Resumo: O presente trabalho científico, ao se utilizar construções doutrinárias, jurisprudenciais e normativas, tem por objetivo apresentar as delimitações jurídicas acerca da aplicação da Teoria do Domínio do Fato, rechaçando mitos e aplicações equivocadas dessa doutrina, a qual vem sendo cada vez mais aceita e utilizada nos tribunais superiores. Com a finalidade de se aplicar uma punição mais justa àqueles agentes que, ao se utilizarem de outrem para cometer crimes, distanciam-se do núcleo do tipo penal incriminador, necessário se faz a complementação do conceito restritivo de autor do crime. Dessa forma, ao aplicar um critério objetivo-subjetivo, a Teoria do Domínio do Fato surge com o desígnio de dar uma solução mais adequada aos delitos envolvendo organizações criminosas, ditaduras, grupos terroristas etc.
Palavras-chave: Concurso de pessoas. Autoria. Participação. Teoria do Domínio do Fato.
Abstract: This scientific work, using doctrinal, jurisprudential and normative constructions, aims to present the legal boundaries on the implementation of the Theory of Final Domain of Fact, rejecting myths and erroneous application of this doctrine, which has been increasingly accepted and used in the higher courts. With the end of applying a more just punishment to those agents that use of others to commit crimes, distanced from the core incriminating criminal type, necessary to make the completion of the restrictive concept of the offender. So, by applying an objective-subjective criterion, the theory of final domain of fact comes up with the design to give a more appropriate solution to offenses involving criminal organizations, dictatorships, terrorists etc.
Keywords: People Contest. Authorship. Participation. Theory of Final Domain of Fact.
Sumário: Introdução. 1. Da Autoria e Participação. 1.1. Da Autoria. 1.2. Da Participação. 2. Modalidades de autoria. 2.1. Autoria imediata ou direta. 2.2. Autoria mediata ou indireta. 2.3. Autoria por convicção. 2.4. Autoria colateral ou paralela. 2.5. Autoria incerta ou autoria colateral incerta. 2.6. Autoria de escritório ou aparatos organizados de poder. 2.7. Autoria intelectual. 2.8. Autoria por determinação. 2.9. Coautoria. 3. Da teoria do domínio do fato e da sua aplicação no direito penal brasileiro. 3.1. Introdução. 3.2. Teoria do Domínio do Fato: Conceito de Autor. 3.3. Manifestações concretas da Teoria do Domínio do Fato. 3.3.1. Domínio da ação: autoria imediata. 3.3.2. Domínio da vontade: autoria mediata. 3.3.3. Domínio funcional do fato: coautoria. 3.4. Afastamento da teoria do domínio do fato em algumas espécies de crimes. 3.4.1. Crimes Culposos. 3.4.2. Crimes omissivos. 3.4.3. Crimes de mão própria. 3.5. Domínio do fato na lei do crime organizado – lei nº 12.850/2013. 3.6. Ação Penal 470: o caso do “mensalão”. Conclusão. Referências.
Introdução
O ser humano, como forte expressão da natureza coletivo-social, tende a atrelar-se a outros indivíduos para, através da união de esforços, ultrapassar os limites de sua individualidade, e garantir a concretização de seus desígnios específicos, sejam estes lícitos ou ilícitos.
Com a análise da legislação pátria, observa-se que os crimes tipificados pelo Código Penal, em regra, não carecem da cooperação de duas ou mais pessoas para se atingir sua consumação. Entretanto, frequentemente, a infração penal é realizada por sujeitos mancomunados (liame subjetivo), que, em unidade de desígnio, lesam um bem jurídico tutelado.
Por inúmeros motivos, seja para garantir a efetivação do crime, seja para asseverar a impunidade dos autores ou ainda para conjugar interesses comuns em uma organização criminosa, podem várias agentes cooperar para o cometimento de uma infração penal. Configura-se, dessa forma, o chamado concurso de pessoas, instituto também conhecido por concurso de delinquentes (concursus delinquentium) ou co-delinquência.
Nesse diapasão, o hermeneuta, diante das normas relativas ao concurso de pessoas, haja vista a fecundidade do tema em questão, encontra-se em meio a infindáveis divergências doutrinas e jurisprudenciais. Tendo em conta as constantes transformações sociais, as ciências jurídicas devem evoluir para acompanhar o desenvolvimento da sociedade e tipificar as variadas condutas que lesionem bens jurídicos. No caminho dessa evolução jurídico-social, surge no direito alemão a teoria do domínio do fato. Essa teoria visa uma punição mais justa para aqueles sujeitos que se utilizam de terceiros para cometer crimes e, assim, distanciam-se do núcleo do tipo penal incriminador.
