
Extasiado, com tanto amor por Xica, o contratador até esquece por um instante quem era sua esposa: “- Não sei,Xica… verdadeiramente, não sei mais. Com você, não consigo me lembrar de coisa alguma! Deix’eu ver… ah! Já sei!, é triste, pálida e fria.” (SANTOS, 2007, p. 82).
Dona Hortênsia, revoltada com a posição privilegiada a qual se encontrava Xica, reagiu por meio de cartas endereçadas ao Marquês de Pombal, em Portugal, contando todos os tipos de insultos, até mesmo falsidades. Este fato não fora descrito, dessa maneira, no filme. Ademais, essa situação reflete o pensamento daquela sociedade, que não suportava ver a ascensão de um escravo à condição de igualdade ou superioridade social.
Observa-se que a compra e venda da Xica da Silva poderia ser passivo de nulidade tendo em vista que no filme não era da vontade do sargento-mor vender Xica, mas por conta das não cobranças dos impostos e evidentes ilicitudes causadas pelo sargento-mor e pelo intendente, o sargento-mor foi coagido a vender xica da silva.
Nessa parte do filme, vemos uma afronta ao princípio da pacta sunt servanda, tendo em vista que não havia a vontade de ambas as partes, foi, em verdade, o sargento-mor obrigado a vender Xica ao Contratador.
Xica tinha um carisma tão grande e conseguia articular bem toda aquela situação, que as pessoas já se aproximavam dela como sendo uma senhora da sociedade: “E, assim, bem nesse passo, muita gente livre de ao redor também já chegava pra tomar a bênção, pedir um conselho, um favor, deixar obediências…” (SANTOS, 2007, p. 85). No filme as pessoas não mostravam tanta aproximação a Xica.
João Fernandes conseguia a prosperidade tão almejada, mesmo sem muitos esforços para mudar a realidade. Ocorre que ele sabia, meio que por acaso, onde encontrar as pedras preciosas. No filme ele “usa” o talento de Teodoro para achar as suas minas.Na película se percebe a produtividade por meio da extração de pedras preciosas, mas não parece ser algo tão diferente do que ocorria outrora.
Xica tinha o desejo de ganhar mais conhecimento, seguramente porque compreendia que o saber é uma condição que proporciona a dignidade à pessoa humana. Xica queria verdadeiramente fazer parte da sociedade, com todas as possibilidades as quais fazia jus. No filme não há esse interesse de Xica.
“- Mas não quero troço de me judiar muito a cabeça, já viu? Quero ter quem me ensine onde é Paris e como é a corte, por dentro. O mar! Quero saber como é o mar, que cor tem, que jeito… Os navios. Quero saber também, bem depressa, como é que se lê e escreve uma carta.” (SANTOS, 2007, p. 88).
Xica ganhou do contratador os sapatos brancos que tanto desejava, os quais renderamum verdadeiro ritual para calçá-los – não se vê este ritual no filme. Mas os sapatos eram somente um símbolo do poder que Xica possuía como ser humano, que estava num mesmo patamar de igualdade aos demais indivíduos daquela cidade. A bem da verdade, os sapatos recordavam-lhe constantemente que ela era digna de todos os direitos e garantias que todos possuíam.
“Mas foi só quando, atrevida, ao largar o braço de João Fernandes para dar seu primeiro passo, sozinha, calçada em sapatos, Xica sentiu-se realmente independente. Daquele momento em diante, seria uma senhora dama e a mulher mais poderosa de todo o Distrito.” (SANTOS, 2007, p. 92).
Além de se sentir bem, gozando de todas as prerrogativas inatas ao ser humano, Xica queria transparecer a sociedade e verdadeiramente insculpir na mentalidade daquela gente que isso era possível e era o natural, e não as atrocidades que praticavam contra os afrodescendentes. Mas, infelizmente, a maioria da população ainda tinha muito preconceito contra a sua cor. Igualmente no filme, isso é bem claro.
“Pois foi muito assim: Xica-Loucura marcou o domingo pra missa esperada e havia de ir de cadeirinha nova, o Chico e o Paulão pegando os varais; com suas mucamas mais moças, vestidas bonito, a pé, a seu lado, em fila morosa. (SANTOS, 2007, p. 94).[…]
Mas a missa do Carmo tinha um senão: só gente branca, sem mancha de sangue africano, podia ir ver a missa bonita da Igreja do Carmo!” (SANTOS, 2007, p. 95).
Com todas essas características de mulher guerreira, Xica conseguia cada vez mais a simpatia do povo de sua origem, pois, certamente, via nela um exemplo a ser seguindo, bem como a possibilidade de uma vida melhor. Xica era uma espécie de paradigma dos novos tempos.
