Resumo: O presente trabalho tem como objetivo fazer uma abordagem acerca do dano moral coletivo, trazendo conceitos de relevante importância para o entendimento de um dos danos que estão se tornando mais frequentes perante o judiciário brasileiro. Inicialmente, conceitua-se o dano moral, sem adentrar na incidência do âmbito coletivo. Após, num segundo momento, é estudado o dano moral coletivo propriamente dito, trazendo breves considerações, seus fundamentos normativos e também uma análise dos meios de provas utilizados para que se comprove a efetiva ocorrência desse tipo de dano.[1]
Palavras-chave: Dano. Dano Moral. Dano Moral Coletivo.
Abstract: This paper aims to make an approach about collective moral damage, bringing concepts of importance for the understanding of the damage that is becoming more common before the Brazilian judiciary. Initially conceptualized to moral damages, without entering in the incidence of collective framework. Then, in a second moment, is studying the collective moral damage itself, bringing brief considerations, its normative foundations and also an analysis of the evidence means used to prove that the actual occurrence of this type of damage.
Keywords: Damage. Moral damage. Damage Moral Collective
Sumário: Introdução. 1. Do conceito de dano. 1.1. Do dano moral. 2. Do dano Moral coletivo. 2.1 Conceituação e breves considerações. 2.2 Fundamentos normativos. 2.3 Responsabilidade subjetiva e objetiva. 2.4 Prova. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O instituto do dano surge dentro do contexto da responsabilidade civil, remontando aos primórdios da civilização, onde um mal causado a outrem era reparado com outro dano ao ofensor, era a aplicação da lei de talião ou pena de talião. Tal lei previa a correspondência entre o mal causado e a pena imposta, originando a máxima “olho por olho, dente por dente”.
Desse modo, quando da ocorrência de um dano, sua reparação se dava mais na ideia de vingança, ainda que alguns atribua o nome de justiça.
Com as mudanças na sociedade e, consequentemente, no direito, a disciplina da responsabilidade civil foi evoluindo, surgindo a responsabilidade civil subjetiva, com a previsão de culpa do ofensor, e a objetiva, que independe da existência de culpa.
Ademais, o dano não se restringe somente à esfera física de uma pessoa ou a um bem pertencente a alguém, ele também pode se dar sobre os direitos de personalidade, abatendo-se sobre a esfera moral ou intelectual do indivíduo, é o que se chama “dano moral”. Quando a violação a esses direitos de personalidade se dá em um aspecto individual homogêneo ou de uma determinada coletividade, tem-se o dano moral coletivo. Assim, violada a esfera moral de uma determinada categoria, por exemplo, estamos diante de um dano moral coletivo.
1 DO CONCEITO DE DANO
A reparação do dano, consoante a dogmática clássica do direito civil, era exceção e dependia de prova cabal da vítima de que determinado ilícito culposo lhe causou mal injusto. Grande parte das vezes o ofendido não lograva êxito, já que grandes causadores de danos eram empresas, que, por sua vez, eram protegidas pelo avanço do capitalismo.
Posteriormente, o cenário foi mudando e a necessidade de prova somente se daria em casos que fosse necessária a demonstração de culpa. Antes, a reparação era patrimonial e recaía sobre determinada pessoa, ao contrário do que se está vendo atualmente. Nos dizeres de Farias, Braga Netto e Rosenvald[2]:
“Toda lesão ressarcível era patrimonial, centrando-se no binômio danos emergentes e lucros cessantes. (…) Ao revés, no alvorecer do terceiro milênio presenciamos o espetáculo do “irrompimento de danos”, tanto pela manifestação dos danos extrapatrimoniais, como pela sua coletivização. Em qualquer caso, sobeja enaltecida a função compensatória da responsabilidade civil, na medida em que o sistema jurídico se preocupa menos em identificar um culpado para a causa de um prejuízo econômico e cada vez mais com a constatação da ofensa a um interesse juridicamente protegido pelo ordenamento e a consequente identificação de um responsável, que na medida do possível terá que restituir a vítima”.
