Resumo: O progresso tecnológico – em especial com a popularizaçãoo da Internet permitiu o tratamento de dados pessoais expondo a intimidade e a vida privada dos trabalhadores e candidatos a postos de trabalho. Este trabalho pretende estabelecer diretrizes ao tratamento de dados pessoais do trabalhador. Para tanto inicialmente introduzirá os conceitos fundamentais sobre o tema. A seguir tomará como parâmetros aqueles definidos pela Comunidade Européia e pela Espanha. Ao final justificará a necessidade de legislação pátria específica sobre o tema. E a título de conclusões sintetizará as ideias levantadas e defendidas na investigação.
Sumário: Introdução. 1.Panorama geral sobre proteção de dados pessoais. 2.Breve exame do poder patronal. 3.Proteção aos dados pessoais na relação de trabalho na Comunidade Européia na Espanha e no Brasil. Conclusões.
Introdução
A sociedade de informação é resultado do progresso tecnológico. O grande avanço é a facilidade com que se transmite – em fração de segundos e a custos baixíssimos – informações de um lugar a outro do planeta [1].
Na era da tecnologia, em especial da Internet, tornou-se mais frequente o tratamento das informações pessoais, que consiste na coleta de dados de caráter pessoal e na combinação destes entre si. Tal prática permite revelar importantes informações sobre indivíduos específicos, entretanto pode violar direitos fundamentais de seus titulares. Assim, acentuou-se a preocupação em proteger os dados de caráter pessoal.
Na sociedade contemporânea – transfronteiriça e globalizada – o maior interesse em tutelar os dados pessoais se refletiu rapidamente numa singular inquietude mundial, promovendo o surgimento de normativas dispersas e descoordenadas. Em 1980, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos publicou um documento – Diretrizes relativas à política internacional sobre a proteção da privacidade e dos fluxos transfronteiriços dos dados pessoais[2]. Em 1981, o Conselho da Europa firmou o Convênio para a proteção dos indivíduos frente ao tratamento automatizado de dados pessoais[3].
A Comunidade Européia manifestou sua preocupação em proteger dados de caráter pessoal ao criar três diretivas. Aprovada em outubro de 1995, a diretiva nº 95/46 se propôs a regular o tratamento e a livre circulação dos dados das pessoas físicas no âmbito da comunidade européia[4]. Em dezembro de 1997, surgiu a diretiva nº 97/66, que se ocupou do tratamento dos dados de caráter pessoal e da proteção à intimidade no setor das telecomunicações[5]. Por fim, em julho de 2002, foi elaborada a diretiva nº 2002/58, que se dedicou ao tratamento dos dados pessoais e da proteção à intimidade no setor de comunicações eletrônicas[6].
Na Espanha, em dezembro de 1999, foi elaborada a Lei de Proteção de Dados de Caráter Pessoal[7], em consonância com a diretiva nº 95/46.
Do outro lado do Atlântico, foram realizados encontros entre os países da Ibero-América, com o propósito de impulsionar marcos normativos e consolidar uma cultura de proteção aos dados pessoais. Em junho 2003, na Guatemala, foi firmada a Declaração de La Antigua[8], que criou a Rede Ibero-americana de Proteção de Dados. Em novembro do mesmo ano, na Bolívia, foi firmada a Declaração de Santa Cruz de la Sierra[9], que reconheceu, de forma expressa, o direito fundamental de proteção aos dados pessoais.
É oportuno ressaltar que, na atualidade, nem todos os países ibero-americanos dispõem de tutela legislativa nacional sobre proteção de dados de caráter pessoal.
No Brasil não existe uma normativa específica sobre o tema. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), no seu artigo 3º, dispõe que a disciplina do uso da Internet do Brasil será regida – na forma da lei – pelo princípio da proteção dos dados pessoais. Em outros dispositivos deste instrumento normativo, há menções imprecisas aos direitos decorrentes do tratamento e da proteção dos dados pessoais. Todavia, a lei regulamentadora do assunto jamais existiu. Em 2004, foi elaborado o Projeto de Lei (PL) nº 321 sobre a matéria, que foi arquivado em 2011. Mais recentemente, em 2014, foi idealizado o PL nº 181, que ainda tramita no Senado Federal[10].
No âmbito das relações laborais, destaca-se a hipossuficiência do trabalhador. Deste modo, a proteção aos dados pessoais do trabalhador reclama ainda maior atenção. É imensa a facilidade com que são obtidos os dados pessoais do trabalhador durante e, até mesmo, antes do estabelecimento da relação de trabalho.
Os dados pessoais do trabalhador – uma vez associados às inovações tecnológicas, sobretudo à Internet – revelam não somente aptidões profissionais, mas também características sociais, culturais e pessoais, expondo a intimidade e a vida privada dos indivíduos. Estas informações agregadas são utilizadas como critérios para decidir sobre a seleção de pessoal, a manutenção da relação de trabalho ou o desligamento da organização. Os empregadores, por sua vez, justificam que tal prática é indispensável à higidez da instituição.
Preocupada com essa questão, em outubro de 1996, a Organização Internacional de Trabalho reuniu-se em Genebra e aprovou um repertório de recomendações práticas sobre a proteção de dados pessoais dos trabalhadores. Tais recomendações não são obrigatórias nem substituem normas internacionais do trabalho, diretivas e políticas laborais, legislações nacionais, regulamentos ou disposições das empresas. Na verdade, elas se limitam a indicar parâmetros e orientar o tratamento de dados pessoais de trabalhadores[11].
Dessa sorte, em nível mundial, não há qualquer espécie normativa – de caráter coercitivo – que trate da proteção dos dados pessoais dos trabalhadores ou candidatos a postos de trabalho. No Brasil, inexiste sequer um diploma normativo que trate – ainda que de forma geral – da proteção aos dados pessoais dos indivíduos. Outrossim, o PL nº 181/2014, ainda em trâmite, não se refere, em momento algum, aos dados pessoais dos trabalhadores.
Neste cenário de ausência de tutela normativa, surge um conflito de interesses. De um lado, encontra-se o empregador, que – sob o argumento de melhor administrar sua organização – pretende coletar e combinar dados pessoais dos trabalhadores (atuais e futuros), ainda que para tanto seja necessário violar seus direitos. Do outro lado, apresentam-se os trabalhadores e candidatos a postos de trabalho que – em virtude da situação de hipossuficiência – são coagidos a fornecer os dados pessoais que lhes sejam solicitados.
