Resumo: trata-se de uma avaliação da tendência jurisprudencial de dar tratamento semelhante às autarquias para as empresas estatais, o que vem sendo chamado de “autarquização das estatais”. A finalidade é trazer considerações sobre a adequação desta postura jurisprudencial frente ao direito fundamental ao desenvolvimento e seus impactos no pacto federativo.
Palavras-chave: direito ao desenvolvimento. autarquização das estatais. pacto federativo.
Abstract: This paper analyzes the fact that Brazilian jurisprudence recognized typical prerogatives of public entities to state-owned enterprises by addressing their suitability with the fundamental right to development and its impact on the federal pact.
Keywords: state-owned enterprises. right to development. federal pact.
Sumário:
Introdução. 1. Noções sobre o regime e a organização administrativa brasileira e a tendência de “autarquização” das estatais. 1.1. Entendimentos clássicos. 1.2. Entendimentos modernos. 1.3. O exemplo dos Correios. 1.4. Autarquização das estatais. 2. O direito fundamental ao desenvolvimento como princípio jurídico e vetor axiológico da intervenção do estado na ordem econômica, e sua promoção via autarquização das estatais. 2.1. Conceitos e noções propedêuticas para a melhor compreensão do direito fundamental ao desenvolvimento como princípio da ordem econômica. 2.1.1. Noções sobre direitos fundamentais. 2.1.2. Noções sobre desenvolvimento. 2.1.3. Noção sobre a existência de um vetor axiológico subjacente a uma norma jurídica. 2.1.4. Conceito de Economia. 2.1.5. Conceito de intervenção. 2.1.6. Conceito de mercado. 2.1.7. Noção de ordem econômica. 2.1.8. Da intervenção do Estado na ordem econômica. 2.2. O direito ao desenvolvimento na Constituição de 1988. 2.3. O direito ao desenvolvimento como princípio da ordem econômica. 2.4. Promoção do direito ao desenvolvimento pela via da autarquização das estatais? 3. A repercussão da autarquização das estatais no pacto federativo. 3.1. Delimitação do tema. 3.2. A imunidade recíproca aplicada às estatais prestadoras de serviços públicos e seu impacto no federalismo fiscal. 3.3. A possibilidade de superação do pacto federativo para promover o direito ao desenvolvimento. Conclusão. Referências.
Introdução
O Supremo Tribunal Federal vem conferindo sistematicamente prerrogativas típicas de Fazenda Pública para as empresas estatais que prestam serviços públicos, e a este fenômeno jurisprudencial tem se dado o nome de “autarquização das estatais”, pelo fato de que acabam por deixar tais entidades com o regime jurídico muito semelhante ao das autarquias.
Este trabalho se propõe verificar, ainda que de forma modesta e sumária, se tal tendência se legitima por buscar a promoção do direito ao desenvolvimento, escolhendo-se justamente este direito fundamental pelo fato de ele possuir um espectro extremamente amplo, a fim de que se facilite o reconhecimento desta legitimação, caso o desenvolvimento esteja sendo promovido de alguma forma, ao menos em alguma de suas facetas.
Além disso, apesar de reconhecer que este movimento jurisprudencial acaba por trazer profundos impactos em vários aspectos, tais como no regime jurídico dos servidores, nas prerrogativas processuais, na impenhorabilidade de seus bens etc., este trabalho se limitará a uma destas prerrogativas, que diz respeito à imunidade recíproca dos entes públicos em relação ao pacto federativo.
No primeiro capítulo, entretanto, será abordado brevemente como se apresenta o regime jurídico administrativo brasileiro, passando pelo exemplo mais emblemático do problema que é a situação dos Correios, para ao final tratar mais especificamente do fenômeno jurisprudencial da autarquização das estatais.
Feito isto, no segundo capítulo será abordado de forma um tanto mais minuciosa o assunto referente ao direito fundamental ao desenvolvimento, pois apesar de seu amplo reconhecimento no cenário internacional, internamente ainda é um tema pouco desenvolvido, pelo fato de que a doutrina mais desatualizada ainda acredita que se trata de um direito que serve aos exclusivos interesses típicos da época do liberalismo mais excludente.
O terceiro capítulo não destoa ao final da análise em relação ao importantíssimo direito fundamental ao desenvolvimento, mas destina-se a tratar com mais especificidade do tema referente ao federalismo fiscal, pois o movimento de autarquização das estatais acaba impactando na segurança orçamentária e no planejamento financeiro de todos os entes públicos que possuem expectativa de arrecadar impostos de todas as empresas estatais.
Toda esta investigação se baseou em estudos realizados após coleta de dados bibliográficos que pudessem apresentar alguma pertinência com o tema. A metodologia utilizada se preocupa em empregar o rigor necessário a uma produção científica, sem culto extremo ao método, pois há variações na metodologia ao longo do trabalho, o que é possível que se faça dentro de certos limites sem pôr em risco a sua higidez[1].
1. Noções sobre o regime e a organização administrativa brasileira e a tendência de “autarquização” das estatais
Este capítulo trará ao final noções sobre autarquização das estatais, mas antes disso é necessário trazer brevemente algumas noções sobre a organização da Administração Pública no Brasil, abordando-se as concepções clássicas e modernas sobre o tema, a fim de que se possa entender do que se trata o fenômeno que vem sendo chamado de “autarquização das estatais”.
1.1. Entendimentos clássicos
Primeiramente é importante esclarecer que a Administração Pública brasileira é a gestora dos interesses do povo, que corresponde aos interesses de todos os brasileiros e das pessoas residentes no Brasil, que são titulares de todo poder, nos termos do art. 1º, parágrafo único da CF.
Diante deste fato de o poder se originar do povo, como primeira decorrência lógica, conclui-se que os interesses deste povo são superiores enquanto coletividade, em relação aos interesses individuais, por isso, em caso de conflito entre aqueles interesses, chamados de “interesse público” e os interesses particulares, aqueles devem prevalecer, logicamente, desde que não sejam violadores de direitos fundamentais dos indivíduos.
A segunda decorrência lógica é que sendo a Administração Pública mera gestora dos interesses da coletividade, ela não pode dispor destes interesses, isto é, não pode aliená-los e nem os colocar a serviço de particulares, e nem mesmo dos interesses pessoais das próprias pessoas que exercem a atividade administrativa.
A primeira decorrência lógica dá origem ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular[2], e a segunda dá origem ao princípio da indisponibilidade do interesse público, os quais são tratados por Celso Antônio Bandeira de Mello como verdadeiras pedras de toque[3] do Direito Administrativo[4].
Todos as normas de Direito Administrativo decorrem destes dois princípios, por exemplo: os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, finalidade, presunção de legitimidade, autotutela, continuidade dos serviços, obrigatoriedade de licitação, concurso público etc.
Para o desempenho da nobre função de gestão do interesse público, são asseguradas prerrogativas, que são verdadeiros “poderes”, os quais servem para ajudar a Administração Pública a bem curar os interesses do povo, tais como o poder de execução da maioria de suas próprias decisões, o poder de autotutela, cláusulas exorbitantes, prerrogativas processuais, execução por meio de precatórios etc.
Conforme será demonstrado, o Estado pode também agir como se fosse particular, agindo como empresa, intervindo assim na ordem econômica por razões de relevante interesse coletivo, ou quando tal intervenção se faz necessária aos imperativos da segurança nacional (art. 173 da CF). Nestes casos, o Estado não terá prerrogativas de ente público, tendo inclusive que pagar tributos como qualquer empresa particular (art. 173, § 2º da CF).
O Brasil adota uma forma federativa peculiar, possuindo três níveis de entes políticos, que são a União, os estados e os municípios, cada um com suas competências definidas constitucionalmente.
Para o desempenho destas atribuições, estes entes políticos podem agir de forma direta, ou seja, por meio de seus próprios órgãos e agentes, ou indiretamente, por meio da criação de pessoas jurídicas distintas e autônomas.
Cada ente pode escolher a forma de atuação, podendo ser de maneira concentrada, caso em que todas as distribuições são realizadas pelo próprio ente político, sem distribuição de tarefas entre órgãos, ou de forma desconcentrada, por meio da criação de órgãos especializados em cada matéria.
O ente político poderá também atuar de forma centralizada, por meio de uma só pessoa jurídica que se confunde com o próprio ente, ou, de forma descentralizada, criando-se assim outras pessoas jurídicas, com maior autonomia e especialidade para o desempenho da atividade de gestão de interesses públicos específicos.
Estas pessoas jurídicas, de acordo com a Constituição de 1988, podem se revestir da forma de autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações (art. 37, XIX) e consórcios públicos (art. 241).
As autarquias nada mais são do que pessoas jurídicas detentoras de parcelas de competências administrativas de gestão do interesse público do ente que a criou. São criadas por lei específica para exercer serviços públicos em caráter especializado, e com prerrogativas de poder[5].
As empresas públicas e as sociedades de economia mista, também chamadas genericamente de “empresas estatais” ou somente de “estatais”, embora criadas pelo ente público para atender aos imperativos da segurança nacional, relevante interesse coletivo (art. 173 da CF), e para a prestação de serviços públicos (art. 175 da CF)[6], são pessoas jurídicas de direito privado, e sua atuação se materializa pelo desempenho de atividade econômica.
As fundações e os consórcios públicos podem assumir a forma de pessoa jurídica de direito público ou pessoa jurídica de direito privado, caso em que terão o regime equiparado, mutatis mutandis, ao das autarquias e das estatais, respectivamente.
1.2. Entendimentos modernos
A maioria dos entendimentos clássicos se mantém incólume à evolução doutrinária e jurisprudencial em matéria de organização e regime jurídico administrativo, entretanto, a maior discussão que vem sendo travada recentemente diz respeito às estatais prestadoras de serviços públicos.
A doutrina clássica sempre entendeu que seria possível a criação de estatais para a exploração de atividade econômica em sentido estrito e serviços públicos, as quais são espécies do gênero “atividade econômica” em razão de envolverem administração de recursos escassos[7].
Por outro lado, esta doutrina moderna apregoa que existe um ente que serve especificamente para o desempenho de serviços públicos em caráter especializado, e, em tese, de maneira muito melhor para o Estado e para a coletividade, que é a autarquia, pois para tanto, possui prerrogativas inerentes ao Poder Público.
Essa doutrina não nega que a prestação de serviços públicos tenha natureza de atividade econômica, mas afirma categoricamente que a prestação de tais serviços pelo Estado não constitui propriamente “intervenção na ordem econômica”, mas sim, nada mais que o Estado atuando em área de sua titularidade e que, portanto, faz jus ao regime de Direito Público[8].
Na prática existem muitas estatais que prestam serviços públicos, e diante do entendimento abstrato de que o regime de autarquia seria mais vantajoso para o interesse público, recentemente tem se manifestado uma tendência de dar tratamento cada vez mais semelhante ao das autarquias às estatais prestadoras de serviços públicos.
Entre as prerrogativas que vem sendo conferidas às estatais prestadoras de serviços públicos estão as prerrogativas processuais, tais como o prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer (art. 188 do CPC), a impenhorabilidade dos bens, com execução pelo regime de precatórios (art. 100 da CF), desnecessidade de pagar impostos em razão da imunidade recíproca (art. 150, VI, “a” e § 2º da CF).
Este entendimento moderno conclui que o regime de Direito Privado somente é compatível com o desempenho de atividade econômica em sentido estrito, constituindo-se, ao que para os que assim entendem, verdadeira atecnia a prestação de serviços públicos por intermédio de empresas públicas ou sociedades de economia mista, sendo que existe ente com muito mais vocação para tanto, que são as autarquias.
Reconhecem, entretanto, vagamente, que tal entendimento é capaz de criar impactos na arrecadação de receitas tributárias pelos entes públicos, além de muitos conflitos jurídicos em várias matérias, tais como no regime de pessoal. O exemplo mais emblemático desta situação é o da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), o qual, diante de sua importância, será tratado em item próprio.
1.3. O exemplo dos Correios
A ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, é sem dúvida a estatal a quem mais se tem conferido regime jurídico de Direito Público, mesmo que tenha sido constituída sob a forma de empresa pública.