Há uma certa discussão de que se deve ter cautela na generalização de situações a que a justiça está atribuindo reparação civil, de modo a prevenir que o instituto do dano seja banalizado. Para que isso seja evitado, necessário será a análise dos critérios que a justiça utilizará para que se verifique, no caso concreto, se será, ou não, entendido como uma espécie de dano.
O conceito de dano inexiste no Código Civil de 2002, tampouco as lesões que deverão ser protegidas pelo Direito. Indubitavelmente, não há como conceituar precisamente sua essência e todas as suas espécies, até porque um novo dano pode surgir com o passar do tempo, sendo imprevisível a sua ocorrência. Assim, se o ordenamento previsse de forma taxativa todos os danos passíveis de reparação, ele estaria eventualmente privando alguém que tivesse um direito seu violado de ser compensado civilmente pela lesão.
O dano pode ter uma dimensão física e outra jurídica. Conforme a concepção naturalista, o dano seria algo sofrido por um bem e que demandaria uma reparação patrimonial, ou seja, só poderia haver reparação caso houvesse dano em um bem certo e tangível. Ao contrário desse cenário, hoje, com os avanços econômicos e tecnológicos e a incerteza de mudanças que o mundo vive, o sistema jurídico confere reparações a diversos tipos de danos, antes esquecidos por serem intangíveis ou incertos. Antônio Lindbergh Montenegro[3] entende que:
“Para que o dano venha a ser sancionado pelo ordenamento jurídico (…) indispensável se faz a presença de dois elementos: um de fato e outro de direito. O primeiro se manifesta no prejuízo e o segundo, na lesão jurídica. É preciso que a vítima demonstre que o prejuízo constitui um fato violador de um interesse jurídico tutelado do qual seja ela o titular.”
Nota-se, dessa forma, que a vaga previsão do artigo 186 do Código Civil foi acertada e ao encontro de um sistema aberto e superior a outros ordenamentos, onde as hipóteses de dano são taxativamente previstas. No Brasil, então, com a inexistência de previsões expressas de dano, é possível que eventual surgimento de lesões possa ser avaliado e, se constatadas, reparadas, dando maior segurança jurídica à sociedade.
Essa abertura da legislação transfere ao operador do direito a responsabilidade de fixar as circunstâncias merecedoras de tutela pelo Estado. Análise complexa e desafiadora, que demanda obstar pretensões que não alberguem lesões a direitos fundamentais ou que, em contraposição ao ofensor, tenham menor prejuízo.
O dano, para ser reparável, deve ser real e previsível, ter um grau de certeza. O dano certo pode ser atual, no quanto foi lesionado o bem – dano emergente –, ou futuro, que é o que a pessoa deixou de ganhar – lucro cessante. Cabe destacar, ainda, a teoria da perda de uma chance, instituto criado pelo Direito Francês e que se consubstancia quando a vítima do dano tem, frustrada por um terceiro, uma expectativa provável de que obterá um certo benefício ou de que poderá evitar uma perda que a esteja ameaçando. Um exemplo citado por Xisto Tiago de Medeiros Neto[4] é o caso do cliente que tem sua pretensão no processo inviabilizada em razão da perda do prazo de recurso pelo seu advogado.
Considerando critérios como os efeitos da lesão no tempo, tem-se que o dano pode ser considerado permanente, quando as lesões físicas são irreversíveis, ou dano continuado, quando a lesão necessita de um certo tempo para ser reparada, como um tratamento específico a que a vítima tenha que se submeter, por exemplo.
O dano pode ser caracterizado ainda como individual, quando uma ou mais pessoas, certas e determinadas, são vítimas de lesão, e coletivo, quando a lesão é contra um universo de pessoas, podendo ser uma categoria de trabalhadores, grupos, classes. Nesse último caso, a lesão será contra direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, também chamados de direitos transindividuais.
Conforme a natureza do interesse lesado, o dano pode atingir a esfera patrimonial da vítima, hipótese em que se chamará dano patrimonial, ou lesar interesses subjetivos da pessoa, aspectos relacionados a sua pessoa, a sua dignidade, onde será chamado dano extrapatrimonial ou moral.