Os sistemas jurídicos e a tecnologia, com o passar do tempo, evoluem, transformam-se e são substituídos por outros. Em contrapartida, a mitologia clássica sempre será mantida, lembrada e reverenciada, pois reúne a sabedoria da cultura greco-romana, revelando a sensibilidade e a sofisticação intelectual dos seus admiradores. Para que seja preservada, a professora Ruth Guimarães entende que a matização da mitologia é fundamental, porque é esta a maneira de o mito existir: variando[12].
Assim, propomos enquadrar metaforicamente o aludido embate jurídico no episódio mitológico que trata do surgimento do oráculo de Apolo.
Em Delfos – cidade construída nas encostas do monte Parnaso – havia uma gruta bastante profunda, que provocava um fenômeno muito estranho. Quando se aproximavam daquele local, as cabras aspiravam o ar que exalava da gruta e, em seguida, sofriam convulsões.
Embora se tratasse de um ar tóxico, atribuía-se o fato a alguma conspiração divina. Para solucionar o problema, Apolo – deus da sabedoria – construiu um templo na região. Surgiu, assim, um famoso oráculo em Delfos: o oráculo de Apolo[13].
No enquadramento do episódio mitológico ao objeto de estudo, podemos comparar Delfos com a relação de trabalho e considerar que as cabras representam os trabalhadores e candidatos a postos de trabalho, bem como a gruta simboliza o empregador.
Nesse sentido, o ar tóxico emitido pela gruta retrata o tratamento de dados pessoais. Para que a gruta se perpetue no tempo (o empregador tenha sucesso na sua organização), entende-se que exalar o ar tóxico é indispensável (o tratamento de dados pessoais – ainda que viole direitos – torna-se imprescindível). Está representada, assim, a realidade da gruta (o posicionamento do empregador).
Por seu turno, as cabras (trabalhadores e candidatos a postos de trabalho) sofrem ataques de convulsão (desrespeito à proteção das informações pessoais) quando respiram o ar exalado pela gruta (em virtude do tratamento de dados). Entretanto, respirar (informar os dados que lhe são solicitados) é fundamental para sobreviver (necessário para ser contratado ou permanecer na organização). Deste modo, apresenta-se reproduzida a situação dos trabalhadores e candidatos a postos de trabalho.
Por fim, o oráculo de Apolo representa as providências a serem tomadas para a pacificação de Delfos (relação de trabalho). Desta sorte, na conformação do episódio mitológico, temos a representação exata do embate jurídico em tela.
Para solucioná-lo, este trabalho se propõe a – examinando a necessidade de proteger os dados pessoais do trabalhador – estabelecer diretrizes ao tratamento de tais dados, levando em conta o poder de direção do empregador.
Dessa forma, nossa investigação apresenta três tópicos. Inicialmente, apresentaremos um breve panorama sobre o tema de proteção de dados. Em seguida, examinaremos as principais características do poder patronal. Num terceiro momento, estabeleceremos diretrizes à proteção aos dados pessoais na relação laboral. A título de conclusões, serão sintetizadas as idéias levantadas e defendidas nesta investigação, assim como será proposto um final para o aludido episódio mitológico.
Por fim, convidamos todos para que iniciem este estudo científico sob o manto de um espírito corajoso, inquieto, questionador e crítico, analisando possibilidades e propondo soluções viáveis.
1. Panorama geral sobre proteção de dados pessoais
1.1. Noções gerais
Para uma melhor compreensão do objeto desta investigação, torna-se imprescindível traçar um panorama geral sobre proteção de dados. Para tanto, trataremos de conceitos fundamentais, princípios e direitos dos titulares, com fulcro na inteligência de duas normativas sobre o tema – a diretiva européia nº 95/46 e a lei espanhola nº 15/1999.
1.2. Conceitos fundamentais sobre proteção de dados pessoais
a) Dados de caráter pessoal
Dados de caráter pessoal são aqueles que dizem respeito a informações pertencentes a indivíduos identificados ou identificáveis, assim como nomes, domicílios, números de telefone, crenças religiosas, filiação sindical, histórias clínicas, infrações administrativas e penais etc.
O que realmente determina que se trata de um dado pessoal é a possibilidade de que a informação – combinada ou por si mesma – permita identificar uma pessoa concretamente. Desta maneira, um indivíduo estará identificado quando tiver sido coletado algum dado – ou conjunto de dados – que tenha por objetivo diferenciá-lo do resto da coletividade[14].
Considerando que a circulação de dados de caráter pessoal permite a realização de diversas transações comerciais, resta claro que, ante a atual economia transfronteiriça e globalizada, estas informações possuem um alto valor de mercado[15].
b) Banco de dados
Também chamado de ficheiro, banco de dados é todo conjunto organizado de dados de caráter pessoal, que se encontre estruturado por algum critério de busca e que permita acessar facilmente as informações relacionadas a um indivíduo específico. Além do fato de poder estar centralizado ou descentralizado, bem como dividido de forma funcional ou geográfica, ele pode estar integrado num sistema manual ou automatizado[16].
Como exemplo de banco de dados manual, podemos citar aquele que, organizado em pastas físicas, armazena toda a história de filiação sindical de uma federação laboral[17].
Por sua vez, é exemplo de um banco de dados automatizado aquele que – estruturado em pastas de um sistema informático – reúne dados dos clientes insolventes de uma loja.
c) Tratamento de dados pessoais
Tratamento de dados de caráter pessoal é qualquer operação ou conjunto de operações – de caráter automatizado ou não – que permita a coleta, gravação, conservação, elaboração, modificação, extração, consulta, utilização, transmissão, difusão, interconexão ou qualquer outra forma que facilite o acesso aos mesmos, assim como o bloqueio, supressão ou destruição.
Em outras palavras, pode-se dizer que, praticamente, qualquer atuação relacionada ao trabalho habitual – que maneje dados pessoais – supõe a realização de um tratamento destes dados[18].
d) Dados pessoais especialmente protegidos
Existem dados que, em virtude da informação a que se referem, podem, com maior facilidade, lesionar outros direitos fundamentais e, por este motivo, são especialmente protegidos. Neste sentido, são estabelecidas exigências adicionais – tais como o estabelecimento de medidas de segurança, assim como o consentimento expresso e/ou por escrito – para que se inicie o tratamento de tais dados.[19]
A aludida diretiva européia considera que merecem especial tutela os dados pessoais que revelam a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação a sindicatos, a saúde e a sexualidade do individuo.
Por último, é fundamental registrar que algumas normas utilizam o termo dados sensíveis para se referir a esta categoria especial de dados.
1.3. Princípios
a) Princípio da Qualidade dos Dados
O tratamento deve ter um propósito legítimo que justifique a coleta dos dados pessoais.
Além disso, os dados pessoais coletados devem ser adequados, pertinentes e não excessivos à finalidade do tratamento.