A jurisprudência do STF tem dado tratamento diferenciado aos Correios, conferindo-lhe todas as prerrogativas de ente público, como se fosse uma autarquia, e não uma empresa pública, garantindo-lhe, por exemplo, impenhorabilidade de bens e pagamento das dívidas judiciais pela via dos precatórios, responsabilidade objetiva (art. 37, § 6º da CF), dispensa dos empregados só com motivo e motivação; imunidade tributária.
O caso mais recente trouxe a consolidação de uma evolução do entendimento no que se refere à imunidade recíproca, a qual foi estendida até mesmo para as atividades que os Correios desempenham sob o regime de concorrência.
O art. 150, VI, a da CF prevê a imunidade tributária recíproca nos seguintes termos:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) VI – instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;”
Portanto, não é possível instituir impostos sobre a administração direta entre os entes da Federação sobre patrimônio (IPTU, IPVA e ITR), renda: (IR) e serviços (ICMS e ISS) e o § 2º do art. 150 da CF traz uma norma que amplia esta imunidade para além da administração direta:
“§ 2º A vedação do inciso VI, a, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.”
Este dispositivo estende a imunidade às autarquias e às fundações públicas, que são pessoas jurídicas de direito público, que integram a administração indireta, e servem para prestar serviços públicos.
Não menciona as outras entidades da administração indireta: empresas públicas e sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de direito privado e servem para atuar em atividade econômica.
De acordo com a Constituição, a regra não é o Estado atuar diretamente na economia como se fosse mais uma empresa. A atuação do Estado se dá normalmente como regulador e fiscalizador da atividade econômica, e por isso mesmo, existem muitas agências reguladoras.
O art. 173 da CF, no entanto, abre a possibilidade para o Estado atuar diretamente na economia, por intermédio de empresas estatais, o que somente pode ocorrer em situações excepcionais, quando presentes imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo.
Ocorre que neste caso, o Estado estará atuando como se fosse uma empresa, e isto impõe a ele se adequar ao regime privado, sob pena de violar o sistema capitalista adotado pela Constituição, pois acabaria por dar privilégio a um ente estatal, com capacidade de abusar desta posição e acabar “quebrando” as empresas concorrentes que não teriam condições de competir.
A partir do art. 170 da CF estão as normas sobre a ordem econômica, sendo que o próprio art. 170 traz princípios da ordem econômica, e entre eles está o inciso IV, que fala da livre concorrência, que significa igualdade de tratamento no âmbito econômico.
Pelo fato de o Brasil ter adotado este sistema econômico, quando o Estado age como empresa, ele deve se submeter às mesmas regras que se submetem os particulares e as empresas privadas, e como decorrência disso, não pode ter privilégios, sob pena de quebra do sistema de livre concorrência e a livre iniciativa, cujo valor social é reconhecido no art. 1º, III da Constituição como fundamento da República, por isso, no art. 173, § 2º, está previsto:
“§ 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.”
Como as pessoas jurídicas de direito privado não possuem imunidade tributária, as empresas públicas e as sociedades de economia mista também não podem ter imunidade, caso contrário, tal beneplácito acabaria por criar privilégio odioso para a estatal, o qual teria o potencial de gerar distorções no respectivo segmento econômico.
A partir da interpretação do § 1º do art. 173 da Constituição, pode-se concluir com tranquilidade que é plenamente possível a adoção da forma de empresa pública ou de sociedade de economia mista com a finalidade de prestação de serviços públicos. Entretanto, a atual jurisprudência do STF se apega às seguintes premissas:
Premissa 1: autarquias e fundações públicas prestam serviço público e possuem imunidade tributária;
Premissa 2: empresas estatais desenvolvem atividade econômica e não possuem imunidade tributária;
Um dos principais expoentes deste entendimento é o ex-Ministro do STF Eros Roberto Grau, segundo o qual, se existir uma empresa estatal que, na prática, presta serviços públicos, ela deverá ter tratamento de pessoa jurídica de Direito Público.
Na prática, existem empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviço público, e o STF tem se apegado às duas premissas acima expostas, e atribuído o regime jurídico em conformidade com a natureza das entidades, ou seja, se a estatal presta serviços públicos, deve ter regime jurídico de direito público.
Esta discussão ganhou relevo no caso da ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – a qual foi criada sob a forma de “empresa pública”. A ECT deixou de pagar alguns impostos, o que gerou discussão no STF sobre a natureza jurídica da atividade dos correios.
Eros Grau entendia que o serviço de postagens era “serviço público”. Como consequência, o STF passou a dar à ECT o tratamento de pessoa jurídica de Direito Público. O informativo 353 do STF noticiou a origem a esta discussão, em processo que restou assim ementado:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS: IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA: C. F., art. 150, VI, a. EMPRESA PÚBLICA QUE EXERCE ATIVIDADE ECONÔMICA E EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO: DISTINÇÃO. I. – As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C. F., art. 150, VI, a. II. – R. E. Conhecido em parte e, nessa parte, provido. (RE 407099, Relator (a): Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 22/06/2004, DJ 06-08-2004 PP-00062 EMENT VOL-02158-08 PP-01543 RJADCOAS v. 61, 2005, p. 55-60 LEXSTF v. 27, n. 314, 2005, p. 286-297)”
Os correios, na época, tinham como principal fonte de renda o serviço público de postagens, com as clássicas correspondências pagas pela compra de selos, mas atualmente os correios praticam diversos serviços de natureza bancária, além de outras atividades de natureza econômica, a exemplo da intensificação do serviço de envio de encomenda (Sedex), que deve ser desenvolvida pelo regime de concorrência.
A questão foi levada mais uma vez ao STF e, por 6 × 5, estendeu-se a imunidade para todos os serviços e atividades desenvolvidas pela ECT. O raciocínio foi no sentido de que o constituinte, no art. 21, X, tratou apenas dos serviços de postagem porque na época (1988) não havia este desenvolvimento tecnológico (e-mail, redes sociais, WhatsApp etc.), que enfraqueceram o serviço postal, relegando-o à beira da obsolescência.
Se a ECT dependesse só dos serviços de postagem, não haveria lucro, mas sim, prejuízo, por isso, não havia outra saída a não ser buscar outras atividades.
Os serviços bancários, previstos na LC 116/2003 como passível de incidência do ISS, fizeram com que vários municípios lançassem ISS contra a ECT, mas o STF entendeu que este serviço bancário desenvolvido pelo correio é mera atividade secundária que serve de fonte alternativa de custeio dos serviços dos Correios, servem para subsidiar os serviços de postagens, por isso, estendeu a imunidade a estes serviços, adotando a teoria do subsídio cruzado.
O serviço de postagens é um serviço público previsto na CF, e que deve ser mantido pela União: “Art. 21. Compete à União: (…) X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional”.
Diante deste dispositivo constitucional, a União deve encontrar fontes financeiras para manter este serviço. Fontes estas que merecem a mesma imunidade tributária que a atividade fim, já que funcionam como um “meio”, servindo a um “fim”, que é a manutenção de um serviço público de natureza constitucional.
Nesta esteira, sobreveio, então, o RE 627.051, o qual versou sobre a incidência de ICMS sobre os serviços de encomenda, o qual é um serviço de transporte e, por via de regra, atrai esta incidência tributária, mas foi afastado em razão de ter sido aplicada a tal tese do subsídio cruzado, afastando-se o princípio da livre concorrência.
O processo restou assim ementado:
“EMENTA Recurso extraordinário com repercussão geral. Imunidade recíproca. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Peculiaridades do Serviço Postal. Exercício de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com particulares. Irrelevância. ICMS. Transporte de encomendas. Indissociabilidade do serviço postal. Incidência da Imunidade do art. 150, VI, a da Constituição. Condição de sujeito passivo de obrigação acessória. Legalidade. 1. Distinção, para fins de tratamento normativo, entre empresas públicas prestadoras de serviço público e empresas públicas exploradoras de atividade econômica. 2. As conclusões da ADPF 46 foram no sentido de se reconhecer a natureza pública dos serviços postais, destacando-se que tais serviços são exercidos em regime de exclusividade pela ECT. 3. Nos autos do RE nº 601.392/PR, Relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes, ficou assentado que a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, CF, deve ser reconhecida à ECT, mesmo quando relacionada às atividades em que a empresa não age em regime de monopólio. 4. O transporte de encomendas está inserido no rol das atividades desempenhadas pela ECT, que deve cumprir o encargo de alcançar todos os lugares do Brasil, não importa o quão pequenos ou subdesenvolvidos. 5. Não há comprometimento do status de empresa pública prestadora de serviços essenciais por conta do exercício da atividade de transporte de encomendas, de modo que essa atividade constitui conditio sine qua non para a viabilidade de um serviço postal contínuo, universal e de preços módicos. 6. A imunidade tributária não autoriza a exoneração de cumprimento das obrigações acessórias. A condição de sujeito passivo de obrigação acessória dependerá única e exclusivamente de previsão na legislação tributária. 7. Recurso extraordinário do qual se conhece e ao qual se dá provimento, reconhecendo a imunidade da ECT relativamente ao ICMS que seria devido no transporte de encomendas. (RE 627051, Relator (a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 12/11/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-028 DIVULG 10-02-2015 PUBLIC 11-02-2015)”
Diante disso, é de se concluir que a ECT (Correios), mesmo que tenha sido constituída sob a forma de "empresa pública", para o STF, embora não afirmado expressamente possui natureza jurídica de “autarquia”, devendo ser tratada como tal e, por isso, goza da imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a da CF, mesmo no desempenho de atividades típicas do regime concorrencial, em razão do fato de que as receitas decorrentes destas atividades servem para custear o serviço público previsto no art. 21, X da Constituição, conforme a tese do subsídio cruzado.
1.4. Autarquização das estatais
Autarquização é o “apelido” que vem sendo dado pela doutrina a esta tendência jurisprudencial de conferir tratamento idêntico ao de autarquia às empresas estatais prestadoras de serviços públicos. Não se trata da transformação formal das estatais em autarquias, mas tão somente de um tratamento jurisprudencial conferido recentemente às estatais, que as fazem se aproximar do mesmo regime jurídico das autarquias.
No RE 627051, Gilmar Mendes chegou a mencionar expressamente:
“Esses dias até participei de um seminário coordenado pelo professor Paulo Modesto, onde estava também o professor Marçal Justen Filho, e se discutia exatamente que nós estamos caminhando, a partir da jurisprudência dos Correios, que tem uma situação específica, mas que também vai se manifestando em outras áreas, com outros Poderes, outras empresas que exercem atividades assemelhadas, em que vai se desenhando um modelo que os administrativistas estão chamando de autarquização das empresas públicas, quer dizer, todas aquelas que são prestadoras de serviços, ainda que parcialmente.”
A Constituição de 1988, em sua redação original não deixava clara a possibilidade da aplicação do regime jurídico de Direito Privado às estatais prestadoras de serviços públicos, especialmente no § 1º do art. 173, que dispunha:
“§ 1º A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias.”
Na época do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o qual foi confessadamente marcado pela ideologia neoliberal entabulada no famoso “Consenso de Washington”[9] e pela prematura crença no fim da história[10], foi editada a EC 19/98 na onda da política nacional de desestatização, onde se partia da premissa de que os serviços públicos prestados pelo Poder Público eram ruins e que os prestados pela iniciativa privada seriam bons, o qual trouxe a seguinte redação ao § 1º do art. 173 da CF:
“§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.”
A partir desta Emenda passou-se a se admitir com mais clareza a submissão de empresas estatais prestadoras de serviços públicos ao regime jurídico de Direito Privado. Ocorre que a ideologia neoliberal não prevaleceu na jurisprudência nacional, a qual, vem ignorando este dispositivo, e aplicando sistematicamente o regime jurídico de Direito Público às estatais prestadoras de serviços públicos.