O dano material dá origem ao que se chama perdas e danos, que, por conseguinte, se subdivide em dano emergente e lucro cessante. Esses institutos surgem quando não é possível restituir o bem lesado ao seu estado anterior e quando se consiga atribuir um valor pecuniário a ele. O dano emergente ou damnum emergens ocorre quando há um prejuízo imediato decorrente do dano causado. O exemplo muito citado pela doutrina é o caso de acidente entre veículos, onde o causador do dano deve restituir o veículo no estado em que se encontrava antes do acidente, providenciando seu conserto. No entanto, nem sempre será possível que determinado bem seja consertado e fique como era antes, motivo pelo qual, nessas situações, deverá haver reparação em dinheiro, do modo a compensar a lesão que a vítima sofreu em seu bem. Já os lucros cessantes são os prejuízos causados a uma pessoa em razão de determinado dano, culminando na interrupção de seu trabalho e frustrando os ganhos futuros, podendo ocorrer também com pessoa jurídica. Em resumo, é o que a vítima deixou de ganhar com o ato lesivo. O exemplo mais comum é o taxista que é vítima em acidente com seu carro e é, assim, impedido de trabalhar por algum tempo – lucro cessante – em razão dos reparos que deverão ser feitos no veículo – dano emergente. Aqui, os ganhos são efetivamente interrompidos, posto que a vítima tem como seu meio de sustento o táxi.
Há, ainda, o chamado dano estético, que é aquele causador de alguma alteração física, como uma cicatriz, uma amputação ou qualquer outra lesão que incomode, mesmo que intimamente, a pessoa vitimada. O dano não precisa estar aparente, o incômodo e baixa na autoestima são suficientes para caracterizá-lo. E ainda que ocorra a correção da lesão, a vítima poderá ser, também, indenizada por danos morais em razão do sofrimento pelo qual passou. Após debates entre doutrinadores de que o dano estético estaria contido no dano moral, o Superior Tribunal de Justiça entendeu passível de cumulação as duas espécies de dano[5].
Quanto ao fato gerador do dano, ele pode ser direto, quando há uma relação imediata entre a conduta e a lesão causada por ela, ou indireto ou também chamado de dano por ricochete, quando a lesão for sentida apenas de forma mediata. Para Maria Helena Diniz[6] seria o mesmo que dano por mero reflexo, onde fatos supervenientes agravam o prejuízo diretamente suportado. Exemplo citado por Xisto Tiago[7] é o do contágio e perda de animais do proprietário que compra animais doentes de um terceiro sem conhecer essa circunstância. O dano por ricochete pode, ainda, ser reconhecido quando a lesão afeta também terceiros envolvidos com a vítima, como, por exemplo, danos patrimoniais ou morais. Interessante é o acórdão proferido pelo TRT da 3ª Região, in verbis:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL REFLEXO. REPARABILIDADE. Dano moral indireto, reflexo ou em ricochete é aquele que, sem decorrer direta e imediatamente de certo fato danoso, com este guarda um vínculo de necessariedade, de modo a manter o nexo de causalidade entre a conduta ilícita e o prejuízo. Ainda que sejam distintos os direitos da vítima imediata e da vítima mediata, a causa indireta do prejuízo está intensamente associada à causa direta, tornando perfeitamente viável a pretensão indenizatória. Nesse passo, constatando-se que o acidente de trabalho sofrido pelo marido da reclamante provocou lesão em sua coluna vertebral, limitando-lhe os movimento de braço e perna do lado esquerdo, prejudicou sua locomoção e lhe impôs restrições na vida afetiva, não se pode negar os danos reflexos causados à sua esposa, que sofreu alteração dolorosa e drástica na vida de relação e na vida doméstica, sem falar nas repercussões emocionais de tal situação, tudo compondo um quadro fático que clama por reparação.” (TRT 3ª R./ 2ª T., RO 1019-2007-042-03-00-3, Rel. Des. Sebastião Geraldo de Oliveira, segunda turma, DJEMG 29-07-2009, p. 55)
Em casos de dano moral por ricochete surge o chamado prejuízo de afeição, do francês préjudice d’affection, que é o sofrimento dos familiares e terceiros que sejam próximos em razão dos laços de afeto com a vítima. O problema aqui reside no reconhecimento do dano contra o terceiro que não tem grau de parentesco com a pessoa vitimada, sendo necessária comprovação. Já para parentes próximos, as decisões têm sido no sentido de reconhecerem o dano presumido, sem necessidade de comprovação, nos casos de morte da vítima. O Egrégio Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 491, que vai ao encontro do referido dano:
“É indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado.”