Com o passar do tempo, caso se tornem inadequados ou excessivos, os dados pessoais devem ser cancelados. Entretanto, se for necessária sua conservação por motivos históricos, estatísticos ou científicos, os dados pessoais devem ser dissociados, de sorte que impossibilitem a identificação dos seus titulares[20].
b) Princípio de Informação
O mencionado princípio determina que o indivíduo seja informado – de maneira inequívoca, precisa e expressa – sobre a finalidade da coleta assim como o responsável pelo tratamento dos dados pessoais.
c) Princípio do Consentimento
Vinculado ao Princípio de Informação, o Princípio do Consentimento legitima todo tratamento de dados.
Por meio do consentimento, o indivíduo tem a prerrogativa de controlar a utilização dos seus dados pessoais. Trata-se, portanto, do direito de autodeterminação informativa.
Sem embargo, impende ressaltar que o Princípio do Consentimento sofre algumas mitigações. Assim, o consentimento é dispensado quando se trata de dados públicos, nos casos em que a lei enumera e no exercício das funções próprias da Administração Pública. Ademais, o consentimento não é exigido quando o interessado se encontra física ou juridicamente impossibilitado de consentir e o tratamento de dados visa à proteção de um interesse vital seu, tal como o atendimento médico de emergência. Por fim, o consentimento relacionado a questões laborais é distintamente matizado e será aprofundado num outro tópico[21].
1.3. Direitos dos titulares dos dados
Numa face da moeda, estão os princípios que devem nortear os responsáveis pelo tratamento de dados. Na outra face, apresentam-se os direitos dos titulares dos dados pessoais sujeitos a tratamento. São eles: o direito de acesso, oposição, retificação e cancelamento.
O direito de acesso é personalíssimo e, portanto, somente pode ser exercido pelo seu titular. Trata-se da faculdade de conhecer os dados armazenados nos ficheiros submetidos a tratamento, de saber a forma como foram coletados e a realização (ou não) de cessões.
Por sua vez, naqueles casos em que é dispensado o consentimento, o direito de oposição permite que o interessado se oponha ao tratamento de seus dados, exigindo a exclusão de tais informações. Para tanto, é claro, deve haver razões convincentes.
Tal como o direito de acesso, o direito de retificação também é personalíssimo. Trata-se da prerrogativa de retificar os dados que estejam armazenados de forma incorreta ou incompleta.
Por fim, o direito de cancelamento possibilita o bloqueio das informações, que não necessariamente será acompanhado da exclusão física dos dados. Assim, eles podem ser conservados e mantidos à disposição de órgãos judiciais até o transcurso do prazo prescricional.
1.4. Definição do direito à proteção de dados pessoais
O direito à proteção de dados pessoais é o poder de controle – à disposição de todo indivíduo – que o faculta a determinar quem pode possuir seus dados e para que pode dispor deles. Este controle objetiva impedir que, por meio do tratamento de dados pessoais, seja possível obter informação que viole a intimidade, assim como os demais direitos fundamentais e as liberdades públicas.[22]
Assim, o direito à proteção de dados pessoais atribui a seu titular um conjunto de faculdades, que lhe permitem, através do poder jurídico, exigir de terceiros a realização ou omissão de certos comportamentos. Ademais, cumpre ressaltar que o objeto tutelado não se limita aos dados íntimos, mas alcança qualquer espécie de dado pessoal, seja ou não íntimo, seja ou não fundamental[23].
Por fim, é imprescindível destacar que o direito à proteção de dados pessoais é também chamado de direito à autodeterminação informativa.
2. Breve exame do poder patronal
2.1. Noções gerais
Buscando uma visão completa do tema, torna-se necessário trazer à baila algumas considerações a respeito do poder patronal. Ao compreender as principais particularidades deste poder, será possível sistematizar sua aplicação à proteção de dados pessoais do trabalhador no âmbito da relação laboral.
2.2. Princípios do Direito do Trabalho
O epicentro axiológico do Direito do Trabalho está na idéia da imprescindibilidade de proteção ao trabalhador.
Parte-se da premissa de que o trabalhador sempre se encontra em situação de debilidade econômica, inexistindo igualdade entre as partes. Esta circunstância exige a intervenção do Estado para que – ao proteger o trabalhador – a desigualdade seja corrigida.
Não há consenso em relação ao rol dos princípios do Direito do Trabalho. Para efeito desta investigação, adotaremos o posicionamento de José Augusto Rodrigues Pinto. Este jurista afirma que o princípio primário do Direito do Trabalho, do qual emergiram, por desdobramento, todos os demais, é o da proteção ao hipossuficiente econômico[24].
Neste sentido, aplicando-se o princípio da proteção, o professor Rodrigues Pinto identifica a existência de três regras básicas. São elas: a) in dubio pro misero ou pro operario; b) aplicação da norma mais favorável; c) observância da condição mais benéfica.
Ademais, o mestre Rodrigues Pinto nos ensina que do princípio de proteção ao hipossuficiente econômico derivam três outros princípios. São eles: a) princípio da irrenunciabilidade de direitos; b) princípio da continuidade da relação de emprego; c) princípio da primazia da realidade.
Ao se tratar do tema de proteção aos dados na relação laboral, destaca-se o princípio da irrenunciabilidade de direitos. Ele pretende impedir que o trabalhador renuncie ao direito reconhecido em seu favor. Impende ressaltar que tal princípio aplica-se apenas ao trabalhador, tendo em vista que o empregador não é pressionado a renunciar a algum direito a que faz jus.
2.3. Poderes do empregador
2.3.1. Noções gerais
No Direito do Trabalho, a acepção de empresa é bastante ampla. Segundo Orlando Gomes e Elson Gottschalk, o conceito de empresa não abrange todas as situações em que, no mundo das atividades civis, uma instituição de cunho não comercial ou industrial representa fonte permanente de trabalho subordinado [25].
Para que uma organização interesse ao Direito do Trabalho, são necessário três requisitos. O primeiro diz respeito ao desenvolvimento de alguma atividade – econômica ou não – que produza, transforme, permute ou circule bens ou serviços. O segundo requisito corresponde à formação de um quadro de pessoal, de trabalhadores. O último se refere à existência de um poder hierárquico, devidamente organizado, que possibilite o funcionamento da instituição[26].
2.3.2. Poder hierárquico
O poder hierárquico organiza as relações de trabalho, estabelecendo objetivos, metas, regras administrativas, padrões de comportamento e eventuais penalidades. Trata-se, portanto, de um imperativo de higidez da instituição.