Por outro lado, tamanha a raiva que sentia dos homens brancos pelos maus momentos passados em seus domínios e como reflexo de tudo o que acontecia com os afrodescendentes, houve momentos em que Xica teve sentimento de vingança:
“Vestida por Zefinha e outras pequenas escravas ajudantes, a troco de tapas, beijos e ralhos, Xica-Vingança dos Ódios Dormidos, empurra com o pé, com grande desprezo, a cabeça de Zé Gato que terminou de lhe fazer os pés com esmero. (SANTOS, 2007, p. 98). […]
Xica queria, por cima de tudo, o agrado da gente de sua cor, dos molequinhos bem negros, de piche, ranhentos, chorões… Mas queria também, mais ainda e conforme já ficou bem claro no que foi contado, a humilhação das pessoas brancas, sobretudo das bestas da nobreza de merda que, nobres, pra ela, não valiam o peido de um escravo molambento. (SANTOS, 2007, p. 101).”
A carta de alforria, símbolo da dignidade naquela época, poderia ser conquistada por meio de um acontecimento imprevisto, que um escravo trabalhador achasse uma pedra grande, de tamanho bem fora dos padrões, o que lhe conferia a liberdade. Esta informação é ocultada no filme. Vejamos: “Teve de libertar nada menos do que quatro negros da extração, cujas cartas de alforria acabara de assinar, por terem os felizardos encontrado gemas valiosas, muito acima da tabela.” (SANTOS, 2007, p. 106).
Houve situações em que Xica se deparou com a cruel realidade da época, o preconceito – diferentemente do ambiente de sua casa –, que lhe tirava, por uns instantes, a esperança de dias melhores e aumentava a mágoa daquela gente. Como nos casos:
“–Infelizmente… Infelizmente, Xica… senhora dona Xica…não posso! É que são regulamentos… regulamentos,sabe? A senhora não pode entrar! (SANTOS, 2007, p. 103).[…]
Não é por minha vontade, compreenda bem, mas – frisou o padre – é que não são só os cativos que não podem entrar… veja bem! Só pode entrar no Carmo gente… clara, me entende? Me entende, minha filha? Branca! É isso! Os regulamentos… (SANTOS, 2007, p. 104).
Humilha e ofende quem tem a ventura de ser moça virgem e de não ter, muita graça de Nosso Senhor, um pingo de sangue da raça nojenta das peças que a suja da Xica protege…” (SANTOS, 2007, p. 112).
Há um acontecimento relevante no livro que é apresentado no filme muito superficialmente, referente à construção de uma igreja só para Xica da Silva. Essa construção certifica o poder que Xicaexercia e o carinho conquistado de seu amor, o contratador, que lhe proporcionava mil e uma vontades. O contratador certamente entendia que Xica precisava ser feliz depois de tudo que havia passado, e, talvez, quisesse dizer à sociedade que isso correspondia à justiça. Nesse sentido, segue uma citação do livro: “Vou chamar, amanhã mesmo, presta atenção: amanhã mesmo, mestre Felipe da Rocha para levantar uma igreja inteirinha só pra ti. Mas uma igreja de verdade, com nave, altar, púlpito, adro, tudo…” (SANTOS, 2007, p. 107).
O livro direciona muito o pensamento para a sensualidade advinda da África. Em alguns trechos, faz subtender que os afrodescendentes têm em seu sangue a sensualidade típica dos seus antecedentes, como nesse evento: “já suas mãos em pleno exercício de excitação, com a singular habilidade trazida no sangue, e desde muito cedo despertada sozinha, para fazer transbordar o instinto africano,” (SANTOS, 2007, p. 108). Entende-se que o livro e também o filme prestigiam muito a sensualidade, tornando Xica às vezes uma personagem meramente “sexual”, e valorizam pouco o afrodescendente como ser humano.
Observa-se no livro e no filme o tratamentoindigno da época dado aos afrodescendentes, como sendo objeto de troca, assim como expõe esta citação: “Tenho um negro purgado, que o valdevinos embuchou de uma vez. Tomara que escape porque, se sarar, vendo logo a peça por ordinária! Preciso é de uma traquitana ou mesmo liteira. Um carrinho novo bem reforçado, tirado por mulas que, negros, hoje em dia…” (SANTOS, 2007, p. 111).
Xica queria se impor socialmente, daí infere-se que esbanjava riqueza para mostrar aos demais a que tipo de sociedade ela pertencia, aquela que valorizava as pessoas pelo dinheiro. Portanto, se era dessa forma que se ganhava o respeito, Xica queria impressionar cada vez mais com sua opulência.