No subtítulo anterior foi mencionado a título ilustrativo o exemplo do reconhecimento da imunidade tributária da ECT, mas esta tendência vem se confirmando para outras prerrogativas e para outras estatais, cita-se como exemplo mais alguns casos julgados:
a) STF, RE 363412 AgR; RE 363412 AgR: reconhecimento da imunidade tributária recíproca à Infraero;
b) STF, RE 485000 AgR: regime de precatórios para a Companhia de Abastecimento d’Água e Saneamento do Estado de Alagoas – CASAL;
c) STF, RE 433666 AgR: tratamento trabalhista e tributário idêntico ao de autarquias para a Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola S/A – EBDA;
d) STF, RE 589998: necessidade de motivação para dispensa de empregados da ECT;
e) STJ, EDcl nos EDcl no AgRg no REsp 1416337: prerrogativa de prazo em dobro para a ECT.
Os poderes executivos nacionais sempre se basearam na doutrina clássica que reconhecia a possibilidade de conferir regime jurídico de empresa para todas as exploradoras de atividade econômica, seja a atividade econômica em sentido estrito, seja a prestadora de serviços públicos.
A opção pela empresarialidade na prestação de serviços públicos, em tese, tem por finalidade a busca da mesma dinâmica e do mesmo modelo gerencial inerente ao setor privado, além de ser um fator de melhor distribuição de impostos, pois os estados e municípios teriam direito aos impostos de sua competência relativos a tais atividades, não se aplicando o art. 150, VI, “a” da CF.
Ocorre que para essa doutrina moderna e para a jurisprudência atual, pelo fato de que os serviços públicos são atividades de titularidade do Estado, seu regime jurídico deve ser o de Direito Público e não aquele típico das empresas privadas. Entendimento este que acabou por acarretar grandes impactos na economia nacional e, até mesmo, no pacto federativo, tendo em vista que promove maior centralização tributária, notadamente no que concerne às estatais da União.
Desde já pode-se adiantar que reconhecer a imunidade tributária recíproca às estatais, por exemplo: da União, significa uma agressão à segurança orçamentária dos estados e dos municípios, tendo em vista que estes entes contam com as receitas provenientes de impostos sobre o patrimônio, renda e serviços das empresas públicas e sociedades de economia mista instalados em seus respectivos territórios.
Atualmente, portanto, a tendência é pela indiferenciação no tratamento jurídico entre empresas estatais que prestam serviços públicos e as autarquias, persistindo apenas diferenças meramente formais, tais como o modelo de constituição, e algumas diferenças pontuais, assim como, os limites de dispensa de licitação[11].
Por outro lado, tem se reconhecido tratamento mais próximo do regime jurídico de Direito Privado para as estatais que desempenham atividade econômica em sentido estrito, que participam do mercado em regime de concorrência, salvo na hipótese de estas atividades servirem para custear a atividade fim consistente em um serviço público, aplicando-se assim, a tese do subsídio cruzado.
Aqui cabe fazer uma observação: a rigor, toda entidade criada pelo Estado possui natureza instrumental, servindo como meio para a consecução de um fim público, o que enfraquece a tese do subsídio cruzado. Mesmo as estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito são criadas para buscar algum interesse público, especialmente quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, assim, se vingar a tese do subsidio cruzado, logo todas as estatais fazem jus às prerrogativas do regime jurídico de Direito Público.
Diante disso, deve ficar claro que a tendência de autarquização das empresas estatais é fenômeno ainda restrito às empresas públicas e às sociedades de economia mista que prestam serviços públicos, superando-se a visão da doutrina clássica e atribuindo tratamento jurídico de direito público conforme a natureza da atividade econômica desenvolvida, ou seja, se desempenha serviços públicos, atribui-se regime jurídico de direito público; se desempenha atividade econômica em sentido estrito, aplica-se o regime jurídico de direito privado, ressalvada a aplicabilidade da fraca tese do subsídio cruzado, a qual sendo aplicada ao pé da letra, acarretará na autarquização de todas as estatais, por todas atendem finalidade pública.
2. O direito fundamental ao desenvolvimento como princípio jurídico e vetor axiológico da intervenção do estado na ordem econômica, e sua promoção via autarquização das estatais
Diante da intenção declarada do presente trabalho no sentido de investigar a possibilidade de a busca pela promoção do direito fundamental ao desenvolvimento servir de substrato legitimador do recente movimento jurisprudencial de autarquização das estatais, se faz necessário apresentar este direito fundamental com um pouco mais de profundidade, pois é um tanto desconhecido pela comunidade jurídica, a qual ainda o vincula a concepções marcadamente liberais.
O professor Robério Nunes dos Anjos Filho se debruçou sobre o assunto e publicou recentemente[12], pela editora Saraiva um livro intitulado Direito ao Desenvolvimento, o qual enfrentou a questão de maneira minuciosa, concluindo que o direito ao desenvolvimento é um direito humano internacionalmente reconhecido, e direito fundamental incorporado à nossa Constituição, consistindo em um direito de amplíssimo espectro, podendo se manifestar de alguma forma nos direitos de todas as gerações (ou dimensões).
A partir do conceito de economia, que será apresentado neste capítulo, é possível perceber a íntima relação que o Direito tem com a Economia. Por exemplo, é sabido que o Custo Brasil é muito alto, os tributos são muito altos, a burocracia para abrir uma empresa é muito grande. Isso é o “Direito que produz”. É um Direito que atrapalha o desenvolvimento.
O Direito também pode trazer ajuda ao desenvolvimento. Passa-se a falar, então do Direito “do” Desenvolvimento, o qual não é um direito humano. Nasce na década de 1960 no bojo das conferências das nações unidas sobre o comércio. Criou-se o Direito Internacional do Desenvolvimento. Os países subdesenvolvidos podem exportar seus produtos com vantagens. Exemplo: Brasil pode vender laranjas para a França pagando alíquota menor do que se tivesse comprado dos EUA. Não é um direito humano, é um direito comercial entre Estados[13].
Já o Direito “ao” desenvolvimento, nascido também no âmbito da ONU, fruto da observação do fenômeno do desenvolvimento por um viés jurídico, o que deu ensejo ao surgimento desse direito humano, que, de acordo com a classificação de Karel Vasak, trata-se de um direito de terceira geração (hoje entende-se que o termo mais apropriado é dimensão). A expressão “Direito ao Desenvolvimento” deve-se ao jurista senegalês Etiene Keba M’Baye, que a utilizou em 1972 na conferência inaugural do Curso de Direitos Humanos do Instituto Internacional de Direitos do Homem de Estrasburgo, publicada com o título de “O direito ao desenvolvimento como um direito do Homem”[14].
A ONU reconheceu oficialmente o direito ao desenvolvimento como um direito humano pela primeira vez em uma resolução da sua Comissão de Direitos Humanos, em 1977. Posteriormente, em 04 de dezembro de 1986, foi aprovada a Declaração das Nações Unidas sobre Direito ao Desenvolvimento (Res. 41/128)[15], a qual teve voto favorável do Brasil. A declaração define o Direito ao desenvolvimento como um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos têm o direito de participar, de contribuir e de desfrutar de um desenvolvimento econômico, social, cultural e político no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados[16].
A Resolução estabelece ainda que a pessoa humana é o sujeito central do processo de desenvolvimento e que essa política de desenvolvimento deve assim fazer do ser humano o principal participante e beneficiário do desenvolvimento, e que o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável e que a igualdade de oportunidade para o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto das nações quanto dos indivíduos que compõem as nações. Portanto, resta superada a visão estritamente liberal do direito ao desenvolvimento, passando-se a assimilá-lo com uma visão democrática e democratizante, compatível com o Estado Democrático de Direito que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana.
O Direito ao Desenvolvimento ocupa hoje um lugar central no Sistema Internacional de Direitos Humanos, sendo de observância obrigatória para todos os Estados, entendido ainda como integrante do chamado jus cogens, que é o conjunto de normas imperativas de direito internacional, as quais não podem ter sua observância negada sequer pelos Estados vencidos em votações não unânimes[17], vinculando, ainda, Estados não participantes de sua formação, pois já é superada a doutrina voluntarista do Direito Internacional[18].
Flávia Piovesan[19] adverte, ainda, que inclusive no setor privado, no contexto da globalização econômica, faz-se premente a incorporação da agenda de direitos humanos.
A CF de 1988, que surgiu dois anos depois da Declaração das Nações Unidas, já incorporou o desenvolvimento como um direito fundamental. Não há previsão expressa no rol do art. 5º, como existe no dispositivo correspondente da Constituição de Portugal de 1976, entretanto, o art. 5º, § 2º da CF não exclui outros direitos decorrentes de tratados internacionais.
O professor Robério Nunes dos Anjos Filho demonstra que o Direito ao Desenvolvimento está consagrado na CF como direito fundamental. Salienta que, a começar pelo preâmbulo, já se fala no desenvolvimento como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. O preâmbulo não é norma jurídica, mas é um vetor de interpretação da CF. No art. 3º se encontra o desenvolvimento como um dos objetivos fundamentais da República. É dever do Estado garantir o desenvolvimento nacional[20].
O fato de o preâmbulo da CF tratar do desenvolvimento como um “valor supremo” reforça a ideia central deste trabalho no sentido de que o direito fundamental ao desenvolvimento, além de princípio jurídico, é um grande vetor axiológico do Brasil, sociedade e Estado:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (grifos nossos)”
O autor sustenta, ainda, que sendo dever do Estado a garantia do direito fundamental ao desenvolvimento, ele não é apenas um direito coletivo, mas um direito individualmente exigível, ou seja, é um direito que qualquer cidadão tem de exigir. Lembrando-se que não significa exigir o crescimento (aumento da riqueza), mas sim, exigir condições para o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, sendo o Mandado de Injunção um dos instrumentos.
A ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos a dignidade, conforme os ditames da justiça social. O art. 219 fala que a geração de riqueza no Brasil tem por finalidade garantir o desenvolvimento humano. Também o sistema financeiro tem esta finalidade (art. 192). A riqueza serve para melhorar a qualidade de vida de todos, e não apenas de alguns[21].
O pleno desenvolvimento nacional é atingir de forma mais plena possível os objetivos do art. 3º da CF, disso os profissionais e intelectuais do Direito jamais podem esquecer e nem esmorecer, pois se trata de uma norma jurídica, que se revela como verdadeira diretriz conformadora[22], pois sendo a sociedade perfeita um sonho impossível ou muito distante, a persecução destes objetivos é o que nos torna solidários, humanos, menos selvagens.
O desenvolvimento, em suas diversas manifestações, é a única forma de um ser humano ser verdadeiramente livre, com vida digna. O art. 2º, §3 da Resolução 41/128 da ONU estabelece que
“Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa, e no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes.”
Em suma, diante do exposto, adota-se integralmente o posicionamento do professor Robério Nunes dos Anjos Filho como premissa categórica de onde se deduzirá o tema central do trabalho, tomando-se por verdade que o direito ao desenvolvimento é um direito da pessoa humana reconhecido no plano internacional com status de jus cogens, e que é um direito fundamental reconhecido na Constituição de 1988, e que, além de norma jurídica, é um “valor supremo” da nossa República, interpretação esta que resulta de toda a construção do tema no plano do Direito Internacional, e da posição de destaque que ele encontra no texto da nossa Lei Fundamental, a qual teve o cuidado, inclusive, de deixar expresso em seu preâmbulo.
Diante do comprovado caráter de fundamentalidade que possui o direito ao desenvolvimento, de sua íntima relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, de sua manifestação como norma jurídica do plano internacional e do plano interno constitucional, e também, diante de sua manifestação enquanto valor supremo da nossa República, é de se concluir que é uma norma principiológica, que serve como vetor axiológico vinculante para qualquer atuação do Estado, ou seja, tudo que o Poder Público faz, por qualquer de seus órgãos e entidades, deve passar pela prova da compatibilidade com este valor supremo.
A Convenção da ONU de 1986 traz em seu preâmbulo:
“Reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes;”
Isso somado à norma prevista já em seu art. 1º:
“Artigo 1º. §1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, para ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.”
Somando-se, ainda às disposições do seu art. 2º:
“Artigo 2º. §1. A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. §2. Todos os seres humanos têm responsabilidade pelo desenvolvimento, individual e coletivamente, levando-se em conta a necessidade de pleno respeito aos seus direitos.”