Resulta oportuno trazer à colação o pensamento do professor Emílio Gonçalves:
Reconhece-se, porém, ao empresário, como titular da empresa, […] o poder hierárquico, consistente no complexo de faculdades de que dispõe o empresário para a organização e coordenação geral do trabalho na empresa, com vistas aos fins e necessidades da mesma. […]
[…] o objeto do poder diretivo ou poder hierárquico é, de um lado, a organização empresarial, ou seja, a determinação de sua estrutura e de seu funcionamento, e, de outro lado, a regulamentação das condições de trabalho na empresa, abrangendo, inclusive, o comportamento dos empregados. (grifos nossos)[27]
O poder hierárquico subdivide-se em: a) poder regulamentar; b) poder diretivo; c)poder disciplinar. Neste sentido, o jurista Luiz José de Mesquita afirma que:
Existe na empresa um tríplice poder: o legislativo, o executivo e o judiciário, tal como na sociedade política. Pelo primeiro desses poderes são baixadas as normas de instituição, através do seu estatuto, de seu regulamento interno; pelo segundo, é exercida a sua administração interna e externa, através de ordens de serviço e das medidas de ordem econômica e financeira; pelo terceiro são sancionadas as faltas disciplinares dos que trabalham no seu interior, por meio de sanções adequadas (grifos nossos)[28].
Tendo em vista o objeto desta investigação, trataremos inicialmente dos poderes regulamentar e disciplinar, deixando por último o poder de direção – reputado o mais importante para a análise do nosso tema.
a) Poder regulamentar
O poder regulamentar é a manifestação mais evidente – do dirigente da organização – a respeito das regras que devem ser seguidas no âmbito da relação laboral.
Segundo Orlando Gomes e Elson Gottschalk, trata-se de uma prerrogativa do chefe da instituição que lhe permite definir a pedra de toque da disciplina interna, o sismógrafo que registra os abalos por que passa a sua estrutura no Direito contemporâneo[29].
b) Poder disciplinar
Corresponde a um conjunto de penalidades que podem vir a ser impostas caso o trabalhador desrespeite as normas estabelecidas pelo empregador por meio do poder regulamentar.
A depender da especificidade do caso, o trabalhador pode ser advertido, suspenso, despedido ou, até mesmo, multado[30].
c) Poder diretivo
Também chamado de poder de direção, o poder diretivo representa o comando, a efetiva coordenação da atividade do trabalhador. Desta sorte, o empregador pode dar destinação concreta à força de trabalho posta à sua disposição.
Do poder de direção, deriva-se o jus variandi, que tem como contraface o jus resistentiae.
c.1) Jus variandi
Ante o dinamismo da sociedade hodierna, resulta impossível não somente prever todas as variações da atividade laboral, bem como conservar todas as peculiaridades dos pactos firmados inicialmente. Para solucionar esta questão, apresenta-se o jus variandi.
Termo latino, jus variandi consiste no direito de o dirigente variar, mudar, modificar a atividade do trabalhador. Utilizando-se desta prerrogativa, o empregador pode – unilateralmente – alterar o conteúdo, a forma, o lugar e o tempo da prestação laboral, adaptando-a às exigências contemporâneas de sua organização.
A fim de evitar arbitrariedades, o jus variandi sofre limitações. Tendo em vista que a doutrina diverge quanto à identificação de tais limites, adotamos, neste trabalho, a classificação de Ricardo José Engel[31].
c.1.1. Limites relacionados aos Princípios Gerais do Direito
Dentre os Princípios Gerais do Direito, destacamos os quatro que melhor desempenham o papel de limitadores do jus variandi. São eles: a) Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; b) Princípio da Boa-Fé; c) Princípio da Não-Discriminação; d) Princípio da Proporcionalidade.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana – epicentro teleológico do ordenamento jurídico pátrio – determina que toda e qualquer variação unilateral na atividade laboral deve levar em conta a dignidade do trabalhador.
Por sua vez, o Princípio da Boa-Fé impõe a existência de boa-fé na modificação da prestação do trabalho.
O Princípio da Não-Discriminação, por seu turno, estabelece que as alterações na atividade laboral não podem promover a discriminação do trabalhador.
Por fim, o Princípio da Proporcionalidade, segundo a doutrina majoritária, subdivide-se em três elementos: adequação, necessidade (ou exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito. Assim, a mudança na prestação do trabalho deve ser adequada, indispensável e proporcional (existência de um equilíbrio entre os danos provocados e os benefícios alcançados).
c.a.2. Limites relacionados à organização
Os limites ao jus variandi que estão relacionados à organização são: os fins, o lugar, o tempo, a origem da ordem e a natureza da alteração planejada.
Assevera o professor Ricardo José Engel:
O jus variandi deverá ser exercido com objetiva atenção às necessidades da empresa, definidas em função de seus fins, considerando-se que a continuidade e o desenvolvimento da empresa são de interesse de toda a sociedade (grifos nossos)[32].
c.a.3. Limites relacionados ao empregado
Há dois limites impostos ao jus variandi que estão relacionados ao empregado.
O primeiro limite diz respeito à qualificação profissional, de modo que a variação da atividade laboral deve estar em conformidade com o perfil e as habilidades do trabalhador.
Para efeito desta investigação, o segundo limite é o mais importante. Isto porque corresponde ao prejuízo sofrido pelo trabalhador, em virtude da mudança na sua atividade.
Mais uma vez, resulta indispensável trazer à colação o pensamento de Engel:
“Relativamente ao jus variandi, entende-se que o prejuízo, mesmo que muitas vezes desqualifique o ato patronal, não é, todavia, limite intransponível. Pequenos prejuízos são tolerados nessa seara, pois o essencial é que não tenha havido abuso ou desvio no exercício do jus variandi “(grifos nossos)[33].
c. 2. Jus resistentiae
Conforme mencionado anteriormente, o poder diretivo submete-se a duas balizas: jus variandi e jus resistentiae. O jus variandi é o contrapeso ao jus resistentiae e vice-versa.
O jus resistentiae é a prerrogativa – de que dispõe o trabalhador – de resistir, de se rebelar contra os atos do empregador, quando este abusa ou desvia seu poder de direção.
3. Proteção aos dados pessoais na relação de trabalho
3.1. Noções gerais
Os modelos de organização e o poder de direção do empregador não são imunes às mudanças sociais, políticas e tecnológicas.
Em virtude da reestruturação e evolução das organizações, houve uma revitalização da dimensão intuitu personae das relações laborais. A superação do modelo taylorista promoveu o renascimento do caráter pessoal do trabalho.
Produziu-se uma individualização e uma personalização do trabalhador na empresa, de sorte que as informações pessoais a seu respeito passaram a influenciar as decisões sobre sua vida profissional[34].
