Resumo: A presente obra aborda o processo administrativo brasileiro sob a visão do Estado Democrático do Direito dirigindo-se a atualizar o seu conceito e aplicá-lo de forma mais ampla até para reduzir demandas judiciais em que os entes federativos figurem como partes em processos judiciais de modo que o referido instrumento jurídico ganhe mais relevo com relação ao que se vê atualmente. Além disso será conduzida de forma menos radical possível mas sempre apoiada em argumentos de autoridades jurídicas uma vez que transformações devem ser conduzidas de forma paulatina de modo que quiçá cheguemos ao sistema dual de jurisdição igualmente ao que ocorre no sistema francês onde o Conselho do Estado Francês tem independência jurisdicional para tornar imutável objeto litigioso em que a Fazenda Pública seja parte acrescendo ao seu conteúdo inovadoras perspectivas acerca da finalidade do processo administrativo sempre objetivando emoldurá-lo às novas necessidades da sociedade hodierna. Ademais será explicitado o emprego do processo administrativo no campo prático da Administração Pública muitas das vezes tema este tormentoso para os estudantes de direito em especial àqueles que não tenham tanto traquejo nesta seara sem se esquecer é claro de sua interligação com o processo judicial havendo incorporação de institutos jurídicos típicos de demanda judicial e ainda trazendo à baila fundamentos que explanem o seu nascedouro até a sua aplicação nos casos concretos. Conclui definindo a sua importância para atuação da Administração Pública bem como apontando as vantagens de se eleger o processo administrativo em detrimento do processo judicial de modo a facilitar à sua aplicação e consequentemente atenuar os inúmeros processos que atolam o judiciário brasileiro.
Palavras-chave: Processo Administrativo. Estado Democrático de Direito. Direito Administrativo. Atualização. Necessidade. Sociedade.
Abstract: His work addresses the Brazilian administrative process under the law of the Democratic State vision addressing to update its concept and apply it more broadly to reduce lawsuits in the federal entities appearing as parties in legal proceedings so that the said legal instrument gain more relief with respect to what is presently see. It will also be conducted in less radical way possible but always supported by arguments of legal authorities since changes must be conducted in a gradual way so that perhaps come to the dual system of jurisdiction also to what happens in the system French where the French State Council has judicial independence to make immutable litigious object in which the Treasury is a party adding to its innovative content perspectives about the purpose of the administrative process always aiming frame it to the new needs of today's society. In addition it will be explained the use of the administrative process in the practical field of public administration often a topic stormy for law students especially those who do not have much savvy in this endeavor without forgetting of course their interconnection with the judicial process with incorporation of typical legal institutions to institute legal proceedings and also bringing up foundations which will explain its birth to its application in a particular case. Concludes defining its importance for public administration activities and pointing out the advantages of electing the administrative process to the detriment of the judicial process in order to facilitate its implementation and hence mitigate the numerous processes jamming the Brazilian judiciary.
Keywords: Administrative Process. Democratic state. Administrative Law. Update. Need. Society.
Sumário: Introdução. 1. Conceito e origem do processo administrativo. 2.princípios constitucionais aplicados ao processo administrativo. 2.1. Devido processo legal. 2.2. Contraditório e ampla defesa. 2.3 Oficialidade. 2.4. Motivação. 2.5. Moralidade impessoalidade e imparcialidade. 2.6. Provas lícitas.
2.7 Verdade material. 3. Sistemas conteciosos de processo administrativo no direito comparado e o novo panorama para o processo administrativo brasileiro. 4. Atividade administrativa processualizada e incorporação de institutos jurídicos típicos do processo judicial. 4.1. Atividade administrativa como instrumento jurídico do estado democrático de direito. 4.2. Desconsideração da personalidade jurídica. 4.3. Medidas cautelares no processo administrativo. 4.4. Coisa julgada administrativa. 5. Vantagens em se optar pelo processo administrativo e novos desafios para celeridade processual. 6. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O tema a ser tratado são as perspectivas do processo administrativo brasileiro. Trata-se de um assunto que se caracteriza como habitual e provecto, e, ao mesmo tempo, instigante e hodierno para os operadores do direito. Revelando-se como uma das matérias que mais provocam celeumas na comunidade jurídica e traz consigo peculiaridades intertemporais.
O processo administrativo é um instrumento jurídico que a Administração Pública se utiliza como mecanismo de legitimação democrática, pois se repele a prática que, outrora, as fazendas públicas se enveredavam, qual seja, de externar sua vontade administrativa por simples atos administrativos, os quais se caracterizam por serem atos unilaterais de vontade sem a possibilidade de participação dos interessados em influenciar a vontade administrativa, fatos estes que remontam a períodos absolutistas, nos quais a vontade do rei não poderia ser contestada e nem influenciada pelos administrados. Acresça-se ainda que com as transmudações de razões ideológicas, no qual o Estado Liberal sede espaço para o Estado Intervencionista, tornou-se o Poder Público uma figura ativa na sociedade, restando, como consequência, exigências de ajustamento de condutas dos particulares, isto é, passou-se ao agravamento de limitações às liberdades públicas, o que, de fato, evidenciaram-se maiores atuações do Estado sobre a esfera jurídica dos administrados.
Hodiernamente, o processo administrativo vem sofrendo inúmeras mudanças, seja no campo legislativo, seja no modo de interpretação realizado pelo judiciário brasileiro, de maneira que o supracitado instrumento mereça um olhar mais atualizado, interligando com os institutos do processo judicial, a fim de que se coadune com a nova sistemática do Direito Administrativo moderno e supra as necessidades da sociedade com relação aos fatos que perturbem o bem-estar social.
O presente trabalho irá analisar o processo administrativo não só sob suas feições peculiares, mas também combiná-lo com institutos do direito comparado, tanto nos aspectos metodológicos quanto epistemológicos, de modo a encontrar novos caminhos para os operadores do direito. Outrossim, trará à baila as últimas interpretações dos Tribunais Superiores e as novas normas promovidas pelo legislativo acerca desse mecanismo.
Pode-se dizer que o processo administrativo brasileiro se consagrou como atividade administrativa obrigatória, pois, diante de uma Constituição de feições garantista e dirigente, ganha-se força a participação e a colaboração dos administrados na função administrativa, de modo a concretizar a soberania popular. Até porque, o Constituinte Originário indicou o “processo” para os três poderes, como corolário da tríplice partição dos Poderes, nos quais teremos: ao Poder Legislativo (processo legislativo), ao Poder judiciário (processo judicial) e ao Poder Executivo (processo administrativo), isto decorrente da função típica e principal de cada um dos referidos Poderes.
Também proporá uma análise desarraigada do formalismo do Direito, tratando o processo administrativo como instituto a ser modificado, como foi, paulatinamente, desde a sua criação no período de antanho, bem como será analisada a possibilidade de se chegar ao contencioso jurisdicional dual, semelhante ao que ocorre no sistema francês, o que exigiria reforma do Constituinte em razão do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988. Desta forma, é digna de continuidade a sua crescente evolução.
1. CONCEITO E ORIGEM DO PROCESSO ADMINISTRATIVO
O conceito de processo administrativo é um tema controvertido na doutrina pátria e estrangeira, embora se espraie por ser uma questão mais tangenciada a uma discussão acadêmica sem quaisquer reflexos no campo prático, cabe ao presente trabalho apontá-lo para encontrar melhor posicionamento ideológico acerca do referido instrumento.
Existem duas correntes sobre processo administrativo, uma de concepção restrita, a qual acaba por restringir o campo de atuação do processo administrativo, de modo a aplicá-lo tão-somente diante de litigiosidades entre a Administração Pública e administrados ou servidores públicos; ao revés, não existindo litígio, será denominado como ato de “simples expediente”, tal entendimento é perfilhado pelos professores Hely Lopes Meirelles e Lúcia Valle Figueiredo, que denominam de processo administrativo propriamente dito caso exista direito controvertido apto a obrigar a aplicação dos princípios constitucionais do processo administrativo, entre os quais, encontram-se o contraditório e ampla defesa, assim se posiciona:
“quando estivermos diante do processo administrativo, em sentido estrito (com conotação de litigância ou acusação), teremos, também, os princípios da função administrativa e, ainda, princípios peculiares do tipo que se desenvolver – portanto, princípios do processo civil ou do processo penal.”[1]
Por outro lado, subsiste a corrente majoritária, com a qual se concorda, que tem concepção ampla no conceito de processo administrativo cujo sentido se extraí posicionamento que se amolda ao ideário de Constituições de feições garantista, como a nossa, de modo a concretizar o Estado Democrático de Direito e, via de consequência, subsista uma processualização no campo de atuação da Administração Pública na quase totalidade de suas manifestações.
“A vantagem em se defender essa visão ampla do processo administrativo é trazer para todas as manifestações de desempenho da função administrativa importantes garantias para os administrados, encartadas, sobretudo, pela maior visibilidade na atuação estatal. Trata-se de mudança que objetiva superar o que os autores denominam ‘visão apertada’, na qual o indivíduo não tem lugar, a não ser que o próprio Estado permita, ou seja, em que há exclusividade no exercício da atividade administrativa dentro de ma estrutura burocrática impermeável, arredia a sugestões e ancorada na crença da infalibilidade”.[2]
Também criticam o entendimento da corrente de acepção restrita, no que tange ao conceito de processo administrativo, os professores Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, que assim dispõem:
“Não é defensável distinguir dois graus ou modelos de processo administrativo: um primeiro, composto pelos processos não revisivos, não sancionatórios, não punitivos, para os quais não seria aplicável, na íntegra, a pauta constitucional e axiológica deduzida, uma espacialidade em que a Administração desenvolveria as etapas sem publicidade, motivação, contraditório etc.; e um segundo grau ou modelo, constituído por processos revisivos, sancionatórios, punitivos, para os quais – aí, sim, e só então – impostergáveis e publicidade, a fundamentação etc”. [3]
De modo mais objetivo, assim sintetiza o Professor Carlos Ari Sundfeld: “uma lei geral de processo administrativo não regula apenas os chamados processos administrativos em sentido estrito, mas toda a atividade decisória da administração, sem exceções.”[4]
No entanto, vale ressaltar que mesmo a corrente de concepção ampla entende que será determinante o processo administrativo para atos que possam ocasionar reflexos na esfera jurídica de terceiros, isto é, não cabe a instauração de processo administrativo para atos meramente ordinatórios, de mero expediente administrativo, muito comum sua materialização ser transmitida por circulares, comunicações, entre outros; o que se caracterizam, mais precisamente, de surtirem efeitos dentro do próprio bojo das repartições públicas.
Outrossim, ainda existe a celeuma acerca da terminologia desse instrumento, isto é, denomina-se de “processo administrativo” ou “procedimento administrativo”, sendo debate meramente acadêmico e que, quase a totalidade da doutrina administrativista, aceita como correta o termo “processo”, e não procedimento, uma vez que este é o rito e aquele é a própria concatenação de atos, bem como pelo fato de a própria Constituição Federal em seu artigo 5º, LV, referir-se expressamente o vocábulo “processo administrativo”
Como bem explana o jurista Edmir Netto de Araújo:
“Assim como a lei é o resultado de vários atos encadeados em sequência lógica em direção a esse objetivo (processo legislativo); da mesma forma como a sentença é o resultado do processo judicial, também o ato administrativo é o resultado de um processo (em sentido lato) administrativo, intergrado por seus vários passos.”[5]
E arremata, o célebre jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, em breve síntese sobre o assunto:
“Por conseguinte, cada ato cumpre uma função especificamente sua, em despeito de que todos coparticipam do rumo tendencial que os encadeia: destinarem-se a compor o desenlace, em um ato final, pois estão ordenados a propiciar uma expressão decisiva a respeito de dado assunto, em torno do qual todos se polarizam.”[6]
Embora tais divergências doutrinárias acerca do conceito e terminologia do processo administrativo não chegam a afetar o seu campo prático de aplicação, tem mais sentido em estudá-los até para averiguar o perfil ideológico dos doutrinadores pátrios, de modo a ampliar ou não a incidência da instauração do processo administrativo, assim como para conduzir novas diretrizes a serem perseguidas pela Administração Pública, pois, como já dito, a concepção ampla de processo administrativo configura instrumento de legitimação democrática, de modo a trazer os indivíduos junto à Administração Pública e corroborar com maior intensidade na busca da verdade material, que é de essencial importância na atividade administrativa.
Desse modo, o processo administrativo deve ser visto como mecanismo imprescindível aos indivíduos, não podendo ser restringido a objetos litigiosos, deve ser empregado, com todas as consequências e aplicações próprias dos princípios do processo administrativo (que será analisado por este trabalho no tópico seguinte), aos processos não litigiosos, como: consulta fiscal; consulta pública; audiência pública, o que traz maior segurança jurídica às decisões que serão tomadas pela Administração Pública.
“Diante deste fenômeno do agigantamento do Estado e, mais do que isto, do agigantamento da Administração, que passou a intervir avassaladoramente na vida de cada cidadão, a resposta adequada e natural para impedir-lhe o amesquinhamento e buscar preservar, o quanto possível, o equilíbrio entre ambos teria de ser o asseguramento da presença do administrado no circuito formativo das decisões administrativas que irão atingi-lo. Com isto também se enseja maior descortino para as atuações da Administração, pois esta agirá informada, também, pela perspectiva exibida pelo interessado, o qual pode acender luzes prestantes para avaliação mais completa do assunto que esteja em causa”.[7]
Com isso, registra-se um enfoque dinâmico da função administrativa, nos quais são substituídas configurações de simples atos administrativos para a materialização de atividades administrativas, consoante bem ensina o jurista Marçal Justen Filho:
“A função administrativa se manifesta dinamicamente como o desenvolvimento de um conjunto ordenado de atividades, exigindo uma estrutura organizada e permanente de bens e de pessoas. A satisfação das necessidades coletivas, que justifica a atribuição de competências extraordinárias ao Estado e a institucionalização da própria função administrativa, exige essa estrutura material de bens e esse conjunto de pessoas. Mais ainda, a função administrativa apenas é executada de modo satisfatório na medida em que se traduza numa seqüência ampla de ações ordenadas de modo a produzir as providências abstratas e as utilidades materiais adequadas”.[8]
O processo administrativo tem como origem a contenção de Poder, fruto de teorias e ideologias próprias da ideia de constitucionalismo, que tem como base de pensamento e se ergue sobre o princípio do governo limitado, ou seja, assegura a limitação do Poder com fins garantísticos, equilibrando assim o relacionamento entre liberdade e autoridade.
Essa possibilidade de intermediação dos indivíduos na formação da vontade estatal é inerente ao próprio sentido de um sistema constitucional que alberga o regime de Estado Democrático de Direito, rompendo-se “com a exclusividade da direção do Estado no exercício da atividade administrativa e representa a contenção do poder pessoal das autoridades públicas.”[9]
Por outras palavras, o processo administrativo é instrumento jurídico de democracia que conduz a mitigação de formas impositivas e unilaterais do Poder Público, de modo que os administrados venham a ter participações ativas nos resultados proferidos pela Administração Pública, pois não só contribuem para esse desiderato como também se reivindicam rumos autênticos de interesse público, ou seja, haverá verdadeira gestão social na atividade administrativa.
