Resumo: Este artigo visa discutir a inaplicabilidade do art. 1°, da Lei 8.437/92, nas ações voltadas a garantir o direito de saúde, quando este se mostrar relevante, em vista de seu não deferimento representar periclitação à vida do pleiteante.
Há diversas decisões jurisprudenciais, bem como posicionamentos doutrinários, que se enveredam pela inaplicabilidade de tal normas em casos excepcionais. No entanto, embora haja forte tendência jurisprudencial e doutrinária nesse sentido, a Administração Pública, não raras vezes, argui a ofensa, e alguns juízes ou até mesmo tribunais acatam-na.
Valendo-se do discurso do uso dos princípios no ordenamento jurídico, este artigo defende a aplicabilidade deles com o fim de se evitar injustiças, pois “uma lei injusta não é lei alguma” (Santo Agostinho).
O Poder Público, nas ações de saúde em que lhe é proposta a antecipação dos efeitos da tutela, sustenta ofensa ao artigo 1° da Lei 8.437/92, embasado no entendimento de que não cabe, ad absoluto, tal medida em face da Fazenda Pública.
Em que pese a vedação normativa, o impedimento não pode ser tido como absoluto. Com efeito, ao elaborar as normas, o legislador não possui propriedade para antever todas as situações cabentes ao preceito normativo. Por esse motivo, na apreciação dos casos concretos, ao julgador é dada a atividade de interpretar o conteúdo normativo em conformidade com o sistema jurídico[1].
É consabido que no atual sistema os princípios são tidos como expressões valorativas que informam toda a ordem jurídica, imantando-a de modo a conferir-lhe o aspecto de uma unidade coerente, em que as normas se inter-relacionam de forma harmoniosa.
Com efeito, se verificada uma contradição entre uma regra jurídica e um princípio, este deve prevalecer. Os princípios são normas dotadas de características que lhe revestem de precedência (superioridade) diante de regras[2].
Nessa toada, convém coligir a festejada lição do renomado jurista Celso Antônio Bandeira de Mello a respeito da estatura dos princípios no ordenamento jurídico. Assim:
“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.”
Os princípios em xeque ante o comando contido no art. 1º da Lei 8.347/92 são, para citar alguns, a dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e razoabilidade.
Como dito alhures, o julgador tem uma tarefa de elevada importância na hora de decidir. É que, nesse momento, há por bem condizer sua decisão com os valores fundamentais da ordem jurídica. Com efeito, os princípios se situam no epicentro do ordenamento, ao passo que as regras sustentam uma posição marginal, gravitando no seu entorno, razão pela qual no momento da decisão, se nelas o julgador não visualizar algum matiz valorativo, ao considerar a carga axiológica do sistema, não deve aplicá-las.
De fato, não pode o juiz ser tido como um executor cego da Lei. Antes, deve evitar o sacrifício de um valor inserto na ordem jurídica quando tal se mostrar vulnerado por uma regra que atenta contra fins ou objetivos a que se propõe o Estado.
Sem embargo, uma série de normas constitucionais propõe-se a velar pela dignidade humana (art. 1°, III, arts. 3º, 5°, 6º, 196). É dada ao indivíduo uma túnica de relevante magnitude, a de voltar-se a ordem jurídica para consecução de seus anseios e pretensões, enfim, para suas necessidades fundamentais inerentes.
Diante dessas considerações, é preciso reconhecer que os dispositivos da Lei 8.437/1992 e 9.494/1997 em questão não inaplicáveis em casos que sacrifiquem direitos relevantes, intrinsecamente ligados à dignidade humana. O orbe de incidência de tais comandos normativos vem sendo apontado pela jurisprudência nas demandas voltadas a cobrar do Estado importância econômica.
Evidencia-se esse posicionamento em diversos julgados, inclusive, já tendo se manifestado o STF em certas oportunidades (ADC n° 4). Esse enveredamento jurisprudencial, pela não aplicação do dispositivo em casos excepcionais, demonstra que hoje se está levando a sério os direitos fundamentais da pessoa humana, colocando-os a salvo de formalidades tidas antes como inexoráveis, tais como o ferrenho apego à literalidade da Lei.
Estamos no tempo em que é dado ao julgador ler nas entrelinhas, atitude que deve ser vista com bons olhos, vez que prestigia os valores constitucionais, na medida em que lhes conferem efetividade, ao concretizar os anseios sociais e afastar a incidência de regras que vão na contramão do que é preconizado pela Constituição Federal.
Com efeito, não se trata de distorcer regras jurídicas, mas sim em lhe conferir maior efetividade. Certamente, deve-se se esperar um mínimo de inteligência interpretativa do julgador, pois, diante de erros ou equívocos do legislativo, tem de corrigi-los, moldando a regra de moda a ajustá-la com o sistema.
Em uma passagem de um livro tido como essencial do Direito[3], num trecho que diz exatamente sobre a tarefa interpretativa do julgador, o escritor faz uma analogia magistral, discorrendo que quando um patrão ordena sua empregada dizendo-lhe para "soltar tudo e vir correndo", ele não tem em mente a possibilidade de que, neste momento, ela esteja salvando uma criança prestes a afogar-se.
Do mesmo modo, o legislador pátrio não tem naturalmente a potestade de antever todas as hipóteses que poderão surgir, cabentes ao comando normativo elaborado. Por isso, ao se mostrar futuramente incompatível com alguma situação, por vulnerar valores fundamentais da ordem jurídica, deve ser-lhe aplicado um reajustamento, de modo a salvaguardar os direitos humanos, sem prejudicar a aplicabilidade na norma aos casos que não demonstrem conjuntura de vedação.
É justamente nesse vácuo imprevisível em que o intérprete atua, evitando a aplicação da norma em situações onde sua incidência provocaria total descompasso com o senso de justiça.
Sem dúvida, assumindo um posicionamento que se coaduna com a consideração expendida, o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou pela inaplicabilidade do comando legal questionado, quando se está diante de pedido voltado à defesa da saúde e, consequentemente, ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Vejamos:
“ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. AÇÃO JUDICIAL PARA O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBLIDADE. PRESSUPOSTOS DO ART. 273 DO CPC. SÚMULA 7/STJ. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTRES FEDERATIVOS PELO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA UNIÃO.
1. É possível a concessão de antecipação dos efeitos da tutela contra a Fazenda Pública para obrigá-la a fornecer medicamento a cidadão que não consegue ter acesso, com dignidade, a tratamento que lhe assegure o direito à vida, podendo, inclusive, ser fixada multa cominatória para tal fim, ou até mesmo proceder-se a bloqueio de verbas públicas. Precedentes”. (Grifou-se)
Tal precedente merece a mais alta das reverências, vez que se mostra ajustado ao modelo atual em que se encontra o sistema jurídico, em que se abre para o julgador a possibilidade de manietar a Lei aos fins últimos dos comandos constitucionais, conferindo-lhes a normatividade de que carecia, reconhecendo o direito subjetivo do indivíduo em ter acolhida sua necessidade básica, ao passo em que dota a Constituição Federal de eficácia.
Informações Sobre o Autor
Pedrito Alexandrino Heleno de Souza
Bacharel em Direito pela União Metropolitana de Educação e Cultura UNIME