O professor Daniel Martínez Fons nos ensina que:
Adverte-se facilmente que quando parecia definitivamente banido o caráter fiduciário do contrato de trabalho, adquirem relevância, de novo, informações estritamente pessoais relacionadas ao comportamento geral do trabalhador sobre aquilo que interessa ao empregador perguntar, na condição de fórmulas que permitem avaliar e assegurar a produtividade do empregado (tradução e grifos nossos)[35].
Por sua vez, em razão do progresso da informática, o poder diretivo – inclusive o conjunto de prerrogativas inerentes ao jus variandi – foi reforçado, tornando-se o desequilíbrio das partes ainda mais perigoso e acentuado.
Nesse sentido, afirma a professora Maria Belén Cardona Rubert:
A capacidade de escolha do empresário se vê enormemente ampliada pela agilidade e facilidade das informações obtidas por meio do uso da informática, da qual se deriva um perigo real para a esfera privada do trabalhador e, em conseqüência, para o direito fundamental à intimidade (tradução e grifos nossos)[36].
Movido pela revalorização do caráter pessoal da relação de trabalho e pelo incremento do poder diretivo, o empregador passou a realizar o tratamento de dados pessoais dos candidatos a postos de trabalho e dos trabalhadores. Desta sorte, tornou-se possível a obtenção de importantes informações sobre suas vidas, que servirão de critérios de decisão sobre eventual contratação, manutenção da relação laboral ou desligamento da organização[37].
Os empregadores justificam que o tratamento dos dados pessoais é imprescindível para respaldar a seleção de candidatos, salvaguardar a segurança laboral e controlar a qualidade do serviço a ser prestado[38]. Entretanto, na maioria das vezes, os dados pessoais levantados são excessivos e extrapolam a finalidade do tratamento de dados, violando direitos fundamentais e ofendendo a dignidade do trabalhador ou do candidato a um posto de trabalho.
Ante esta realidade indesejada, torna-se imprescindível a determinação de diretrizes e prerrogativas indispensáveis ao tratamento de dados pessoais no âmbito da relação laboral, de sorte a proporcionar a devida proteção aos dados dos trabalhadores e dos candidatos a postos de trabalho.
Para tanto, tomaremos por base o panorama geral apresentado sobre proteção de dados, o breve estudo do poder patronal e o Repertório de Recomendações práticas da OIT.
3.2. Limites gerais
Com o propósito de evitar arbitrariedades, é imprescindível estabelecer limites ao aludido tratamento de dados. Para tanto, conformaremos as diretrizes da proteção de dados aos limites do jus variandi.
3.2.1. Limites relativos aos Princípios Gerais
a) Princípio da Irrenunciabilidade de Direitos
A fim de amparar o hipossuficiente econômico, o Princípio da Irrenunciabilidade de Direitos determina que o trabalhador não pode renunciar aos direitos concedidos em seu benefício. Desta sorte, não se considera válido o ato voluntário de renúncia[39].
Entretanto, insta destacar que alguns direitos do trabalhador não são absolutos, podendo ser renunciados.
A princípio, o trabalhador tem direito a que não seja realizado o tratamento dos seus dados especialmente protegidos – também chamados de sensíveis. Sem embargo, em algumas circunstâncias, esta espécie de tratamento é indispensável.
Ao contratar um jornalista para redigir uma coluna de análise da política nacional, torna-se indispensável saber se ele é filiado a algum partido político ou entidade sindical[40].
Ademais, para indicar um determinado trabalhador para um posto mais elevado cuja atividade seja de risco, o empregador precisa conhecer a história clínica do indivíduo. Somente desta maneira será possível cumprir as normas de segurança e saúde laboral[41].
Cumpre mencionar o pensamento da jurista Maria Belén Cardona Rubert, que identifica as possibilidades de tratamento de dados sensíveis:
“O empresário unicamente poderá proceder ao tratamento automatizado destes dados sensíveis quando, pela natureza do posto, o trabalhador deva realizar tarefas carregadas de um indubitável conteúdo ideológico, devendo ser excluída esta possibilidade no caso de se tratar de tarefas neutras, já que a aptidão para executar ditas prestações não depende da participação do trabalhador na tendência ou linha ideológica da empresa e, portanto, são ilícitas todas as indagações realizadas pelo empresário dirigidas a obter informação relativa a ideologia, crenças religiosas, afinidade política ou sindical do candidato ao emprego ou do trabalhador do quadro que tenha que desenvolver ou desenvolva atividades ideologicamente neutras” (tradução e grifos nossos)[42].
Por sua vez, assevera Daniel Martínez Fons:
“[…]. no que se refere aos dados especialmente protegidos, deve-se ter em conta que a exigência do consentimento na coleta e no tratamento de dados sensíveis não substitui nem neutraliza os direitos fundamentais à intimidade, liberdade religiosa, ideológica e sindical na relação de trabalho. Efetivamente, o requerimento empresarial ao trabalhador de qualquer informação relativa a algum dos aspectos agora citados se sujeita ao princípio da proporcionalidade. Isto significa que deve ser comprovado um interesse relevante no conhecimento da informação” (tradução e grifos nossos)[43].
Resulta claro que o fato de o dado ser sensível não é motivo para excluí-lo de todo e qualquer tratamento. Deve ser demonstrada, portanto, a existência de um interesse legítimo no tratamento de dados especialmente protegidos, que justifique, no caso concreto, a renúncia circunstancial aos direitos do trabalhador.
b) Princípio da Qualidade dos dados
Em virtude do Princípio Qualidade dos Dados, os dados coletados devem ser adequados, necessários e proporcionais (não excessivos).
Desse modo, os dados recolhidos devem ser adequados à finalidade de tratamento a que se destinam. Além disso, os dados coletados devem ser, de fato, necessários, indispensáveis e não excessivos ao propósito do tratamento. Por fim, deve haver proporcionalidade entre as naturezas dos dados levantados e o objetivo do tratamento de dados[44].
Cumpre registrar, portanto, que as três exigências relacionadas à qualidade dos dados – adequação, pertinência ou necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – correspondem aos três elementos do Princípio da Proporcionalidade.
c) Princípio da Informação
O trabalhador e o candidato a um posto de trabalho não tem a obrigação de: a)perguntar se haverá tratamento de seus dados; b) investigar a finalidade do tratamento a ser realizado; c) justificar sua recusa em fornecer dados pessoais.
Pelo contrário, é dever do empregador informar a existência e a finalidade do tratamento. É também necessário informar os meios e as fontes que serão utilizadas na obtenção dos dados, bem como as conseqüências da negativa de consentimento e/ou fornecimento das informações. Além disso, tais como os demais cidadãos, os trabalhadores devem ser informados de que terão direito a acesso, oposição, retificação e cancelamento, que serão analisados no próximo tópico[45].
