Resumo: Trata da discussão sobre a inconstitucionalidade do artigo 305 CTB em face do Direito à não autoincriminação.
Dispõe o artigo 305, CTB:
Artigo 305 – “Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída. Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, ou multa”.
Claramente o bem jurídico tutelado pela norma é o interesse da Administração da Justiça na pronta identificação do indivíduo envolvido no acidente de trânsito, a fim de que se possam promover suas responsabilizações penal, civil e administrativa.
A questão que se impõe com relação à criação desse tipo penal pelo nosso Código de Trânsito (Lei 9.503/97) refere-se à sua (in) constitucionalidade, tendo em vista o consagrado Direito de não produzir prova contra si mesmo ou Direito a não autoincriminação. Afinal, o envolvido em acidente de trânsito seria compelido, mediante a ameaça de incriminação, a permanecer no local do fato, não atuando em seu direito de autodefesa que abrange inclusive a própria ocultação, tanto é verdade que a norma não existe para outros crimes, onde a fuga do local é apenas um “post factum” não punível, constituindo no “iter criminis” a fase de exaurimento. Nem se argumente que nos casos de crimes de trânsito a fuga do local é mais incidente e justificaria a normativa em discussão. Isso porque a alegação não corresponde à realidade do mundo da vida. Ou será que alguém vê com frequência o homicida aguardando a polícia no local do crime, o estuprador, o praticante de furto ou roubo etc.? Nesse passo o artigo 305, CTB, como norma de exceção, violaria também o Princípio da Isonomia, eis que somente previsto, sem justificação para essa discriminação negativa, para os acidentes de trânsito e não para outros casos criminais ou mesmo civis ou administrativos.
Na doutrina essa compreensão quanto à violação constitucional promovida pelo artigo 305 CTB é bastante recorrente. Neste sentido a manifestação de Damásio E. de Jesus com fulcro ainda no escólio de Ariosvaldo de Campos Pires, alegando que o dispositivo é de “constitucionalidade duvidosa”. Além disso, aduz o autor também a inconvencionalidade da norma incriminadora com base no artigo 8º., II, “g”, do Pacto de São José da Costa Rica que estabelece que “ninguém tem o dever de autoincriminar-se”. [1]
Por seu turno, Gomes afirma que a inconstitucionalidade também poderia derivar da proibição da prisão por dívida, eis que a determinação de que o envolvido em acidente de trânsito permaneça no local tem expressamente o intento também de satisfazer a responsabilização civil. Assim sendo, sabe-se que somente é admissível a prisão por dívida alimentícia, nem sequer a prisão do depositário infiel tem sido considerada viável no Brasil em face da apreciação da matéria pelo Supremo Tribunal Federal, considerando a incompatibilidade da normativa constitucional interna com o Pacto de São José da Costa Rica. [2] Com absoluto respeito ao entendimento exposto, discorda-se, eis que, como afirma Capez, “na realidade o agente é punido pelo artifício utilizado para burlar a administração da justiça e não pela dívida decorrente da ação delituosa”. [3]
Contudo, o argumento da não autoincriminação e da violação da isonomia parece ser bem consistente. Nas palavras de Nucci:
“Trata-se do delito de fuga à responsabilidade, que, em nosso entendimento, é inconstitucional. Contraria , frontalmente, o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo – nemo tenetur se detegere . Inexiste razão plausível para obrigar alguém a se auto – acusar, permanecendo no local do crime, para sofrer as consequências penais e civis do que provocou. Qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade , exceto o autor de delito de trânsito. Logo, cremos inaplicável o art. 305 da Lei 9.503/97”. [4]
Em campo oposto posiciona-se Marcão, asseverando que a obrigação, sob pena de incriminação, de permanecer no local do acidente, não viola o direito a não autoincriminação, tendo em vista que quando da apuração criminal nada obrigará o suspeito a colaborar ativamente com a produção de provas, conservando, por exemplo, seu direito ao silêncio. [5]