No filme e no livro se vê que o contratador é tratado como amante de Xica da Silva. Não havia, infelizmente, como Xica ganhar o status de esposa, uma vez que o contratador já era casado e, ainda, não havia estímulo ao casamento entre pessoas de etnias diferentes. Nesse ponto, percebe-se uma separação dos afrodescendentes em relação à elite e, por conseguinte, à sociedade, que não concordava com o casamento entre o homem branco e uma mulher afrodescendente, por exemplo. Segue a citação: “É evidente que o casamento entre brancos era incentivado para formar uma elitefiel ao governo português e à cultura católica. Toda a mobilização para se trazermulheres da Europa e mantê-las nas minas nos permite tal conclusão.” (LOTT, 2003, p. 495).
Xica da Silva ganha do contratador mais um mimo, uma casa requintada para os padrões da época. Esse novo projeto está descrito no filme, sem os detalhes contados no livro.No filme, ganha o nome de palácio e não de Casa da Palha.
“Mas não! O que o amante tinha pra exibir-lhe em mais vaidades de posse graúda, era uma nova planta, mais cheia de riscos, onde se viam os traços profissionais de uma casa vastíssima, em meio de uma área cheia de pormenores em ressalto.” (SANTOS, 2007, p. 115).
No livro, conta-se um episódio rápido sobre quatro portugueses, ainda moleques, vindos enxotados de Portugal. Precisavam ganhar dinheiro e foram logo para o Distrito Diamantino. Estes passaram por alguns momentos desconcertantes nas mãos de Xica, que, como se sabe, queria se vingardos males que passou quando era escrava. Tais fatos não são abordados no filme.
“- Cabeça: entregue essas merdinhas brancas ao feitor. O Bingo, aquele brabo que tem medo da própria cara, serve. É leve no relho! Mande, por minha ordem, dar tratamento de negro a esses filhos-da-puta de marotinhos. Com bragas, se for preciso! Olha que, pra frescos, já é muito banquete!” (SANTOS, 2007, p. 123).
No livro,Xica mostra entusiasmo por aprender a ler e a escrever, bem como ter conhecimento de outras coisas relevantes. Contudo, Xica não se acostumava com professores brancos – certamente pelo rancor que guardava -, e exigia um afrodescendente: “Agora, quero quem me ensine a escrever. Quero fazer uma carta de amor pra mecê, uai! Mas quero professor preto!” (SANTOS, 2007, p. 124). Isso não se observa no filme.
Xica queria proteger as pessoas de sua mesma origem, e, assim, repudiava qualquer tipo de dano perpetrado contra estas. Observou que a esposa de Jorge Andrade havia golpeado uma escrava portadora de deficiência física, e quis de imediato acabar com aquela situação, comprando-a. Ou seja, Xica queria proporcionar a paz que vivia também aos demais. No filme não ocorre este encontro entre Xica e Jorge Andrade, nem mesmo a compra, aliás, Jorge Andrade não aparece no filme.
“- Mas o que eu quero saber mesmo, comandante, é da saúde de seus escravos, uai! Vos’soria tem muitos negros, não é? Eu não gosto de saber que alguém maltrata seus escravos… Eles também são gente, de carne e osso. Eu fico furiosa… João Fernandes sabe disso e não me contraria!” (SANTOS, 2007, p. 127).
A Casa da Palha dada a Xica da Silva pelo contratador era uma verdadeira mansão, pois, além da casa, possuía uma capela e um teatro, sem contar com o terreno repleto de ambientes ricos em ornamentos.Os detalhes da referida casa não são expostos no filme.
“A verdade é que a nova chácara de Xica-Anfitriã era realmente um magnífico castelo que embasbacava a todos os que chegavam, com sua capela e seu amplo teatro interior onde, daí por diante, haviam de ser representadas peças, por profissionais de Vila Rica, tais como Encantos de Medéia, Xiquinha, pelo Amor de Deus! e Porfiar amando.” (SANTOS, 2007, p. 128).
Xica era tão ousada e intensa, tudo a fim de mostrar o seu poderio a sociedade, que solicitou a construção de um navio e um “mar”. Essa ocasião demonstra claramente o seu desejo contido há muito em revelar que o afrodescendente tinha o seu lugar na sociedade, tendo condições, inclusive, de possuir alta posição social. Observe-se que o grande acontecimento da “jornada marítima” acontecera no período da noite, diferente de como se nota no filme, ademais, é um episódio cercado de grande festa e fartura.
“- Eu quero passear no meu navio uma noite inteira! Nem que seja uma noite só! Mas eu quero, uai! Depois… depois, pouco me importa o que acontecer… (SANTOS, 2007, 132). […]
Graças aos peixinhos, João Fernandes conseguiu economizar as toneladas de sal exigidos por Xica para salgar o seu mar… É que, explicado que os bichinhos morreriam, Xica condescendeu, depois de muita luta, em desistir do sal. (SANTOS, 2007, p. 134). […]
Passava da meia-noite quando Xica reapareceu para fazer seu embarque triunfal na galera.” (SANTOS, 2007, p. 147).