Ainda que o dano moral reflexo ou por ricochete encontre certa resistência por parte da doutrina, ante a dificuldade de ser demonstrado, há que se notar que o Código Civil de 2002 e, inclusive, o anterior previu a hipótese de indenização do filho que dependia da pensão alimentícia da pessoa vítima de homicídio[8].
Não se pode confundir, entretanto, o dano presumido, de onde decorre o dano moral reflexo, com o dano hipotético ou imaginário, sendo necessária a comprovação de um possível dano real. Assim, uma pessoa que esteja passando em uma rua e a poucos metros dela caia um vaso de um prédio não pode alegar que sofreria um dano.
1.1 DO DANO MORAL
Interessante a análise de como o dano moral evoluiu no ordenamento brasileiro. Sua história tem início quando o Brasil ainda era colônia de Portugal e, então, regido pelas Ordenações do Reino, que previram, ainda que timidamente, uma forma de reparação de dano moral. Claudia Regina Bento de Freitas[9] cita a previsão do referido Ordenamento:
“Talvez uma das mais antigas referências à indenização por dano moral, encontrada historicamente no direito brasileiro, está no Título XXIII do Livro V das Ordenações do Reino (1603), que previa a condenação do homem que dormisse com uma mulher virgem e com ela não se casasse, devendo pagar um determinado valor, a título de indenização, como um “dote” para o casamento daquela mulher, a ser arbitrado pelo julgador em função das posses do homem ou de seu pai.”
Já no direito propriamente brasileiro, foi o Código Civil de 1916[10] que inaugurou a previsão, ainda que implícita, do dano moral, trazendo a possibilidade de reparação pelo dano que atingisse a honra ou a imagem de determinada pessoa, embora não tenha se referido, expressamente, ao termo “dano moral”. Nesse diploma, a preocupação ainda tinha ares exclusivamente de dano material, isto é, do prejuízo que um dano à imagem poderia causar a uma empresa, por exemplo.
Após, ao longo do século foram surgindo leis esparsas, que previam um certo tipo de reparação à moral como a Lei nº 5.250, de 1967, responsável por
regular a liberdade de rnanifestação do pensamento e de informação[11].
Com efeito, até pouco tempo atrás, indenizava-se somente o dano patrimonial. No início do reconhecimento do dano moral, a sua indenização somente se dava desde que em conjunto com àquele dano, ou seja, caso houvesse uma lesão ao patrimônio da vítima. Para Farias, Braga Netto e Rosenvald[12] alguns julgados, ainda antes da Constituição de 1988, admitiam o dano moral puro (desacompanhado de um dano material), mas no cálculo da indenização revelava-se, claramente, que se estava indenizando prejuízos materiais, e não morais. Tanto entendia-se que o dano moral não era reparável que o STF, até meados da década de 1960, entendia que “não é admissível que os sofrimentos morais deem lugar à reparação pecuniária, se deles não decorre nenhum dano material”[13].
O que existia, no século passado, era a ideia de que qualquer tipo de dor ou sofrimento não poderia ser equiparado ao dinheiro e, portanto, não havia o porquê de se indenizar uma vítima de dano moral. Os julgados em que eram debatidos o dano moral por morte de ente familiar do qual dependia uma família eram no sentido somente de compensar ou gastos com o funeral, isto é, dano estritamente material[14].
Com efeito, até a Constituição de 1988, a reparação por danos morais só existia quando havia dano material, e não para reparar o sofrimento, mas com um viés também patrimonial. Referido diploma trouxe, então, a previsão expressa de indenização por dano material, moral e à imagem[15], trazendo novos paradigmas para essas situações de sofrimento, antes desamparadas pelo ordenamento brasileiro.
Outras referências, além da prevista na Constituição Feral, são encontradas em leis como o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002[16]. No entanto, não há um conceito legal de dano moral, sendo construído pela doutrina e jurisprudência. Houve um Projeto de Lei do Senado – nº 150/99, que previa o conceito do dano moral, bem como os valores que deveriam ser arbitrados para reparação, dividindo-o em ofensas de natureza leve, média e grave, mas foi arquivado em 2007.