Enfim, resulta imprescindível demonstrar a idoneidade e garantir a transparência do tratamento de dados de caráter pessoal.
d) Princípio do Consentimento
Em qualquer espécie de tratamento de dados, o consentimento do indivíduo tem importância capital. Trata-se do princípio que legitima todo o tratamento. Ele permite que o afetado controle a utilização de seus dados pessoais, o que se denomina direito à autodeterminação informativa, conforme mencionado anteriormente[46].
Cumpre registrar que o ideal é que o consentimento seja inequívoco, expresso, livre, escrito e documentado. Mais uma vez, torna-se indispensável mencionar o pensamento de Daniel Martínez Fons:
“[…] o consentimento da pessoa afetada é princípio essencial da relação de tratamento de dados […]. A aplicação de tecnologias que permitam coletar, armazenar e tratar dados de caráter pessoal exige, com caráter geral, o consentimento do afetado […]. Trata-se, portanto, de acordo com a doutrina, do “informed consent”, isto é, um consentimento informado e plenamente consciente sobre a relação jurídico-privada que se constrói entre o responsável do ficheiro e o afetado” (tradução e grifos nossos)[47].
Quando se tratar de trabalhador, em razão de sua hipossuficiência econômica, o seu consentimento não necessariamente será sincero e autêntico, servindo apenas para legitimar os desejos do empregador[48]. Neste sentido, assevera o mestre Daniel Martínez Fons:
“[…] existem importantes limites à regra do consentimento. Trata-se de limites gerais que partem da consideração realista da inevitável presença de fortes desníveis de poder na relação ou de condicionamentos que excluem uma verdadeira liberdade de escolher” (tradução e grifos nossos)[49].
O mesmo ocorre com o candidato a um posto de trabalho, que se sente compelido a consentir, para que venha a ser selecionado. O mestre Emilio Suñé Llinás nos ensina que:
“É óbvio afirmar que, nos processos de seleção de pessoal, o medo de não ser contratado tem efeitos limitadores – e praticamente supressivos – da liberdade […] Por exemplo, nos psicotécnicas agressivas, que no âmbito da seleção de pessoal, podem ser perfeitamente direcionados para eliminar o perfil de sindicalista, fato que dado o descontrole atualmente existente sem dúvida se produz, e é incompatível com os fundamentos constitucionais de uma sociedade livre” (tradução e grifos nossos)[50].
Sem embargo, cumpre enfatizar que a exigência de consentimento não é absoluta. Assim, ele será dispensado quando os dados forem essenciais à continuidade da relação laboral. O jurisconsulto Daniel Martínez Fons afirma:
“[…] o consentimento não será isento quando os dados de caráter pessoal se refiram a pessoas vinculadas por uma relação laboral e sejam necessários para a manutenção das relações ou para o cumprimento do contrato” (tradução e grifos nossos)[51].
No mesmo sentido, assevera o professor Antonio José Valverde Asencio:
“[…] não se requer tal consentimento nem nos supostos de exercício de funções próprias da Administração (tão pouco, evidentemente, a laboral no exercício de suas competências de emprego, de enquadramento na Seguridade Social etc), nem nos casos em que se refere às partes de um contrato, que sejam necessários os dados para sua manutenção ou cumprimento. Este é um requisito indispensável para entender que não é preciso o concurso do consentimento do afetado” (tradução e grifos nossos)[52].
Tendo em vista a extrema importância do consentimento, devem ser previamente estabelecidas as hipóteses de sua dispensa.
e) Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Todo e qualquer tratamento de dados deve respeitar a idéia de dignidade da pessoa humana, que corresponde ao epicentro teleológico do nosso ordenamento jurídico.
f) Princípio da Não-Discriminação
O Convênio nº 111 da OIT, no seu artigo 1º, conceitua o termo discriminação:
“[…] qualquer distinção, exclusão ou preferência baseada em motivos de raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito anular ou alterar a igualdade de oportunidades ou de trato no emprego e ocupação” (tradução e grifos nossos)[53].
Desse modo, o tratamento de dados não pode – com base nas informações pessoais reveladas – servir como mecanismo para promover a discriminação do trabalhador ou do candidato a um posto de trabalho.
g) Princípio da Boa-Fé
A boa-fé deve ser uma constante, alcançando não somente o trabalhador e o empregador, mas também os demais envolvidos no tratamento dos dados pessoais.
Assim, em razão da boa-fé, apresenta-se a obrigação de confidencialidade, tal como determina a regra 5.12 do Repertório de Recomendações da OIT:
“Todas as pessoas tais como os empregadores, os representantes dos trabalhadores, as agências de emprego e os trabalhadores que tenham acesso aos dados pessoais dos trabalhadores deveriam ter uma obrigação de confidencialidade, de acordo com a realização de suas tarefas […]” (tradução e grifos nossos)[54].
Na verdade, a boa-fé deve servir como limite ao poder diretivo do empregador ao determinar as diretrizes do tratamento de dados pessoais. Neste sentido, destaca-se o pensamento da professora Maria Belén Cardona Rubert:
“[…] na verdadeira essência da boa-fé se encontra sua capacidade para equilibrar os direitos e interesses das partes no contrato de trabalho. Entendida assim, seria a via perfeita para canalizar o controle dos poderes discricionais do empresário na direção e organização da empresa, corresponderia à unidade de medida do exercício do poder” (tradução e grifos nossos)[55].
3.2.2. Limites relativos à organização
Dentre os limites relacionados à organização, destaca-se a finalidade do tratamento. O tratamento dos dados do trabalhador e do candidato a um posto de trabalho deve ter uma finalidade legítima e se limitar a assuntos vinculados à prestação laboral.
Torna-se indispensável mencionar o pensamento do jurista Daniel Martínez Fons:
“[…] para a obtenção de um resultado ponderado na composição dos interesses opostos não basta uma tutela máxima ao âmbito estrito da intimidade e um conjunto amplo de informações a que o empresário possa acessar legitimamente. Pelo contrário, o equilíbrio de interesses deve se fundamentar no princípio do controle do indivíduo sobre a informação relacionada a ele próprio. Isto se manifesta na existência de uma finalidade legítima que justifique a coleta de dados de caráter pessoal. O referido princípio é precisamente o elemento essencial que deve ser levado em consideração na avaliação do tratamento de dados na relação laboral. Trata-se, consequentemente, de determinar a quantidade e a qualidade das informações que relacionadas ao cumprimento da prestação de trabalho podem ser recolhidas” (tradução e grifos nossos)[56].