A Casa da Palha, além de toda a beleza, proporcionava divertimento a alguns membros da sociedade. Vale salientar que o filme apresenta a Casa da Palha (palácio), menos esses momentos de divertimento. Vejamos um trecho: “Eram jantares, reuniões, bailes, funçonatas, e todos os diversos jogos em moda na época: mesas, dados, bolas, baralhos, peças e os mais complicados petrechos, vindos de Paris, como tudo ali, especialmente para a chácara.” (SANTOS, 2007, p. 134).
No filme, o momento em que Teodoro vai a casa do contratador para encontra-lo, com o objetivo de adquirir uma escrava de nome Celeste, é bem rápido, sem tanto suspense. Mas o livro traz em seu texto o aludido caso, com muitos detalhes, como, por exemplo, de que a negociação se deu quase toda com o contratador disfarçando não perceber com quem estava tratando etc. No filme, Teodoro não está encoberto.
Há outro momento no livro em que Xica quer defender um desvalido, assim, decidiu comprar um escravo já idoso que estava sendo maltratado por seu senhor. Xica era uma mãe para os demais afrodescendentes, que não possuíam, na sua grande maioria, vez nem voz, por isso, ela os representava. Esse momento não é tratado no filme. Vejamos a cena: “O mascate que, evidentemente, andava à mercancia, vai açoitar o negro para forçá-lo a apertar o chouto penoso mas, dando com os olhos em Xica-Justiça, suspende o relho, temeroso, e cumprimenta humildades na voz.” (SANTOS, 2007, p. 140). Noutro momento, Xica demonstra seu amor pelos desamparados: “- Merda! – Mas logo, abaixando ternuras, beija um perdão na testa do mendigo.” (SANTOS, 2007, p. 153).
Xica se sentia bem com seu povo, além disso, como dito, rejeitava a maioria dos brancos, exceto o seu contratador. Desse modo, Xica resolveu que no seu navio só entrariam pessoas com a sua cor, decidindo o seguinte: “Mas quero, sobretudo, Cabeça, meu filho, que todos os brancos que tiverem de embarcar comigo, pintem as caras de preto, me entendeu? O Matias, também! Fora disso, nem o rei!” (SANTOS, 2007, p. 142). No filme, os brancos não pintam a cara.
Houve um momento no livro que se fez referência histórica ao que ocorria em outros territórios, os quais passavam pela mesma condição de dominação. Tem-se uma perfeita alusão ao andamento da independência dos Estados Unidos da América, notadamente a guerra que aconteceu no período de 1775 a 1783, que, tranquilamente, causaria reflexos no povo Brasileiro. Era a luta do povo oprimido mostrando a sua força, que, mais tarde, seria a vez do Brasil e, por conseguinte, dos afrodescendentes, ganharem a liberdade.
“É que, com as ameaças de fortes guerras na América inglesa pela soberania absoluta da terra lá deles, já se começava a murmurar aqui também, com a bravura de uma gente moça e disposta a qualquer gesto de audácia aventureira, sobre direitos das gentes. Bem assim, já se proferia, com todas as letras, muitas outras palavras antes desconhecidas e até proibidas, como despotismo, tirania, independência e liberdade. (SANTOS, 2007, p. 144 e 145).
A Guerra da Independência dos Estados Unidos, Guerra Revolucionária Americana (1775–1783), Guerra Americana da Independência,1 ou simplesmente Guerra Revolucionária nos Estados Unidos, teve início como uma guerra entre o Reino da Grã-Bretanha e as Treze Colónias, mas, de forma gradual, cresceu para uma guerra mundial entre os britânicos de um lado, e os recém-formados Estados Unidos, França, Países Baixos, Espanha, e o Reino de Mysore do outro. O resultado principal do conflito foi a vitória americana e o reconhecimento europeu da independência dos Estados Unidos, com diferentes resultados para as outras potências.” (GUERRA…, 2013).
Embora que Xica amasse o contratador, não conseguia esquecer o Zezé de tantas aventuras passadas, que sempre foi tão bondoso com ela, como no excerto: “A questão é que, desde o começo, desde que Xica ouviu pronunciarem o nome de Zezé, os olhos cresceram-lhe de saudades.” (SANTOS, 2007, p. 146).
Xica queria a todo custo escandalizar certos brancos que tanto prejudicaram a sua vida. A cena abaixo narrada não está, dessa forma, disposta no filme:
“Nisso, tira o vestido que atira pela borda. Arranca as anáguas caras e despe-se decididamente, semeando as peças íntimas por dentro d’água. As meias… os sapatos… Assim, nua, beija homens e mulheres, freneticamente, nos lábios, no corpo…” (SANTOS, 2007, p. 150).