Todavia, o processo administrativo não erige apenas como forma de limitação do Poder Público, igualmente, serve como mecanismo para materializar o próprio poder hierárquico (processos disciplinares sobre seus servidores) e poder de polícia (sancionatório a todos administrados), pois ele se instaura de ofício pela Administração Pública como condição de validade dos atos administrativos punitivos, o que configura exercício de controle da Administração Pública.
Como bem pondera o Professor José dos Santos Carvalho Filho:
“O poder que tem a Administração de estabelecer suas diretrizes, suas metas, suas prioridades e seu planejamento para que a atividade administrativa seja desempenhada da forma mais eficiente e rápida possível. Nesse ponto, não se pode perder de vista que o único alvo da atividade administrativa tem que ser o interesse público, e, sendo assim, é este mesmo interesse que estará a exigir o controle da Administração, não somente em sede de legalidade, mas também no que diz respeito aos objetivos a serem alcançados através da função de gerir os negócios da coletividade.”[10]
Até porque a ideia de Poder vem ao seu lado o Dever (poder-dever), fato este que condiciona o exercício dos poderes da Administração Pública, dentre eles, encontra-se a necessidade de instauração de processo administrativo, assegurando ao destinatário do ato os princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório, ampla defesa e moralidade administrativa (julgador imparcial).
Denota-se que o regime jurídico administrativo submete-se a duas bipolaridade que se completam num verdadeiro “freios e contrapesos”, quais sejam, prerrogativas e sujeições, conforme ensina a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“Ao mesmo tempo em que as prerrogativas colocam a Administração em posição de supremacia perante o particular, sempre com o objetivo de atingir o benefício da coletividade, as restrições a que está sujeita limitam a sua atividade a determinados fins e princípios que, se não observados, implicam desvio de poder e consequente nulidade dos atos da Administração”.[11]
No Brasil, as sanções a serem aplicadas pela Administração Pública devem ser precedidas de processo administrativo, conforme determina os incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal, a não ser que a restrição à liberdade pública do indivíduo seja de tamanha urgência que com fim de não lesionar e se tornar inúteis os interesses maiores da coletividade seja praticado o ato administrativo sancionatório (ex. demolição) de imediato, havendo o exercício do contraditório a posteriori (diferido).
“Se o ato sancionatório de polícia não tiver propiciado ao infrator a oportunidade de rechaçar a acusação e de produzir as provas necessárias às suas alegações, estará contaminado de vício de legalidade, devendo ser corrigido na via administrativa ou judicial. Como se trata de processo acusatório, deve reconhecer-se a incidência, por analogia, de alguns axiomas consagrados no âmbito do Direito Penal e Processual Penal.”[12]
Não obstante esses preceitos serem de observância obrigatória quando o poder de polícia era visto como instrumento de manutenção da ordem pública, onde traduzia imposições de restrições aos indivíduos e que, por isso, seria indiscutível a determinação de instauração de processo administrativo para assegurar a defesa do suposto infrator.
Esse conceito perdeu finalidade unívoca, eis que, com a nova visão do poder de polícia como instrumento para proteção de direitos fundamentais, ganhou-se novos ares, via de consequência, o processo administrativo, o qual almeja a objetivos prestacionais, através do direito de petição dos administrados, instaura-se para promoção dos direitos fundamentais como corolário do Estado Democrático de Direito.
Valendo-se da lição do professor Marçal Justen Filho que revelou em seu livro um caso famoso, conhecido como “arremesso de anões”, em que o Conselho do Estado Francês se deparou para ser julgado e esta Corte Administrativa acabou por exarar um valioso precedente jurisdicional, senão vejamos:
“Uma discoteca promovia uma espécie de ‘competição’, consistente em ‘arremesso de anões à distância’. Não havia risco à integridade física dos interessados, os quais se prestavam a participar da atividade mediante remuneração. A municipalidade proibiu a atividade, invocando o poder de polícia. O Conselho de Estado reconheceu que o poder de polícia é orientado, também, à proteção da dignidade da pessoa humana”.[13]
Diante desse novo enfoque do poder de polícia juntamente com a participação ativa dos administrados junto à Administração Pública, no qual se instrumentaliza através do processo administrativo, vê-se que houve uma evolução social no modo em que os indivíduos incitam o Poder Público a praticar atos, seja para serem beneficiados – como pelas denominadas sanções premiais, cujo exemplo se tem com a chamada “denúncia espontânea” estabelecida no âmbito dos processos administrativos fiscais (artigo 138 do Código Tributário Nacional) -, seja para cessarem condutas violadoras, recompondo-se o administrado ao regime da legalidade – é o que ocorre com os denominados Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) – que se originam de um processo administrativo.
Foi o que observou o mesmo jurista citado acima:
“A Administração Pública passou a emitir providências de polícia de modo concertado com os particulares. Assim, não são incomuns acordos de regulação ou cessação de condutas, em que o particular se compromete a adotar certas providências ou a cessar determinadas práticas e, em contrapartida, a Administração Pública restringe ou delimita suas decisões derivadas da competência de poder de polícia.”[14]
Cabe configurar por ilustrações a evolução do processo administrativo que acompanhou o próprio desenvolvimento das teorias e ideologias de movimentos constitucionalistas, observando que tal comparativo foi percebido pelo autor do presente trabalho, sendo que não, necessariamente, vinculam-se no mesmo período, mas se interligam por ideologias que concretizam valores da dignidade da pessoa humana. Demonstra-se num crescente que se impõe, aos gestores público, a programarem políticas públicas sem necessidade de intervencionismo do Poder Judiciário, o qual, alhures, será rebatido no presente trabalho, que se apoiará na imprescindibilidade de uma jurisdição administrativa.
É o que se vislumbra:
Destarte, o instituto do processo administrativo pode se alinhar com os movimentos constitucionais, em especial quanto ao aspecto de garantidores dos direitos fundamentais, conforme se vê o conceito de tal ideologia e sua respectiva evolução:
“Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade.”[15]
E continua o Professor da Faculdade de Direito de Coimbra, diferenciando constitucionalismo antigo do moderno:
“Constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos […].
Constitucionalismo antigo, isto é, o conjunto de princípios escritos ou consuetudinário, alicerçadores da existência de direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitadores do seu poder.”[16]
Já o conceito de neoconstitucionalismo, assegurada pela doutrina da efetividade, é muito bem seguida pelo professor Luís Roberto Barroso, que assim se explica:
“De base pós-positivista e voltadas para a fundamentalidade material da norma. Entre nós – talvez diferentemente do que se passou em outras partes -, foi a partir do novo patamar criado pelo constitucionalismo brasileiro da efetividade que ganharam impulso os estudos acerca do neoconstitucionalismo e da teoria dos direitos fundamentais.”[17]
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICADOS AO PROCESSO ADMINISTRATIVO
Não há como indicar a evolução do mecanismo jurídico: processo administrativo, sem precisar os principais princípios constitucionais aplicados a ele.
O presente trabalho norteará, tão-somente, em relação a alguns dos princípios aplicáveis ao processo administrativo, pois a doutrina administrativista revela numerosos princípios, não havendo unanimidade acerca de quais sejam. Neste caso, serão pincelados aqueles em que não haja discussão quanto a sua exigência, eis que extraídos do próprio texto constitucional.
Com a Constituição Federal de 1988, o processo administrativo ganhou novos ares democráticos, que até então não se via em Constituições pretéritas, notadamente quanto às exigências do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, além é claro de incorporar instrumentos do direito alienígena, como, por exemplo, o exercício do controle social sobre atividades administrativas.
Até porque, a finalidade do processo administrativo é proporcionar melhores condições para Administração Pública em buscar decisões que se amoldem ao interesse público, dentre os quais, encontra-se o exercício de atuações legítimas, isto é, dentro da legalidade ou, melhor dizendo, de acordo com a doutrina contemporânea, atuar em prol do princípio da juridicidade.
A professora Odete medauar nos ensina as finalidades do processo administrativo numa linha trajetória em favor da Administração Pública e outra sob o ângulo dos administrados, conforme dispõe:
“O processo instituído implica organização racional da edição de muitos atos administrativos. Sistematizam-se, desse modo, várias atividades. Sob o ângulo da Administração, representa meios de simplificar práticas, pois não se pode pedir a cada servidor que invente a cada questão que surge, todas as medidas que devam ser dotadas. Para o administrado, permite o conhecimento do modo de exercício de funções administrativas, em contraste, assim, com funções não processualizadas, cujo modo e exercício dificilmente se dá a conhecer. A colaboração dos sujeitos e o conhecimento do modo de atuação administrativa, decorrentes do esquema processual, facilitam o controle por parte da sociedade, do Poder Judiciário e de todos os outros entes que fiscalizam a Administração”.[18]
Todavia, antes de serem especificados os princípios que recaem sobre o tema do presente trabalho, necessário se faz advertir o conceito e o alcance de aplicação dos princípios, os quais, até pouco tempo atrás, eram utilizados só como instrumento de interpretação e supridores de lacunas legislativas.
Com o surgimento da corrente pós-positivista, evoluiu-se a concepção de princípios, tornando-os espécies normativas juntamente com as regras, a diferença entre ambos se reflete ao modo de aplicação, pois, conforme palavras do jurista alemão, Robert Alexy, que se tornou ditado corrente na comunidade jurídica, ‘os princípios são verdadeiros mandados de otimização’ e podem ser aplicados em diferentes graus, enquanto que as regras se aplica a máxima do “vale ou não vale” entre elas, além de não existir aplicação em diferentes graus, ou seja, devem ser cumpridas exatamente como elas estabelecem.
Consoante bem informa o professor português da Universidade de Lisboa, Jorge Miranda:
“Os princípios não se colocam, pois, além ou acima do Direito (ou do próprio Direito positivo); também eles – numa visão ampla, superadora de concepções positivistas, literalistas e absolutizantes das fontes legais – fazem parte do complexo ordenamental. Não se contrapõem às normas, contrapõem-se tão-somente aos preceitos; as normas jurídicas é que se dividem em normas-princípios e em normas-regras.”[19]
Há de se destacar que os princípios exercem o papel de ordenarem o Direito, eis que do conjunto do ordenamento jurídico é que se extraem os princípios, isto é, são verdadeiros baluartes informadores das concepções seguidas por um determinado ordenamento jurídico.
Nesse sentido, os princípios têm o reconhecimento de explicar e fundamentar a validade e efetividade de uma norma-regra, pois se esta dissociar do próprio plexo do ordenamento jurídico restará vaticinada para sua invalidade.
Também é o que ensina o professor Jorge Miranda:
“O direito não é mero somatório de regras avulsas, produto de actos de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si. O Direito é ordenamento ou conjunto significativo, e não conjunção resultante de vigência simultânea; implica coerência ou, talvez mais rigorosamente, consistência; projecta-se em sistema; é unidade de sentido, é valor incorporado em norma. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor projecta-se ou traduz-se em princípios, logicamente anteriores aos preceitos.”[20]
2.1. DEVIDO PROCESSO LEGAL
O princípio do devido processo legal emerge do artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Hodiernamente, existe a concepção substancial e formal do devido processo legal, sendo que a acepção substancial está relacionada aos processos jurídicos de emissão de comandos normativos, denotando limitação no seu exercício com a aplicação dos denominados postulados normativos de aplicação de normas, quais sejam, razoabilidade e proporcionalidade. Já a concepção formal, que é objeto do presente trabalho, refere-se à necessidade de se observar os trâmites estabelecidos pelos preceitos legais, antes do Poder Público afirmar sua posição diante de um caso concreto, possibilitando assim a participação dos indivíduos na formação da melhor decisão a ser tomada pelo Estado. Portanto, o princípio do devido processo legal é expressão dos princípios da legalidade e do Estado Democrático de Direito.
Assim afirma a professora Fernanda Marinela:
“Por tais razões, tendo em vista a ligação substancial entre o devido processo legal e o Estado Democrático de Direito, eis que um Estado não pode ser de direito e muito menos democrático se não confere ao cidadão os instrumentos necessários ao exercício dos mais diversos direitos, sejam eles coletivos ou individuais, que a Lei Fundamental consagra. É evidente que o Estado, entendido na sua mais abrangente acepção, está adstrito à observância dos preceitos inerentes ao devido processo legal, pois este não constitui uma mera faculdade, mas sim um dever, uma regra imperativa”.[21]
Nesse passo, qualquer atuação da Administração Pública que venha a repercutir negativamente na esfera jurídica do indivíduo, cabe, em respeito ao princípio do devido processo legal, a instauração prévia de processo administrativo.
Evoluindo a própria concepção do sistema, adverte o professor José dos Santos Carvalho Filho, que o devido processo legal dever ser aplicado tanto no processo administrativo litigioso quanto no processo administrativo não litigioso, nesse ponto ele diz:
“Em relação ao processo administrativo, o princípio do devido processo legal tem sentido claro: em todo o processo administrativo devem ser respeitadas as normas legais que o regulam. A regra, aliás, vale para todo e qualquer tipo de processo, e no caso do processo administrativo incide sempre, seja qual for o objeto a que se destine. Embora se costume invocá-lo nos processos litigiosos, porque se assemelham aos processos judiciais, a verdade é que a exigência do postulado atinge até mesmo os processos não litigiosos, no sentido de quês nestes também deve o Estado respeitar as normas que sobre eles incidam”. [22]
Tema de elevada importância no direito previdenciário e que havia consigo grande celeuma na jurisprudência pátria é o desfazimento de ato administrativo que concedeu o benefício previdenciário da aposentadoria ao administrado, mas, no exercício da autotuela, a Administração Pública acabava por anular o referido benefício em razão da ilegalidade do ato que o concedera. Indagava-se se em virtude do ato ilegal o Poder Público de imediato poderia revogar o benefício de aposentadoria, até porque os pagamentos ali realizados terem natureza alimentar, de modo que se insiram na qualidade de verbas irrepetíveis; ou, pelo contrário, em prol dos princípios da boa-fé e da confiança legítima, a Administração Pública deveria instaurar previamente o processo administrativo, à luz do devido processo legal, assegurando a participação do interessado na formação da vontade estatal.
O Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar sobre esse caso e concluiu em favor do princípio do devido processo legal, senão vejamos:
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO. APOSENTADORIA. LEI N. 2.271/94 DO ESTADO DO AMAZONAS. LEI INCONSTITUCIONAL. EFEITOS. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. ART. 37, CAPUT, DA CB. ATO ADMINISTRATIVO. ANULAÇÃO. INTERESSES INDIVIDUAIS. DEVIDO PROCESSO LEGAL. 1. Este Tribunal firmou entendimento no sentido de que os proventos regulam-se pela lei vigente à época do ato concessivo da aposentadoria, excluindo-se do desconto na remuneração as vantagens de caráter pessoal. É plausível a tese do direito adquirido. Precedente. 2. Embora a lei inconstitucional pereça mesmo antes de nascer, os efeitos eventualmente por ela produzidos podem incorporar-se ao patrimônio dos administrados, em especial quando se considere o princípio da boa-fé. 3. Para a anulação do ato administrativo que tenha repercutido no campo de interesses individuais é necessária a instauração do devido processo legal. Precedente. Agravo regimental a que se nega provimento.”[23](grifo nosso)
Nota-se que, em tese, houve colisão entre os princípios da indisponibilidade do interesse público e da legalidade, em um dos lados, e, do outro, os princípios do devido processo legal e da confiança legítima. Nesse caso, a Suprema Corte acabou por, num juízo de sopesamento de valores constitucionais, preponderar em favor dos dois últimos princípios supracitados, consoante a técnica de ponderação ensinada por Robert Alexy.