E art. 6º:
“Artigo 6º. (…) §2. Todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes; atenção igual e consideração urgente devem ser dadas à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. §3. Os Estados devem tomar providências para eliminar os obstáculos ao desenvolvimento resultantes da falha na observância dos direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais.”
Diante destes dispositivos selecionados já se pode adiantar que fica evidente que o direito ao desenvolvimento se concretiza com a intervenção do Estado na ordem econômica, pois, conforme será demonstrado em linhas posteriores, o mercado, por si só, não se mostrou capaz de promover o desenvolvimento, considerado como o conjunto de condições indispensáveis à liberdade e à vida digna das pessoas.
Para a melhor compreensão do direito fundamental ao desenvolvimento e de sua função legitimadora da intervenção do Estado na ordem econômica, inclusive por intermédio do Poder Judiciário, faz-se necessário dar um passo atrás para compreender aspectos básicos sobre estes institutos, o que se passa a fazer no próximo subcapítulo.
2.1. Conceitos e noções propedêuticas para a melhor compreensão do direito fundamental ao desenvolvimento como princípio da ordem econômica
O presente trabalho revela uma certa interdisciplinaridade, especialmente entre o Direito e a Economia, o que de fato se confirmará no decorrer de seu desenvolvimento. Isso tende a trazer um plus de complexidade para a compreensão do tema, o que ora pretende-se minorar com a apresentação dos conceitos e noções básicas que são de assimilação necessária por aqueles que não possuem afinidade entre estas ciências.
A apresentação destes conceitos e noções neste capítulo tem por finalidade demonstrar o seguinte enunciado básico[23]: “o direito ao desenvolvimento, como norma que se espalha por todo o ordenamento jurídico, é também princípio da ordem econômica”.
Para conduzir a esta compreensão, é importante mencionar que, com base em Sartre, Eros Roberto Grau[24] diferencia conceito de noção. Para ele, “conceito” é algo atemporal. Pode-se estudar como os conceitos se engendram uns aos outros no interior de categorias determinadas. Nem o tempo e nem a história podem ser objetos de um conceito.
Já “noção”, para o mesmo autor, é a ideia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas. A doutrina jurídica quando se refere a um “conceito jurídico indeterminado” quer, na verdade, se referir a uma noção.
Os conceitos e noções que aqui serão apresentados podem ser entendidos como “paradigmas” que, salvo leves digressões úteis à sua compreensão, não terão a pretensão de investigar os “primeiros princípios”, tarefa esta que se deixa para os livros especializados em cada matéria pertinente, sob pena de tornar muito extenso e desvirtuar o objetivo deste trabalho[25].
Assim, sem pretender desenvolver com muita densidade os conceitos e noções que serão abordados neste capítulo, apresentam-se a seguir alguns tópicos selecionados[26], com intuito de que eles induzam a uma compreensão mais abrangente do problema proposto. Logicamente tais tópicos não são de leitura necessária para aqueles já versados nas noções introdutórias de Direito e de Economia.
2.1.1. Noções sobre direitos fundamentais
Para tomar como premissa o direito ao desenvolvimento como um direito fundamental, é preciso primeiramente saber o que é um direito fundamental, para que se possa entender em que sentido e em que contexto se faz esta afirmação.
Falar sobre direitos fundamentais, entretanto, é tarefa impossível sem noções propedêuticas, portanto, primeiramente é importante esclarecer, especialmente para a comunidade não vinculada especificamente às ciências jurídicas, que “direito” é uma palavra plurissignificativa, Montoro[27], sem pretender exaurir, apresenta cinco significações possíveis:
a) norma: significa a norma, a lei, a regra social obrigatória. Exemplo: “o ‘direito’ não permite o duelo;
b) faculdade: “direito” significa a faculdade, o poder, a prerrogativa que o Estado tem de criar leis. Exemplo: “o Estado tem o ‘direito’ de legislar”;
c) justo: “direito” significa o que é devido por justiça. Exemplo: “a educação é ‘direito’ da criança”;
d) ciência: significa a ciência do direito. Exemplo: “cabe ao ‘direito’ estudar a criminalidade”. Como tal, convencionou-se escrevê-lo com letra maiúscula “Direito”, bem como, as suas subespécies: “Direito Constitucional”, “Direito Administrativo”, “Direito Econômico”, “Direito Civil”, “Direito Penal” etc.;
e) fato social: o “direito” é considerado como fenômeno da vida coletiva, ao lado dos fatos econômicos, artísticos, culturais, esportivos, etc. Exemplo: “o ‘direito’ constitui um setor da vida social”.
Nader[28], após demonstrar minuciosamente a celeuma em torno do tema, se abstém de apresentar um conceito definitivo, limitando-se a mencionar os mais variados conceitos conforme diversos pontos de vista, o que serve para concluir que o Direito não possui um conceito que possa ser dado como absoluto, existindo sobre ele apenas as mais variadas noções, levando em conta diversos enfoques. Destes, o enfoque normativo é o que interessa para este trabalho.
Sob o enfoque normativo, Direito é “a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores”[29].
Importante trazer à tona o ensinamento de Norberto Bobbio, no livro “Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito”[30] o qual traz uma nova ideia orientadora do estudo do Direito, no sentido não de buscar saber o que é o Direito, mas para que ele serve, pois adiante será visto que, se a chamada “autarquização das estatais” servir para alguma coisa, especialmente para promover algum direito fundamental, ela passa a ser defensável.
Sobre “direitos fundamentais”, da mesma forma, seria possível a criação das mais variadas teorias, sob diversos pontos de vista, como teorias históricas, filosóficas ou sociológicas[31]. Diante dessa dificuldade, a noção de direitos fundamentais, aqui apresentada, se limitará ao seu enfoque normativo.
Ingo Wolfgang Sarlet[32] ensina, com base em Canotilho, que o que torna um direito fundamental é a circunstância de que esta fundamentalidade é simultaneamente formal e material. A “fundamentalidade formal” diz respeito a posição constitucional do direito em questão: a) como parte da Constituição escrita, os direitos fundamentais se encontram no ápice do ordenamento, ou seja, com supremacia hierárquica; b) formas rígidas para a mutabilidade ou, até mesmo, imutabilidade (cláusulas pétreas); c) possuem eficácia e aplicabilidade direta e imediata, vinculando tanto as entidades públicas quanto as relações privadas.
A “fundamentalidade material”, para o autor, diz respeito ao conteúdo desses direitos, ou seja, para ser fundamental o direito precisa tratar das decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade, e, especialmente, aqueles que se ligam a questões existenciais da pessoa humana. A noção de fundamentalidade material torna a noção de fundamentalidade meramente formal insuficiente, pois traz à tona o fato de que podem existir direitos fundamentais não necessariamente expressos no texto da Constituição.
Partindo-se desta premissa, quando este trabalho afirmar que o direito ao desenvolvimento é um direito fundamental, está-se falando em sentido normativo, com força jurídica formal e materialmente constitucional, inclusive invocável perante o Poder Judiciário.
2.1.2. Noções sobre desenvolvimento
Com base em Norbert Rouland, Robério Nunes dos Anjos Filho[33] afirma que a palavra “desenvolvimento” teve origem entre os séculos XII e XIII, quando significava revelar, expor, sendo que somente por volta de 1850 a palavra passou a significar “… a progressão de estágios mais simples, para outros mais complexos, superiores…”.
O mesmo autor explica que é muito difícil encontrar uma definição unívoca da palavra, pois a depender do prisma em que é analisada, pode vir acompanhada de adjetivos que a tornam muito específica, v.g., desenvolvimento: social, político, humano, econômico, ambiental, infantil, nacional, regional, equilibrado, sustentável, dentre outros. Aponta, ainda, a variação de concepções de acordo com a “… heterogeneidade cultural das mais diversas nações e Estados…” e a constante ampliação de seu conteúdo, o qual acompanha a evolução histórico-social (caráter dinâmico), como fatores que tornam a palavra “plurívoca”.
A noção de desenvolvimento – aqui já se fala em desenvolvimento econômico – foi desenvolvida pelos economistas clássicos associada à ideia de poder econômico. Eis um excerto do livro Uma Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações[34] que bem exemplifica este momento histórico:
“Em meio a todas as exceções feitas pelo governo, esse capital foi sendo silenciosa e gradualmente acumulado pela frugalidade e pela boa administração de indivíduos particulares, por seu esforço geral, contínuo e ininterrupto no sentido de melhorar sua própria condição. Foi esse esforço, protegido pela lei e permitido pela liberdade de agir por si próprio da maneira mais vantajosa, que deu sustentação ao avanço da Inglaterra em direção à grande riqueza e ao desenvolvimento em quase todas as épocas anteriores, e que, como é de esperar, acontecerá em tempos futuros.”
Esta noção associa o desenvolvimento ao crescimento, ou seja, desenvolver-se significaria simplesmente elevar o Produto Interno Bruto (PIB) de um Estado. Esta noção está há muito ultrapassada, pois a ideia de desenvolvimento está atrelada a uma gama extremamente variada de fatores que deixam de compreender o desenvolvimento como um dado meramente quantitativo e passam a qualificá-lo sob aspectos qualitativos, ligados à qualidade de vida das pessoas[35].
Amartya Kumar Sen[36] é o precursor da ideia e foi prêmio Nobel de economia em 1988. Desenvolvimento é um processo de expansão das liberdades reais dos indivíduos e da sociedade. Para que as pessoas sejam plenamente livres é preciso que tenham acesso aos bens. A riqueza é um instrumento que pode ser usada para o bem e para o mal[37].
Isso remete à filosofia de Kant, na diferenciação entre pessoas e coisas: a) pessoas: a pessoa é um fim em si mesmo, tem dignidade, autonomia, é insubstituível; b) coisas: são instrumentos para realizar a dignidade, possuem preço econômico ou afetivo. Dizer que o crescimento é importante e o desenvolvimento não, equivaleria a dizer que as coisas são mais importantes que as pessoas[38].
Por isso, a medida do desenvolvimento deixa de se basear exclusivamente no PIB e passa a se basear no IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. A explicação extraída do site do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – bem explica esta transição:
“O conceito de desenvolvimento humano nasceu definido como um processo de ampliação das escolhas das pessoas para que elas tenham capacidades e oportunidades para serem aquilo que desejam ser.
Diferentemente da perspectiva do crescimento econômico, que vê o bem-estar de uma sociedade apenas pelos recursos ou pela renda que ela pode gerar, a abordagem de desenvolvimento humano procura olhar diretamente para as pessoas, suas oportunidades e capacidades. A renda é importante, mas como um dos meios do desenvolvimento e não como seu fim. É uma mudança de perspectiva: com o desenvolvimento humano, o foco é transferido do crescimento econômico, ou da renda, para o ser humano.
O conceito de Desenvolvimento Humano também parte do pressuposto de que para aferir o avanço na qualidade de vida de uma população é preciso ir além do viés puramente econômico e considerar outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana. Esse conceito é a base do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), publicados anualmente pelo PNUD”[39].
Dentre as diversas manifestações possíveis do desenvolvimento, como forma de desde já ressaltar a fundamentalidade do tema, destacam-se o desenvolvimento econômico, social, cultural e político dos povos.
Admita-se, ainda, com especial destaque o exemplo de espécie de direito ao desenvolvimento denominado “desenvolvimento sustentável”, que nada mais é do que a manifestação do direito ao desenvolvimento no direito ambiental, pois “… o crescimento econômico, calcado na mutilação do mundo natural e na imprevisão das suas funestas consequências…” pode acabar por tornar inócuas todas as demais concepções de desenvolvimento, pois sem ambiente sadio, não haveria lugar para nenhum outro bem da vida, por ser ele condição indispensável não somente a uma vida digna, mas para a própria “vida na terra” em todas as suas formas[40].