Mais uma cena descrita no livro que acontece no filme de modo diferente, qual seja, do encontro de Xica com Zezé por intermédio do pároco e do sargento: “No adro alto, deserto, semi-ocultos pela portada, o pároco e o sargento-mor, cumprindo ordens, esperam Xica.” (SANTOS, 2007, p. 152). Noutro momento, Xica expõe seu amor por Zezé, olvidando-se de seu contratador: “Os dois se beijam doidamente, pouco se lhes dando a presença dos velhos embaixo da escada…” (SANTOS, 2007, p. 154). No filme, o encontro dos dois é bem ameno, sem beijos etc.
Xica, como de costume, deixa o melhor para as pessoas de sua mesma origem, daí libera a visitação no seu barco somente a elas: “Todos, de roupa engomada, recebem sua autorização para a visita ao lago… para o embarque na galera… para a viagem pra lá e pra cá, dirigida por Cabeça, vaidoso de sua nova profissão.” (SANTOS, 2007, p. 158). Não se vê no filme essa liberação para visitação.
De modo a surpreender, vê-se que o autor, João Felício dos Santos, profere algumas palavras sobre a obra, notadamente para dizer que se trata de uma história que tenta passar a verdade da vida de Xica da Silva:
“Crônica, no que se diz crônica, teríamos a registrar o dia-a-dia dos fatos, ainda que sem relevo a impressionar sensibilidades. Mas essas páginas, assim no jeito de romance, real na medida do possível, permitem – e até mesmo aconselham – o salto brusco sobre ninharias e repetições comuns no encadeamento dos dias de menor marcância.” (SANTOS, 2007, p. 159).
O livro mais uma vez expõe uma condição exacerbada da sexualidade de Xica, e, além disso, atitudes de traição ao contratador. Fato é que, acredita-se que sejam excessos para ilustrar a história do livro, pois Xica amava o contratador. Deduz-se, ainda, que Xica estava deslumbrada com tudo aquilo que possuía, mas, mesmo com esses atos, foi uma mulher importante para a sociedade. Frisa-se que no filme esses atos não ocorrem em demasia.
“…vinha, por último, não só fazendo uso de umas garrafadas esquisitas, como multiplicando-lhe dissabores com diferentes tipos de adultérios, repartindo os supraditos requintes, na forma do costume, com um cada vez maior círculo de parceiros, ultrapassando (ao que parece, por puro gosto) muros e paredes com aqueles públicos rumores felinos, já sem ao menos o resguardo da primitiva discrição, ainda que sempre rudimentar.” (SANTOS, 2007, p. 159 e 160).
Através do filme a história do contratador João Fernandes no Brasil parece curta, mas o livro expõe um fato relevante, que o contratador passou bastante tempo no Brasil, cerca de mais de “dezesseis anos” (SANTOS, 2007, p. 163).
Naquela fase, algo que preocupava João Fernandes e Portugal eram as ideias libertadoras que ameaçavam a estabilidade do Reino. Tais ideias eram provenientes principalmente do iluminismo pregado por Voltaire e Rousseau. Vejamos os seguintes trechos:
“Esses terríveis contrabandistas de quem falo, em vez de Teodoro, chamam-se Voltaire, Rousseau e outros mais… […]
Esses livros, como as pedras de Teodoro, também são contrabandeados. Chegam às mãos dos jovens daqui, meninos corajosos que nem o Zezé, e é um perigo dos diabos para o sono d’el-rei! (SANTOS, 2007, p. 165).
Acreditavam-se todos eles pertencer a uma só família, cujos membros espalhavam-se por Edimburgo, Nápoles, Filadélfia, Berlim, Milão ou Königsberg e, é claro, Paris. Eram os philosophes iluministas, escritores e livres-pensantes que organizavam-se ao redor de alguns dos mestres-pensadores da época, tais como Adam Smith, David Hume, Edward Gibbon, Diderot, o barão d'Holbach, Helvetius, o excêntrico filósofo Emanuel Kant e, evidentemente, em torno do "mestre" Jean-Jacques Rousseau e do seu rival , o "rei" Voltaire. Consideravam seus mentores espirituais os grandes pensadores do século anterior, tais como René Descartes, Isaac Newton e John Locke. Como em qualquer família, ocorriam desavenças entre eles. mas qualquer insinuação de prisão ou censura que pairasse sobre um dos seus integrantes, era o sinal para que os demais se mobilizassem na defesa do perseguido. Tornou-se célebre a afirmação de Voltaire que disse a um contendor seu: "Senhor, sou contra tudo o que vossa senhoria disse, mas defenderei até a morte o seu direito de dize-la". (O ILUMINISMO…, 2013).”