2.2. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA
Os princípios do contraditório e da ampla defesa estão previstos no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, que assim dispõe: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Percebe-se que ambos (processo administrativo: litigioso ou não) decorrem do princípio do devido processo legal na sua acepção formal, pois se caracterizam pela possibilidade dos indivíduos utilizarem todos os meios de defesa admitidos em direito dentro de um processo administrativo, a fim de acrescentar na formação de vontade da Administração Pública, o qual será bem aceito por esta, até porque ela se envereda na busca da verdade material.
O contraditório é instrumento indispensável em países que adotam o modelo do Estado Democrático de Direito, “reconhece-se que o contraditório é a democracia no processo, que consiste no direito à participação, o que se opera com a realização de tal regra. Esse princípio deve ser visto como manifestação do exercício democrático de um poder.”[24]
Há de salientar que a doutrina costuma analisar o princípio do contraditório sob dois vieses: uma de acepção formal – que é a garantia de participação do interessado no processo administrativo (comunicação, participar de audiência, possibilidade de fazer carga dos autos, etc.) – e outro de acepção material – que é a garantia de poder influenciar na decisão a ser proferida pelo órgão administrativo julgador.
Com isso, não basta a mera participação do interessado no processo, mas se exige que ele seja ouvido e que possa ter condições de influenciar no poder de decisão da autoridade administrativa julgadora, o que traduz a orientação defendida, no presente trabalho, no sentido de que o processo administrativo seja um instrumento de legitimidade democrática, olhando o interessado não como um mero “administrado” (que tem conotação de subordinação), ao revés, seja ele visto como cidadão, de modo a cooperar com a Administração Pública nas decisões a serem tomadas, porquanto o verdadeiro Poder é do povo.
Já a ampla defesa é própria de Estados que se autolimitam, pois ela deve possibilitar aos interessados o máximo de mecanismos para ofertarem sua defesa, tais como: direito de vistas ao processo, direito à informação, produção de prova, direito de ter defesa técnica, etc; não podendo afastar a participação dos interessados na atividade processualística através de obstáculos ilegítimos, como exigência de arrolamentos prévios de bens para participar no processo administrativo. Prática esta muito difundida no Brasil, no qual o Supremo Tribunal Federal teve que eliminar esta atuação abusiva dos entes federativos, consoante enunciado da Súmula Vinculante nº 21, que assim define: “É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.”[25]
Como visto, a ampla defesa acaba por se confundir com a definição do contraditório na sua acepção material, que é o poder de influência nas decisões a serem proferidas pelo órgão julgador, consoante o posicionamento da doutrina processualística moderna. É o que ensina o professor Fredie Didier Júnior:”Atualmente, tendo em vista o desenvolvimento da dimensão substancial do princípio do contraditório, pode-se dizer que eles se fundiram, formando uma amálgama de um único direito fundamental.”[26]
Em atendimento aos princípios aqui relacionados, a Lei Federal nº 9.784/99, em seu artigo 3º, assegura aos administrados os seguintes direitos:
“Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;
II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;
IV – fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei”[27]
Também nesse mesmo sentido a Lei do Estado de São Paulo nº 10.177/1998, em seu artigo 22, assim dispõe:
“Artigo 22 – Nos procedimentos administrativos observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados e o devido processo legal, especialmente quanto à exigência de publicidade, do contraditório, ampla defesa e, quando for o caso, do despacho ou decisão motivados.
§ 1.º – Para atendimento dos princípios previstos neste artigo, serão assegurados às partes o direito de emitir manifestação, de oferecer provas e acompanhar sua produção, de obter vista e de recorrer.
§ 2.º – Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias.”[28]
Como já dito, a própria definição da ampla defesa ou do contraditório na sua acepção material, que é o “poder de influência”, exige a garantia de que o interessado possa deter conhecimentos jurídicos suficientes para debater em pé de igualdade com a parte contrária (paridade de armas), de maneira a intuir a autoridade julgadora para que aja de acordo com as normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto. Nesse ponto, ressoa indispensável assegurar defesa técnica para o interessado, pois a sua dispensabilidade resultam em prejuízos técnicos e, consequentemente, acaba por assumir responsabilidades que não deveriam ser determinadas.
Nessa entoada, o Superior Tribunal de Justiça afirmava pela necessidade de participação de advogado constituído ou dativo no âmbito do processo administrativo, sob pena de ferir o contraditório e a ampla defesa, acarretando nulidade no processo:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. DEFESA TÉCNICA CONSTITUÍDA APENAS NA FASE FINAL DO PROCEDIMENTO. INSTRUÇÃO REALIZADA SEM A PRESENÇA DO ACUSADO. INEXISTÊNCIA DE NOMEAÇÃO DE DEFENSOR DATIVO. PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INOBSERVADOS. DIREITO LÍQUIDO E CERTO EVIDENCIADO.
1. Apesar de não haver qualquer disposição legal que determine a nomeação de defensor dativo para o acompanhamento das oitivas de testemunhas e demais diligências, no caso de o acusado não comparecer aos respectivos atos, tampouco seu advogado constituído – como existe no âmbito do processo penal –, não se pode vislumbrar a formação de uma relação jurídica válida sem a presença, ainda que meramente potencial, da defesa técnica.
2. A constituição de advogado ou de defensor dativo é, também no âmbito do processo disciplinar, elementar à essência da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
3. O princípio da ampla defesa no processo administrativo disciplinar se materializa, nesse particular, não apenas com a oportunização ao acusado de fazer-se representar por advogado legalmente constituído desde a instauração do processo, mas com a efetiva constituição de defensor durante todo o seu desenvolvimento, garantia que não foi devidamente observada pela Autoridade Impetrada, a evidenciar a existência de direito líquido e certo a ser amparado pela via mandamental. Precedentes.
4. Mandado de segurança concedido para declarar a nulidade do processo administrativo desde o início da fase instrutória e, por conseqüência, da penalidade aplicada”. (grifo nosso)[29]
Todavia, o Supremo Tribunal Federal consolidou jurisprudência diametralmente oposta no sentido da prescindibilidade de defesa técnica no âmbito do processo administrativo, inclusive os de índole disciplinar, tal posicionamento resultou na publicação do enunciado de Súmula Vinculante nº 5: "A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição."[30]
2.3. OFICIALIDADE
No âmbito administrativo, sempre se cunhou sua diferença do processo judicial em razão da possibilidade de instauração ex officio, isto é, sem necessidade de provocação de qualquer indivíduo estranho aos quadros da administração pública, possibilitando ainda o impulso necessário do processo administrativo independentemente da vontade das partes.
Enquanto que no processo judicial, em regra, adota-se o modelo dispositivo – onde o Poder Judiciário só poderá atuar mediante instauração de processo instaurado pelas partes. A exceção é o procedimento especial do inventário e partilha, no qual o juiz poderá instaurar de ofício (artigo 989 do CPC/1973), embora esta última regra não mais se adotará com o novo CPC/2015 (artigos 615 e 616 do CPC/2015), que afastou a instauração de ofício pelo juiz no procedimento do inventário, mas inovou ao possibilitar que juiz tome a iniciativa de instauração no procedimento especial de restauração de autos (artigo 712 do CPC/2015) .
Por outro lado, mesmo no processo judicial, adota-se o modelo inquisitivo, como regra, após o juiz ser inicialmente provocado, como, por exemplo, a possibilidade do juiz determinar a produção de provas ex officio, consoante leitura do artigo 130 CPC/1973 e artigo 370 CPC/2015.
A própria doutrina sempre definiu o princípio da oficialidade como mecanismo de a Administração Pública agir ex officio, em todas as fases do processo administrativo, demonstrando a incorporação exclusiva do modelo inquisitivo (logicamente não afastando a possibilidade de instauração do processo pelos particulares), ou seja, não seguiu um modelo até de certa forma híbrido do processo judicial.
“O princípio da oficialidade autoriza a Administração a requerer diligências, investigar fatos de que toma conhecimento no curso do processo, solicitar pareceres, laudos, informações, rever os próprios atos e praticar tudo o que for necessário à consecução do interesse público.
Portanto, a oficialidade está presente:
1. no poder de iniciativa para instaurar o processo;
2. na instrução do processo;
3. na revisão de suas decisões.”[31]
A Lei Federal 9784/99 em seu artigo 5º expressamente adota o princípio da oficialidade, que assim dispõe: “O processo administrativo pode iniciar-se de ofício ou a pedido de interessado.” Embora seja pacífico o princípio em questão no âmbito dos processos administrativos, cabe incorporar o modelo da cooperação, isto é, deve-se agregar ao princípio da oficialidade, também, o princípio da cooperação, no qual haverá um hígido diálogo processual entre os interessados e a Administração Pública durante todo trâmite do processo administrativo, o que intensifica o tratamento da ideologia aqui perseguida de que o processo administrativo é um instrumento de legitimidade democrática.
Abeberando-se das lições dos processualistas judiciais, que modernamente vem indicando este novo modelo cooperativo no âmbito judicial, o professor Fredie Didier Jr. assevera no seguinte sentido:
“A condução do processo deixa de ser determinada pela vontade das partes (marca do processo liberal dispositivo). Também não se pode afirmar que há uma condução inquisitorial do processo pelo órgão jurisdicional, em posição assimétrica em relação às partes. Busca-se uma condução cooperativa do processo, sem destaques a algum dos sujeitos processuais.
O modelo cooperativo parece ser o mais adequado para uma democracia. […]
Disso surgem deveres de conduta tanto para as partes como para o órgão jurisdicional, que assume uma ‘dupla posição’: mostra-se paritário na condução do processo, no diálogo processual, e ‘assimétrico’ no momento da decisão; não conduz o processo ignorando ou minimizando o papel das partes da ‘divisão do trabalho’, mas, sim, em uma posição paritária, com diálogo e equilíbrio. A cooperação, corretamente compreendida, em vez de ‘determinar apenas que as partes – cada uma para si – discutam a gestão adequada do processo pelo juiz, faz com que essas dele participem”.[32]
Anota-se que esse novo modelo de cooperação foi expressamente incorporado pela Lei 13.105/2015 (Novo Código de Processo Civil) em seu artigo 6º, que assim estabelece: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”, associando-se ainda aos modelos tradicionais de organização do processo (dispositivo e inquisitivo) que continuam sendo mantidos, consoante dispõe o artigo 2º do referido diploma: “O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.”
Com efeito, conforme explicitados alhures, deve-se acrescentar (ou melhor, agregar) os princípios da oficialidade e da cooperação na seara do processo administrativo, eis que revelará a concretização do Estado Democrático de Direito no contencioso administrativo, ainda que expressamente não se encontre nas leis procedimentais de cada ente federativo a indicação do modelo cooperativo, este exsurge do princípio da boa-fé objetiva, pois os deveres de cooperação têm desdobramentos nos deveres de lealdade, proteção e informação, além disso, a Lei Federal nº 9784/99, expressamente incorpora tais cláusulas gerais de comportamento nas relações processuais entre os administrados e a Administração Pública, artigo 2º, incisos IV, VI e VIII; artigo 3º, inciso I; e artigo 4º, incisos II e IV.
2.4. MOTIVAÇÃO
O princípio da motivação é muito estudado na doutrina administrativa no campo dos atos administrativos, embora sua base legal se encontre em leis de processo administrativo dos entes federados, notadamente na lei federal nº 9784/99, em seu artigo 2º, que estabelece como um dos princípios a serem seguidos no âmbito do processo administrativo. O fato é que os atos administrativos compõe todo o processado, ou seja, o conjunto de atos administrativos concatenados ao fim decisório da Administração Pública denomina-se “processo administrativo”.
Seu resultado decorre de tratamento constitucional, o qual impõe a exigência de motivação nas decisões administrativas no Poder Judiciário, que, naturalmente, reflete-se no âmbito dos demais Poderes, conforme dispõe o artigo 93, X, da Constituição Federal: “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros;”
Todavia, parte da doutrina, não concorda com a obrigatoriedade da motivação dos atos administrativo, “no que se refere à motivação, porém, temos para nós, com o respeito que nos merecem as respeitáveis opiniões dissonantes, que, como regra, a obrigatoriedade inexiste.”[33]"
E, continua o mesmo autor, fundamentando suas razões de não se aplicar a exigência de motivação dos atos administrativos,
“Por fim, é importante destacar que o art. 93, X, se situa no capítulo constitucional destinado ao Poder Judiciário. Assim, mesmo que se entenda que o texto exige de fato a motivação, a exigência envolveria apenas os atos do Poder Judiciário, sem alcançar, por conseguinte, os praticados no âmbito do Poder Executivo.”[34]
Respeita-se a opinião do emérito jurista mencionado, mas não se concorda com o seu posicionamento, até porque o dever de a Administração Pública motivar os seus atos decorre diretamente do Estado Democrático de Direito, bem como para o completo exercício do interessado no campo da ampla defesa e do contraditório.
Também corrobora com esse entendimento a grande maioria da doutrina do direito administrativo, com a segura palavra de todos, representados pelo jurista carioca Alexandre Santos de Aragão:
“O que importa é que a motivação (e a sua publicidade) seja suficiente para possibilitar o controle sobre o ato e o debate sobre o seu conteúdo. Nesse ponto vemos a clara relação do Princípio da Motivação com o Estado Democrático de Direito, que deve sempre poder ser controlado, e com o devido processo legal e a ampla defesa, já que, sem conhecer a causa de um ato, não há como impugná-lo”.[35]
2.5. MORALIDADE, IMPESSOALIDADE E IMPARCIALIDADE
A moralidade administrativa é conceito de moral jurídica, e não de moral comum, pois sua condução ética é analisada de acordo com as regras de conduta erigidas da própria Administração Pública, pensando nisso, o Presidente da República baixou o decreto federal nº 1.171/1994, que disciplina o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, que, em seu anexo, foram extraídas regras deontológicas, entre as quais se preocupou em definir o conceito vago “moralidade administrativa”:
“III – A moralidade da Administração Pública não se limita à distinção entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da idéia de que o fim é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo”.[36]
A moralidade administrativa acaba por interligar com outros princípios de natureza igualmente constitucional: impessoalidade e imparcialidade, eis que para se observar o princípio da moralidade administrativa não basta o estrito cumprimento da legalidade que, muitas vezes, não se consolida o interesse público primário (conforme definição de Renato Alessi), pois em certos casos o que é legal – em razão de estar previsto num instrumento normativo –, não será dito como legítimo em virtude de questões dissonantes da razoabilidade e justiça.
Percebe-se que o princípio da moralidade administrativa expõe a reaproximação do direito e da ética/moral, até então se enveredaram por trajetórias apartadas, aquela estudada pelas ciências jurídicas enquanto as últimas elucubradas por outras ciências (sociologia, filosofia, etc.).