2.1.3. Noção sobre a existência de um vetor axiológico subjacente a uma norma jurídica
Toda norma jurídica tem por base um valor, valor este que enquanto tal, não tem força jurídica, mas se for escolhido pelo Legislador para fazer parte do conjunto de normas que regulam a vida humana em sociedade, não deixa de ser valor, mas assume uma nova roupagem, que é a de norma jurídica[41].
O presente trabalho tem como premissa o fato de o direito fundamental ao desenvolvimento ser tido como um forte “vetor axiológico” para intervenção do Estado na ordem econômica, mas não como um simples valor exortativo, e sim, como valor presente na estrutura de um princípio jurídico. Para tanto, é preciso saber qual a significação que é dada para que a compreensão do trabalho não reste comprometida.
Em matemática, “vetor” é uma grandeza determinada em quantidade, direção e sentido. É habitualmente representado por uma flecha[42]. O significado de vetor é apropriado por este trabalho como forma de identificar o sentido, o objetivo a ser tomado pelo Estado em suas diversas formas de atuação na ordem econômica.
“Axiologia”, por sua vez, é tida como a "teoria dos valores". Já fora entendida como parte importante da filosofia ou mesmo como toda a filosofia pela chamada "filosofia dos valores" e por outras tendências radicais[43]. A palavra “vetor” adjetivada com a palavra “axiológico” quer reforçar a ideia de que o sentido das ações estatais tem como fundamento um valor.
A noção que será aqui apresentada de que o direito fundamental ao desenvolvimento se baseia em um axioma (valor), inclusive internacionalmente reconhecido e cogente para o Brasil[44], reforça o caráter de sua juridicidade, pois, conforme será demonstrado, este direito fundamental está positivado em nosso ordenamento, e mesmo que não estivesse, ele comporia o nosso ordenamento com status constitucional e exigibilidade jurídica como decorrência de uma série de fatores que não convém adentrar agora.
O que se pretende reforçar é a utilidade da noção moderna de desenvolvimento como “valor” a ser perseguido pelo Estado como agente da atividade econômica, valor este positivado constitucionalmente em uma norma principiológica cogente, o que será tratado em seção própria.
2.1.4. Conceito de Economia
Antes de adentrar nos temas seguintes, notadamente na noção de ordem econômica, é importante trazer de maneira sintética o que se entende por Economia, pois este conhecimento é uma premissa lógica para o entendimento daquele.
Etimologicamente, economia vem do grego oikos (οικοσ), que significa casa e de nomos (νόμος), que significa lei, considerando-se “casa” no sentido mais antigo, onde o pater familias era responsável por gerir o consumo e a produção no âmbito de sua propriedade, em que participavam todos os membros da família, escravos e demais dependentes. É importante trazer à tona a etimologia da palavra porque desde já se destaca a afinidade que o Direito tem com a Economia. Além disso é notável que quanto mais escassos os bens e mais aguçados os interesses sobre eles, maior a quantidade de conflitos e maior a necessidade de normas para regrar a situação[45].
Filosoficamente a palavra “Economia” é frequentemente associada à conquista do máximo com o mínimo de esforço. Avenarius e Mach[46] chegam a afirmar que “Os métodos pelos quais se constitui o saber são de natureza econômica.” Segundo Mach, é esse princípio que orienta à elaboração dos conceitos, “… que nascem da situação de desequilíbrio entre o número das reações biologicamente importantes, que é bastante limitado, e a variedade, quase ilimitada, das coisas existentes.” Isso permite enfrentar essa grande variedade de forma econômica, isto é, “… com o mínimo de esforço”.
Importante mencionar que a designação “Economia Política” caiu em desuso como designativo de uma ciência. Ela surgiu quando ainda não tinha sido desenvolvida a ciência econômica tal como é vigente, não havendo, na época, portanto, uma nítida separação entre os fenômenos econômicos e os políticos. Isso apesar de que no livro Política[47], escrito há mais de dois mil anos, já se podia concluir que tarefa da Política seria outra: investigar qual a melhor forma de governo e instituições capazes de garantir a felicidade coletiva
Pode-se dar como exemplo desta fusão entre economia e política o pensamento David Ricardo, no livro Princípios de Economia Política e Tributação[48], donde pode-se colacionar o seguinte excerto que bem exemplifica esta fusão entre economia e política: “Não existe na Economia Política questão melhor estabelecida do que aquela que sustenta que um país rico não pode aumentar sua população à mesma taxa que um país pobre, devido à sua crescente dificuldade na obtenção de alimentos.”.
Marx sempre desdenhou a Economia Política na visão clássica: “Se o capitalista quer vos alimentar com batatas, em vez de carne, ou com aveia, em vez de trigo, deveis acatar a sua vontade como uma lei da economia política e vos submeter a ela”[49]. Marx enxergava no Estado um mero instrumento de repressão da burguesia (o capitalista) contra o proletariado, o qual desapareceria naturalmente com a ascensão do proletariado ao poder[50].
O livro Esboço de uma Crítica da Economia Política[51] focalizou as obras desses economistas como expressão da ideologia burguesa da propriedade privada, da concorrência e do enriquecimento ilimitado. Ao enfatizar o caráter ideológico da Economia Política, negou-lhe significação científica, tendo prevalecido a ideia de economia e política como fenômenos autônomos, embora não estanques.
Pede-se vênia para citar diretamente concepção atual de Economia extraída de um dicionário especializado na matéria, o qual chama atenção pela precisão:
“ECONOMIA. Ciência que estuda a atividade produtiva. Focaliza estritamente os problemas referentes ao uso mais eficiente de recursos materiais escassos para a produção de bens; estuda as variações e combinações na alocação dos fatores de produção (terra, capital, trabalho, tecnologia), na distribuição de renda, na oferta e procura e nos preços das mercadorias. Sua preocupação fundamental refere-se aos aspectos mensuráveis da atividade produtiva, recorrendo para isso aos conhecimentos matemáticos, estatísticos e econométricos. De forma geral, esse estudo pode ter por objeto a unidade de produção (empresa), a unidade de consumo (família) ou então a atividade econômica de toda a sociedade. No primeiro caso, os estudos pertencem à microeconomia e, no segundo, à macroeconomia. A palavra “economia”, na Grécia Antiga, servia para indicar a administração da casa, do patrimônio particular, enquanto a administração da polis (cidade-estado) era indicada pela expressão “economia política”. A última expressão caiu em desuso e só voltou a ser empregada, na época do mercantilismo, pelo economista francês Antoine Montchrestien (1615); os economistas clássicos utilizavam-na para caracterizar os estudos sobre a produção social de bens visando à satisfação de necessidades humanas no capitalismo. Foi somente com o surgimento da escola marginalista, na segunda metade do século XIX, que a expressão “economia política” foi abandonada, sendo substituída apenas por “economia”. Desde então, é a denominação dominante nos meios acadêmicos, enquanto o termo “economia política” ficou restrito ao pensamento marxista. Modernamente, de acordo com os objetivos teóricos ou práticos, a economia se divide em várias áreas: economia privada, pura, social, coletiva, livre, nacional, internacional, estatal, mista, agrícola, industrial etc. Ao mesmo tempo, o estudo da economia abrange numerosas escolas que se apoiam em proposições metodológicas comumente conflitantes entre si. Isso porque, ao contrário das ciências exatas, a economia não é desligada da concepção de mundo do investigador, cujos interesses e valores interferem, conscientemente ou não, em seu trabalho científico. Em decorrência disso, a economia não presenta unidade nem mesmo quanto a seu objeto de trabalho, pois este depende da visão que o economista tem do processo produtivo”[52].
Conclui-se, portanto, que Economia é a ciência que estuda o comportamento humano e os fenômenos dele decorrentes, que se estabelecem em sociedade permanentemente confrontada com a escassez[53].
2.1.5. Conceito de intervenção
Neste tópico cumpre apenas mencionar que na concepção de Eros Grau[54], “atuação” é um vocábulo mais lato que “intervenção”. “Intervenção” é a atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito. “Atuação” é a atuação do Estado na atividade econômica em sentido amplo.
O vocábulo “intervenção” tem um sentido forte, “como atuação na esfera alheia”, pressupondo-se que a atividade econômica em sentido estrito é do domínio econômico (domínio do mercado), ou seja, não é uma área própria do Estado. Contudo o autor defende que o Estado não é e não deve ser um mero observador do mercado, mas sim, um ator muito ativo e com extensas responsabilidades como promotor do desenvolvimento.
Apenas para esclarecer, Eros Grau trata atuação do Estado como gênero, dos quais são espécies, de um lado, a já mencionada atividade econômica em sentido estrito (o mercado) e, de outro, o serviço público, que não deixa de ser uma atividade de administração de recursos escassos.
2.1.6. Conceito de mercado
Observa-se que quando se fala em Economia, costuma-se aparecer no mesmo contexto a palavra “mercado”. Mas o que ele é? Em sentido geral, o termo significa um grupo de compradores e vendedores cujas negociações afetem os negócios de terceiros, influenciando em preço e demais condições[55].
O mercado é típico dos sistemas de autonomia (capitalista). Nusdeo[56] ensina que o mercado (que significa troca) sempre existiu e existiu, ao menos informalmente, inclusive nos outros sistemas (tradição e autoridade), o que o torna uma instituição natural, que surge naturalmente, conforme as necessidades humanas existentes em qualquer sociedade. O sistema de mercado é que é algo diferente, pois faz do mercado o sistema vigente.
Aqui reside uma grande divergência entre o entendimento de Fábio Nusdeo e Eros Grau[57], pois este entende que o mercado é uma “instituição jurídica” constituída pelo direito positivo, o direito posto pelo Estado Moderno. Antes, porém, deve ser compreendido como uma instituição social, produto da criação histórica da humanidade, e uma instituição política, destinada a regular e manter determinadas estruturas de poder que asseguram a prevalência de certos grupos sobre outros, como princípio de organização social. Segundo o autor o mercado não é uma instituição espontânea, mas uma instituição "operando com fundamento em normas jurídicas que o regulam, o limitam, o conformam…"
O mercado, para o ex-ministro do STF, é, ainda, uma ordem, no sentido de regularidade e previsibilidade de comportamentos, cujo funcionamento pressupõe a obediência, pelos agentes que nele atuam, de determinadas condutas. Essa regularidade se pode assegurar apenas por critérios objetivos, daí porque se exige um sistema de normas jurídicas uniformes e um sistema de decisões políticas integrado em relação a determinado território. "O fato é que (…) a burguesia apropriou-se do Estado e é a seu serviço que este põe o direito, instrumentando a dominação da sociedade civil pelo mercado".
Basicamente é aí (no mercado) que ocorre a chamada “intervenção do Estado na ordem econômica”, a que é comumente citado como fundamento para tanto, o cumprimento do art. 170 da CF, no qual também encontraria seu limite[58].
2.1.7. Noção de ordem econômica
Inicialmente, é de se esclarecer que, conforme ensina Eros Grau[59], a expressão ordem pública é o conjunto de normas imperativas que prevalece sobre o universo das normas dispositivas de direito privado (ordem privada). É nítida expressão da ideologia liberal, a qual considerava que a ordem econômica pertencia exclusivamente à ordem privada, apartada de qualquer ingerência estatal (laissez faire, laissez passer…).
No entanto, o mesmo autor ensina que a ordem econômica, embora consagrada como uma ordem “pública” econômica, na verdade é um conjunto de “normas de intervenção por direção”, o que é diferente de normas de ordem pública no seguinte sentido:
a) Normas de ordem pública: aplicam-se de imediato às situações às quais se voltam, fatos futuros e fatos pendentes. Estão voltadas para a preservação das condições que asseguram e sobre as quais repousa a estrutura orgânica da sociedade. São o núcleo da ordem jurídica liberal. São voltadas ao estabelecimento de um regime de segurança social, mediante a vedação de comportamentos que afetem o status quo, prevalente na organização social, incidem sobre a generalidade dos agentes, setores e atividades econômicas, de modo indistinto. Compreendem uma norma de exceção, de conteúdo proibitivo, negativas, externas ao direito privado. Não superpõe a ordem pública e o Direito Público de um lado, e de outro, a ordem privada e o Direito Privado
b) Normas de intervenção por direção[60]: aplicam-se somente aos fatos futuros. Instrumentam políticas públicas cuja dinamização envolve não meramente a paz social, mas a perseguição de determinados fins, nos mais variados setores da atividade econômica. Conduzem a transformação da ordem jurídica liberal. Preenchem o conteúdo funcional de determinadas situações jurídicas, distinguindo-as de outras. Não expressam noção de exceção, compõe ordenação concorrente com a definida pelo direito privado, respeitando à regulação das obrigações, em geral, e dos contratos, de modo a configurá-los como verdadeiros instrumentos de política econômica, transformados menos em uma livre construção da vontade humana do que em uma contribuição das atividades humanas, coordenadas pelo Estado, à arquitetura geral da economia nacional.