Há um grande drama contado no livro que se passa rapidamente no filme, quando João Fernandes resolve realizar a extração de pedras preciosas na garganta do Nó, no Jequitinhonha, e tudo acaba muito mal, com a morte de trabalhadores. No filme, João Fernandes não estava nem no local do acontecimento, sendo avisado por um trabalhador, no mesmo dia da inauguração do navio de Xica.
“A tragédia consuma-se em segundos. Todo o bicame cai por terra como um baralho de cartas. As águas, saltando agilidades, escapam à prisão do bicame desfeito, invadindo de supetão o leito que lhes fora roubado. Rompida subitamente em turbilhões, a torrente leva de roldão os negros, as ferramentas e todos os materiais. Corpos de afogados começam a encalhar rio abaixo. Muitos mutilados.” (SANTOS, 2007, p. 169).
No livro, descreve-se a chegada do conde de Valadares, Dom José Luís de Menezes Abrantes Castelo Branco de Noronha, como um acontecimento muito receado por todos, pois vinha a mando do rei de Portugal para verificar as regiões de arraial do Tijuco e de Vila do Príncipe, da Comarca de Serro Frio. O que difere a cena do livro com a do filme, é que quase não hámenção no filmesobre a presença do sargento Bento Soares Brandão, conhecido como major Brandão, que acompanha o conde durante a história no Brasil. Segue uma citação: “Comandada pelo sargento Bento Soares Brandão, uma esquadra de dragões dava guarda de muita responsabilidade ao viajante principal, evidentemente nobre de muita grandeza.” (SANTOS, 2007, p. 171). Esse mesmo indivíduo foi responsável pela matança de um grupo de garimpeiros, aplicando a morte mais cruel, o que também não é contado no filme.
“-, foi o mesmo traste ruim que, alguns meses antes, com um seu colega João Inácio do Amaral Silveira, outra boa bisca que terminou nomeado intendente, mais tarde, a substituir o Mucó, só de uma assentada, decapitaram, nos silêncios da serra de Itacambiruçu, treze faiscadores contrabadistas, afora os que mataram a tiros.” (SANTOS, 2007, p. 172).
Percebe-se na fala do conde de Valadares a falta de atenção que era dado à terra brasileira naquela época colonial. Infere-se que não havia por parte de alguns o desejo por mudanças e aplicação de medidas atinentes a engrandecer a terra. Mas outros, da mesma origem, como é o caso do contratador, desejavam o melhor para o Brasil e viam neste uma terra próspera de tudo. Certamente João Fernandes desejava permanecer no Brasil o resto de sua vida, e nota-se tal desiderato quanto diz “nossa paisagem” na citação abaixo.
“- Rogo, senhor conde, que Vossa Excelência se digne apreciar, com bastante vagar, a beleza agreste de nossa paisagem muito diversa das européias – e apontava com a mão para ilustrar a sua expressão. (SANTOS, 2007, p. 179). […]
– Realmente… realmente… – percebendo que gente da comitiva se aproximava dos dois, Valadares retomou seu ar petulante, de extrema superioridade. – E! Com efeito, é um espetáculo muito estranho. Depressivo! Estranho, sobretudo aos olhos de um português, acostumado a paisagens doces, com ordem. Isto por aqui será uma beleza por refinar… um outro sentido de belo… talvez!” (SANTOS, 2007, p. 179).
Mais uma vez se observa no livro tratamento que fere a dignidade da pessoa humana:
“- Falávamos exatamente sobre a sua terra. – O homem chegava a trincar os dentes. – Com efeito, é uma terra esquisita! Mestiça, me parece. Como que de sangue negro… africano… escravo. Até o cheiro dela é desagradável para nós, brancos, europeus… acostumados com a higiene da civilização… com muito asseio… muita limpeza… muita educação.” (SANTOS, 2007, p. 181).
Há um momento em que João Fernandes fica com raiva de Xica da Silva, isso em razão do tratamento de Xica ao conde de Valadares, mas, mesmo assim, não perde a ternura.
“- Incrível! Simplesmente inacreditável, meu bem! – Pela primeira vez João Fernandes estava deveras zangado com sua Xica querida. – Afinal, amor, o que você quis dizer com aquilo? Suas roupas… descalça… suja! Além disso, os seus modos… sua linguagem? Cadeirinha pra bunda cansada é lá coisa que se diga a um conde?” (SANTOS, 2007, p. 181).
Não obstante a condição que viviam, Xica se sentia a legítima esposa do contratador, em virtude do amor e do tempo de convivência, conforme o trecho: “Na hora de irmos pra mesa, ele vai conhecer direitinho quem é a senhora dona Xica da Silva, a que é falada até na corte… A esposa do contratador.” (SANTOS, 2007, p. 182).