A necessidade de se aplicar o princípio da moralidade administrativa é de tão importância na realidade presente, pois, em decorrência da dinamicidade recorrente na sociedade, dita de massa e globalizada, as normas acabam sendo emitidas através de conceitos vagos, abertos (cláusulas gerais e conceito jurídico indeterminado).
Conforme bem precisou o professor Alexandre de Moraes, declinando a verdadeira acepção de moralidade administrativa:
“Pelo princípio da moralidade administrativa, não bastará ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade, devendo ele, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos de razoabilidade e justiça, pois a moralidade constitui, a partir da Constituição de 1988, pressuposto de validade de todo ato da administração pública”.[37]
Como já dito, a moralidade administrativa se interliga, de forma muito próxima, da impessoalidade e imparcialidade, indicando assim o modo em que o agente público deve se comportar. Na impessoalidade, em virtude da própria adoção da teoria do órgão (ou da imputação) cujo comportamento do agente público, em razão de seu ofício, é sempre imputado ao Estado. Visto que, o servidor só externa a vontade estatal, até porque é mero gestor da res publica, sucedendo sua obrigação de agir com escopo de buscar a melhor forma de satisfazer o interesse público, e não se desviar para patrocinar interesses privados.
Também é o que pensa o professor Gustavo Mello Knoplock:
“Por outro lado, e mais nitidamente, pecebe-se que o agente público deve agir sempre de forma impessoal, imparcial, isenta, sempre buscando o bem da coletividade, e não o seu interesse pessoal. Dessa forma, a finalidade da atuação administrativa deve ser sempre o interesse público, e nunca o interesse pessoal, razão pela qual se pode dizer que o princípio da impessoalidade é também denominado de princípio da finalidade.”[38]
Já a imparcialidade é inerente à competência de atuação do agente público, especialmente no âmbito de um processo administrativo, onde a controvérsia administrativa deve ser resolvida em prol do melhor interesse público e da busca da verdade real (e não meramente formal).
A imparcialidade do julgador é bem definida pelo processo judicial, onde o legislador sempre se preocupou por uma atuação proba e leal do juiz, inclusive a imparcialidade é sentida tanto por circunstâncias impeditivas – esta, especialmente, é considerada de natureza de ordem pública, o que possibilita a rescisão da coisa julgada material –, quanto por situações de suspeição – embora de menor alcance se comparado aos atos impeditivos.
A grande distinção é bem defendida pelo jurista Fredie Didier Jr.:
“As hipótese de impedimento (art. 134 do CPC) dão ensejo à nulidade do atos, pois há uma presunção iure et de iure de que o magistrado não tem condições subjetivas para atuar com imparcialidade. É vício que pode ser alegado a qualquer tempo e grau de jurisdição (à arguição de impedimento não se aplica o prazo de quinze dias previsto em lei para ingressar com exceção instrumental), além de poder ser reconhecido ex officio pelo magistrado. O vício é tão grave que admite, inclusive, futura ação rescisória (art. 485, II, do CPC), pois se entende que a condução de todo o procedimento fica comprometida.
As hipóteses de suspeição (art. 135 do CPC) dão azo à invalidade do ato processual praticado pelo magistrado. Sucede que, neste caso, embora o magistrado possa reconhecer-se suspeito (art. 135, par.ún., do CPC), a parte tem prazo preclusivo para arguir a suspeição (quinze dias) e pedir a nulificação do ato. É que não se trata de uma presunção absoluta de parcialidade; ao contrário, por ser menos grave, sequer autoriza ajuizamento de futura ação rescisória”.[39]
Porém, em ambos, objetiva-se o regular funcionamento do processo a fim de que se busque decisões justas, legítimas e seguras, proporcionando, portanto, uma melhor atuação do Poder Judiciário.
Nessa entoada, maior ainda deve ser a inquietação em relação ao contencioso administrativo, pois “em tese” a Administração Pública é, ao mesmo tempo, parte e juiz, conforme bem assinala o professor Egon Bockmann Moreira:
“O agente é ‘parte’ em sentido físico-material, não em relação ao conteúdo de suas decisões. […] A imparcialidade decorre do princípio constitucional do Estado Democrático de direito e é dever de todos os agentes públicos, pena de vícios intransponíveis nos atos estatais (administrativos, legislativos e jurisdicionais). Em síntese: o agente administrativo pode ser “parte”, mas o exercício do dever-poder da Administração é imparcial.”[40]
A observância da atuação imparcial do agente público nos processos administrativos está bem delimitada pela Lei Federal nº 9.784/99, o qual aponta os casos de impedimento e suspeição, sendo que, no caso de impedimento, pode ocasionar sanção disciplinar do servidor que dolosamente se omite em se declarar impedido, consoante se depreende da leitura dos artigos 18 a 21 do supracitado diploma:
“Art. 18. É impedido de atuar em processo administrativo o servidor ou autoridade que:
I – tenha interesse direto ou indireto na matéria;
II – tenha participado ou venha a participar como perito, testemunha ou representante, ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parente e afins até o terceiro grau;
III – esteja litigando judicial ou administrativamente com o interessado ou respectivo cônjuge ou companheiro.
Art. 19. A autoridade ou servidor que incorrer em impedimento deve comunicar o fato à autoridade competente, abstendo-se de atuar.
Parágrafo único. A omissão do dever de comunicar o impedimento constitui falta grave, para efeitos disciplinares.
Art. 20. Pode ser argüida a suspeição de autoridade ou servidor que tenha amizade íntima ou inimizade notória com algum dos interessados ou com os respectivos cônjuges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau.
Art. 21. O indeferimento de alegação de suspeição poderá ser objeto de recurso, sem efeito suspensivo.”[41]
Verifica-se, portanto, que as consequências de atuação imparcial, notadamente nos casos de impedimento, são muito mais rígidas no processo administrativo se comparado ao processo judicial, eis que o servidor que conduz de forma parcial a contenda administrativa pode ser responsabilizado disciplinarmente por falta grave, inclusive, ser sancionado com pena de demissão, além do fato dos atos decisórios poderem ser declarados nulos no processo administrativo.
Os juristas espanhóis (Enterría e Fernández) compartilham do mesmo entendimento:
“O descumprimento deste dever de abstenção pode ensejar a responsabilidade pessoal da autoridade ou servidor público incurso em quaisquer destas situações (art. 28.5), mas a intervenção de tais pessoas no processo em questão não determina por si só a invalidade das intervenções posteriores, a menos que restar demonstrada que tal intervenção tenha podido influenciar na decisão final proferida e, obviamente, a ilicitude objetiva dessa decisão.”[42]
2.6. PROVAS LÍCITAS
Como em todo processo, reconhece-se todas as provas lícitas capazes de demonstrar a verdade dos fatos, a Constituição Federal veda expressamente o uso de provas ilícitas em seu artigo 5º, inciso LVI: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;”.
Igualmente, e de forma específica, a Lei Federal nº 9784/99 se posiciona pela inadmissibilidade do uso de provas ilícitas no âmbito do processo administrativo (artigo 30).
Em lapidar voto do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ilmar Galvão, na Ação Penal 307-3/DF, o qual proferiu uma verdadeira lição do que seria uma prova ilícita num processo, senão vejamos:
“É indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que se sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse que tem a sociedade numa eficaz repressão aos delitos. É um pequeno preço que se paga por viver-se em Estado de Direito democrático. A justiça penal não se realiza a qualquer preço. Existem, na busca da verdade, limitações impostas por valores mais altos que não podem ser violados, ensina Heleno Fragoso, em trecho de sua obra Jurisprudência Criminal, transcrita pela defesa. A Constituição brasileira, no art. 5º, inc. LVI, com efeito, dispõe, a todas as letras, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.”[43]
A aversão de provas ilícitas se explica pelo fato de estarmos diante de um Estado Democrático de Direito, de maneira que ainda que reste prejudicada a busca da verdade real, não se pode admitir esse tipo de prova que tem como referência histórica período em que se governava por meio de instrumento ditatorial e absolutista.
Havia uma enorme discussão acerca da possibilidade ou não da utilização de prova produzida no processo judicial para ser aproveitada no âmbito do processo administrativo. Um dos argumentos desfavoráveis é a violação do devido processo legal e do cerceamento da defesa. Já a corrente que apoiava a sua utilização se baseava no princípio da celeridade e eficiência processual.
No começo a jurisprudência pátria oscilava em ora admitir e ora a não admitir, até que se consolidou no sentido de aceitar a prova emprestada, desde que respeitado o contraditório:
“EMENTA: ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. PARCIALIDADE DA COMISSÃO PROCESSANTE. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. USO DE PROVA EMPRESTADA DA ESFERA CRIMINAL. POSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS POR AUSÊNCIA DE CONDENAÇÃO NA ESFERA PENAL. INOCORRÊNCIA. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS CÍVEL, PENAL E
ADMINISTRATIVA. PROPORCIONALIDADE DA PENA APLICADA. SEGURANÇA DENEGADA.
1. Consta dos documentos acostados que o impetrante foi submetido a processo administrativo disciplinar, que resultou na demissão, mediante Portaria Ministerial n. 589, de 1º/4/2014, tendo como fundamento a prática das infrações disciplinares previstas nos arts. 117, inciso IX (valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública), e 132, incisos IV (improbidade administrativa), XI (corrupção) e XIII (transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117), da Lei n. 8.112/90, de forma a sujeitá-lo à penalidade de demissão, por força do disposto no art. 132, caput, e incisos IV, XI e XIII, da referida Lei.
2. O impetrante sustenta que houve parcialidade e ofensa ao princípio da impessoalidade, pois o PAD que resultou na sua demissão teve a participação de servidores que atuaram em PAD anterior. Ficou demonstrado que não se tratou de processos administrativos que envolveram os mesmos fatos, mas da apuração de condutas distintas, embora supostamente praticadas pelo mesmo processado. O presente tema é recorrente neste Colendo Tribunal Superior, entendendo-se que, nos casos não constantes dos artigos 18 a 21 da Lei n. 9.784/99 (que trata das hipóteses de suspeição ou impedimento), deve o impetrante apresentar dados objetivos que revelem a quebra da isenção por parte da comissão processante; até porque não se pode olvidar que a atuação da Administração Pública está amparada pela presunção juris tantum de legalidade, legitimidade e veracidade.
3. Não há impedimento da utilização da prova emprestada de feito criminal no processo administrativo disciplinar, desde que regularmente autorizada, o que se deu na espécie.
4. No que diz respeito às alegadas ofensas a princípios constitucionais na escolha da penalidade de demissão, tais como os da dignidade da pessoa humana, solidariedade, segurança jurídica e proporcionalidade, deve-se salientar que o controle jurisdicional no processo administrativo disciplinar não pode implicar invasão à independência/separação dos Poderes e, portanto, centra-se na averiguação da legalidade das medidas adotadas e conformidade em geral com o direito. A aplicação dos princípios constitucionais como fundamento para anular (ou até permutar) determinada punição administrativa, infligida após regular procedimento, exige cautela redobrada do Judiciário, sob pena de transformação em instância revisora do mérito administrativo, passando a agir como se administrador público fosse, o que somente cabe aos investidos da função administrativa estatal.
5. O impetrante não realizou prova pré-constituída que tenha havido cerceamento de defesa ou violação ao contraditório, limitando-se a alegações genéricas sobre a injustiça da decisão proferida no processo administrativo disciplinar, insuscetíveis de acolhimento na via mandamental 6. Segurança denegada” (GRIFO NOSSO)[44].
O novo código de processo civil (lei nº 13.105/2015) expressamente admite a utilização de prova emprestada no âmbito de processo judicial, artigo 372 do referido diploma legal: “O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório.”
Consolidou-se assim o entendimento dos Tribunais; logo, atualmente, aceita-se a troca de provas entre processo administrativo e processo judicial, desde que respeitado o contraditório.
2.7 VERDADE MATERIAL
O princípio da verdade material decorre do próprio princípio da legalidade estampado na Constituição Federal de 1988 (art. 37, caput), sendo desdobramento do exercício da autotutela da Administração Pública, no qual busca o conhecimento verdadeiro dos fatos na fase instrutória do contencioso administrativo antes de prolatada a decisão administrativa.
Ainda que o administrado se afigure inerte na questão da incumbência de ônus probatório ou de simplesmente não atender a intimação, não produzindo assim provas sobre os fatos a ele imputados. Não se aplica a regra do processo judicial, qual seja, de que incorrerá no efeito material da revelia ou de ser proferido julgamento antecipado da lide em decorrência da falta de impugnação específica. Tal entendimento, extraí-se do artigo 27 da Lei Federal 9.784/99: “O desatendimento da intimação não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia a direito pelo administrado.”
Essa peculiaridade acaba por trazer mais uma diferença do processo administrativo em comparação ao processo judicial, pois “nos processos judiciais prevalece o princípio da verdade formal, pela qual o que importa são os fatos e provas constantes dos autos; o que não consta dos autos não importa.”[45]
Em razão do princípio da verdade material é que se permite a reformatio in pejus diante de um recurso administrativo formulado pelo administrado, eis que, como dito, a Administração Pública se dirigi a encontrar a verdade dos fatos e a correta subsunção deles à norma jurídica que os regem, assim estabelece o artigo 64 e seu parágrafo único, da Lei Federal nº 9.784/99:
“Art. 64. O órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência.
Parágrafo único. Se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão.”[46]
Ademais, a busca da verdade material tem sido empregada para justificar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do processo administrativo, embora, atualmente, referido entendimento já vem sendo incorporado tanto pela jurisprudência quanto por novas normas difundidas pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Este assunto será esmiuçado em tópico ulterior do presente trabalho, mas o seu nascedouro foi de linha doutrinária com supedâneo no princípio da verdade material, como bem assinala o professor José dos Santos Carvalho Filho:
“A busca da verdade real tem conduzido os estudiosos modernos a admitir no processo administrativo, a teoria da desconsideração da pessoa jurídica (“disregard of legal emity”), de modo a atribuir-se a responsabilidade às pessoas físicas que se valem da pessoa jurídica como escudo para o cometimento de fraudes, descios e outros ilícitos. […] Incide também a mesma teoria nos processos administrativos punitivos, inclusive nos contratos administrativos e licitações, quando perpetradas fraudes pelo contratado ou interessado contra a Administração.”[47]
Enfim, a busca da verdade é algo que transparece ainda mais numa Constituição fundada na ideia de Estado de Direito. Fazendo uma análise crítica com ponderações explicativas, os professores Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari enfatizam:
“Como notavelmente assinalou Peter Häberle – que, modernamente, há uma verdadeira proibição constitucional da mentira, vedação tida como pilar essencial da construção de um Estado de Direito. Daí, por exemplo, as matrizes da independência do juiz e as normas de sua suspeição, as comissões parlamentares de inquérito, a exigência de imparcialidade em qualquer julgador (de todos os Poderes do Estado), as audiências públicas (de qualquer dos Poderes). Tanto maior é essa exigência da verdade quando nos defrontamos, sobretudo em nosso tempo (e – melancolicamente o dizemos – em nosso País), com a comparação inequívoca do acerto da tese de Hannah Arendt, tão personificada nas figuras dos principais e mais ostensivos e poderosos protagonistas da vida pública: ‘A verdade jamais pertenceu às virtudes políticas e a mentira sempre foi considerada como um meio lícito de fazer política.’ Por tudo isso é que a só verdade dos autos não é um limite para a decisão do processo administrativo.”[48]
3. SISTEMAS CONTECIOSOS DE PROCESSO ADMINISTRATIVO NO DIREITO COMPARADO E O NOVO PANORAMA PARA O PROCESSO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO
Há diversos sistemas de controle de jurisdição para o fim de fiscalizar a legalidade dos atos da Administração Pública, os principais são: sistema inglês ou de jurisdição una; sistema francês ou dual de jurisdição, e, ainda, pode-se indicar o antigo modelo sueco na figura do ombudsman como forma de controle de legalidade.