Para se afirmar o Direito Penal garantidor, e a fim de evitar a tutela penal insuficiente, torna-se imprescindível o estudo da teoria do domínio do fato, que passa a aferir a conduta do indivíduo não apenas sob o aspecto subjetivo, mas também visualizando sua contribuição objetiva. Assim, ao adotar um critério objetivo-subjetivo, a doutrina do Domínio do Fato retifica diversos equívocos que ocorreriam de uma simplória interpretação literal da lei penal. Deste modo, aporta objetivando distinguir com nitidez autor e partícipe, acolhendo, no entanto, a figura da autoria indireta (mediata).
Relevante destacar, outrossim, que a teoria do Domínio do Fato não autoriza a dispensa da prova da culpa, nem tolera qualquer condenação baseado apenas em presunções. Por conseguinte, para uma satisfatória aplicação prática dessa doutrina, necessário realizar sua desmistificação, adentrando acerca do conceito e das diversas modalidades de autoria e participação e suas classificações.
1.1. Da Autoria e Participação
1.1.1 Da Autoria
O conceito de autoria, diante de suas diversas concepções, pode abarcar todos os agentes na infração penal, quando se trata de um sistema unitário de autor, ou pode se limitar à conduta dos intervenientes principais, ao adotar um sistema diferenciador de autor.
Portanto, para a adequada compreensão deste trabalho, explicitar a definição de “autor” (possibilitando distingui-lo do “partícipe”) é imprescindível. Visto não ter o Código Penal trazido os conceitos formais de autor e partícipe, tais definições ficaram a cargo da doutrina. Observa-se, no entanto, pelo vasto número de teorias criadas ao longo do tempo, que o tema nada tem de pacificado.
As diversas teorias reúnem-se em dois grupos: unitárias (não há diferenciação entre autor e partícipe) e diferenciadoras (diferenciam autor de partícipe).
1.1.1.1 Teoria subjetiva ou unitária
Pertencente ao grupo das teorias unitárias, essa teoria, não confere distinção entre autor e partícipe, considera-se autor todo aquele que, de algum modo, contribuiu para a concretização do resultado.
Fernando Capez explana:
“Todos são considerados autores, não existindo a figura do partícipe. Autor é todo e qualquer causador do resultado típico, sem distinção. Arrima-se na teoria da conditio sine qua non, pois, segundo esta, qualquer contribuição, maior ou menor, para o resultado é considerada sua causa. É adotado na Itália, cujo Código Penal, em seu art. 110, pune do mesmo modo todos aqueles que concorrerem para o crime, e era a posição adotada pelo Brasil, no Código Penal de 1940 (art. 25). Não é mais adotada no Brasil, na Espanha, nem na Alemanha. (CAPEZ, 2011, p. 360)”
Adotada pela Itália, Alemanha, Espanha e, originariamente, pelo Código Penal Brasileiro de 1940, essa teoria não mereceu prosperar. A razão pela qual ter ocorrido o afastamento dessa teoria encontra-se no imperioso respeito ao princípio da isonomia e da proporcionalidade. Injusto seria punir o sujeito que empresta uma arma para o comparsa que diz precisar se defender, com o mesmo rigorismo daquele que se vale dessa mesma arma para retirar a vida de outrem.
1.1.1.2 Conceito amplo ou extensivo de autor.
Desenvolvido pela doutrina alemã (Leopold Zimmerl), o conceito extensivo de autor traz como fundamentação dogmática a ideia clássica da teoria da equivalência das condições. Em consequência do aspecto naturalístico da causalidade, essa teoria não faz qualquer diferenciação entre autoria e participação. Quem, de alguma maneira, contribui para o resultado é considerado autor. Dessa forma, até mesmo o instigador ou o cúmplice seriam classificados como autores, dado que a doutrina não diferenciava suas importâncias na contribuição causal. Portanto, refere-se a uma ramificação da teoria unitária, porquanto ainda mantém raízes na teoria da equivalência dos antecedentes, não aceitando a figura do partícipe. O instigador e o cúmplice são do mesmo modo autores, já que não existe diferença acerca da importância da contribuição causal de cada integrante no evento delituoso.