O que há é uma incoerência no sentido do que deve ser abarcado como dano moral. Entendia-se, anterior e erroneamente, como o grau de dor e sofrimento que a vítima do evento danoso teria. A reparação deveria ser feita em compensação ao tantum que essa pessoa sofreu, critério visivelmente subjetivo. Ora, como poderia se mensurar o sofrimento de alguém quando cada um se comporta e reage de diferentes formas a um dano? Isso seria uma valoração da dor, o que, indubitavelmente, não é o objetivo da justiça. Contudo, o início da reparabilidade do dano moral se deu dessa forma, por vezes também criticada pelo fato de que para alguns a reparação da dor em dinheiro contrariaria a moral.
Entende-se que o dano moral não se restringe à mágoa ou sofrimento pelo fato de que, se só assim o considerássemos, indivíduos impedidos de se manifestarem ou pessoas civilmente incapazes não poderiam ser vítimas dessa espécie de dano, como é o caso de crianças e pessoas com determinados tipo de deficiência. Nesse sentido é também o Enunciado nº 444, do Conselho de Justiça Federal, da V Jornada de Direito Civil: “O dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de sentimentos humanos desagradáveis como a dor ou sofrimento”.
A fim de que se verifique a ocorrência do dano moral, não há, então, que se mensurar dor ou qualquer outro sentimento advindo do dano, mas, sim, analisar se os interesses que estão em discussão devem ser protegidos pelo ordenamento jurídico.
O conceito de dano moral tende a ser extremamente subjetivo, sobretudo pela forma como é disposto nas legislações, com cláusulas gerais. A palavra moral tem um caráter um tanto ético e dificulta o entendimento do dano. No entanto, é cediço entre doutrinadores e jurisprudência a íntima relação entre esse conceito e o de dignidade humana. A dignidade humana, por sua vez, pode ser conceituada em uma dimensão negativa – no sentido de se evitar qualquer atentado à estima do ser humano, e positiva – o provimento de um mínimo de direitos e liberdades para que todos possam ter condições de viver e se desenvolver.
Assim, o dano moral acaba por violar a dignidade que é inerente ao homem, e que deve ser visualizada como bem maior da humanidade. Todavia, a argumentação de que o dano moral deve ser atribuído a quaisquer lesões violadoras de interesses transindividuais deve ser ponderada, posto que, embora um conceito de relevante importância, pode ser visto como demasiadamente genérico e subsídio para todo e qualquer tipo de demanda que busque a reparação moral. O cuidado, aqui, é para evitar uma eventual banalização da dignidade humana e, por consequente, do dano moral.
Depreende-se, então, que o dano moral é a lesão a um interesse concreto que fira a dignidade humana e todos os princípios a ela inerentes.
2 DO DANO MORAL COLETIVO
Quando a lesão e o dano ultrapassam a esfera de direitos individuais, atingindo um grupo ou uma coletividade, tem-se o dano moral coletivo, instituto que vem sendo reconhecido cada vez mais pela justiça brasileira, seja no âmbito civil, com a proteção aos direitos do consumidor, no direito ambiental, quando o meio ambiente é agredido ou no direito do trabalho, onde os trabalhadores têm violado seu direito a um trabalho seguro e digno.
2.1 CONCEITUAÇÃO E BREVES CONSIDERAÇÕES
O instituto do dano foi evoluindo ao longo dos anos e com o advento de novas normatizações, que se preocuparam em dispor sobre a proteção que o indivíduo deveria ter frente à lesão dos seus direitos de personalidade, assumiu diversas facetas, deixando de ser reconhecido somente em ofensas a bens patrimoniais e passando a ser reconhecido na forma extrapatrimonial ou moral. Aos poucos, com a massificação dos conflitos e a coletivização do direito, foi-se estendendo a responsabilização a indivíduos que agredissem também os direitos da coletividade.