O modelo francês, onde é adotado por vários países, como a França, Itália, Argentina e Portugal, há dupla jurisdição: uma Justiça Administrativa e uma Justiça Judiciária, em ambas há imutabilidade da coisa julgada, e, uma vez decida por quaisquer delas, não poderá ser reapreciada a matéria pela outra.
Há na verdade uma separação entre as competências das autoridades administrativas e judiciárias, como expressão do princípio da separação dos poderes, constituindo o fundamento da dualidade de jurisdição, entendendo que um Poder não pode intervir nas funções típicas de outro Poder, de maneira que se o caso for de natureza administrativa e, em um dos polos do litígio, afigurar-se a Administração Pública, cabe a esta decidir sobre o caso concreto.
Fato este que atenua as consequências da problemática ideia do “ativismo judicial”, no qual o próprio Poder Judiciário implementa diretamente políticas públicas ao arrepio das normas de responsabilidade fiscal e orçamentárias.
O emérito doutrinador José Crelella Jr. descreveu em sua obra a preocupação dos revolucionários franceses acerca da separação dos poderes,
“A Revolução Francesa acreditava que, se os litígios administrativos fossem julgados pelos Tribunais Judiciários, estaria comprometida a independência da Administração, porque era voz corrente que o Poder Judiciário teria possibilidades de perturbar as operações dos corpos administrativos, como ocorrera durante a Realeza.”[49]
A competência dessa Justiça Administrativa não é absoluta para decidir qualquer conflito que teve como causa de pedir relações jurídico-administrativas. Estão afastados julgamentos em que a Administração Pública se entabula em relações jurídico-privadas (ex. contratos de locação, seguro, etc.); responsabilidade penal e de cunho político de agente público, ainda que oriundos de regime administrativo. Daí, defluem as seguintes competências:
“A Justiça Administrativa tem jurisdição e competência sobre alguns litígios específicos. Nunca serão, todavia, litígios somente entre particulares; nos conflitos, uma das partes é necessariamente o Poder Público. Compete-lhe julgar causas que visem à invalidação e à interpretação de atos administrativos e aquelas em que o interessado requer a restauração da legalidade quando teve direito seu ofendido por conduta administrativa. Julga, ainda, os recursos administrativos de excesso ou desvio de poder.”[50]
A jurisdição administrativa na França também se assegura o duplo grau de jurisdição, onde no primeiro grau existem os Tribunais Administrativos e, em segundo grau, cabe ao Conselho do Estado Francês, órgão independente e com autonomia constitucional, isto é, não subordinado a nenhum dos Poderes existentes naquele país.
Em caso de conflitos de jurisdição entre a Justiça Administrativa e a Justiça Judiciária, recai ao Tribunal de Conflitos extinguir a controvérsia. “O papel do Tribunal de Conflitos é, no sistema do contencioso administrativo, dirimir os denominados conflitos de atribuição, positivos e negativos, conflitos esses que surgem entre a Ordem Judiciária e a Ordem Administrativa.”[51]
O professor Eduardo Lobo, na sua obra especializada de sistemas de jurisdição, resume o modelo francês:
“Em suma, por um lado, o judiciário, julgando a Administração, estaria dominando-a; por outro lado, a Administração, exercendo função jurisdicional, estaria invadindo a área do Judiciário, além de situar-se como juiz em causa própria. Desta interpretação jurídico-constitucional, exsurge e consolida-se um aparelhamento jurisdicional especial, separado, sob ótica formal, dos tribunais judiciários comuns e da Administração ativa. Desse modo, a jurisdição administrativa, longe de ser contrária ao princípio da separação de poderes (pela ilusória percepção de que quebraria o monopólio jurisdicional da Justiça comum), pode ser considerada, ao revés, como a consequência rigorosamente lógica do princípio da separação dos poderes, a afirmação formal suprema deste princípio, ao menos na concepção francesa.”[52]
Em contraponto ao sistema francês, subsiste o modelo inglês ou de jurisdição una, no qual há uma só “justiça” apta a conferir, para o caso concreto, a res iudicata, inclusive em matéria administrativa, ou seja, a decisão proferida no âmbito do processo administrativo não obsta de ser reapreciada pelo Poder Judiciário.
Existe só a possibilidade de relativizar o exercício do direito de ação, o que a doutrina denominou de jurisdição condicionada, o qual não haverá interesse de agir (condições da ação) em demandar judicialmente, caso o demandante não formule um requerimento administrativo antes de manejar uma ação judicial.
Têm-se, como exemplo, as seguintes ações: habeas data, ações que tenham como causa de pedir matéria desportiva, ações de repetição de indébito tributário (quando não for notória a recusa de devolução do indébito pelo fisco – conforme se entende da leitura do art. 169 do CTN) e, recentemente, originárias de construção pretoriana, as ações de concessão de benefício previdenciário, conforme segue o posicionamento extraído do portal de notícias no site do STF:
“O Supremo Tribunal Federal (STF), deu parcial provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 631240, com repercussão geral reconhecida, em que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) defendia a exigência de prévio requerimento administrativo antes de o segurado recorrer à Justiça para a concessão de benefício previdenciário. Por maioria de votos, o Plenário acompanhou o relator, ministro Luís Roberto Barroso, no entendimento de que a exigência não fere a garantia de livre acesso ao Judiciário, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, pois sem pedido administrativo anterior, não fica caracterizada lesão ou ameaça de direito.
Em seu voto, o ministro Barroso considerou não haver interesse de agir do segurado que não tenha inicialmente protocolado seu requerimento junto ao INSS, pois a obtenção de um benefício depende de uma postulação ativa. Segundo ele, nos casos em que o pedido for negado, total ou parcialmente, ou em que não houver resposta no prazo legal de 45 dias, fica caracterizada ameaça a direito.
“Não há como caracterizar lesão ou ameaça de direito sem que tenha havido um prévio requerimento do segurado. O INSS não tem o dever de conceder o benefício de ofício. Para que a parte possa alegar que seu direito foi desrespeitado é preciso que o segurado vá ao INSS e apresente seu pedido”, afirmou o ministro.
O relator observou que prévio requerimento administrativo não significa o exaurimento de todas as instâncias administrativas. Negado o benefício, não há impedimento ao segurado para que ingresse no Judiciário antes que eventual recurso seja examinado pela autarquia. Contudo, ressaltou não haver necessidade de formulação de pedido administrativo prévio para que o segurado ingresse judicialmente com pedidos de revisão de benefícios, a não ser nos casos em que seja necessária a apreciação de matéria de fato. Acrescentou ainda que a exigência de requerimento prévio também não se aplica nos casos em que a posição do INSS seja notoriamente contrária ao direito postulado.” (grifo nosso)[53]
Portanto, há, no máximo, varas e seções especializadas no bojo do próprio aparelhamento do Poder Judiciário que confere competência privativa em razão da matéria para decidir litígios de conteúdo administrativo.
Em suma, no sistema de jurisdição una, o Poder Judiciário conhece e decide a totalidade de litígios, seja de índole administrativa, privada, penal ou política.
Bem, por isso, justifica-se a grande quantidade de processos que atolam o Poder Judiciário brasileiro, trazendo enormes prejuízos aos cidadãos que olham, cada vez mais, com desconfiança e descrédito à Justiça brasileira.
Acabam, a fim de colaborar para a diminuição de processos, por empregar mecanismos jurídicos para encobrir a ineficiência do Poder Judiciário, tais como, a denominada ideologia de “Jurisprudência defensiva”, que conclui, como exemplo, que os recursos de competência dos Tribunais Superiores e, até mesmo dos Tribunais locais, sequer chegam a ser conhecidos, cujo fundamento se baseia em meros aspectos de formalidades do recurso interposto.
É a situação do recurso ter sido proposto antes da publicação da decisão recorrida, isto é, chamam de recurso extemporâneo apto a ser negado conhecimento por ser considerado intempestivo. O que não traduz o próprio conceito de intempestividade, pois, entende-se por intempestividade quando há inércia de seu titular, ocorrendo assim preclusão temporal; ao revés, no recurso extemporâneo, o recorrente atua com maior diligência possível, inclusive, sabedor do conteúdo da decisão, sem delongas na espera de sua publicação, já se antecipa e recorre. Tal mecanismo – “jurisprudência defensiva”- afronta o acesso à justiça.
Além de outras ferramentas igualmente violadoras do acesso à justiça, como a exigência dos Tribunais Superiores do prequestionamento explícito; a não aceitação de reclamação constitucional para destrancar recurso sobrestado no Tribunal de origem, mais precisamente nos julgamentos por amostragem, quando o caso não se evidencia identidade de questão jurídica ao recurso paradigma (não possibilita a demonstração do distinguishing ou overruling ao Tribunal Superior), só aceitando recurso de agravo interno para o próprio Tribunal de origem.
Para ilustrar a estimativa crescente de processos judiciais, muito colaborado pela adoção do sistema de jurisdição una e pelo desprezo no emprego de mecanismos de autocomposição de litígios, tem-se como espelho o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, órgão judiciário brasileiro com maior número de demandas judiciais no país, conforme informações extraídas no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no tópico “justiça em números”, relatório do ano de 2013:
Compreende-se pelos números que cada vez mais há o aumento de processos judiciais, pois o número de casos novos no âmbito da justiça de 1º grau (4.023.387) em comparação com o número de processos baixados (3.124.894) é de quase um milhão, o que acarreta acréscimos de processos judiciais em relação a cada ano. Além disso, a taxa de congestionamento é altíssima na fase de execução, mais de 90%, onde o credor visa à própria satisfação do seu crédito.
Pensando em atenuar esses números, o legislador brasileiro tem implementado normas jurídicas para tal fim, restabelecendo a importância do processo administrativo a fim de desjudicializar demandas em que o Poder Público se afigure em um dos polos.
Tramita-se, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, o projeto de lei nº 1131/2015, que impõe a existência de processo administrativo prévio à inscrição da dívida ativa, isto é, além da possibilidade de se estabelecer o processo administrativo fiscal – que se realiza após a notificação do lançamento ao contribuinte – para que o crédito tributário se constitua definitivamente; haverá mais uma oportunidade ao contribuinte em se efetivar parcelamento tributário ou desconstituir o lançamento efetuado, pois, pelo referido projeto, existirá mais um processo administrativo antes de inscrever o crédito tributário na divida ativa.
Reconhece-se a importância do processo administrativo para desafogar o Poder Judiciário Estadual da enorme massa de processos de execução fiscal que o assoberba, instituindo um processo administrativo prévio à inscrição da dívida ativa, o qual facilitará a solução consensual do conflito, conforme se verifica no artigo 1º do supracitado projeto de lei:
“Artigo 1º – Apurado o débito tributário, antes de sua inscrição na dívida ativa, será aberto processo administrativo, em contraditório, com a notificação do devedor que, acompanhado de advogado, poderá impugnar o débito, confessá-lo ou propor a celebração de acordo.
§ 1º – Na busca do acordo, poderão ser utilizados a conciliação ou a mediação, por terceiros facilitadores devidamente capacitados, na forma da legislação em vigor.
§ 2º – Se o devedor não for localizado ou, notificado por edital, não comparecer nem se fizer representar por advogado com poderes para transigir, o processo administrativo será suspenso.”[55]
Do mesmo modo, com escopo em atingir os objetivos traçados no “II PACTO REPUBLICANO DE ESTADO POR UM SISTEMA DE JUSTIÇA MAIS ACESSÍVEL, ÁGIL E EFETIVO”, estabelecido no ano de 2009, foram conferidas algumas reformas legislativas para aliviar a tarefa do Poder Judiciário, dentre as quais, e de grande apelo dos entes federados, foi a implementação de meios alternativos para satisfazer a arrecadação dos seus recursos financeiros, como o protesto, junto aos Tabelionatos, da dívida ativa da Fazenda Pública, conforme estabelecido na Lei federal nº 12.767/2012, que acresceu o parágrafo único ao artigo 1º da Lei Federal nº 9.492/1997.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem aceitado o emprego desse mecanismo pelos entes federados, afastando assim as alegações dos contribuintes inadimplentes de que se trata de meio coercitivo indireto de cobrança, que é repelido por tais cortes judiciais, assim assevera o ministro Herman Benjamin, relator do acórdão no REsp 1.126.515-PR:
“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. PROTESTO DE CDA. LEI 9.492/1997. INTERPRETAÇÃO CONTEXTUAL COM A DINÂMICA MODERNA DAS RELAÇÕES SOCIAIS E O "II PACTO REPUBLICANO DE ESTADO POR UM SISTEMA DE JUSTIÇA MAIS ACESSÍVEL, ÁGIL E EFETIVO". SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.
Trata-se de Recurso Especial que discute, à luz do art. 1º da Lei 9.492/1997, a possibilidade de protesto da Certidão de Dívida Ativa (CDA), título executivo extrajudicial (art. 586, VIII, do CPC) que aparelha a Execução Fiscal, regida pela Lei 6.830/1980.
Merece destaque a publicação da Lei 12.767/2012, que promoveu a inclusão do parágrafo único no art. 1º da Lei 9.492/1997, para expressamente consignar que estão incluídas "entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas”.
Não bastasse isso, mostra-se imperiosa a superação da orientação jurisprudencial do STJ a respeito da questão.
No regime instituído pelo art. 1º da Lei 9.492/1997, o protesto, instituto bifronte que representa, de um lado, instrumento para constituir o devedor em mora e provar a inadimplência, e, de outro, modalidade alternativa para cobrança de dívida, foi ampliado, desvinculando-se dos títulos estritamente cambiariformes para abranger todos e quaisquer "títulos ou documentos de dívida". Ao contrário do afirmado pelo Tribunal de origem, portanto, o atual regime jurídico do protesto não é vinculado exclusivamente aos títulos cambiais.
Nesse sentido, tanto o STJ (RESP 750805/RS) como a Justiça do Trabalho possuem precedentes que autorizam o protesto, por exemplo, de decisões judiciais condenatórias, líquidas e certas, transitadas em julgado.
Dada a natureza bifronte do protesto, não é dado ao Poder Judiciário substituir-se à Administração para eleger, sob o enfoque da necessidade (utilidade ou conveniência), as políticas públicas para recuperação, no âmbito extrajudicial, da dívida ativa da Fazenda Pública.