Para Vital Moreira[61], a "ordem econômica" tem três sentidos: a) "modo de ser empírico de uma determinada economia concreta, (…) um conceito de fato e não de um conceito normativo ou de valor (é o conceito do mundo do ser, portanto)"; b) "expressão que designa o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja a sua natureza (jurídica, religiosa, moral, etc), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos"; c)"ordem jurídica da economia".
Abstendo-se de fazer digressões históricas, traz-se a baila o fato de que Constituição de 1988 trouxe em seu Capítulo VII a ordem econômica para dentro de seu texto. Convém aqui destacar que ela não se limitou a institucionalizar o mundo do ser, isto é, consolidar positivamente o que existe no mundo fático, mas foi além, trazendo mandamentos que a caracterizam a como do tipo dirigente[62].
O art. 170 da CF diz: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”.
Conforme o ensinamento acima declinado[63], o dispositivo deveria estar tratando de uma parcela da ordem jurídica (ordem econômica), isto é, do mundo do ser, mas na verdade, conforme o autor, deve ser relido o art. 170 de maneira adequada, com caráter normativo, do mundo do dever ser, nos seguintes termos:
“As relações econômicas – ou atividade econômica – deverão ser (estar) fundadas na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim (fim delas, relações econômicas ou atividade econômica) assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios.”
Ressalte-se, “ordem econômica” possui significado polissêmico que pode dar a entender se tratar de uma realidade do mundo do ser, harmônica, autorregulada e auto-ordenada, e que prescindiria de qualquer outra ordenação ou regulação (mundo do ser). Um outro significado de “ordem” é o conjunto ou sistema de normas, neste sentido, ordem econômica é uma parcela da ordem jurídica (mundo do dever ser).
No entendimento de Bernardo Gonçalves Fernandes, a palavra “ordem” utilizada pelo constituinte de 1988 quer designar “uma estrutura organizada, uma seleção de elementos integrantes de um conjunto que se destina a uma finalidade específica”, e conclui dizendo que esta noção de “ordem” visa “um lançar-se ao futuro”, o seja, uma busca por constante melhoria ou progressão, entendimento este que reforça o caráter desenvolvimentista da Constituição[64].
O domínio econômico ou ordem econômica, no sentido adotado por este trabalho, é o campo de atuação próprio dos particulares, tendo como fundamentos a valorização do trabalho humano e a livre-iniciativa. O Estado somente pode interferir no domínio econômico como agente normativo e regulador. A exploração direta de atividade econômica pelo Estado, “ressalvados os casos previstos na Constituição Federal” (Existem apenas dois casos desse tipo “ressalvados” na CF: a) inciso XXIII do art. 21 – atividades nucleares – são atividades econômicas em sentido estrito e não serviços públicos – por isso se fala em “monopólio”; b) art. 177 – monopólio sobre explorações de petróleo), só será possível quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou à relevante interesse coletivo (art. 173). Nessas hipóteses, a atuação estatal na exploração direta de atividade econômica ocorrerá por meio das empresas públicas e sociedades de economia mista[65].
Por fim, cumpre mencionar que as disposições constitucionais sobre a ordem econômica não se limitam ao Título VII da CF, estando elas espalhadas por todo o seu texto, das quais se destaca o art. 3º, cujo conteúdo econômico é indubitável, o qual se configura em um rol de objetivos que vinculam tanto o Estado agente normativo e regulador da atividade econômica, quanto à própria sociedade civil, no qual o mercado se enfatiza, não podendo ele deixar de se vincular a tais responsabilidades, sendo este ideal chamado de “eficiência de mercado”, que importa na busca da maximização dos ganhos, mas também de uma solidariedade, equivalência e distribuição equitativa, justa e segura destes recursos[66].
A Constituição de 1988 é um centro irradiador e marco da reconstrução do direito privado de um Brasil mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade[67]. Isto é, inclusive, uma característica que marca o rompimento com a ordem liberal clássica, a qual é amplamente conhecida como “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”[68].
2.1.8. Da intervenção do Estado na ordem econômica
A crença na capacidade coordenadora do mercado com liberdade para os indivíduos e abstenção do Estado, junto com o princípio hedonista (lei da maximização dos resultados com o menor esforço) aliados, ainda, ao utilitarismo (crença de que certas tendências da natureza humana, como a ambição, o desejo de desfrutar dos bens do mundo, a procura por ascensão social, devidamente canalizadas poderiam ser úteis a todos, desde que elaboradas as instituições próprias ao seu adequado equacionamento), como pressupostos psicológico-comportamentais do liberalismo clássico formaram um ingênuo otimismo acerca deste sistema[69].
A tal liberdade na ordem econômica garantida pelo Estado surtiu efeito contrário, mostrando-se como uma verdadeira forma de “… alargar os abismos entre as classes sociais tornando o pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais abastado…”. Isto gerou, na prática, uma verdadeira escravidão para as classes desfavorecidas. O Estado, diante disso, não poderia ficar inerte, assistindo silente o crescimento alarmante das desigualdades sociais, e a constante prática das empresas de capitalizar as externalidades positivas e socializar as externalidades negativas. Daí surge a ideia de legitimá-lo a intervir, a fim de corrigir estas distorções[70].
O ideário do liberalismo pressupunha uma situação de equilíbrio real e constante, algo abstrato e ilusório, equivalente a conceitos físicos como o vácuo ou a inexistência de atrito, ou seja, algo que serve como simplificação da realidade para a elaboração de modelos científicos, mas sem existência prática[71]. A propósito, Keynes já preconizava:
“Argumentarei que os postulados da teoria clássica se aplicam apenas a um caso especial e não ao caso geral, pois a situação que ela supõe acha-se no limite das possíveis situações de equilíbrio. Ademais, as características desse caso especial não são as da sociedade econômica em que realmente vivemos, de modo que os ensinamentos daquela teoria seriam ilusórios e desastrosos se tentássemos aplicar as suas conclusões aos fatos da experiência”[72].
Esta atribuição de poder de intervenção ao Estado inaugurou a chamada fase do “dirigismo econômico”, em que o Poder Público age com base em planos estratégicos, sistematicamente, sobre fatos econômicos[73].
Houve quem entendesse que a Constituição de 1988 restringiu as possibilidades de interferência do Estado na ordem econômica[74], mas prevalece o entendimento de que a Constituição é um dinamismo[75], podendo os autorizativos constitucionais de atuação do Estado poderem assumir feição ora mais, ora menos ortodoxos, sem que para isso seja preciso a mudança formal de seu texto. A esta abertura interpretativa se dá o nome de mutação constitucional.
Sobre o tema Inocêncio Mártires Coelho observa:
“Consequência dessa abertura para o mutante, toda interpretação é apenas um ‘experimento em marcha’, assim como a ideia de uma interpretação definitiva é uma contradição nos termos, na sempre oportuna lição de Hans-Georg Gadamer. Afinal, se tudo se transforma, ‘se ninguém se banha duas vezes no mesmo rio’ – com [sic] se aprende com Heráclito –, seria uma excrescência que só a vida do direito escapasse ao ‘panta rhei’ da eterna transformação”[76].
Foi declinado supra (item 1.5) a posição de Eros Grau no sentido de que a atividade econômica pode ser tida em sentido amplo, como gênero, dos quais são espécies a atividade econômica em sentido estrito e os serviços públicos. Cumpre mencionar a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello[77], para o qual, além destas duas espécies há uma terceira, que são as atividades que podem ser prestadas tanto por um (setor público) quanto pelo outro (setor privado).
Eros Grau[78] distingue 4 modalidades formais pelas quais os Estados se fazem presentes no modelo econômico dual: a) por direção: normas que impõem determinada conduta. Ex. quota de importação, tabelamento, filtros antipoluentes, depósitos obrigatórios pelos bancos no BACEN; b) por absorção: é o exercício de determinada atividade econômica diretamente pelo Estado através de monopólio; c) por participação: é o exercício de determinada atividade econômica diretamente pelo Estado, misturando-se com as demais, exercendo poder de influência (obs. neste livro estas também serão chamadas de “por absorção”); d) por indução: o estado não impõe e nem absorve, mas induz determinados comportamentos ou decisões mediante sanções premiais (no dizer de Bobbio) ou “punições”. Ex. eleva impostos para desestimular determinada atividade como a produção de cigarro. Isenção de impostos em determinadas regiões para reduzir as desigualdades.
Ressalte-se que a exploração da atividade econômica é uma prerrogativa dos particulares, diante da adoção do sistema capitalista pela Constituição de 1988. Entretanto, extrai-se do texto constitucional a adoção do princípio da subsidiariedade, o qual autoriza o Estado a intervir no domínio econômico[79].
Esta possibilidade de intervenção encontra limites no texto constitucional, principalmente nas regras e princípios contidos no art. 170 da CF, de modo que se o Estado extrapolar estes limites, poderá ser responsabilizado civil e objetivamente com base no art. 37, § 6º da CF[80].
Já se pode, neste ponto, adiantar que é aí que reside a questão que serve de premissa para a resposta final deste trabalho, ou seja, que o direito fundamental ao desenvolvimento deve servir como mais um princípio jurídico de forte carga axiológica para nortear a intervenção do Estado na ordem econômica, mesmo não expressamente positivado no referido art. 170, e como tal, deve servir como fundamento também no caso em que esta intervenção provenha do Poder Judiciário, sob pena de se traduzir em uma profunda antijuridicidade.
2.2. O direito ao desenvolvimento na Constituição de 1988
A Constituição de 1988, que surgiu dois anos depois da Declaração das Nações Unidas Sobre o Direito ao Desenvolvimento tratou de positivar a Dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa nação, já em seu art. 1º e como um dos objetivos centrais da República Federativa do Brasil, no seu art. 3º, a garantia do desenvolvimento nacional[81].
Não é apenas este dispositivo que trata expressamente do direito fundamental ao desenvolvimento, apenas ele está aqui mencionado a título de exemplo. O direito ao desenvolvimento é extremamente amplo, tendo, além das diversas convenções internacionais que visam assegurá-lo[82], muitos dispositivos constitucionais que a ele se referem[83], podendo-se afirmar categoricamente que toda a elaboração da Constituição de 1988 foi influenciada pela noção de Direito ao Desenvolvimento, sob esta concepção democrática.
Diante de tal constatação, se mostra de suma importância o aprofundamento do estudo em torno do direito ao desenvolvimento, tendo em vista que somente é possível afirmar-se conhecedor da Constituição de 1988 aquele que compreender a visão desenvolvimentista que serviu de vetor axiológico para a sua elaboração. Não se trata de um direito em disputa entre visões privatistas ou estatizantes, mas sim, de um direito fundamental que serve ao fortalecimento da democracia e à promoção da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
A Constituição indica que o direito ao desenvolvimento, ao lado da dignidade da pessoa humana, é um princípio de forte carga valorativa, e que se manifesta ao menos implicitamente em todos os dispositivos materialmente constitucionais, despontando como se fizesse um corte transversal sobre todos os ramos do Direito, vinculando-os aos seus ditames.
2.3. O direito ao desenvolvimento como princípio da ordem econômica
O já citado art. 170 da CF, menciona a ordem econômica tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Está aí o vínculo com o direito ao desenvolvimento, pois conforme já demonstrado, não se pode falar em vida digna sem a plena igualdade de acesso aos bens escassos e à liberdade que disso é decorrente.