“Data maxima vênia” e embora a argumentação por último mencionada encontre sustento no corpo de decisões do STJ [6], há que reconhecer que se trata de uma visão reducionista do direito a não autoincriminação. Esse direito tem uma amplitude bem maior do que somente o “Direito ao Silêncio”, que é apenas uma de suas variadas manifestações, assim também não se resume aos atos formais do processo, mas abrange uma série inumerável de condutas de autodefesa do indivíduo. É neste sentido que Queiroz faz uma análise ampla do Direito Constitucional ao Silêncio, a superar sua interpretação meramente literal, de modo a abranger vários outros atos processuais. [7] Não diverge a orientação de Maria E. Queijo, quando desenvolve estudo monográfico especializado sobre a não autoincriminação. [8]
Por seu turno, na jurisprudência, o STF, em decisões monocráticas, tem se deparado com a questão da alegação da inconstitucionalidade do artigo 305, CTB, mas até o momento em que se redige o presente trabalho, tem afastado a decisão do mérito, eis que nos casos apresentados há reconhecimento de prescrição ou então falta de algum requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário. Portanto, questões formais têm impedido a manifestação do STF sobre o tema até o momento. [9]
Já no STJ, há fugas da questão, sob o argumento de que a Lei 9.503/97 – mais especificamente seu artigo 305 – está em vigor e não foi declarada inconstitucional pelo STF, que seria o órgão com competência para tanto, de modo que o Recurso Especial com base somente na discussão da constitucionalidade do dispositivo não deve ser conhecido. [10] Não obstante, há também deferimento de Habeas Corpus para trancamento de ação penal referente ao artigo 305, CTB em decisão relevante daquela corte. No Recurso Especial 1.404.893-SC, de relatoria do Ministro Rogério Schietti Machado Cruz, datado de 17.09.2014, há ratificação de reconhecimento incidental de inconstitucionalidade por Órgão Especial da corte, a configurar precedente de orientação para futuras decisões. Efetivamente o Órgão Especial do STJ, nos autos de Arguição de Inconstitucionalidade em sede de Apelação Criminal n. 2009.026222-9, de 1º. 06.2011, de relatoria da Desembargadora Salete Silva Sommariva, reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 305, CTB:
“Arguição de Inconstitucionalidade. Apelação Criminal. Art. 305 do CTB. Fuga do local do acidente para isenção de responsabilidade civil ou penal. Inconstitucionalidade. Violação aos direitos de silêncio e de não produzir prova contra si mesmo ( CF/88, Art. 5º., LXIII). Afronta ao Princípio da Igualdade. Tratamento diferenciado sem motivação idônea. Procedência da arguição”.
Porém, há que ressaltar que no “decisum” acima, embora seja concedida a ordem de Habeas Corpus, novamente se exime o STJ ao final quanto à declaração da inconstitucionalidade do dispositivo em questão, tendo em vista a alegação de que cumpre ao STF a análise estritamente constitucional da validade de lei federal.
Doutra banda Tribunais Estaduais, a exemplo do TJSP, TJMG, TJRS e TJSC, vêm reconhecendo incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 305, CTB por violação a não autoincriminação e à isonomia. [11]
Isso motivou a Procuradoria Geral da República, por intermédio do Procurador Geral Rodrigo Janot Monteiro de Barros, a ingressar no STF com Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 35), a fim de provocar a manifestação definitiva daquele sodalício que detém a competência para dirimir a matéria. A argumentação da Procuradoria Geral da República é a de que o dispositivo seria constitucional, pois que somente exige a presença do suspeito no local do fato, não o obrigando a colaborar com a produção de provas contra si mesmo. [12] Como já exposto, o argumento é frágil, porque reduz o alcance real do Direito a não autoincriminação. Obviamente a obrigatoriedade da presença no local impele o indivíduo a produzir prova de autoria contra si mesmo, o que induvidosamente fere a garantia constitucional. Ademais, a mesma obrigação inexiste para outros crimes, não havendo motivação idônea para a discriminação negativa no caso concreto, o que traz à baila também a afronta ao Princípio da Isonomia.
Contudo, resta aguardar a manifestação conclusiva do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.