Cabe ao Judiciário, isto sim, examinar o tema controvertido sob espectro jurídico, ou seja, quanto à sua constitucionalidade e legalidade, nada mais. A manifestação sobre essa relevante matéria, com base na valoração da necessidade e pertinência desse instrumento extrajudicial de cobrança de dívida, carece de legitimação, por
romper com os princípios da independência dos poderes (art. 2º da
CF/1988) e da imparcialidade.
São falaciosos os argumentos de que o ordenamento jurídico (Lei 6.830/1980) já instituiu mecanismo para a recuperação do crédito fiscal e de que o sujeito passivo não participou da constituição do crédito.
A Lei das Execuções Fiscais disciplina exclusivamente a cobrança judicial da dívida ativa, e não autoriza, por si, a insustentável conclusão de que veda, em caráter permanente, a instituição, ou utilização, de mecanismos de cobrança extrajudicial.
A defesa da tese de impossibilidade do protesto seria razoável apenas se versasse sobre o "Auto de Lançamento", esse sim procedimento unilateral dotado de eficácia para imputar débito ao sujeito passivo.
A inscrição em dívida ativa, de onde se origina a posterior extração da Certidão que poderá ser levada a protesto, decorre ou do exaurimento da instância administrativa (onde foi possível impugnar o lançamento e interpor recursos administrativos) ou de documento de confissão de dívida, apresentado pelo próprio devedor (e.g., DCTF, GIA, Termo de Confissão para adesão ao parcelamento, etc.).
O sujeito passivo, portanto, não pode alegar que houve "surpresa" ou "abuso de poder" na extração da CDA, uma vez que esta pressupõe sua participação na apuração do débito. Note-se, aliás, que o preenchimento e entrega da DCTF ou GIA (documentos de confissão de dívida) corresponde integralmente ao ato do emitente de cheque, nota promissória ou letra de câmbio.
A possibilidade do protesto da CDA não implica ofensa aos princípios do contraditório e do devido processo legal, pois subsiste, para todo e qualquer efeito, o controle jurisdicional, mediante provocação da parte interessada, em relação à higidez do título levado a protesto.
A Lei 9.492/1997 deve ser interpretada em conjunto com o contexto histórico e social. De acordo com o "II Pacto Republicano de Estado por um sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo", definiu-se como meta específica para dar agilidade e efetividade à prestação jurisdicional a "revisão da legislação referente à cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, com vistas à racionalização dos procedimentos em âmbito judicial e administrativo".
Nesse sentido, o CNJ considerou que estão conformes com o princípio da legalidade normas expedidas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e de Goiás que, respectivamente, orientam seus órgãos a providenciar e admitir o protesto de CDA e de sentenças condenatórias transitadas em julgado, relacionadas às obrigações alimentares.
A interpretação contextualizada da Lei 9.492/1997 representa medida que corrobora a tendência moderna de intersecção dos regimes jurídicos próprios do Direito Público e Privado. A todo instante vem crescendo a publicização do Direito Privado (iniciada, exemplificativamente, com a limitação do direito de propriedade, outrora valor absoluto, ao cumprimento de sua função social) e, por outro lado, a privatização do Direito Público (por exemplo, com a incorporação – naturalmente adaptada às peculiaridades existentes – de conceitos e institutos jurídicos e extrajurídicos aplicados outrora apenas aos sujeitos de Direito Privado, como, e.g., a utilização de sistemas de gerenciamento e controle de eficiência na prestação de serviços).
Recurso Especial provido, com superação da jurisprudência do STJ.” (grifo nosso).[56]
Nesse passo, ganha-se campo o processo administrativo que cada vez mais servirá de instrumento jurídico para os cidadãos, e, quiçá, de forma paulatina, como ocorrera na França, incorpora-se, no processo brasileiro, o sistema dual de jurisdição, bastando para isso uma reforma constitucional no que tange ao artigo 5º, inciso XXXV, que preceitua o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, de modo a integrar uma Justiça Administrativa para dirimir conflitos de natureza administrativa com força de coisa julgada material.
Talvez, nos moldes do Tribunal de Contas brasileiro, que congrega membros com conhecimento ímpar nas áreas das ciências: jurídicas, contábeis, econômicas, financeira e administração pública (artigo 73, inciso III, da CF), tais ciências estruturam e densificam toda atuação estatal, possibilitando decisões mais técnicas e, ao mesmo tempo, de acordo com a realidade brasileira.
Corrobora, para esse feito, o sentido e o alcance do contencioso administrativo, tanto na sua acepção material quanto formal, consoante define o professor Diogo de Figueiredo:
“A expressão contencioso administrativo tem duas acepções e, destarte, deve-se preceder o seu estudo de um acertamento técnico-semântico. Em sentido lato, contencioso administrativo é tomado como contenda, controvérsia, litígio envolvendo matéria administrativa, ou seja, concernente a relações jurídicas administrativas litigiosas: esta é a acepção material. Em sentido estrito, contencioso administrativo é designativo apenas da técnica de especialização da atividade administrativa para, em órgãos diferenciados da própria Administração, julgar aqueles litígios: esta é, pois, a acepção formal.”[57]
Além desse fato, fortalece ainda mais a ideia de adoção de sistema de jurisdição dual em razão da experiência empírica sentida pelos juristas, especialmente para aqueles que militam na área do Direito Administrativo, eis que a grande evolução dos estudos e a criação de institutos jurídicos do Direito Administrativo se evidenciaram no sistema francês ou dual de jurisdição, principalmente pelos precedentes jurisdicionais erigidos na Corte Suprema de Justiça Administrativa na França, qual seja, no Conselho de Estado Francês, bem, por isso, seus ensinamentos foram incorporados pelos sistemas que adotaram a jurisdição una,
“Importa realçar, todavia, que o sistema de unidade jurisdicional, mormente nos Estados (como o Brasil) que adotaram por irradiação, revelou-se tão flexível e compreensivo, em termos lógico-formais, que acolheu e aplica plenamente o Direito Administrativo francês, criado no sistema de jurisdição dual. Aliás, este fenômeno jurídico causa estranheza aos juristas franceses, que tendem a considerar – sem razão – o Direito Administrativo romanístico compatível apenas com o sistema francês de contencioso administrativo”.[58]
Um sistema que ganha cada vez mais adeptos e, compatibiliza-se tanto com o sistema dual de jurisdição como no sistema uno de jurisdição, é o ombudsman sueco, que se caracteriza por desempenhar um verdadeiro controle social através de um representante do povo não subordinado a nenhum dos Poderes constitucionalmente estabelecidos.
O controle pelo ombudsman, que é um verdadeiro “ouvidor geral do povo”, é pessoa dotada de independência e autonomia para realizar o controle interno da Administração Pública e, caso alguém o desrespeite em relação às suas observâncias, que são baseadas em normas jurídicas, cabe a ele a representação em face dos servidores faltosos, perante os tribunais competentes, a fim de perseguir responsabilidades (civil, política e penal) em detrimento dos infratores, isto é, atua como um verdadeiro legitimado extraordinário (substituto processual) em benefício de toda a coletividade.
Assim explica o professor Eduardo Lobo,
“O termo ombudsman, no idioma sueco, significa ‘mandatário’. Com efeito, este dispositivo do Riksdag (parlamento sueco), para ‘controlar a observação das leis pelos tribunais e funcionários, bem como acionar, perante os tribunais competentes, de acordo com as leis, aqueles que, no exercício de suas funções, hajam, por parcialidade, favor ou qualquer motivo, cometido ilegalidade ou negligenciando o cumprimento dos deveres de seus ofícios”.[59]
4. ATIVIDADE ADMINISTRATIVA PROCESSUALIZADA E INCORPORAÇÃO DE INSTITUTOS JURÍDICOS TÍPICOS DO PROCESSO JUDICIAL
A nova tendência de atuação da Administração Pública será processualizar todo tipo de evento que repercute na esfera jurídica dos indivíduos (coletivamente ou isoladamente), ficando restringido o campo dos meros atos administrativo, emitidos unilateralmente pela Administração Pública, aos feitos de atos ordinatórios, de cunho interno administrativo, muito divulgados por meio de circulares, portarias, avisos e ordem de serviço.
Os administrativistas modernos já se manifestam sobre essa nova roupagem em que Administração Pública deverá se comportar, conforme lições do professor Marçal Justen Filho:
“O conceito de ato administrativo perdeu sua relevância como instrumento de compreensão e organização do direito administrativo. O fundamento está em considerar a atuação administrativa de modo global, não cada ato administrativo isoladamente. […]
É necessário estudar o ato administrativo, mas é indispensável reconhecer que a configuração de cada ato, isoladamente considerado, é condicionada pela pluralidade de atuações administrativas. O que satisfaz as necessidades coletivas é o conjunto de ações administrativas: a atividade”.[60]
No subtópico seguinte será analisado o entrelaçamento do processo administrativo e de um Estado Democrático de Direito, como forma de garantir direitos fundamentais dos indivíduos. E, nos demais subtópicos, a incorporação de instrumentos jurídicos de origem típica de processo judicial para o processo administrativo, de modo a demonstrar uma nova dinâmica que se aproxima cada vez mais o processo administrativo brasileiro do sistema francês de jurisdição.
4.1. ATIVIDADE ADMINISTRATIVA COMO INSTRUMENTO JURÍDICO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Consiste na ideia de que a atuação estatal deve ter por finalidade não somente a busca do interesse público – acepção esta que sempre foi indicada como acertada e única pelos doutrinadores clássicos do direito administrativo – mas, agrega-se a isto, para uma abertura de participação ativa dos cidadãos, de modo a fomentar e difundir o pensamento de que a gestão pública não é só uma tarefa dos governantes, embora sejam os principais responsáveis, como também é uma incumbência de toda a coletividade.
Por isso, vem à tona o modelo de accountability, que possibilita o exercício do controle social pelos verdadeiros possuidores do Poder (soberania popular), pois, congrega a obrigação dos meros detentores do Poder em observarem a transparência; prestação de contas; responsabilidades; traduzindo assim boas práticas de governança pública.
Permitindo a indicação da crescente evolução no sentido funcional das atividades administrativas, o professor Diogo de Figueiredo nos ensina:
“Na fase do absolutismo, prevalecia o interesse do rei, caracterizando a administração regaliana.
Na fase do estatismo, passou a prevalecer o interesse do Estado, caracterizando a administração burocrática.
Na fase da democracia, ascende, como prevalecente, o interesse da sociedade, caracterizando a etapa da administração gerencial de sua vontade.
No Brasil, como em outros países, está em curso uma transição da administração burocrática formal para a gerencial, uma vez que, materialmente, subsistem práticas regalianas, comumente explicadas pelos sociólogos que as estudaram, como heranças culturais patrimonialistas e centralizadoras ainda não superadas”.[61]
O processo administrativo é ferramenta para se consolidar o Estado Democrático de Direito, para que esta garantia não fique aos meros papéis do texto constitucional, e sim possibilite participação ativa de todos na gestão pública, resta sua divulgação e instalação de meios de acesso a toda coletividade.
O conceito de Estado Democrático Direito é de difícil especificação, mas é possível ser sentida por todos. Todavia, com a missão árdua em defini-la, o professor Miguel Calmon Dantas asseverou um pequeno esboço do que seria um Estado Democrático de Direito:
“O Estado Democrático de Direito é a expressão contemporânea do Estado de Direito, conferindo-lhe um sentido material e uma unidade de sentido orientada para a realização de objetivos que consubstanciam uma auto-representação da comunidade política, sendo estruturado e conformado a partir da programaticidade constitucional. O Estado Democrático de Direito é essencialmente, de acordo com o texto, e conforme exigência do contexto brasileiro, um Estado programático.”[62]
Igualmente, corrobora com o entendimento de que o processo administrativo é instrumento de legitimidade democrática, de modo que os administrados participem ativamente na atividade administrativa, deixando o pensamento pretérito de decisões unilaterais de autoridade administrativa, ou seja, a Administração deixa de praticar simples atos administrativos para ampliar o seu alcance em processualizar suas atividades, a professora Odete Medauar pondera com as seguintes palavras:
“Realmente a colaboração ou participação dos sujeitos no processo administrativo exerce influência no teor do resultado final. Com isso o administrado conhece melhor a Administração; esta, de seu lado, mediante fatos, provas e argumentos oferecidos pelos sujeitos, detecta melhor as situações e mais se aproxima dos administrados, propiciando abertura nas muralhas administrativas. Os vários pontos de vista, os vários argumentos, as várias interpretações dos fatos expressam a realidade do pluralismo, característico da democracia, e muito difícil de ser verdadeiramente aceito por autoridades administrativistas, apegadas, de regra, a sua própria visão unilateral das situações ou à visão do partido político a que pertencem. Por outro lado, a colaboração dos sujeitos amplia as possibilidades de controle da atividade administrativa, aspecto este também ligado à democracia.”[63]
A participação do cidadão no contencioso administrativo reacende a ideia de se garantir a impessoalidade e ampliar a legitimidade, vez que favorece a aceitação das decisões administrativas pelos seus destinatários, facilitando ainda à Administração Pública alcançar melhores resultados, notadamente, no cumprimento de políticas públicas.
Ademais, reassume fundamental importância na relação entre participação social e direitos fundamentais no momento em que esta participação certifica a posição de sujeito ativo assumida pelo cidadão que passa a ser não mais visto como um mero objeto ou alvo de ação administrativa, isto é, transmuda-se de administrado para cidadão.
Cristalinas, nesse mesmo sentido, são as palavras do jurista Wallace Paiva Martins Júnior:
“A Administração Pública tem o dever de desenvolver o processo administrativo para qualquer atividade decisória (arts. 5º, LIV e LV, e 37 da Constituição Federal), para o alcance da dúplice finalidade acima destaca. A transparência (publicidade, motivação e participação), como expressão da juridicização da Administração Pública, tende á legitimidade substancial do exercício do poder.
O processo administrativo é formalidade legal e requisito indispensável à validade do ato, responsável pela democratização da atividade administrativa, garantindo a transparência e seus fins – o controle, a eficiência, a justiça, a aproximação entre Administração Pública e administrados, a renovação do modo de suas relações e a legitimidade ao uso do poder”.[64]
Na mesma linha de raciocínio reafirma o jurista Alexandre Santos de Aragão:
“Uma Administração com cada vez mais atribuições e poderes deve buscar meios adicionais de legitimação. A democracia pluralista não se reduz ao seu momento eleitoral-representativo. À expansão das funções administrativas deve corresponder a maior busca pela garantia da processualização. As partes, mesmo que não concordem com o ato-fim emitido, participaram do processo de sua elaboração, com o que terão maiores possibilidades de voluntariamente anuir em cumprir o que, ao final, tiver sido decidido.”[65]
Conjuntamente, essa participação ativa do cidadão corrobora para ampliação da esfera pública, de modo a favorecer a transparência na Administração Pública, refletindo também na prestação do serviço público, que deve ser adequada e contínua, de suma importância para o cumprimento do princípio da eficiência.
Até porque é certo que a satisfação do usuário do serviço público está relacionada não apenas à sua fruição, como também ao acesso: à informação clara e objetiva; ao direito de ser ouvido; entre outros; tais indicadores são inerentes às condições de um processo administrativo que prima pela observância do contraditório e da ampla defesa, indispensáveis para mensurar a própria eficiência da Administração Pública.