Urge salientar que se a finalidade do tratamento vier a ser alterada, ela deve ser compatível com a anterior. Por exemplo, os dados relativos às qualificações profissionais podem ser utilizados, mais adiante, para proporcionar maiores vantagens sociais, como se fossem uma compensação financeira pela formação do trabalhador[57].
A Rede de Estradas-de-Ferro Espanholas (RENFE) coletou dados sobre filiação sindical dos seus trabalhadores para efeito de desconto da contribuição sindical. Entretanto, em 1998, a RENFE utilizou tais dados para descontar – somente dos sindicalizados – o equivalente aos dias parados, em virtude de greves promovidas pelo sindicato dos ferroviários. Acertadamente, o Tribunal Constitucional da Espanha entendeu que o uso de tais dados sobre filiação sindical foi incompatível àquela que justificou a coleta, contrariando, portanto, a finalidade do tratamento[58].
Ademais, os dados pessoais dos trabalhadores de uma organização não podem ser cedidos a outra sem que haja autorização prévia dos seus titulares. Nestes moldes, o respeito à finalidade do tratamento impede que o empregador – levantando perfis informatizados, interconectando dados e, posteriormente, transmitindo a terceiros – converta a relação de trabalho num mecanismo de coleta de informação[59].
3.2.3. Limites relativos ao trabalhador
Dentre os limites relacionados ao trabalhador, destacamos os prejuízos sofridos em virtude da realização de tratamento.
Na verdade, tal limitação provoca um conflito de interesses: a exigência de tratamento de dados versus os eventuais danos sofridos pelo trabalhar em virtude deste tratamento. Para solucioná-lo, deve-se aplicar o Princípio da Proporcionalidade, anteriormente estudado.
Assim, para que seja realizado o tratamento, devemos examinar o caso concreto e constatar a presença de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Desta sorte, o prejuízo sofrido pelo trabalhador deve ser adequado à finalidade do tratamento dos dados. Além disso, o dano causado deve ser indispensável à realização do mencionado tratamento. Por fim, deve haver um equilíbrio entre os prejuízos sofridos pelo trabalhador e a legitimidade do interesse na realização do tratamento.
3.3. Direitos dos trabalhadores frente ao tratamento de seus dados pessoais
Em virtude das singularidades da relação laboral, os dados pessoais submetidos a tratamento exigem uma proteção ainda mais acentuada.
Assim, os direitos individuais dos titulares de dados pessoais – trabalhadores e candidatos a postos de trabalho – assumem um maior grau de importância.
A jurista Maria Belén Cardona Rubert assevera:
“Estes direitos tem especial relevância no âmbito laboral já que a dinâmica do contrato de trabalho torna absolutamente imprescindível o fluxo contínuo de informações do trabalhador ao empresário, que permitirá ao empresário a adoção de decisões. É no âmbito da empresa onde quiçá resulte mais difícil traçar os limites que assegurem os direitos do sujeito faticamente mais fraco” (tradução e grifos nossos)[60].
Torna-se necessário, portanto, o exame dos direitos de acesso, retificação, cancelamento e oposição no âmbito da relação laboral.
a) Direito de acesso
O direito de acesso corresponde à faculdade do trabalhador de conhecer as informações que lhe digam respeito e tenham sido submetidas a tratamento.
Não devem ser impostos obstáculos infundados ao acesso, nem qualquer mecanismo de punição ao trabalhador que pretenda conhecer seus dados. O jurista Daniel Martínez Fons assegura que:
“[…] não cabe impor restrições indiretas que desestimulem o exercício do direito de acessar; de maneira que se deve rejeitar qualquer prática neste sentido, tais como circunscrever o exercício do direito fora da jornada de trabalho ou que o tempo investido não seja considerado tempo de trabalho, submeter a questionários os trabalhadores que querem acessar, nem, enfim, estabelecer um registro autônomo dos trabalhadores que fazem uso de sua faculdade” (tradução e grifos nossos)[61].
Quanto à periodicidade de exercício do direito de acesso, há uma discussão doutrinária. Muitos estudiosos defendem a fixação de um intervalo mínimo entre os acessos dos trabalhadores aos seus próprios dados, evitando transtornos para a organização decorrentes de sucessivos e despropositados acessos.
Sem embargo, adotamos o pensamento de Daniel Martínez Fons, que propõe o estabelecimento de exigências mínimas para o exercício do direito, de sorte a demonstrar a legitimidade de interesse. Para tanto, este autor afirma que, dentre outros critérios, deve-se levar em consideração a natureza dos dados armazenados, a finalidade do tratamento e a importância de tais dados nas decisões da organização. Por fim, este professor esclarece que – embora tais parâmetros devam ser definidos em negociações coletivas – deve-se também admitir o exercício extemporâneo do direito de acesso, quando surgirem motivos para legitimá-lo.
b) Direitos de retificação e de cancelamento
A prerrogativa de retificar os próprios dados permite que o trabalhador corrija informações equivocadas e/ou incompletas, impedindo que se forme uma imagem errônea a seu respeito.
A faculdade de cancelamento pode ser exercida por meio da exclusão física do dado ou, em alguns casos, pelo simples bloqueio ao acesso.
Impende salientar que os direitos de retificação e de cancelamento referem-se a todos os dados objetivos informados pelo trabalhador, que tenham sido armazenados em bancos de dados automatizados. Desta sorte, não é possível retificar ou cancelar informações reveladas em razão de tratamento de dados ou de avaliações subjetivas a que os trabalhadores se submeteram[62].
c) Direito de oposição
Por meio do exercício do direito de oposição, o trabalhador – desde que apresente justificativas legítimas – pode se opor ao tratamento de seus dados pessoais.
A razão de existência do direito de oposição deriva das múltiplas variações de tratamentos de dados pessoais, que podem vir a prejudicar o trabalhador[63].
Resulta evidente, portanto, que o direito de oposição do trabalhador ao tratamento dos seus dados pessoais é uma manifestação do jus resistentiae.
3.4. Necessidade de legislação nacional específica
Atualmente, conforme mencionado, inexiste qualquer normativa nacional a respeito da proteção de dados. Além disso, o PL nº 181/2014, ainda em tramitação no Senado Federal, não se refere, em momento algum, aos dados pessoais de trabalhadores e candidatos a postos de trabalho.
As diretivas européias e a lei espanhola sobre proteção de dados pessoais não podem ser aplicadas no Brasil.
Por sua vez, as recomendações da OIT – a respeito da proteção aos dados pessoais de trabalhadores e candidatos a postos de trabalho – não tem caráter obrigatório e se limitam a estabelecer diretrizes, orientando a eventual elaboração de leis, regulamentos, convênios coletivos, diretivas e políticas laborais.