Consoante explanação de Marcelo Freire Sampaio Costa[17], há um tripé que justifica o dano moral coletivo, quais sejam:
“A dimensão ou projeção coletiva do princípio da dignidade da pessoa humana, a ampliação do conceito de dano moral coletivo envolvendo não apenas a dor psíquica, a coletivização dos direitos ou interesses por intermédio do reconhecimento legislativo dos direitos coletivos em sentido lato.”
Nota-se o já citado princípio da dignidade humana relacionado à ideia do dano moral, porém, aqui, abarcando a dignidade em um sentido mais amplo, em que ela é atingida coletivamente. O segundo ponto diz respeito ao fato da lesão não estar vinculada somente à dor e ao sofrimento da vítima, posto que, se assim fosse, não poderia haver responsabilidade quanto ao dano a pessoas jurídicas. Nesse ponto, ressalta-se a previsão da proteção aos direitos da personalidade da pessoa jurídica e também a edição de Súmula do STJ no mesmo sentido[18].
Com efeito, o sistema jurídico teve que adentrar em circunstâncias antes inexistentes e sanar situações que configurassem lesões a interesses protegidos juridicamente e de natureza extrapatrimonial, e das quais a coletividade era titular, como o meio ambiente, a probidade administrativa, as condições de trabalho, dentre outras, de modo a não restringir a proteção somente do indivíduo, mas também da sociedade em que vive, oferecendo uma dignidade em sua completude.
Importante destacar algumas críticas sofridas pela terminologia “dano moral coletivo”. Alguns autores como Xisto Tiago de Medeiros Neto entendem que o correto deveria ser dano extrapatrimonial coletivo ante a ideia de que para configurar essa espécie de dano não é necessário que haja dor ou sofrimento, sentimentos relacionados ao indivíduo singularmente e que estão intimamente próximos do conceito de moral. Motivo que corrobora com esse entendimento é o fato de poder ser exigida reparação em situação que o nome do consumidor é registrado, irregularmente, em cadastro de inadimplência de serviço de proteção ao crédito, sem necessidade de comprovação de sofrimento pela vítima.
Destarte, deve-se levar em consideração a lesão a direitos transindividuais de que são titulares uma determinada coletividade, afastando a obrigação de se existir um elemento subjetivo para configurar o dano moral coletivo.
2.2 FUNDAMENTOS NORMATIVOS
As normas que disciplinam os direitos coletivos contribuíram para que o dano que os violassem fosse reparado. Ainda que a responsabilização tenha sido mais veementemente aplicada em um passado recente, a legislação que tem como pano de fundo a coletividade existe há mais tempo, como a Lei nº 4.717/1965, que regulou a Ação Popular, a Lei nº 7.347/1985, que disciplinou a Ação Civil Pública, e a Lei nº 8.078/1990, que trouxe o Código de Defesa do Consumidor. No CDC há a previsão de quais são os direitos coletivos, demonstrando sua efetiva preocupação em protegê-los[19]. Por fim, a Lei da Ação Civil Pública consolidou a possibilidade de reparação de danos morais quando a lesão se referisse a direitos ou interesses coletivos.
Com a lei da Ação Popular, datada de 1965, já se evidenciava o desejo de proteção da sociedade em seus interesses coletivos, dispondo o diploma sobre a lesão ao patrimônio público, que englobaria bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. Desse modo, aquele que cometesse um ato que lesasse qualquer desses bens poderia ser responsabilizado por perdas e danos. Como o bem protegido era visivelmente de interesse difuso, depreende-se a preocupação do legislador em oferecer um suporte de proteção para danos que acarretem prejuízos a toda uma coletividade, disciplinando a possibilidade de responsabilização pelo dano causado. Todavia, apesar da autorização da referida lei, não havia condenações por dano moral coletivo quando se lesava o patrimônio público, até porque a Corte Suprema tinha, à época, entendimento diverso sobre a sua caracterização.
Após, com a Constituição Federal, de 1988, os direitos alcançaram outras dimensões, destacando-se os chamados interesses transindividuais e os mecanismos de sua proteção. Houve previsão expressa da possibilidade de reparação na hipótese de dano moral[20]. A própria ação popular teve seu objeto expandido, passando a abrigar, também, lesões ao meio ambiente, à moralidade administrativa e ao patrimônio histórico e cultural, motivo pelo qual denota-se a importância da ação para a tutela do dano moral coletivo.
Seguindo a evolução do ordenamento jurídico, em 1990 foi editada a Lei nº 8.078, o Código de Defesa do Consumidor. Antes da edição dessa lei, a Ação Civil Pública aplicava-se somente a danos contra o meio ambiente, o consumidor e bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Após, o CDC estendeu a possibilidade de aplicação da ACP em qualquer interesse difuso ou coletivo, desde que iniciados por entes legitimados. O código alude, em alguns de seus dispositivos, a efetiva tutela desses direitos, equiparando o consumidor à coletividade de pessoas, e reconhecendo-as como titulares de direitos, bem como assegurou como direito a efetiva proteção e reparação dos danos morais coletivos[21].
Outro normativo que contribuiu para o reconhecimento dos interesses coletivos foi a Lei Complementar nº 75/1993, a lei orgânica do Ministério Público da União, que trouxe a possibilidade de aplicação da ACP a diversos direitos como os relacionados a comunidades indígenas, às minorias étnicas e religiosas e, dentre outros, a interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos[22].
Em 1994, foi editada a Lei nº 8.884, chamada de Lei Antitruste, que dispôs sobre infrações contra a ordem econômica. Esse normativo alterou o disposto no caput do artigo 1º da Lei de Ação Civil Pública, incluindo a nomenclatura dano moral, de modo a não encorajar questionamentos que já existiam por demais. Trouxe, também, no parágrafo único do mesmo artigo, a previsão da titularidade, pela coletividade, dos bens protegidos pela lei.
Evidencia-se, pois, diante de todos os citados normativos, que o instituto do dano moral coletivo é reconhecido e está previsto em diversas normas, não havendo porquê omitir a sua ocorrência. A lesão a interesses da coletividade poderá, então, assumir cunho material e moral, devendo ambas as lesões serem, cumulativamente, reparadas.
2.3 RESPONSABILIDADE SUBJETIVA E OBJETIVA
A responsabilidade no dano moral coletivo independe da prova de culpa, embora ela esteja presente na maioria dos casos, devendo a lesão ser reparada em qualquer situação. Aqui, assemelha-se à responsabilidade objetiva. Noutros termos, basta que se demonstre a conduta antijurídica, o dano causado e o nexo causal entre os dois elementos para que se assegure a reparação devida, não necessitando ser provado a culpa latu sensu do agente.
Vê-se, desse modo, a preocupação em não se prender à existência de culpa para que um dano de caráter coletivo possa ser reparado, pois muitas vezes essa demonstração se mostra difícil e os danos gerados originam diversos efeitos negativos, necessitando de efetiva e imediata reparação, como, por exemplo, danos ambientais.
Ainda que o agente responsável não queira nem assuma o risco de promover o dano, o simples ato ilícito causador da lesão à coletividade dará ensejo a sua responsabilização. Destaca-se, nesse ponto, condutas danosas à esfera trabalhista como, por exemplo, violação a normas de proteção ao meio ambiente do trabalho e o trabalho escravo. Não há que se esperar a prova de culpa do empregador, porquanto o próprio caráter de reprovação do ato e a sua gravidade implica em reparação.
Nota-se, desse modo, que o dano moral coletivo é in re ipsa, isto é, observada uma conduta antijurídica que viola os interesses difusos e coletivos, há a responsabilidade de repará-la. Vislumbra-se, aqui, que não há a necessidade de se demonstrar o prejuízo, pois o dano por si próprio já presume o ato ilícito. No entanto, tal ato está passível de comprovação. Demonstrado a ilicitude do ato praticado, comprovado o dano à coletividade. Outro exemplo são as condutas que lesam o meio ambiente do trabalho, as quais prescindem de comprovação de sofrimento ou qualquer sentimento correlato, mas que atinge uma determinada coletividade, devendo ser reconhecido o dano moral coletivo e, então, reparado.
A exclusão da responsabilidade objetiva caberá somente nos casos previstos em lei, quais sejam, força maior ou caso fortuito, culpa exclusiva da vítima ou fato de terceiro, pois não se deve imputar um dano a quem não contribuiu para que ele acontecesse.
Nos ensinamentos de Enoque Ribeiro dos Santos[23]:
“Assim, o dano moral individual, de natureza subjetiva, fulcra-se no artigo 186 do Código Civil, e o dano moral coletivo, de natureza objetiva, tem por fundamento o parágrafo único do artigo 927 do mesmo Código Civil, de forma que não se exige, no plano fático, que haja necessidade de se perquirir sobre a culpabilidade do agente. Basta que se realize, no plano dos fatos, uma conduta empresarial que vilipendie normas de ordem pública, tais como o não atendimento das Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego no meio ambiente laboral, a não contratação de empregados com necessidades especiais ou portadores de deficiência (art. 93 da Lei nº 8.213/1991), de aprendizes (art. 428 e seguintes da CLT e Decreto nº 9.558/2006), discriminação, trabalho escravo, assédio moral ou sexual, atos antissindicais, fraudes trabalhistas, etc.”
Nesse sentido, não há porque se prender à demonstração de culpa, já que ínsita a aspectos individuais e a relações subjetivas. A coletivização do direito, ao lado do dano que perpassa a esfera individual e atinge toda uma coletividade, é suficiente para que se afaste a responsabilidade subjetiva e se aplique o critério objetivo para as reparações civis.
2.4 PROVA
Como visto anteriormente, basta que se demonstre a ocorrência de uma conduta antijurídica (esta em sentido amplo, abarcando tanto atos ilícitos quanto atos que estejam de acordo com o ordenamento jurídico, mas que causem um dano injusto), um dano e um nexo de causalidade entre eles para que reste configurada a hipótese de dano ensejador de reparação civil.
Não se faz necessária a prova de que o dano causou prejuízo, emergindo o dano diretamente do ato antijurídico praticado. Dessa forma, prescinde de comprovação os efeitos da lesão ao direito, na medida em que não há como se provar, também, sentimento de indignação coletiva, motivo pelo qual a demonstração desses efeitos emocionais é descartada quando se discute a responsabilização.
Alguns estudiosos pontuam a necessidade de o dano moral coletivo ser de grande relevância para ensejar a responsabilização. Para Tadeu Cincurá de Andrade Silva Sampaio[24]:
“É preciso reiterar-se que a caracterização do dano moral coletivo exige que os efeitos (prejudiciais à coletividade) da conduta antijurídica atribuída ao ofensor apresente razoável significância, desbordando das fronteiras da tolerabilidade, situação que será verificada em cada caso específico de pleito reparatório.”
Ainda, nos dizeres de Medeiros Neto[25], “quando provado o fato, que atinge de forma intolerável e significativa direitos coletivos (latu sensu), a ensejar a responsabilização do ofensor, restará evidenciado, em consequência, o dano moral coletivo”.
A comprovação do dano moral coletivo nas relações de trabalho normalmente é feita por meio de testemunhas que presenciaram o fato gerador do dano. Importante, nesse ponto, a atuação de entidades sindicais, pois tendem a possuir maior conhecimento de abusos cometidos e, assim, maior condição de conseguir juntar e apresentar provas. No entanto, o entendimento jurisprudencial atual é no sentido de que o dano moral coletivo verifica-se a partir do próprio fato proibido (dano in re ipsa), sendo inexigível a sua comprovação[26].
CONCLUSÃO
Pelo exposto, nota-se a crescente preocupação do judiciário e da doutrina em se condenar ações e atitudes que possam culminar em ofensas a direitos de personalidade da coletividade, procurando ter uma função punitiva, ao sancionar o agente agressor, de modo que não cometa mais determinado dano, bem como uma função educativa, ao mostrar para a sociedade que condutas danosas não serão toleradas.
O instituto do dano, quando afeta a esfera moral, traz enormes prejuízos ao indivíduo, pois dilacera o que há de mais importante no ser humano, sua dignidade. Ao causar um dano moral em uma categoria de trabalhadores ou a um grupo de pessoas determinadas, o agente acaba por maximizar a dor e o sofrimento, ferindo direitos não só de uma pessoa, mas de toda uma coletividade.
Informações Sobre o Autor
Juliana de Souza Garcia Alves Maia
Acadêmica de Direito na Universidade de Brasília