Dentre os princípios da ordem econômica destaca-se o caráter desenvolvimentista nos dispositivos que tratam da defesa do consumidor (V); da defesa do meio ambiente (VI); da redução das desigualdades regionais e sociais (VII); e da busca do pleno emprego (VIII).
O art. 173 diz o seguinte:
“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.”
Até mesmo este caso de intervenção por absorção (ou participação), conforme a classificação de Eros Grau (op. cit.), não pode olvidar de sempre ter em mente a eterna busca pelo desenvolvimento, pois isto impera sobre todo o ordenamento, e não apenas sobre fragmentos dele. Segundo as palavras dele, “Não se interpreta a Constituição em tiras”.
O art. 174 também é de suma importância:
“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º – A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.”
Nota-se que o § 1º se mostra como um verdadeiro vetor interpretativo do caput. Em outras palavras: sempre que o Estado normatizar, regular, fiscalizar (intervenção por direção) incentivar e planejar (intervenção por indução) a atividade econômica – sendo o planejamento determinante para o setor público e indicativo para o setor privado – não poderá ter por norte critérios arbitrários, políticos, ideológicos ou de compadrio, mas sim, sempre deverá ter em mente o que consta no § 1º que trata do direito ao desenvolvimento.
É inegável a influência do ideal de desenvolvimento desatrelado do mero ideal de crescimento em toda a elaboração do texto constitucional. Diante disso, é de se concluir que, apesar de não estar expressamente previsto no art. 170 o direito ao desenvolvimento como diretriz informadora de toda e qualquer intervenção do Estado na ordem econômica, isso não significa que esta atividade estatal não esteja vinculada a ele.
É importante que esta conclusão seja afirmada com veemência, de maneira clara. Diante de todo o exposto neste trabalho até aqui, resta demonstrado que o direito fundamental ao desenvolvimento, como norma do tipo principiológico que deve servir de mandamento de otimização a ser cumprido na maior medida possível[84], é vetor axiológico da intervenção do Estado na ordem econômica.
E vai-se adiante, pode-se dizer que não é apenas mais um valor a ser perseguido pelo Estado e pela sociedade, mas sim, um dos mais importantes princípios da atual ordem constitucional, pois nele estão inseridas todas as condições indispensáveis para que se possa falar em existência digna, por isso, inegável a presença de uma forte carga axiológica, que deve ser observada em todas as espécies de intervenção do Estado na ordem econômica, sob pena de ilegitimidade, inconstitucionalidade e de inconvencionalidade da medida.
Não há liberdade, não há sustentabilidade, não há vida digna sem que haja desenvolvimento, o que o torna um direito fundamental, não apenas coletivo, mas também exigível individualmente. Trata-se de um direito ao desenvolvimento condizente com o Estado Democrático de Direito, e não como atrelado a uma noção singela de “crescimento”, típica do Estado liberal. Estas são as premissas categóricas das quais se deduz a resposta para a questão proposta por neste capítulo.
O tema do direito ao desenvolvimento tem especial atenção na ordem jurídica internacional. Além disso, conforme foi demonstrado, a Constituição de 1988 foi elaborada com destaque profundo que ao assunto. É de se concluir, portanto que as disposições acerca da intervenção do Estado na ordem econômica não escapam de uma vinculação normativa principiológica com forte carca axiológica com o dever de busca pelo desenvolvimento, cujo próprio preâmbulo constitucional brasileiro o adjetiva como “valor supremo”.
Esta conclusão afasta do poder público qualquer possibilidade de tomada de decisões, que se traduzam em intervenções na ordem econômica, que não sejam decorrentes da diretriz fundamental da busca pelo desenvolvimento. Assim, cumpre ao Estado assegurar o desenvolvimento, como direito fundamental de todos os indivíduos, devendo este ser o fundamento para toda e qualquer intervenção na ordem econômica, afastadas todas as formas de arbitrariedades e subjetivismos.
Nota-se que mesmo se apegando às premissas do eminente Eros Grau, há de se concluir que a autarquização das estatais é flagrantemente uma intervenção na ordem econômica pelo Poder Público, feita pela via do Poder Judiciário, à revelia dos demais poderes da República, portanto, se faz necessário investigar se tal “intromissão” se legitima à luz do direito fundamental ao desenvolvimento, e para isto resta assentada a premissa de que este direito fundamental é extremamente amplo, sendo princípio de observância obrigatória para sempre que o Estado quiser intervir na ordem econômica.
Ressalte-se: o direito fundamental ao desenvolvimento, enfim, é o grande vetor axiológico positivado em um princípio jurídico de fonte interna e internacional, que vincula a intervenção do Estado na ordem econômica, inclusive quando for praticada pelo Poder Judiciário. Deve ser observado que mesmo isto não estando expressamente previsto topograficamente no art. 170 da Constituição, ali está implicitamente quando se fala em “existência digna”.
2.4. Promoção do direito ao desenvolvimento pela via da autarquização das estatais?
Diante da premissa assentada no sentido de que, em que pese discussões doutrinárias, a Constituição permite a criação de empresas estatais para a prestação de serviços públicos, pode-se concluir desde já que o fenômeno jurisprudencial chamado de autarquização das estatais contraria a Constituição.
Entretanto, essa tendência de dar regime jurídico de Direito Público às estatais poderia ser dada como “salva” se servissem à promoção de direitos fundamentais, caso se estivesse diante de um extreme case onde fosse possível a ocorrência da chamada defeasibility, que diz respeito a casos raros em que regras devem ceder diante de princípios[85].
Não há nenhuma argumentação nesta jurisprudência no sentido de que estão praticamente transformando empresas estatais em autarquias de fato para atender algum direito fundamental, portanto, faz-se uma análise com base em um direito fundamental extremamente amplo como o Direito ao Desenvolvimento, para ver se há alguma razão, mesmo de ordem pragmática, que fundamente a autarquização das empresas estatais via Poder Judiciário.
Não é possível afirmar, a priori, que os serviços públicos prestados pelo setor privado ou pelo setor público são mais eficientes por ser submissos a este ou àquele regime. Tal constatação somente se mostra possível em cada setor, e em cada caso concreto, com base em fatos concretamente demonstráveis, e isto não foi demonstrado em nenhum dos julgados do Poder Judiciário brasileiro.
Existem concepções ideológicas que defendem os dois regimes jurídicos como forma mais eficiente de prestação de serviços públicos. Há aqueles que entendem que um serviço é mais eficiente quando prestado sob o regime jurídico de Direito Público, e há aqueles que entendem que o serviço mais eficiente é aquele prestado sob o regime jurídico de Direito Privado.
Despiciendo declinar aqui os fundamentos de uma ou outra concepção, pois este trabalho é jurídico, e sob esta ótica não interessam correntes de pensamento que se valem exclusivamente de teses ideológicas. O Direito, por seu turno, deve investigar os fatos frente ao ordenamento jurídico, e o que se tem de fato, é que nenhuma decisão jurisprudencial decidiu pela autarquização das estatais pelo fato de assim promover o direito ao desenvolvimento, ainda que indiretamente, com base em fatos concretamente demonstráveis.
Portanto, limitando e confundindo, de certa forma, neste caso, o direito ao desenvolvimento, com melhor desempenho e eficiência dos serviços públicos, não há como afirmar abstratamente que a autarquização das estatais promove de alguma forma este direito fundamental. Além disso, para uma decisão judicial ser dada com base neste fundamento, deve haver provas no sentido de que “autarquizando” a estatal, o serviço público será mais eficiente, caso contrário, deve prevalecer a vontade legítima do Legislador e do Administrador.
Além de tudo isso consequências da autarquização das estatais é a impossibilidade de cobrança de impostos destas, uma das principais entidades prestadoras de serviços públicos, o que limita ou impede, em tese, que os entes prejudicados promovam o desenvolvimento de outros serviços públicos, cada um em seu âmbito.
Esta consequência é mais marcante no que se refere às estatais da União, tendo em vista que os Estados perdem altas receitas de ICMS, os municípios perdem altas receitas de IPTU e de ISS etc., as quais acabam ficando integralmente nas mãos da administração indireta da União.
Tirar as receitas destes impostos dos estados e dos municípios e centralizar nas estatais da União promove de alguma forma o direito ao desenvolvimento? Não há nenhum dado empírico que indique que a resposta possa ser dada positivamente, o que induz a se pensar que o STF está anulando decisões políticas sem razão alguma, o que pode ser interpretado como uma espécie de discriminação dos entes prejudicados, e uma predileção pelos entes beneficiados, o que é incompatível com o espírito de igualdade que deve nortear a relação entre os entes da federação, não podendo haver qualquer hierarquia entre eles.
Diante destas constatações, pode-se concluir que mesmo se apegando em um direito fundamental extremamente amplo como o direito fundamental ao desenvolvimento, não é possível concluir que, com a autarquização das estatais, o Judiciário estaria superando regras postas na Constituição para a sua promoção.
Como dito anteriormente, o STF se apega nas premissas de um mundo que seus ministros consideram “ideal” onde autarquias prestam serviços públicos e estatais desempenham atividade econômica, mas tal entendimento não é jurídico, mas sim, ao que parece, meramente estético, pois jurídico é o que prevê a Constituição, e esta diz que podem existir estatais prestadoras de serviços públicos (§ 1º do art. 173), e que estas não podem ter privilégios não extensíveis às empresas privadas (§ 2º do art. 173).
Diante da sensibilidade do tema, o Poder Judiciário não pode tomar decisões levianas, desprezando-se ao mesmo tempo: o texto constitucional; a autonomia administrativa do Poder Executivo; e a vontade política do Poder Legislativo, sem que isto possua, ao menos, a finalidade nobre de promover algum direito fundamental. O que se pode afirmar até aqui, é que o direito fundamental ao desenvolvimento não está sendo promovido pela via dessa autarquização das estatais, não existindo nenhum dado concreto a este respeito, a não ser ranços ideológicos de toda ordem.
Agindo assim, o Poder Judiciário aparece como o mais forte ator de nossa ordem jurídica, capaz de intervir na ordem econômica, à revelia das demais instituições democráticas, podendo para tanto desprezar a vontade do Administrador e do Legislador, violar a constituição, e sem precisar observar o direito ao desenvolvimento como principal fundamento axiológico para a intervenção do Estado na ordem econômica.
Toda esta argumentação traçada até aqui não pretende colocar um ponto final sobre o tema, mas sim, quem sabe, criar uma discussão, no sentido de que se for possível comprovar que a autarquização das estatais promove, de alguma forma o direito fundamental ao desenvolvimento, tal medida se justificaria por este fundamento, e aqui, humildemente abre-se margem ao falseamento de todo o sobredito.
3. A repercussão da autarquização das estatais no pacto federativo
A autarquização das estatais é fenômeno extremamente problemático, uma espécie de reforma administrativa antineoliberalismo promovida “à força” pela via do Poder Judiciário. Existe uma série de problemas acarretados por tal tendência jurisprudencial, mas neste capítulo, quer se dar especial destaque para o aspecto atinente aos impactos fiscais de tal entendimento.
3.1. Delimitação do tema
A expressão “pacto federativo” possui muitas facetas, pois diz respeito a qualquer aspecto que interfira na distribuição nacional de competências, atribuições e prerrogativas inerentes à cada ente político brasileiro, e isso se dá porque como o próprio nome diz, ele é pactuado, ou seja, deve ser fruto de um consenso profundo entre todos os entes da federação.
O Brasil é uma federação singular, tendo em vista que é composta pela União, pelos estados e também pelos municípios, conforme estabelece a Constituição de 1988, logo em seu art. 1º, possuindo cada um destes entes autonomia política e administrativa, ou seja, capacidade de auto-organização, autonormatização, autogoverno e autoadministração.
Entretanto, o aspecto que se quer destacar neste trabalho é o pacto federativo em seu viés tributário, ou seja, é o denominado “federalismo fiscal”, que diz respeito exatamente à distribuição da arrecadação tributária entre os entes da federação, para que cada um deles possa exercer estas autonomias.