Hodiernamente, há elevada crítica em relação à intervenção do Poder Judiciário no âmbito das políticas públicas, de modo a estremecer as balizas conferidas pelo Poder Constituinte Originário, pois se verificam ingerências indevidas de um Poder em detrimento de outro Poder, ocasionando abalos aos princípios constitucionais da harmonia entre os Poderes e da separação dos Poderes.
Neste trabalho se invoca a concepção do sistema dual de jurisdição, a fim de se permitir a implementação de políticas públicas por Tribunais Administrativos independentes que, em decisão administrativa, demonstrará de forma incontestável comportamento omissivo da Administração Pública, impondo a ela condenações no sentido de obrigação de fazer, de maneira a afastar assim quaisquer alvoroços em relação ao princípio da separação dos Poderes.
Não se quer, evidentemente, a adoção de comportamentos irresponsáveis de gestores públicos. A estes merecem reprimendas rígidas no campo civil, penal e político, conferidos e acertados pelo Poder Judiciário, como ocorre no sistema francês.
No entanto, o que se vê, atualmente, é um verdadeiro descalabro realizado pelo Poder Judiciário que, muitas das vezes, motivado por espetáculo midiático, imiscui-se na própria gerência da coisa pública, de modo até a detalhar as condições em que será realizado o cumprimento das políticas públicas.
Embora num primeiro momento tais decisões se revelem salutares e benquistas pela sociedade, ao passar do tempo será experimentado tratamento gravoso para o próprio bem-estar da população, eis que esvaziará o princípio basilar da igualdade material (só os mais bem informados e com condições financeiras melhores se aventuram numa demanda judicial para assegurar, por exemplo, o acesso a medicamentos de alto custo), além do fato das referidas decisões estarem desprovidas de estudos técnicos precisos, especialmente, originários da ciência da administração, o qual contempla um ciclo de políticas públicas que requer o exame detalhado nas suas cinco fases: Formação de Agenda; Formulação de Política, Tomada de Decisão; Implementação da Política Publica e Avaliação.
Não custa lembrar que essa intervenção do Poder Judiciário no âmbito da gestão pública tem como base ideológica a corrente substancialista que se opõem ao ideário perseguido pelos procedimentalistas. Ambos envolvem formas de solucionar conflitos jurídicos quanto à efetividade dos direitos fundamentais.
O professor Luís Roberto Barros, em breve relato, distingue o pensamento das duas correntes:
“Os substancialistas manifestam sua adesão explícita a esses valores e admitem o controle do resultado das deliberações políticas que supostamente os contravenham. Já os procedimentalistas não concebem o papel do intérprete constitucional como o de um aplicador de princípios de justiça, mas como um fiscal do funcionamento adequado do processo político deliberativo.”[66]
Em suma, os procedimentalistas dão apoio às representações democráticas, isto é, daqueles detentores de poderes delegados diretamente do povo: legisladores e gestores públicos.
Por outro lado, os substancialistas dão maior apoio ao juiz como intérprete último dos direitos fundamentais e aplicador da justiça social.
Para justificar esse ativismo judicial exarcebado, um dos maiores defensores da ideologia substancialista, que, com a máxima vênia não se concorda, o professor Lênio Streck afirma:
“A corrente substancialista entende que, mais do que equilibrar e harmonizar os demais Poderes, o Judiciário deveria assumir o papel de um intérprete que põe em evidência, inclusive contra maiorias eventuais, a vontade geral implícita no direito positivo, especialmente nos textos constitucionais, e nos princípios selecionados como de valor permanente na sua cultura de origem e na do Ocidente. Coloca, pois, em xeque o princípio da maioria em favor da maioria fundante e constituinte da comunidade política”.[67]
No entanto, em ambos, há um entendimento único, qual seja, assegurar as garantias das liberdades individuais e coletivas. Diante da dimensão objetivas dos direitos fundamentais, todos os Poderes Institucionais devem não só resguardarem tais direitos como também devem implementá-los por políticas públicas direcionadas à sua concreção.
Percebe-se que não há total antagonismo entre os ideais das duas correntes, sendo que a grande distinção se reflete sobre qual o Poder Institucional que irá instrumentalizar os direitos fundamentais, ou seja, a diferença se baseia, em síntese, no modus operandi, isto é, está-se diante de um ativismo judicial (corrente substancialista) ou de um judicialismo de mera interpretação das normas jurídicas (sem implementação direta de políticas públicas – corrente procedimentalista).
Concorda-se com a corrente procedimentalista que assegura a implementação de políticas públicas por meio de representações democráticas, inclusive através do processo administrativo, no qual, como bem defendido por este trabalho, a Administração Pública deve seguir atividade processualizada, seja no campo de restrição a direitos, seja como atividade prestadora de políticas públicas.
Como bem pondera o jurista Willis Santiago, extraindo lições do filósofo norte-americano, John Rawls, para explicar a corrente procedimentalista:
“A corrente procedimental pode ser estudada também pelo viés de John Rawls, em um interessante estudo sobre a discussão ética da justiça, segundo o qual a Constituição ideal seria um procedimento balizado por princípios de justiça, capaz de conformar as forças políticas responsáveis pela produção normativa”.[68]
Com efeito, há uma nova abertura para o processo administrativo que deverá prestar melhores ofícios à sociedade, deve-se, definitivamente, entender que a Administração Pública sucede a galgar novas escalas, deixando para trás a fase estadista para se alcançar, de forma concreta, à fase da democracia, tudo em prol de um novo relacionamento a ser estabelecido entre o Poder Público e os cidadãos, os quais, ao fim e ao cabo, são os verdadeiros possuidores do Poder (soberania popular).
4.2. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
O instituto jurídico desconsideração da personalidade jurídica é originário do direito inglês, conhecido no direito anglo-saxônico como disregard of legal entity, remete-se historicamente a um caso julgado pela Corte Britânica, chamando o leading case de Salomon versus Salomon Co, em 1897.
No Brasil sua incorporação se deu, primeiramente, por construções pretorianas, vez que não existia qualquer permissivo legal que se evidenciasse o instituto jurídico desconsideração da personalidade jurídica. Mas, em razão de fraudes perpetradas por membros de pessoas jurídicas existentes no Brasil, impulsionou-se à sua aplicação a fim de se contornar a própria pacificação social, pois, do contrário, redundariam desconfianças no próprio mercado econômico de modo a acarretar consequências gravosas para as pessoas jurídicas, prejudicando assim sua consideração legal de “sujeito de direito”.
Nesse passo, passou-se a ser aplicado no âmbito do processo judicial. Inclusive, atualmente, há diversos diplomas legais que acabaram por incorporar o instituto jurídico da desconsideração da personalidade jurídica, criando-se ainda duas teorias acerca do tema: teoria maior (disciplinada no art. 50 do Código Civil) e a teoria menor (estabelecida no Código de Defesa do Consumidor – art. 28 – e no art. 4º da Lei nº 9605/1998 (direito ambiental)).
A grande diferença entre tais teorias é no sentido de que na teoria maior os seus requisitos são mais extensos, necessitando a comprovação, cumulativa, da insuficiência econômica da pessoa jurídica e demonstração de prática fraudulenta de seus gestores (confusão patrimonial ou desvio de finalidade). Já na teoria menor basta a comprovação da insuficiência econômica da pessoa jurídica em adimplir com suas obrigações.
Hodiernamente, tem-se aceitado a “desconsideração inversa”.
Embora o instituto jurídico da desconsideração da personalidade jurídica seja de índole do direito material, sua evidência se materializa no campo procedimental. Pensando nisso, e, até para aclarar sua tramitação na seara processual e garantir o contraditório, o legislador do novo código de processo civil estabeleceu um capítulo próprio acerca do “incidente da desconsideração da personalidade jurídica” (artigos 133 a 137 da Lei nº 13105/2015).
Do mesmo modo em que ocorreu no processo judicial, a desconsideração da personalidade jurídica começou a ser aplicada no processo administrativo mesmo não havendo amparo legal expresso sobre a questão, fundamentou-se a sua aceitação em razão do princípio da verdade material, que teve a chancela dos Tribunais Superiores (STF e STJ) e com decisões exaradas em acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU), conforme se examina:
“EMENTA: ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
– A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para
estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
– A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.
– Recurso a que se nega provimento.”[69]
Há também precedente do Tribunal de Contas da União, que admite a desconsideração nas situações de fraude comprovada. Segundo noticiado no informativo nº 108:
“Em caso de fraude comprovada, é possível a responsabilização não só da empresa, mas também dos sócios, de fato ou de direito, a partir da desconsideração da personalidade jurídica da instituição empresarial”[70]
Diante do entendimento das Cortes aqui retratadas, o legislador pátrio veio a consolidar tais pensamentos em textos legais. A grande inovação ocorreu na Lei Federal nº 12.846/2013, apelidada de “Lei Anticorrupção”, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, que, no capítulo referente ao processo administrativo, estabeleceu em seu artigo 14, a desconsideração da personalidade jurídica, descrevendo da seguinte forma:
“Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.”[71]
Percebe-se que o referido diploma legal adotou a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, pois impõem os requistos da fraude (encobrir ou dissimular prática de ato ilícito) ou confusão patrimonial.
Também, no mesmo sentido, o projeto de lei nº 1131/2015, que estabelece a existência de processo administrativo prévio à inscrição da dívida ativa (em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – que, neste trabalho, já se mencionou), intensifica ainda mais tal instituto no âmbito do processo administrativo, uma vez que além de indicar sua aceitação acaba por regular o seu funcionamento ao apontar os artigos 133 a 137 do novo código de processo civil, assim dispõe:
“Artigo 5º – Caso as Procuradorias ou o fisco entendam ser caso de desconsideração de personalidade jurídica, deverão seguir, no âmbito administrativo ou judicial, o procedimento criado pelo incidente contemplado nos art. 133 a 137 do Código de Processo Civil de 2015, no que couberem.
Parágrafo único – Desconsiderada a personalidade jurídica, aplica-se aos novos devedores o disposto nesta lei.”[72]
Nota-se que o processo administrativo vem ganhando espaço e incorporando institutos jurídicos típicos do processo judicial, objetivando assim atingir melhores resultados e, ao mesmo tempo, desafogar o Poder Judiciário.
4.3 MEDIDAS CAUTELARES NO PROCESSO ADMINISTRATIVO
O Poder Geral de Cautela é mecanismo fundante do próprio exercício da atividade decisória, isto é, está dentro dos poderes implícitos a quem cabe decidir. Sua emanação é bem estudada pelos processualistas no âmbito do processo judicial.
A medida cautelar serve para justamente evitar a inutilidade do processo em razão do periculum in mora agregada à probabilidade da existência do direito alegado pela parte requerente (fumus boni iuris), concedendo assim instrumentos de conteúdo satisfatório ou conservatório.
No circuito administrativo, as medidas cautelares são expressões do próprio desdobramento do poder de autotutela administrativa, notadamente, a característica da autoexecutoriedade dos atos administrativos – sem necessidade de intervenção judicial – e tem por finalidade gerenciar e cumprir o interesse público, garantindo de imediato os efeitos de decisões administrativas no âmbito do contencioso administrativo.
Os juristas espanhóis (Enterría e Fernández) bem assinalam a importância das medidas cautelares no campo dos processos administrativos:
“A executoriedade das disposições e atos objeto do recurso contencioso-administrativo, como expressão do benefício máximo da autotutela administrativa, tem sido um dogma indiscutível desde que o processo contencioso-administrativo foi configurado como sendo meramente impugnatório e teve sua inspiração no dogma do Ministro-juiz, como um recurso de cassação, chamado a revisar ex post um ato que se entendia que devia continuar produzindo seus efeitos como obra da função administrativa de organizar e gerenciar sua própria organização e a vida social.”[73]
A lei nº 9.784/99 estabelece expressamente a possibilidade de a Administração Pública adotar medidas cautelares se demonstrados os requisitos necessários, inclusive, no âmbito do processo administrativo, não se exige prévio requerimento de quaisquer das partes, podendo a autoridade administrativa conceder a medida cabível ex officio, conforme estabelece o artigo 45 do supracitado diploma: “Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.”
Também cabe cautelar para dar efeito suspensivo ao recurso administrativo interposto, pois, a regra, é a ausência do efeito suspensivo, só existindo o efeito devolutivo. Todavia, se restar demonstrado o periculum in mora, pode a autoridade administrativa conceder efeito suspensivo ao recurso administrativo (só para registrar, havendo efeito suspensivo ao recurso administrativo, será inviável a impetração do mandado de segurança – art. 5º, I, Lei nº 12.016/09), tal premissa está disposta no artigo 61 e parágrafo único, da Lei Federal nº 9.784/1999.
4.4 COISA JULGADA ADMINISTRATIVA
Num sistema, como nosso, que adota o sistema inglês ou de jurisdição una, não se aceita o instituto da coisa julgada no processo administrativo, no mesmo sentido da imutabilidade da decisão em que é conferida ao processo judicial. Pelo simples fato das decisões administrativas não conter prestação jurisdicional, esta qualidade é exclusiva do Poder Judiciário.
Nesse passo, a Administração Pública, no Brasil, não exerce função jurisdicional, logo, desprovida de definitividade do litígio dirimido, tendo em vista que pode ser reapreciada a matéria e, consequentemente, revertida, no âmbito de uma demanda judicial.
Por tais motivos, a denominada “coisa julgada administrativa” se revela de índole endoprocessual, com reflexos só no circuito administrativo, não surtindo efeito extraprocessual em virtude da ausência da imutabilidade, isto é, não faz res iudicata.
O professor Carvalho Filho, em breve relato, define o posicionamento dos autores administrativistas:
“A coisa julgada administrativa, desse modo, significa tão somente que determinado assunto decidido na via administrativa não mais poderá sofrer alteração nessa mesma via administrativa, embora possa sê-lo na via judicial. Os autores costumam apontar que o instituto tem o sentido de indicar mera irretratabilidade dentro da Administração, ou a preclusão da via administrativa para o fim de alterar o que foi decidido por órgãos administrativos.”[74]
No entanto, há posicionamento no sentido de que uma vez consolidada a coisa julgada administrativa, a própria Administração Pública não poderia rever a sua decisão exarada anteriormente (seja a favor ou contra aos objetivos do cidadão interessado), só cabendo à via judicial para reformar a decisão administrativa, trazendo à baila uma ideia de “imutabilidade administrativa”.
Esse posicionamento teve até apoio em um precedente do Supremo Tribunal Federal (RE 23830):
“Ementa: O ato administrativo é revogável. Mas a decisão do Ministro, provendo ou confirmando julgamento do Conselho de Recursos da Propriedade Industrial, é irrevogável, pela sua natureza judicante. Conceito de coisa julgada administrativa.”[75]
Entretanto, para o bem da comunidade jurídica, esse posicionamento foi revisto, de modo a não existir “imutabilidade administrativa”, até porque não dotada de conteúdo jurisdicional.
Já outros entendem que a coisa julgada administrativa só vincula à Administração Pública quando a decisão administrativa for favorável ao administrado, pois tal decisão administrativa não só revoga o ato administrativo anterior como também se torna irretratável o posicionamento jurídico da Administração Pública. Tudo em prol da segurança jurídica e do princípio da confiança legítima.