A aplicação de princípios e regras gerais internacionais à proteção de dados torna muito frágil e pouco eficaz a tutela às informações pessoais. A ausência de sanções e de coercitividade também contribui para o mesmo resultado indesejável.
Neste sentido, podemos mencionar a necessidade de previsão legal expressa do direito à proteção aos dados pessoais do trabalhador, bem como de penalidades impostas ao empregador no caso de descumprimento do dever de informação.
Ademais, se as exceções às regras gerais não forem explicitamente previstas, abrir-se-á margem para a manipulação desleal do empregador.
Por exemplo, as hipóteses de dispensa de consentimento à realização de tratamento de dados devem estar claramente enumeradas. Desta sorte, os empregadores não poderão se valer da indeterminação de algumas expressões para ampliar o rol de exceções à exigência do consentimento[64].
Do exposto, resulta evidente que a elaboração de uma lei nacional específica sobre o tema é imprescindível à proteção às informações pessoais de trabalhadores e candidatos a postos de trabalho.
Cumpre advertir que certamente haverá um alto nível de rejeição social a qualquer espécie normativa que crie limitações ao tratamento de dados. Sem embargo, em razão da nobreza da causa, o Estado deve assumir os riscos de eventuais inconvenientes.
Conclusões
A título de conclusões, podemos sintetizar:
a) O progresso tecnológico – em especial com a popularização da Internet – e a revitalização do caráter intuitu personae das relações laborais promoveram o tratamento de dados pessoais, expondo a intimidade e a vida privada dos trabalhadores e candidatos a postos de trabalho;
b) O tratamento de dados pessoais é utilizado como critério decisório sobre eventual contratação, manutenção da relação laboral e desligamento da organização;
c) É possível o tratamento dos dados sensíveis do trabalhador e dos candidatos a postos de trabalho, desde que, para tanto, seja demonstrado um interesse legítimo;
d) Os dados coletados devem ser adequados, necessários e não excessivos ao tratamento a ser realizado;
e) O empregador deve informar – aos trabalhadores e candidatos a postos de trabalho – a finalidade do tratamento a ser realizado, assegurando sua idoneidade e transparência;
f) Em razão da hipossuficiência econômica dos trabalhadores e da expectativa de seleção dos candidatos a postos de trabalho, nem sempre o consentimento será sincero e autêntico;
g) A exigência do consentimento não é absoluta;
h) Todo tratamento deve respeitar a dignidade dos titulares dos dados pessoais;
i) O tratamento de dados não pode servir como mecanismo para promover a discriminação de trabalhadores ou candidatos a postos de trabalho;
j) A boa-fé deve servir como limite ao poder diretivo do empregador ao determinar as diretrizes do tratamento de dados;
k) A finalidade do tratamento de dados deve ser legítima e vinculada a assuntos laborais;
l) Havendo possibilidade de dano ao trabalhador em razão do tratamento de seus dados, deve ser feita uma ponderação de interesses para verificar se a legitimidade do tratamento prevalece;
m) Os direitos de acesso, retificação, cancelamento e oposição tem especial importância na relação laboral;
n) É imprescindível a elaboração de uma lei nacional de tutela aos dados pessoais de trabalhadores e candidatos a postos de trabalho;
o) O Estado deve assumir os riscos de eventuais inconvenientes em virtude da criação de norma protetiva.
Com base nestas informações, revela-se oportuno finalizar o episódio mitológico enquadrado ao objeto de estudo, no início desta investigação. Para tanto, é preciso recordar que as cabras (trabalhadores e candidatos a postos de trabalho) sofriam ataques de convulsão (a proteção aos dados pessoais era desrespeitada) quando aspiravam o ar exalado da gruta (submetiam-se ao tratamento de dados imposto pelo empregador).
Diante de tamanho problema, uma sacerdotisa, chamada Pítia, que vivia no oráculo de Apolo, teve uma idéia brilhante, embora também bastante perigosa. A sacerdotisa Pítia (Estado), utilizando-se dos seus poderes especiais (supremacia do Estado), dispôs-se a aspirar a parte tóxica do ar (criar limites normativos ao tratamento de dados)[65]. Arriscando envenenar-se (sujeitando-se à rejeição social), a sacerdotisa (o Estado) conseguiu filtrar o ar (restringir e controlar o tratamento de dados pessoais).
Dessa sorte, as cabras (trabalhadores e candidatos a postos de trabalho) passaram a respirar e viver normalmente (trabalhar sem violação à proteção dos seus dados pessoais). Por sua vez, a gruta (o empregador) pôde continuar exalando o ar (seguir realizando o tratamento de dados) e se perpetuando no tempo (mantendo sua organização).
Assim, em virtude da coragem de Pítia (Estado) em assumir riscos (criação de limitações normativas ao tratamento de dados), restaurou-se a paz social em Delfos (nas relações de trabalho).
Por fim, revela-se oportuno mencionar o poema Correr riscos, de autoria atribuída a um famoso orador espanhol, nascido no ano de 4 A.C., Sêneca:
“Rir é correr risco de parecer tolo.
Chorar é correr o risco de parecer sentimental.
Estender a mão é correr o risco de se envolver.
Expor seus sentimentos é correr o risco de mostrar seu verdadeiro eu.
Defender seus sonhos e idéias diante da multidão é correr o risco de perder as pessoas.
Amar é correr o risco de não ser correspondido.
Viver é correr o risco de morrer.
Confiar é correr o risco de se decepcionar.
Tentar é correr o risco de fracassar.
Mas os riscos devem ser corridos, porque o maior perigo é não arriscar nada.
Há pessoas que não correm nenhum risco, não fazem nada, não tem nada e não são nada.
Elas podem até evitar sofrimentos e desilusões, mas elas não conseguem nada, não sentem nada, não mudam, não crescem, não amam, não vivem.
Acorrentadas por suas atitudes, elas viram escravas, privam-se de sua liberdade.
Somente a pessoa que corre riscos é livre!” (grifos nossos)
Informações Sobre o Autor
Tatiana de Almeida Granja
Mestra em Direito Informático pela Universidade Complutense de Madrid Espanha com menção honrosa pelo desempenho no curso. Pós-graduada lato sensu em Direito Mercantil pela Universidade de Salamanca Espanha. Especialista em Direito do Estado pelo JusPodivm Brasil. Vencedora do Prêmio Luiz Tarquínio promovido pela Fundação Orlando Gomes Brasil. Vencedora do Prêmio Carlos Coqueijo Costa promovido pela Associação de Magistrados do Trabalho Brasil. Bacharela em Direito pela Universidade Salvador Brasil. Bacharela em Ciência da Computação pela Universidade Federal da Bahia Brasil. Servidora pública da Justiça Federal de Primeiro Grau na Bahia Brasil.