O pacto federativo, neste aspecto, é exaustivamente tratado no texto da Constituição, a qual é pródiga no tratamento da matéria, disciplinando tributos que são de competência da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, o qual possui cumulativamente a competência dos estados e dos municípios.
Este trabalho não tratará de fazer a demonstração das repartições de competências tributárias e das receitas dos tributos, mas sim, apenas referirá esta noção genérica sobre o federalismo fiscal para que se possa fixar a seguinte premissa fundamental: qualquer mudança no pacto federativo é extremamente complicada, pois impacta na própria autonomia dos entes federativos, o que sempre atrairá ao debate, a regra prevista no art. 60, § 4º, I da Constituição.
3.2. A imunidade recíproca aplicada às estatais prestadoras de serviços públicos e seu impacto no federalismo fiscal
A Constituição faz expressa menção às pessoas políticas, às autarquias e às fundações como beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista no art. 150, VI, “a” da Constituição, c/c o § 2º do mesmo dispositivo. O STF, contudo, avançou no sentido de que o beneplácito deve ser estendido às empresas públicas e às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público.
Por último, o STF tem reconhecido a imunidade até mesmo para atividades típicas do regime concorrencial, desde que o lucro auferido seja revertido para a manutenção do serviço público para o qual serve a respectiva estatal, aplicando-se o que tem se denominado “tese do subsídio cruzado”[86], ou seja, a imunidade se estende às atividades econômicas que servem para financiar o serviço público.
Quando da criação das estatais, existe um debate de natureza política no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo de cada ente público. É de se considerar a possibilidade de que no âmbito da União, por exemplo, o debate sobre a modalidade institucional, após muita negociação política, passa pela melhor técnica de repartição de receitas tributárias.
Em que pese a EC 19/98 ter sido introduzida por um governo de ideologia neoliberal, existe previsão constitucional que claramente ampara a possibilidade de criação de estatais prestadoras de serviços públicos, e o § 2º do art. 173 da Constituição é taxativo: “As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”, não trazendo nenhuma diferença de tratamento.
Diante destes fundamentos jurídicos, há legítima expectativa no sentido de que os entes federativos possuem o direito de cobrar impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços das empresas públicas de outros entes, e este entendimento que vem se consolidando no STF acaba por impactar gravemente a segurança orçamentária de todos os entes da federação, pois acabam perdendo fatia significativa de sua receita tributária.
Esta preocupação foi objeto de manifestação do Ministro Gilmar Mendes no RE 627051 nos seguintes termos:
“… só para que a gente analise também do ponto de vista de consequência, inclusive de distribuição de ônus no plano federativo, porque, quando retiramos determinada área de incidência do ICMS, nós estamos afetando de forma forte a tributação dos Estados. Quando tratamos do ISS, municípios, o IPTU igualmente, e não se pensa em nenhum modelo de compensação, quer dizer, enquanto estivermos falando isoladamente dos Correios, talvez tenhamos uma dimensão (…) veja, por exemplo, o caso do IPTU numa área portuária, caso de uma cidade como Rio de Janeiro, ou cidades menores, o porto de Santos, e a repercussão que isto tem em todo o sistema. E, infelizmente, é difícil encontrar meios de compensação.”
As estatais são criadas mediante autorização de lei, e esta lei tem como substrato legitimador o fato de ter sido produzida por representantes do povo, e se estes representantes optaram por criar estas entidades na forma de empresas, podem tê-lo feito assim para facilitar a distribuição de receitas de impostos, ou seja, justamente para fugir da imunidade recíproca.
Pode ser que o STF tenha adotado uma concepção contábil, econômica, ideológica ou, até mesmo, de mera estética, ao simplesmente dar tratamento típico de autarquias para as estatais, à revelia do texto constitucional, pois, data venia, não há juridicidade na fundamentação, a qual se deu, inclusive sem considerar os impactos no federalismo fiscal, acabando por centralizar ainda mais as receitas nas mãos da União, no que se refere às estatais federais, vindo por enfraquecer os demais entes.
Ocorre que o STF não é órgão escolhido pelo povo, e não possui legitimidade democrática para subverter as opções políticas tomadas no âmbito dos demais poderes, salvo nos casos de defesa dos direitos fundamentais das minorias, onde a Corte Constitucional possui legitimidade constitucional para agir de forma contramajoritária, fora isso, não pode o STF subverter o pacto federativo entabulado pelos legítimos representantes do povo, em que pese o atual cenário de falta de credibilidade destes.
Não reside nenhuma violação a direitos individuais ou coletivos de ordem civil, política, econômica, social e nem cultural que legitime a atuação do STF no sentido de desprezar a escolha do regime jurídico das entidades da administração indireta, o que faz concluir que a decisão tem como fundamento exclusivamente premissas não jurídicas que não são idôneas para subverter o pacto federativo.
O direito até pode ser construído com base em axiomas não juridicizáveis, mas isto no momento de sua elaboração, em sede legislativa. Ao aplicador, o norte que cabe seguir é pelo caminho a partir do caso concreto, investigando-se e aplicando-se o que de direito existe no ordenamento jurídico, não sendo lícito ao Judiciário de um Estado Democrático de Direito que possui constituição, se basear em ideologias, filosofias, religiões ou simples razões estéticas para fundamentar suas sentenças, podendo tão somente fundamentar suas decisões nas leis, na Constituição e nas normas decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Para além disso, carece de legitimidade democrática.
A tendência de autarquização das estatais prestadoras de serviços públicos somente se legitimaria se previamente houvesse uma emenda constitucional que deixasse esta situação muito clara, sob pena de criar grave insegurança orçamentária e desequilíbrio financeiro em diversos entes da federação, os quais contam de boa-fé com os recursos dos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços destas entidades.
Portanto, conclui-se que, data venia, a autarquização das empresas estatais é inconstitucional por violar o pacto federativo, não existindo amparo jurídico para conferir regime jurídico de Direito Público para as empresas estatais, notadamente no tocante aos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços destas entidades, receitas estas que podem fazer muita falta na hora da aquisição de remédios e merenda escolar para as crianças carentes, falando-se apenas a título de exemplo.
O STF acabou violando as normas constitucionais que se referem à autonomia administrativa, as quais permitem que os entes públicos possam promover a descentralização pela forma mais oportuna e conveniente para o interesse público. E quanto a este expansionismo de privilégios às empresas estatais, acabou promovendo uma espécie de “mutação constitucional inconstitucional”[87], por desprezar, dentre outros, o previsto no art. 173, §§ 1º e 2º da CF.
3.3. A possibilidade de superação do pacto federativo para promover o direito ao desenvolvimento
Diante da abrangência e da fundamentalidade do direito fundamental ao desenvolvimento, faz-se necessária uma breve manifestação acerca da possibilidade de superação (defeasibility) das regras relativas ao pacto federativo, quando tal medida, na prática, se revela como ingrediente de promoção concreta e materialmente demonstrável do direito fundamental ao desenvolvimento.
Quer-se deixar ressalvado o entendimento no sentido de que na hipótese em que seja cabal e concretamente demonstrada a promoção fática do direito fundamental ao desenvolvimento pela via da autarquização das estatais – tal direito, que hoje tem uma abrangência extremamente ampla, abrangendo todas as espécies de avanço de natureza civil, política, econômica, social e cultural –, nesta estrita hipótese, pode-se cogitar na derrotabilidade de regras, mesmo tão sensíveis quanto às atinentes ao pacto federativo.
Assim como a supremacia e a indisponibilidade do interesse público são, nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello, “pedras de toque” do Direito Administrativo, o direito fundamental ao desenvolvimento, ao lado da dignidade da pessoa humana e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, se mostra como verdadeira pedra de toque de todos os ramos do Direito brasileiro, assim, se uma atitude passar pela prova da promoção inequívoca do direito ao desenvolvimento, sopesando-se todos os demais fatores, é possível de se cogitar na superação de regras constitucionais e de opções políticas e administrativas legítimas advindas dos demais poderes da República.
Todavia, atitudes judiciais de tal ordem só podem ser tomadas em casos extremos, onde haja prova manifesta de uma profunda transformação social pela via da autarquização das estatais, caso contrário, não existe legitimidade em uma postura que subverte todo o sistema constitucional, a fim de satisfazer concepções de ordem extrajurídica, advindo dos recônditos da consciência dos ministros do STF, o que não é compatível com um Estado que se diz Democrático de Direito[88].
Conclusão
Antes de apresentar a conclusão se faz necessária uma advertência: o motivo da realização deste trabalho é trazer uma modesta contribuição, ainda que a título de provocação no sentido de se desenvolver mais o debate sobre esta autarquização das estatais via STF, não pretendendo de maneira alguma colocar um ponto final nesta temática, e nem menoscabar o trabalho do STF nos processos referidos, consistindo os eventuais excessos de linguagem em meras críticas advindas de um cidadão preocupado, portanto, desde já, pede-se escusas.
Passando-se as conclusões, é importante sublinhar que após uma breve apresentação do regime jurídico administrativo brasileiro, já no primeiro capítulo ficou demonstrado que a autarquização das estatais acaba por ferir a literalidade do texto constitucional que permite a criação de empresas estatais para a exploração de atividade econômica, especialmente o art. 173, §§ 1º e 2º da Constituição.
Depois disso, passou-se a uma apresentação mais detalhada do direito fundamental ao desenvolvimento, apresentando-se até mesmo as noções mais básicas, pois parte-se do pressuposto de que é um direito que foi por muitos anos negligenciado pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, portanto, de pouca popularidade, merecendo maiores aprofundamentos, sempre que aparecer esta oportunidade.
Ao final do capítulo sobre o direito ao desenvolvimento não se chegou a nenhuma conclusão mais substancial sobre a dúvida a respeito de estar-se ou não promovendo o direito fundamental ao desenvolvimento pela via dessa autarquização das estatais, pois não foram encontrados dados empíricos a este respeito e, além disso, não é correto lastrear um trabalho pretensamente útil ao Direito em concepções ideológicas.
Isto não significa, entretanto, que não tenha havido avanço, pois diante da fundamentalidade do direito ao desenvolvimento, o qual se apresenta como valor supremo da República, concluiu-se pela possibilidade, ainda que remota, para casos extremos, de haver derrotabilidade das regras constitucionais para a promoção deste nobre direito fundamental, o qual se apresenta inclusive como princípio implícito da ordem econômica brasileira.
Esta investigação se fez útil principalmente por ter acarretado a conclusão de que a autarquização das estatais, mesmo contrariando os dispositivos constitucionais mencionados, pode se justificar em casos extremos, onde seja cabalmente demonstrada a promoção inequívoca do direito fundamental ao desenvolvimento, abrindo-se esta via de justificação para casos futuros.
No terceiro capítulo o trabalho apresentou uma especial preocupação com os impactos deste movimento jurisprudencial no pacto federativo, tendo em vista as consequências que acarreta para os entes tributantes, que perdem o direito de cobrar impostos das empresas estatais prestadoras de serviços públicos, o que se apresenta como uma questão muito delicada, por acabar desprezando decisões legítimas da Administração Pública e do Poder Legislativo.
Neste ponto concluiu-se que a autarquização das estatais viola o pacto federativo, mas mesmo assim, acabou se ressaltando o valor fundamental do direito ao desenvolvimento, tendo em vista que em hipóteses raras e extremas, é possível até mesmo o federalismo fiscal ceder lugar a promoção deste valor supremo, o qual legitimaria, desde que concretamente demonstrável, toda intervenção do Estado na ordem econômica, inclusive esta nova modalidade pela via do Poder Judiciário.
A conclusão derradeira só pode ser no sentido de ressaltar o protagonismo que assume o direito fundamental ao desenvolvimento, caso seja reconhecido pelos juristas brasileiros o seu especial valor, superando-se a visão liberal clássica, e avançando-se rumo a uma concepção mais democrática e abrangente de tal instituto, o qual precisa funcionar como substrato legitimador de toda atuação do Estado, inclusive em suas intervenções na ordem econômica.
Informações Sobre o Autor
Rafael Ioriatti da Silva
Advogado, MBA em Business Law e especialista em Direito Administrativo