No filme não existe tanto entrosamento e mais proximidades entre dona Hortênsia e major Brandão, como se vê no livro: “Antes do jantar, já dona Hortênsia, abatendo um pouco suas pretensões conquistadoras, aproveitando-se do mais à feição dos acontecimentos, fazia corte despudorada ao major Brandão, nas barbas do marido:” (SANTOS, 2007, p. 183).
Outra vez força-se a sexualidade de Xica da Silva, expondo a sua imagem ao dizer que ela jantou seminua com as autoridades da região: “Xica, vestida como nunca, arrastando como cauda um brocado de seda em fios de prata de mais de três metros, os peitos de fora, pintados de verde, os botõezinhos escuros encobertos por pedras miudinhas coladas, faiscantes;” (SANTOS, 2007, p. 187). No filme não aconteceu dessa forma.
O contratador se mostra muito nervoso ao falarem de Xica da Silva, coisa que não se observa no filme com a mesma proporção, segundo a seguinte citação do livro:
“- Se Vossa Excelência, senhor conde de Valadares, vem me apontar leis, eu hei de lhe apontar léguas! Depois, para que as coisas fiquem bem claras, eu e Xica não precisamos mais de nos preocupar com o futuro, com contratos e outras coisas desagradáveis também. E perigosas!” (SANTOS, 2007, p. 192).
No encontro de Xica da Silva com Teodoro, este expõe algumas particularidades da vida de escravo naquelas terras. Trata-se de uma triste realidade para o povo escravo, poucas vezes relatada com tanta propriedade. Vê-se no excerto a seguir como o afrodescendente era tratado, em condições desumanas.
“- Nem quando dorme, sá dona! De noite, a senzala é cheia de bicho, sujeira e sonho ruim. Madrugadinha, o amargo acordar, dona. Nem quando come… Eu também já fui cativo… eu sei… Nem quando morre! Negro não tem alma, nhora não! Negro é coisa à toa… é pior do que a lama do rio que, pelo menos, dá diamante.” (SANTOS, 2007, p. 198).
Outro fato que não se vê no filmeé o exato momento da captura de Teodoro pelo major Brandão, bem como outras particularidades que se desenrolam no livro. Observe-se os trechos: “Apressando saída, o major recapitulou, pouco acreditando no que ouvira: – Teodoro… gruta do Salitre… Lugar tão seu conhecido de outras andanças e caçadas. Não! Não posso, de maneira alguma, perder esta caça!” (SANTOS, 2007, p. 205).
“Naquele momento exato, o major, também já abotoando os últimos botões da casaquilha azul, tomava seu rumo, a buscar Teodoro, já bem amarrado, com vinte dragões em volta, num canto de grota ao pé do arraial. O homem, preso desde pela manhãzinha, estava ali guardado em segredo. (SANTOS, 2007, p. 209).
Xica foi chegando à cadeia do arraial, onze horas da noite, a tempo de ver, chegando também, o negro Teodoro. O pobre cativo, de novo apanhado, coberto de ferros e muita porrada, trazia nos olhos lembranças perdidas nos velhos amigos faiscadores, em sua Celeste, pejada e aflita, também agarrada na brutalidade pelos soldados do verdugo Brandão.” (SANTOS, 2007, p. 211).
Xica da Silva é avisada de início por dona Hortênsia sobre tudo o que ia suceder, na madrugada ainda, com gritos inquietos pela notícia. Tal fato não se observa no filme: “- Teodoro? Preso!? Na gruta do Salitre? Salitre!? João Fernandes levado para Lisboa pelo conde? Por força de um decreto? É isso? É, mulher? Impossível! – Os olhos de Xica de velhos brilhares romperam escuros na noite de fora.” (SANTOS, 2007, p. 209).
Ainda sobre a cena da captura de Teodoro, não se observa no filme o momento em que o conde é cuspido por Teodoro, nem mesmo muitas das agressões que este sofreu. Além disso, não se vê no filme muito empenho de João Fernandespara amenizar o sofrimento de Teodoro nas mãos dos carrascos, quando aquele vai ao encontro deste na cadeia.
“Aproximando-se mais do prisioneiro, o conde examina-lhe com curiosidade imbecil os grilhões, as correntes, as bragas injustas e cruéis… Afrescalhadamente, empurra-o com a ponta do bastão. Em paga recebe uma cusparada tão firme como não seria de suspeitar viesse da debilidade extrema provocada pelos muitos ferimentos de Teodoro.” (SANTOS, 2007, p. 212 e 213).
Há uma ocasião no livro que se faz menção a uma portadora de deficiência visual chamada Vicência, a qual não fora abordada no filme. Igualmente, não se nota no filme um senhor chamado de Juca das Drogas.
Tem-se no livro o “convento dos padres pretos” (SANTOS, 2007, p. 234), que fora obra de Xica, mas no filme quase não se fala ou mostra esta construção.