Nesse passo, haverá uma “imutabilidade administrativa”(parcial) quando a decisão final administrativa envolver atos ampliativos à esfera jurídica dos administrados. Este entendimento é perfilhado pelos professores Celso Antônio Bandeira de Mello e Márcio Pestana, conforme, respectivamente, descrevem:
“O tema diz respeito exclusivamente aos atos “ampliativos” da esfera jurídica dos administrados. O fenômeno aludido só ocorre em relação a este gênero de atos. Trata-se, portanto, de instituto que cumpre uma função de garantia dos administrados e que concerne ao tema da segurança jurídica estratificada já na própria órbita da Administração. […]
Seu alcance é menos extenso do que o da coisa julgada propriamente dita. Com efeito, sua definitividade está restrita a ela própria, Administração, mas terceiros não estão impedidos de buscar judicialmente a correção do ato.[76]
Realmente, caso a decisão administrativa seja desfavorável ao administrado, abrem-se as portas do Judiciário para que este, querendo, promova a rediscussão sobre a matéria anteriormente enfrentada no âmbito administrativo.
De outra parte, contudo, caso a decisão seja desfavorável à Administração Pública-interessada, entendemos que não poderá, agora, bater às portas do Judiciário, pois restaria absolutamente se sentido, lógico e jurídico […].”[77]
O entendimento supracitado dessa última corrente foi acatado parcialmente, eis que, no âmbito da via administrativa, realmente a Administração Pública não poderá promover a revisão do processo de forma a desfavorecer o cidadão interessado.
Com efeito, a Lei Federal 9784/1999, em seu artigo 65 e parágrafo único, acaba por considerar a possibilidade de revisão da “coisa julgada administrativa”, na própria via administrativa, desde que não haja agravamento da sanção anteriormente imposta. De modo que, no processo administrativo, aceita-se a reformatio in pejus em sede recursal, mas não se reconhece essa possibilidade quando a análise se dá em revisão de processo (onde houve a ‘coisa julgada administrativa pro cidadão’), eis que, nesse último caso, a revisão ocasionará um ato que restringirá a esfera jurídica do administrado.
Extraí-se a informação acima referida da leitura do supracitado preceito:
“Art. 65. Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada.
Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da sanção”.[78]
De outra parte, não se acolhe a tese jurídica dos renomados professores citados quando houver ilegalidade da decisão administrativa.
Isso porque ainda que haja favorecimento da decisão administrativa que emita ato ilegal ao administrado, cabe à Administração Pública promover demanda judicial a fim de anular o seu ato (a via administrativa, como dito, não será o caminho correto – em razão da coisa julgada administrativa – a qual descabe revisão de processo que acarrete agravamento à esfera jurídica do administrado).
A única ressalva, que inclusive se aplica para a via judicial, refere-se à incidência de quaisquer módulos preclusivos de pretensão (decadência; prescrição; aplicação da teoria do fato consumado). Neste último caso, restará prejudicada a anulação do ato eivado de nulidade em benefício do princípio constitucional da segurança jurídica.
Tal posicionamento é seguido por vários precedentes do Supremo Tribunal Federal, são exemplos às decisões no RE-AgR-AgR 204107 e no MS 28343, conforme seguem, respectivamente:
“EMENTA: Agravo regimental no agravo regimental no recurso extraordinário. Liberação de depósito efetuado na origem, em face de decisão administrativa favorável ao contribuinte. Mérito da exação pendente de discussão nesta Corte. Indeferimento mantido.
1. A decisão proferida pelo Ministério da Fazenda anulando o crédito tributário faz coisa julgada apenas no âmbito administrativo, não irradiando efeitos preclusivos ao debate da questão de direito ainda pendente de apreciação neste Supremo Tribunal Federal.
2. Se o crédito é anulado, o depósito deve ser mantido a título de cautela, haja vista a necessidade de assegurar o resultado útil da pretensão da União em caso de eventual decisão favorável à Fazenda Pública.
3. Independência, no caso, entre as instâncias administrativa e judicial, a refutar a assertiva de que o resultado do agravo regimental seria indiferente no que concerne à obrigatoriedade de restituição do valor depositado.
4. Agravo regimental não provido.”[79]
No MS 28343, cabe aqui descrever as palavras do Min. Marco Aurélio, relator e redator do acórdão:
“É de longa data o reconhecimento da autotutela conferida à Administração Pública, consistente no poder-dever de rever os próprios atos quando eivados de nulidade, inclusive atuando de ofício. Essa prerrogativa estende-se aos Poderes Legislativo e Judiciário, quando atuam no campo tipicamente administrativo e encontra base na incidência do princípio da segurança jurídica, que normalmente ocorre por aplicação do prazo decadencial previsto no artigo 54 da Lei nº 9.784/99. Na ausência de tal circunstância, ou de qualquer uma que possa ensejar a observância de outros princípios, como os da boa-fé ou da confiança legítima, descabe acolher a pretensão ante esse fundamento.
À luz do exposto, tem-se que inexiste a figura da coisa julgada administrativa, seja formal, seja material. O uso da expressão pode induzir o intérprete a erro, considerado o disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, da Carta Federal. A eficácia decorrente do trânsito em julgado é predicado exclusivo das decisões judiciais formalizadas no exercício de função jurisdicional.”[80]
Em síntese, a coisa julgada administrativa se verifica quando houver a exaustão da via administrativa, não impedindo sua reapreciação no âmbito judicial, logo, a definitividade do decisório administrativo é apenas relativa ou um minus jurídico, não alcançando a concepção própria de coisa julgada, eis que, no Brasil, adotou-se o sistema de controle de jurisdição una, no qual a autoridade da res iudicata ser de exclusividade do Poder Judiciário.
5. VANTAGENS EM SE OPTAR PELO PROCESSO ADMINISTRATIVO E NOVOS DESAFIOS PARA CELERIDADE PROCESSUAL
O processo administrativo é um instrumento jurídico pouco utilizado pelos cidadãos brasileiros, especialmente quando comparado com outros países. Os indivíduos, na maioria das vezes, preferem judicializar a questão a discutir a matéria no circuito administrativo, seja por ignorância de cidadãos desprovidos de conhecimento mínimo das leis, seja por impulso de promover uma pendenga judicial que trará a satisfação de seu ‘ego’ por um resultado favorável, por assim dizer “ganhei a ação”.
Há, por outro lado, também a ineficiência sentida por muitos órgãos administrativos que sequer viabilizam acesso à informação para população em geral, bem como, agregado a esse fato, o reconhecimento do despreparo de servidores públicos que conduzem um processo administrativo, faltando-lhes capacidade técnica, principalmente, em relação a municípios pequenos existentes pelos rincões deste Brasil.
Contudo, o processo administrativo se demonstra interessante não só para os administrados como também se mostra salutar à própria Administração Pública, uma vez que poderá conduzir suas ações administrativas com escopo em colher melhores resultados.
É, igualmente, o pensamento do jurista português Marcello Caetano:
“O processo administrativo é, pois, não só o instrumento adequado da acção jurídica da Administração pública mas também uma garantia dada aos particulares de que as pretensões confiadas aos órgãos administrativos serão examinadas em termos de permitir soluções legalmente correctas.”[81]
As vantagens são inúmeras para que o administrado se enverede ao convite do processo administrativo:
– Não há necessidade de defesa técnica, embora, nos denominados processos litigiosos, recomenda-se ser assistido por causídico;
– Sendo o resultado insatisfatório, não será condenado em honorários advocatícios e em custas do processo;
– Será julgado por um corpo técnico, sendo que, em muitos dos litígios do processo administrativo, exigem-se maiores conhecimentos do que só a formação em Direito. É o que se observa nos processos instaurados junto aos Tribunais de Contas, processos administrativos no campo do direito ambiental, processos fiscais – onde há um elevadíssimo nível de especialização e de conhecimento técnico dos componentes dos órgãos julgadores, em que é composto por representantes da Fazenda e dos contribuintes, de forma paritária;
– No âmbito tributário, a instauração de um processo administrativo ocasiona a suspensão da exigibilidade do crédito tributário;
– Os prazos para os julgadores do processo administrativo são próprios, respondendo por responsabilidade administrativa no caso de atraso injustificado;
– Os processos administrativos são regidos pelo princípio da informalidade, não acarretando, ao que se vê, atualmente, nos processos judiciais, a denominada “jurisprudência defensiva”;
Além desses aspectos apontados em prol do cidadão (individualmente considerado), há vantagens para Administração Pública melhorar a sua gestão, que, ao final, refletir-se-á em benefícios a todos os cidadãos (coletivamente). É o pensamento do emérito jurista pátrio Celso Antônio:
“O processo administrativo revela-se de grande utilidade para complementar a garantia da defesa jurisdicional porquanto, em seu curso, aspectos de conveniência e oportunidade passíveis de serem levantados pelo interessado podem conduzir a Administração a comportamentos diversos dos que tomaria, em proveito do bom andamento da coisa pública e de quem os exibiu em seu interesse. […]
Concorre para uma decisão mais bem informada, mais consequente, mais responsável, auxiliando, assim, a eleição da melhor solução para os interesses públicos em causa, pois a Administração não se faz de costas para os interessados, mas, pelo contrário, toma em conta aspectos relevantes por eles salientados e que, de outro modo, não seriam, talvez, sequer vislumbrados.”[82]
Hodiernamente, muito se tem falado dos novos desafios para celeridade processual, tanto em relação ao processo administrativo quanto para o processo judicial, especialmente pelo fato do legislador constitucional ter promovido reforma constitucional (EC Nº 45/2004) ao inserir o inciso LXXVIII no artigo 5º da Constituição Federal, que assim dispõe: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
Nas palavras do Ministro da STF e professor, Gilmar Ferreira Mendes em coautoria com o professor Paulo Gustavo Gonet Branco, no seu curso de direito constitucional, asseverou:
“Positiva-se, assim, no direito constitucional, orientação muito perfilhada nas convenções internacionais sobre direitos humanos e que alguns autores já consideravam implícita na ideia de proteção judicial efetiva, no princípio do Estado de Direito e no próprio postulado da dignidade da pessoa humana.[…]
O reconhecimento de um direito subjetivo a um processo célere – ou com duração razoável – impõe ao Poder Público em geral e ao Poder Judiciário, em particular, a adoção de medidas destinadas a realizar esse objetivo”.[83]
Pensando em concretizar o ideário do princípio da celeridade processual, administrativo e judicial, os três Poderes reuniram-se e estabeleceram “Pactos Republicanos” a fim de incrementar mecanismos em prol da celeridade processual.
No espaço administrativo, ficaram assinalas, no presente trabalho, as principais ferramentas já realizadas e a realizar, objetivando a duração razoável dos processos administrativos, bem como introduziram o próprio certame administrativo para “filtrar” contendas judiciais a fim de desafogar o Poder Judiciário.
Não obstante, não seja uma tarefa de fácil solução produzir institutos jurídicos em prol da celeridade processual no campo judicial, é necessário não se esquecer das garantias processuais asseguradas aos sujeitos do processo, notadamente, o contraditório e a ampla defesa, que, em muito, tem sido esquecido com o surgimento desses novos institutos.
A advertência foi bem apontada pelo professor Fredie Didier Jr.:
“A exigência do contraditório, o direito à produção de provas e aos recursos certamente atravancam a celeridade, mas são garantias que não podem ser desconsideradas ou minimizadas. É preciso fazer o alerta, para evitar discursos autoritários, que pregam a celeridade como valor. Os processos da Inquisição poderiam ser rápidos. Não parece, porém, que se sinta saudades deles.”[84]
6. CONCLUSÃO
Ao longo do presente trabalho, foi estudada a origem e o conceito de processo administrativo, que é um dos instrumentos jurídicos dos mais antigos do Direito, bem como suas nuances de transformação e aplicação no perpassar do tempo.
Foram ressaltadas as novas ideologias consagradas no Direito comparado e Direito pátrio, buscando a justificar a preterição de práticas autoritárias realizadas pela Administração Pública, no qual sempre se expressara por meros atos administrativos, sem qualquer participação dos interessados, características estas próprias de uma Administração regaliana e estadista.
Evolui-se a concepção de atuação da Administração Pública sustentada por uma Constituição Federal que prima por um Estado Democrático de Direito, de modo que a gestão pública possa ser conduzida por instrumentos de legitimação democrática e sua vontade seja externada por uma atividade processualizada.
Reconheceu-se a importância do sistema contencioso francês ou dual de jurisdição para o aprimoramento dos institutos e instrumentos jurídicos do Direito Administrativo, principalmente em relação ao processo administrativo.
Conferiu-se que a enorme carga de processos judiciais suportado pelo Poder Judiciário decorre de demandas em que o próprio Poder Público seja sujeito do processo, muito ocasionado por falta de processo administrativo prévio, o qual facilita para uma “filtragem” de contenda judicial, bem como, pelo fato, do poder jurisdicional estar concentrado tão-somente nas mãos do Poder Judiciário.
Possivelmente, uma pequena reforma no artigo constitucional que contempla o princípio da inasfatabilidade de jurisdição ao Poder Judiciário, viabilize o desafogamento sentido pelo Judiciário brasileiro, principalmente, transmudando-se matéria de natureza administrativa para uma “Justiça Administrativa”, nos moldes do Conselho Francês, cujo esboço dessa Corte possa ser vislumbrado no Tribunal de Contas.
Esta, talvez, como já dito e reafirmado no presente trabalho, a adoção do sistema francês de jurisdição dual possa ser, num futuro próximo, a melhor das soluções para impulsionar a tão almejada celeridade processual em razões das vantagens já aqui expostas.
Além disso, terminaria a celeuma acerca da possibilidade de intervenção do Poder Judiciário no tratamento de políticas públicas, que é de incumbência precípua do Poder Executivo, de maneira que, com a criação de uma Justiça Administrativa, a decisão seria de órgão administrativo, que será independente e com autonomia constitucional para obrigar o Poder Executivo a implementar políticas públicas em prol dos direitos fundamentais assegurados na Carta Magna, sopesando assim com os recursos financeiros possuídos pelo ente federado de cuja análise serão aferidos por membros com conhecimento não só na área da ciência jurídica, como também das ciências: econômica, contábil e administração.
Em suma, mesmo nos ordenamentos jurídicos, como nosso, que não se enveredem pelo sistema dual de jurisdição (que é defendido por este trabalho), não devem deixar de importar conceitos e aplicação de institutos jurídicos teorizados no âmbito daqueles, até porque, conforme já abordado, a passagem de uma diretriz teórica a outra completamente distinta se realiza de forma paulatina.
Não obstante, constata-se que nosso pensamento acerca do processo administrativo está em crescente evolução, pois, aos poucos, vem agasalhando institutos jurídicos fomentados por ideologias democráticas, o que vem a prestar maior solidez ao princípio da dignidade da pessoa humana cujo fundamento se encontra nas Constituições que lutam para assegurar, de forma efetiva, o Estado Democrático de Direito.
Informações Sobre o Autor
Leonardo Minari de Oliveira
Servidor Público – Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP