Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a constitucionalidade da arguição de descumprimento de preceito fundamental em sua modalidade incidental, objeto de questionamento por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2231/DF, pendente de julgamento. A pesquisa foi desenvolvida utilizando o método exploratório bibliográfico e a análise de documentos, com destaque para as decisões do Supremo Tribunal Federal. Este trabalho pretende realizar um estudo sobre a aplicabilidade dessa modalidade de ADPF na defesa de direitos transindividuais, contribuindo para o microssistema processual de tutela coletiva.
Palavras-chave: Arguição de descumprimento de preceito fundamental incidental. Tutela coletiva. Controle de Constitucionalidade.
Abstract: This article aims to examine the constitutionality of the fundamental precept of non-compliance complaint in his incidental mode, questioning object through the direct action of unconstitutionality nº 2231/DF, pending judgment. The research was conducted using the bibliographic exploratory method and analysis of docuents, especially the decisions of the Supreme Court. This work intends to conduct a study on the applicability of this ADPF mode in defense transindividual rights, contributing to the procedural microsystem of collective protection.
Keywords: Allegation of incidental fundamental precept of non-compliance. Collective protection. Constitutionality control.
Sumário: Introdução. 1. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. 1.1. Preceito fundamental. 1.2. Conceito de descumprimento. 1.3. A Arguição incidental. 2. Ação direta de inconstitucionalidade n. 2231/DF. 3 A possível (in)existência de vício de inconstitucionalidade na arguição de descumprimento de preceito fundamental em sua modalidade incidental. 4. A arguição incidental e a defesa de direitos fundamentais coletivos. Considerações finais. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) trata-se de uma espécie de ação do controle de constitucionalidade do direito brasileiro, introduzida no ordenamento jurídico pela Constituição Federal de 1988, originalmente, no parágrafo único do artigo 102, e posteriormente, modificada através da emenda constitucional nº. 3/1993, deslocando o texto do parágrafo único, mas preservando sua redação, para o § 1° do mesmo artigo, e regulamentado pela Lei nº. 9.882/1999.
A ADPF é um instrumento significativo na busca da preservação e consolidação do Estado Democrático de Direito, destinada à proteção de preceitos fundamentais dispostos no Texto Constitucional. Embora, tardiamente, regulamentada em razão da “retaliação” sofrida pelos vetos presidenciais, finalmente em 1999, com o advento da lei específica sobre seu procedimento, foi concedida a possibilidade de manejo desta nova ação constitucional que, tanto no campo doutrinário como jurisprudencial, apresenta duas modalidades (o que a faz ser considerada uma ação de controle sui generis): a ação autônoma e a ação incidental, ambas aplicáveis no controle concentrado de constitucionalidade.
Em junho de 2000, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil promoveu a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº. 2231/DF, questionando a constitucionalidade da Lei nº. 9.882/1999, em especial, sobre a ADPF-incidental. O relator da ADIn, Ministro Néri da Silveira, em dezembro de 2011, votou pelo deferimento parcial de liminar para suspender a eficácia de dispositivos da Lei nº. 9.882/1999, relacionados com a arguição de descumprimento de preceito fundamental em sua modalidade incidental, após foi dado vista dos autos ao Min. Sepúlveda Pertence, sendo que, desde então a liminar se encontra suspensa em decorrência do pedido de vista.
A ADIn nº. 2231/DF visa declarar, sobretudo, a inconstitucionalidade da ADPF-incidental, não apenas em relação a uma possível falha no processo legislativo de elaboração da lei, mas também em relação a própria possibilidade de aplicação. O presente trabalho busca realizar uma análise, doutrinária e jurisprudencial, sobre a existência desta modalidade diferenciada de ação de constitucionalidade e sua aplicabilidade, como um instrumento a mais, na defesa de direitos transindividuais.
1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
Inicialmente, insta realizar breves apontamentos sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental como instrumento de controle de constitucionalidade. De acordo com André Ramos Tavares:
“a arguição é ação judicial, de competência originária do Supremo Tribunal Federal, que desencadeia o denominado processo objetivo, cujo fundamento é o descumprimento de preceito constitucional que consagra valores basilares do Direito pátrio, descumprimento este perpetrado por ato de natureza estatal”[1].
Prevista na Constituição Federal de 1988 no artigo 102, § 1º, redação dada pela EC nº. 3/1993, a arguição de descumprimento de preceito fundamental é uma inovação do direito brasileiro, não encontrando no direito comparado nenhum outro instrumento similar[2].
De acordo com o dispositivo acima citado “a arguição de descumprimento de preceito fundamental desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. Contudo, apenas no ano de 1997 foi nomeada uma comissão de juristas presidida pelo constitucionalista Celso Ribeiro Bastos para elaborar um projeto de lei regulamentando o uso desta ação constitucional. Em dezembro do mesmo ano foi publicada a Lei nº. 9.882/99, com base no projeto citado.
Com a regulamentação dessa ação constitucional, o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro passou por alterações significativas, corrigindo toda uma história jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal em relação a ação indireta de constitucionalidade, assim, surgiu um instrumento de proteção especial dos direitos fundamentais dentro do próprio controle de constitucionalidade, podendo ser realizado um amplo controle abstrato de constitucionalidade, como, também, possibilitando um controle concentrado-incidental de constitucionalidade[3].
A ADPF-incidental é uma ação constitucional sui generis, justamente por conceder a possibilidade de se desenvolver, ora como controle abstrato, ora como controle concentrado-incidental, e isso é possível porque a Lei nº. 9882/99, ao regulamentar sobre a arguição, fez com que a mesma pudesse se desenvolver por meio de dois ritos distintos, permitindo, deste modo, que essa ação de controle e constitucionalidade apresentasse duas modalidades: a arguição autônoma e a arguição incidental.
“A Lei n. 9.882/99, ao regular o § 1° do art. 102 da Constituição Federal, fixou dois ritos distintos para a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Estabeleceu, assim (a) um processo de natureza objetiva, no qual a arguição é proposta diretamente no Supremo Tribunal Federal, independentemente da existência de qualquer controvérsia, para a defesa exclusivamente objetiva dos preceitos fundamentais ameaçados ou lesados por qualquer ato do poder público e (b) um processo de natureza subjetivo-objetiva, no qual a arguição é proposta diretamente no Supremo Tribunal Federal, em razão de uma controvérsia constitucional relevante, em discussão perante qualquer juízo ou tribunal, sobre a aplicação de lei ou ato do poder público questionado em face de algum preceito fundamental”[4].
Ambas as modalidades podem ser extraídas na leitura do artigo 1°, caput, § único e inciso I da Lei nº. 9.882/1999. Com a arguição autônoma, busca-se a proteção de preceitos fundamentais por meio de um processo objetivo, ou seja, assim como a ação indireta de inconstitucionalidade, a arguição autônoma visa a tutela da ordem jurídica constitucional, em um claro controle abstrato de constitucionalidade. Na arguição incidental, a proteção de um preceito fundamental origina de um processo subjetivo, sendo que a sua propositura – como incidente – será movido perante o Supremo Tribunal Federal, que passa a analisar a questão por meio de um processo objetivo, ou seja, controle concentrado – para proteger toda uma ordem constitucional.
Todavia, antes mesmo de melhor desenvolver a arguição de descumprimento de preceito fundamental em sua modalidade incidental, se faz necessário discorrer sobre conceitos essenciais que integram esse instituto de controle de constitucionalidade.
1.1. PRECEITO FUNDAMENTAL
Pela redação do artigo 1°, caput, da Lei nº. 9882/1999, a ADPF, em ambas as modalidades, proposta perante o Supremo Tribunal Federal, “terá por objetivo evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”.
O instituto foi criado justamente para tutelar a proteção aos preceitos fundamentais, trata-se, portanto, do parâmetro adotado para a arguição, distanciando da “regra geral” das demais medidas que compõem o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, evidenciando um parâmetro singular e não a Constituição como um todo.
Mas, o que seria um preceito fundamental?
Segundo a Carta Magna de 1988, em seu artigo 102, § 1°: “preceito fundamental decorre da Constituição”. Em uma primeira leitura entende-se que será considerado preceito fundamental somente o que for apontado pela Constituição Federal como tal, todavia, essa interpretação resultaria na própria ineficácia do instituto de controle de constitucionalidade, afinal, estaria em sentido contrário a ciência social aplicada que é o Direito ao considerar que tal figura só seria aquela inserida pelo legislador constituinte, ignorando a realidade fática que pode se encaixar como um preceito fundamental.
Assim, para se alcançar a ideia de um preceito fundamental, inicialmente, deve ser compreendido que “fundamental” é todo preceito previsto no próprio texto constitucional ou que estão conectados à Carta Maior, ou seja, as normas constitucionais materiais[5].
Alinhado a essa ideia de que preceito fundamental pode ser encontrado de forma implícita e fora do texto constitucional, ao se retornar a teoria geral do direito constitucional, entende-se que a Constituição é o documento que inaugura uma ordem jurídica de um determinado Estado, positivando o direito e estruturando toda a máquina estatal, sendo alcunhada de Carta Magna, Texto Maior, Lei Fundamental e dentre outros.
Desta forma, a Constituição é uma norma fundamental, sendo o conjunto de seus dispositivos um núcleo essencial para o direito pátrio, e assim, em decorrência de princípios interpretativos como da unicidade da Constituição, as normas fundamentais que estão inseridas em seu texto não possuem uma hierarquia entre si, devendo sempre ser interpretadas de modo que não agrida a unidade do texto constitucional, logo, questiona-se, todas as suas normas materiais e formais seriam consideradas preceitos fundamentais?
Como se sabe, a Constituição é constituída por um conjunto de regras e princípios e, etimologicamente, o próprio significado de preceito está relacionado com a norma[6], conclui-se, portanto, que a Constituição é um preceito de ordem que compõe de regras e princípios.
Para se alcançar a ideia de que esse grande preceito, que é a Constituição, possui certas regras e princípios considerados fundamentais, sem ferir a unicidade de seu conjunto, deve-se compreender a mesma como uma ordem de valores[7].
Em respeito a unicidade da Constituição, as normas (lembrando se tratar de regras e princípios) estão localizadas no mesmo plano hierárquico normativo (princípios interpretativos da unicidade da Constituição e da supremacia constitucional), mas, mesmo assim, elas possuem, entre si, uma hierarquia axiológica que leva a conclusão que existem normas constitucionais que consagram em si valores superiores a outras, valores fundamentais que necessitam de uma proteção a mais[8].
Portanto, preceito fundamental é toda norma constitucional que carrega em si um valor superior que o torna essencial na preservação da ordem jurídica pátria. Entretanto, nem a Constituição Federal e nem a Lei nº. 9882/1999 apresentam um rol do que seriam os preceitos fundamentais, cabendo, assim, a doutrina e ao Supremo Tribunal Federal, órgão competente para julgamento da arguição, determinar o que pode ser considerado um preceito fundamental.
Como aponta o professor Dirley da Cunha Junior[9], doutrina e o STF identificam, por exemplo, como preceitos fundamentais na Constituição Federal: a) artigos 1° ao 4°; b) artigo 5°, observando também seus §§ 2° e 3°; c) artigo 34, inciso VII, e; d) artigo 60, § 4° e incisos I a IV.
1.2. CONCEITO DE DESCUMPRIMENTO
O conceito de descumprimento na ADPF deve-se entender como um ato de não cumprimento, não execução de um comando que se torna inconstitucional, uma vez que tal ato resulta em uma violação a um preceito fundamental.
“Observa-se que o instituto tem por fim verificar a contrariedade, a incompatibilidade à Constituição Federal, ou seja, o seu descumprimento (uma inconstitucionalidade). O objetivo do instituto, pelo que se retira da sua própria denominação, é a possibilidade de o STF eliminar, declarar inconstitucional ato do Poder Público que desrespeite a Constituição, garantindo a supremacia desta, não somente quando em contrate com ato normativo, mas também, pela leitura da Lei 9.882/99, em relação a atos concretos do Poder Público”[10].
O descumprimento deverá resultar de ato do Poder Público, interpretado em um sentido amplo, já que, diferentemente de outras medidas de controle de constitucionalidade como a ADIN e a ADC, o objeto questionado não atinge diretamente a Constituição, mas indiretamente, pois não será, necessariamente, um ato normativo que violará um preceito fundamental, como é o objeto da ADIN, por exemplo, podendo ser outros atos praticados pelo Poder Público, como um ato discricionário da Administração Pública e até uma decisão judicial. A Lei nº. 9.882/1999 não faz restrições a qual ato do Poder Público[11] pode violar um preceito fundamental, normativo ou não-normativo, a exigência é que esse ato, obrigatoriamente, viole um preceito fundamental.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que não será todo ato praticado pelo Poder Público que será objeto de ADPF, enfraquecendo, assim, a própria ação constitucional, limitando seu objeto, a saber: a) atos normativos negociais (STF, ADIn 2.231-MC/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 5-12-2001); b) atos políticos (STF, ADPF 1-QO/RJ, Rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 3-2-2000); c) atos legislativos em fase de formação (STF, Pleno, AgRg em ADPF 43-2/DF, Rel. Min. Carlos Britto, DJ, 1, de 13-2-2004, p.9); d) atos normativos secundários (STF, ADPF 41-6, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão de 24-3-2003)[12].
1.3. A ARGUIÇÃO INCIDENTAL
Cabe registrar uma breve síntese do procedimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, ação prevista na Lei nº. 9882/1999. Conforme já apontado, a Lei nº. 9882/1999 inovou ao conceber na ADPF duas modalidades, uma que se desenvolve por meio de um controle abstrato – arguição autônoma – e outra que se desenvolve em um controle concentrado-incidental – arguição incidental. Sendo esta o objeto de estudo, passa-se a uma sucinta análise de seu procedimento.
Ao se afirmar que a arguição autônoma é uma ação de controle abstrato, aponta-se que a mesma se desenvolve enquanto um processo objetivo, sendo proposta diretamente perante o Supremo Tribunal Federal e seguindo a mesma sistemática das demais ações de controle concentrado de constitucionalidade (ADIn, ADC, ADO), tanto que se aplica perfeitamente a Lei nº. 9868/1999 para essas outras ações constitucionais nos casos de omissão.
A arguição incidental é uma modalidade de ADPF que não perde a característica de ainda estar no sistema de controle concentrado de constitucionalidade, todavia, ela inicia em um processo subjetivo e a questão constitucional levantada, acerca do preceito fundamental, é levada para apreciação perante o Supremo Tribunal Federal (guardião da Constituição).
O respaldo legal é encontrado nos artigos 1°, § único, inciso I, artigo 2°, § 1° e artigo 5°, § 3° da Lei nº. 9882/1999. Sobre o respaldo legal, vale transcrever o teor do artigo 1°:
“Art. 1° A arguição prevista no § 1° do artigo 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou repara lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também arguição de descumprimento de preceito fundamental: I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.
Parcela significativa da doutrina[13] realiza uma interpretação restritiva sobre as hipóteses de cabimento da ADPF-incidental, limitando seu objeto pela lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anteriores à Constituição Federal de 1988, desde que o autor da ação demonstre controvérsia constitucional sobre tais atos, posicionamento este não defendido neste trabalho, como se abordará em momento oportuno.
2. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 2231/DF
Após a publicação da Lei nº. 9882/99, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil suscitou a inconstitucionalidade da arguição de descumprimento de preceito fundamental incidental perante o Supremo Tribunal Federal por meio da ADIn nº. 2231/DF.
A ADIn questiona os dispositivos da Lei nº. 9882/99, em especial, o artigo 1°, parágrafo único, artigo 5°, § 3°, artigo 10, caput e § 3° e artigo 11, ou seja, os dispositivos que tratam sobre a modalidade incidental da arguição de descumprimento de preceito fundamental.
O Ministro Néri da Silveira, relator da ação, deferiu em parte a medida liminar, com relação ao artigo 1°, para excluir, da sua aplicação, controvérsia constitucional concretamente já posta em juízo, bem como deferindo, na totalidade, a liminar, para suspender o § 3° do artigo 5°, sob a fundamentação de que não cabia a legislador ordinário ter criado uma nova modalidade de ADPF (incidental), atribuição esta que deveria ser cumprida pelo legislador constituinte. Após, o Ministro Sepúlveda Pertence, pediu vista dos autos, o que suspendeu o julgamento final da medida liminar[14].
Nesse sentido, verifica-se, atualmente, que não é mais possível o manejo da arguição de descumprimento de preceito fundamental em sua modalidade incidental até desfecho do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.
3. A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL EM SUA MODALIDADE INCIDENTAL SERIA (IN)CONSTITUCIONAL?
Em decorrência da liminar proferida na ADIn 2231/DF, está suspensa a utilização da arguição de descumprimento de preceito fundamental em sua modalidade incidental, para o relator Min. Néri da Silveira, essa modalidade de arguição carece de previsão constitucional razão pela qual não poderia estar regulamentada na Lei nº. 9882/1999. Surge assim uma polêmica na doutrina e no Supremo Tribunal Federal em discutir se os dispositivos da lei questionada seriam, efetivamente, inconstitucionais.
A primeira corrente, defende a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei nº. 9882/1999, uma vez que ampliou as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal, cita-se, dentre outros, Alexandre de Moraes[15] e a Ministra Ellen Gracie[16].
A segunda corrente, defende a constitucionalidade dos dispositivos da Lei nº. 9882/1999, no sentido de que não houve a ampliação das competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal por parte do legislador ordinário, uma vez que a própria Constituição Federal permite ao legislador ordinário a regulamentação de um incidente processual de inconstitucionalidade, mantendo a arguição de descumprimento de preceito fundamental uma só ação de controle de constitucionalidade, mas desenvolvendo-se por meio de dois ritos distintos, cita-se, dentre outros, Uadi Lammêgo Bulos[17], Dirley da Cunha Junior[18], André Ramos Tavares[19] e Ministro Carlos Britto[20].
Este trabalho defende o posicionamento da segunda corrente, porque entendemos que a modalidade incidental não se trata de uma ampliação das competências constitucionais da Corte Suprema, mas um procedimento previsto dentro do próprio instituto da ADPF, que visa a proteção dos preceitos fundamentais, sendo possível seu desenvolvimento de uma forma incidental, assim como é no controle difuso pelo próprio incidente de inconstitucionalidade, com isso, o objeto da arguição incidental se torna mais restrito, com a necessidade de comprovação da controvérsia constitucional, mas ainda sem perder seu objetivo central que é a proteção do preceito fundamental dentro de um controle concentrado de constitucionalidade.
Ademais, caminhar pela inconstitucionalidade da arguição incidental resultaria em um enfraquecimento da própria arguição de descumprimento de preceito fundamental, instrumento que representa uma importante proteção ao Estado Democrático de Direito.
4. A ARGUIÇÃO INCIDENTAL E A DEFESA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS COLETIVOS
Conforme proposto para o desenvolvimento deste trabalho, busca-se apresentar a arguição de descumprimento de preceito fundamental em sua modalidade incidental como um instrumento a mais no processo coletivo brasileiro, ou seja, uma ação constitucional na defesa de direitos difusos e coletivos.
O ponto de partida para entender a ADPF-incidental como um instrumento de tutela coletiva é visualizar se medidas de sua natureza – ações de controle de constitucionalidade – são compatíveis com o microssistema de processo coletivo brasileiro, ademais, ao se tratar desta, costuma-se referir a medidas como ação civil pública, ação popular, mandado de segurança, ou seja, processos subjetivos.
Para Gregório Assagra de Almeida[21], em uma releitura ao direito material e processual coletivo, analisa que o direito coletivo brasileiro possui dificuldades de ser aferido em uma análise abstrata e de forma genérica, sendo mais adequado determinar se certo direito será de dimensão coletiva quando visto no plano concreto, ou seja, se determinada situação é de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, entretanto, baseado nas lições de José Afonso da Silva, os direitos coletivos estão inseridos no plano da teoria dos direitos e garantias constitucionais fundamentais, assim, impõe uma interpretação aberta e ampliativa daqueles e por estarem previstas dentro da Constituição Federal, são parte de uma nova teoria de direitos e garantias fundamentais, a própria proteção abstrata e concentrada da Carta Magna, se legitima por um inquestionável interesse coletivo objetivo legítimo, conforme explica Almeida:
“Para a identificação do Direito, não é suficiente a análise da natureza da norma jurídica ou da relação jurídica ou a sua utilidade. É determinante que também sejam analisados o plano da titularidade do Direito e a forma de sua proteção e efetivação material. Com base nesses dois últimos elementos, conclui-se que, ou a norma jurídica se destina à proteção ou efetivação de Direito ou Interesse Individual, ou a norma jurídica visa à proteção ou efetivação de Direito ou Interesse Coletivo. Estes dois tipos de normas compõem o sistema jurídico constitucional. Mesmo em relação a divisão das normas constitucionais em normas jurídicas constitucionais materiais e normas jurídicas constitucionais processuais, observa-se que ambas as categorias das referidas normas voltam-se para a proteção e efetivação, ora de Direito Individual, ora de Direito Coletivo. Contudo, no plano abstrato, todas essas normas do direito positivo constitucional são de interesse coletivo (difuso) de toda a coletividade. É exatamente este interesse que apoia e justifica o controle abstrato e concentrado da constitucionalidade, interesse esse denominado de interesse coletivo objetivo legítimo”[22].
Seguindo a lógica defendida acima e conciliando com o estudo da arguição de descumprimento de preceito fundamental, não restam dúvidas ao se afirmar, portanto, que as normas constitucionais que tratam de interesses difusos, coletivos e homogêneos, por exemplo, o artigo 225 da Constituição, podem ser interpretadas como preceitos fundamentais[23].
Para Almeida, o direito processual coletivo brasileiro, no plano do seu objeto material, divide-se em especial e comum. O direito processual coletivo comum tem como objeto os direitos coletivos subjetivos, fazendo parte dessa divisão as ações coletivas. Já o direito processual coletivo especial compreende a proteção do interesse coletivo objetivo legítimo, voltada ao sistema de controle de constitucionalidade: “a finalidade precípua do direito processual coletivo especial é a proteção, em abstrato, de forma potencializada, da Constituição, aqui englobando, especialmente, o Estado Democrático de Direito e os direitos e as garantias constitucionais fundamentais”[24].
Nesta linha de pensamento, a arguição incidental prevista na Lei nº. 9882/1999 seria considerada um instrumento a mais no microssistema de processo coletivo brasileiro. Mas, fundamentar que a arguição incidental seja um instrumento a mais na tutela coletiva não se limita a presente classificação doutrinária.
Como já exposto, a arguição de descumprimento de preceito fundamental em sua modalidade incidental surge em um processo subjetivo em curso e, como um incidente, passa a apreciação por meio de um processo objetivo perante o Supremo Tribunal Federal.
Por mais que a doutrina pratique uma interpretação restritiva ao artigo 1°, § único, inciso I, sobre as hipóteses de cabimento da arguição incidental, entende-se que a arguição incidental não se limita apenas a atos normativos, obrigando uma interpretação conforme a Constituição, ampliando seu objeto para os demais atos do Poder Público, conforme previsão no caput do mesmo artigo, assim, entende Mandelli Junior[25] e Hennig Leal e Konzen Stein:
“Faz-se mister uma interpretação conforme a Constituição no sentido de se desfazerem os mal-entendidos sobre o inciso I do parágrafo único do art. 1º da Lei da ADPF. Primeiro, deve-se ter em conta que tanto o caput, quanto o parágrafo do citado artigo, são informadores de uma mesma norma, isto é, “não há restrição do cabimento de uma e outra no art. 1º da Lei nº 9.882/99, como se o caput identificasse uma e o parágrafo único outra”. Caso contrário, estar-se-ia limitando os objetos sindicáveis de cada modalidade de arguição de descumprimento de preceito fundamental”[26].
Ademais, a lei regulamentadora não veio introduzir uma nova ação ou a ampliação da competência constitucional do STF, mas apresentar dois procedimentos em relação a ADPF, a limitação do objeto contribuiria para o fim do próprio instituto.
No projeto da Lei nº. 9882/1999, o artigo 2°, inciso II previa que “qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público” teria legitimidade para propor a arguição incidental. Com essa previsão, qualquer pessoa que sofresse violação de um preceito fundamental poderia no curso de um processo judicial (processo subjetivo), propor arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal, que comunicaria a autoridade violadora dos atos questionados e fixaria condições de modo de interpretação e aplicação de preceito fundamental (processo objetivo).
Em uma mesma relação jurídica que se desenvolveria, inicialmente, em um processo subjetivo, por exemplo, uma ação anulatória de débito fiscal, seria formada uma proteção a preceito fundamental pelo STF, por meio de um incidente que tramitaria diretamente à Corte, como forma de garantia da ordem constitucional, a qual julgaria uma questão controversa fixando a interpretação de determinado preceito fundamental que teria efeito erga omnes e vinculante, facilitando a proteção dos interesses da coletividade diante da situação abstrata (o ato do Poder Público violador ao preceito fundamental), além de fortalecer a própria Constituição, estabelecendo ou mantendo determinada proteção a um preceito fundamental (norma constitucional axiológica). A ampliação do rol dos legitimados da ADPF, não se restringindo a apenas do artigo 103 da Constituição Federal, além dessa acessibilidade de qualquer lesado socorrer-se perante a Corte Suprema concederia a arguição incidental essa característica de ser um instrumento processual que perfeitamente se insere no sistema de tutela coletiva.
Percebe-se assim que a situação fática ainda seria preservada para apreciação diante do processo subjetivo (relembrando a possibilidade de suspensão dos processos e efeitos das decisões que apresentam relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento incidental – artigo 5°, § 3°[27]), discutindo sobre a violação (ou não) e nova interpretação em relação a determinado preceito fundamental (interesse coletivo objetivo legítimo)[28], assim, ainda discutiria a anulação de um débito fiscal, mas determinada questão controversa que surgiu no decorrer do processo subjetivo foi sanada, garantindo uma proteção não apenas as partes do processo sobre algum direito constitucional violado, mas também a toda a coletividade em relação ao preceito fundamental discutido.
Entretanto, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, mesmo surgindo como um instrumento significativo e inovador, desde o início vem sofrendo restrições no ordenamento jurídico. Não suficiente a própria lei conceder o caráter subsidiário, a impugnação da inconstitucionalidade de uma de suas modalidades, houve também, o veto presidencial em relação ao artigo 2°, inciso II da lei n. 9882/1999, restringindo o rol dos legitimados apenas para os mesmo do artigo 103 da Constituição Federal.
Se não fosse concedida a liminar na ADIn 2231/DF, a arguição incidental só seria possível em duas situações: a) se um dos legitimados ativos (artigo 2°, inciso I) fosse parte no processo subjetivo, ou; b) na hipótese do artigo 2°, § 1°, em que o interessado solicitaria ao Procurador-Geral da República a propositura da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Mesmo restringindo, de forma absurda, o acesso dessa modalidade de arguição, ainda se teria um instrumento em que seria garantida a proteção de direitos e garantias fundamentais interpretados como preceitos fundamentais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A arguição de descumprimento de preceito fundamental incidental foi uma inovação no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, introduzida pela Constituição Federal de 1988, todavia, um instituto interpretado pela doutrina como um dos mais significativos acabou sofrendo o desprestígio do próprio Poder Público.
Inicialmente pela falta de regulamentação, que só foi sanada onze anos depois de promulgada a Carta Magna que previa essa nova ação constitucional. Não suficiente essa delonga em regulamentar essa ação, o projeto de lei da ADPF sofreu vetos pelo Presidente da República que afetaram o que podia ser uma nova página no controle de constitucionalidade brasileiro, vetos voltados ao incompreendido instituto da ADPF-incidental, sendo que os dispositivos restantes dessa modalidade acabaram sendo objeto da ADIn n. 2231/DF para retirar, por completo, a ADPF-incidental do ordenamento jurídico pátrio.
Se for seguida a tendência do próprio Supremo Tribunal Federal, não apenas na própria ADIn nº. 2231/DF como em sua própria jurisprudência, está claro que a Corte não irá manter essa modalidade de arguição no direito brasileiro, o que demonstra um visível retrocesso, ao vedar um instituto para o qual não houve sequer a possibilidade de demonstrar sua aplicabilidade na garantia dos direitos transindividuais.
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Notas:
Informações Sobre os Autores
Vinicius de Almeida Gonçalves
Advogado. Bacharel em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN) e atualmente pós graduando lato sensu em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade da Grande Dourados (UFGD).
Jatene da Costa Matos
Advogado. Bacharel em Direito pela UEMS especialista em Direitos Humanos e Cidadania pela UFGD em Gestão Pública pela UEMS e em Metodologia do Ensino Superior pela UNIGRAN. Mestre em Sociologia pela UFGD