No filme também ocorre uma cena bem forte tratada no livro, porém com menor intensidade. Tal cena retrata o escravo Cabeça tentando salvar o seu senhor, o contratador, do momento angustiante de sua prisão:
“- Meu amo, não! Meu amo não vai! Nunca! Ninguém põe a mão no meu amo! Duvido, canalhada…- e já as enormes mãos muito negras faziam menção de agarrar o contratador de sobre a sela, quando o major, espada desembainhada, correu com a ordem:” (SANTOS, 2007, p. 223).
No andamento derradeiro do livro, Xica é hostilizada pelos moradores da comarca e crianças, com insultos de todos os tipos, como se vê nesse fragmento: “- Rabuda! Xica Rabuda!…- recomeçaram as injúrias que os moleques, fugindo ao alfaiate, deram volta para a cercarem de novo, no caminho da Palha.” (SANTOS, 2007, p. 232). Tal cena também é observada no filme. No livro, a agressão é tamanha que Xica sofre as seguintes dores: “- Zezé… meu Zezé… – chamava baixinho, as lágrimas caindo, os pés caminhando… Caminhando com sangue na testa… caminhando com cuspe na cara… (SANTOS, 2007, p. 234).
Ao final do filme xica é chamada pelo filho do sargento-mor da mesma forma “xiiiicaxiiiicaxiiica”. Xica com seu sexo consegue tudo que deseja e até ao final dentro da igreja tenta conseguir o que quer.
3 Conclusão
Observa-se que o filme não é uma cópia fiel do livro apesar de ter como roteirista o seu próprio autor Sr. João Felício dos Santos, possivelmente não seguiu fielmente o livro por conta do tempo que teria o filme.
Muitas divergências foram vistas quanto a realidade da época. Entre alguns desses “erros” no quais acredita-se que se mudaram a historia em parte para que fosse deixado tanto o livro quanto o filme com traços cômicos estão: a musica negra usada em varias partes do filme em meio aos brancos, nobres de altas patentes sem qualquer escolta militar ou segurança, cenas de imoralidades que eram tratadas com a naturalidade do século XXI.
Quanto a Xica da Silva, no filme muitos fatos foram omitidos ou exagerados quanto a pessoa que era e suas atitudes. Não acredita-se que o filme ou o livro tratem de Xica da Silva da forma como realmente era, Xica realmente parecia ser uma mulher com muito apelo sexual, muito inteligente e que conseguia persuadir os homens.
No campo do direito, pode-se observar uma serie de aspectos jurídicos em vários ramos como o Direito Tributário, quanto a cobrança do 1/5 que seria o imposto cobrado para todos e que seria de propriedade da corte portuguesa.
No Direito Penal quando se observa crimes que hoje se caracterizariam como corrupção, apropriação indébita, roubo, sonegação de impostos, adultério entre outros, bem como fatos que eram tido como crimes na época mas que nos dias atuais não possuem qualquer importância, como o fato das musicas cantadas por negros.
Quanto ao Direito Civil, vemos fatos a compra e venda de escravos que antes não eram tratados como pessoas, e sim como objetos, mercadorias. Fato interessante foi a compra de Xica da Silva pelo Contratador no qual se verifica uma afronta ao principio da pacta sunt servanda no que diz respeito à vontade das partes, já que o sargento-mor, proprietário de Xica para não ser penalizado por suas faltas, teve que vender a negra sem sua vontade. Fato esse poderia ser uma causa de nulidade desse contrato de compra e venda.
Ainda no campo do Direito civil vemos ainda que os negros entravam como bens sucessórios no fato de que com a morte do proprietário do escravo, este passava a ser propriedade dos filhos do seu antigo senhor.
Vemos ainda desrespeito a dignidade da pessoa humana contra os negros, mas que para a época os negros não eram pessoas humanas e sim objetos.
Xica da Silva que foi uma mulher que realmente viveu, foi no livro e no filme fantasiada em vários aspectos, nunca foi abandonada pelo contratador como se verifica no filme e teve 13 filhos que também não foram desamparados, assim o livro e filme tratam mais de forma fantasiosa que relatando de forma convicta a real historia de Xica da Silva.
Informações Sobre os Autores
Adriano Barreto Espíndola Santos
Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Especialista em Direito Público Municipal pela Faculdade de Tecnologia Darcy Ribeiro. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogado
André Lima de Lima
Mestrando em Direito Ambiental pela Faculdade Estadual do Amazonas. Graduado em Direito pela Faculdade Martha Falcão (2007). Advogado, portador da OAB-AM nº 6.672. Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Amazonas (2007). Economista, portador do CORECON-AM nº 2.135. Membro efetivo do Conselho do Meio Ambiente da OAB-AM