Objetivamente, diante da impossibilidade de estabelecer a distinção entre autoria e participação, essa diferenciação deveria ser feita em face da lei, que a reconhece, fixando penas distintas para o autor, o instigador e o cúmplice. Como solução, parte da doutrina alemã propõe seja a distinção fixada mediante um critério subjetivo, complementado e assegurado pela teoria subjetiva da participação. Como bem alerta Cezar Roberto Bitencourt:
“[…] o conceito extensivo de autor vem unido à teoria subjetiva da participação, que seria um complemento necessário daquela. Segundo essa teoria, é autor quem realiza uma contribuição causal ao fato, seja qual for seu conteúdo, com “vontade de autor”, enquanto é partícipe quem, ao fazê-lo, possui unicamente “vontade de partícipe”. O autor quer o fato como “próprio”, age com o animus auctoris; o partícipe quer o fato como “alheio”, age com animus socii. Dessa forma, a extensão do tipo penal a todas as condutas consideradas como causa seria mitigada pelo critério subjetivo (Bitencourt, 2013, p. 554).”
A diferenciação de autoria e participação utilizando critérios puramente subjetivos trazem diversas incongruências práticas. Com efeito:
“Os inconvenientes da distinção puramente subjetiva de autoria e participação são manifestos. Fizeram-se presentes com grande intensidade nas condenações dos nazistas na jurisprudência alemã, em que os executores de milhares de mortes foram considerados cúmplices, porque queriam os fatos como alheios. Algo semelhante poderá ocorrer com os crimes de mão própria, em que o autor do crime, por querê-lo como alheio, poderia ser condenado como cúmplice, numa verdadeira aberração. Isso implicaria, em outras palavras, condenar como meros partícipes sujeitos que realizam pessoalmente todos os elementos do tipo e, como autores, quem não tem intervenção material no fato. (BITENCOURT, 2013, p.555)”
Portanto, o conceito extensivo de autor, bem como a teoria subjetiva da participação, devem ser afastados.
1.1.1.3 Teoria restritiva de autor ou conceito restritiva de autor
Pioneira na distinção entre autor e partícipe, a teoria restritiva defende que autoria não decorre de simples causação do resultado, uma vez que não é qualquer contribuição para o resultado típico que se pode encaixar nesse conceito. Traz como ponto de partida o entendimento de que nem todos os que concorrem para o crime são autores. A cumplicidade e a instigação são formas de extensão da punibilidade, visto não integrar a figura típica.
A teoria restritiva de autor encontra seu fundamento na tipicidade. Assim, considera-se autor aquele que pratica, mesmo que não haja consumação, uma conduta típica, isto é, aquele que realiza o núcleo do tipo penal.
Conforme essa teoria, a autoria não emana da simples causação do resultado, fazendo uma clara distinção entre autor e partícipe. Entende-se, dessa forma, que o conceito restritivo de autor necessita ser complementado pela teoria objetiva de participação, que pode ser objetivo-formal, a qual se entende por partícipe aquele que, mesmo sem cometer o fato descrito no tipo penal, realiza alguma contribuição causal ao fato, ou objetivo-material, a qual se funda na relevância contribuição objetiva da conduta do autor em relação a dos partícipes.
O conceito restritivo de autor, portanto, ramifica-se em dois critérios ou duas outras teorias: objetivo-formal e objetivo-material, que serão abordados nos tópicos a seguir.
a) Teoria objetivo-formal
Entende-se como autor, para essa teoria, aquele cuja conduta comissiva ou omissiva se amolda à descrição típica, destacando a relevância das características exteriores da ação com a definição típica do fato criminoso. Em contrapartida, partícipe será aquele que sem praticar a conduta principal do delito, contribui de algum modo para a sua consumação, no entanto, de forma acessória, com uma contribuição menos importante do que a do autor. Dessa maneira, um mandante de uma conduta criminosa não será considerado autor por não lhe caber os atos de execução existentes no núcleo do tipo penal.
Percebeu-se, no entanto, que a teoria objetivo-formal, pelo apego ao positivismo, mostrou-se insuficiente, em razão de que alguns delitos não descrevem a com clareza a ação ilícita. Neste diapasão:
“Apesar de indicar que a autoria refere-se à realização dos elementos do tipo, não foi capaz de evidenciar que elemento material do tipo (especialmente nos delitos de resultado) identifica a conduta do autor, frente às contribuições causais constitutivas de mera participação. Além disso, criticava-se a versão clássica da teoria objetivo-formal, porque partindo de suas premissas não era possível explicar de maneira satisfatória como a conduta do coautor e do autor mediato se amoldava na descrição típica. (BITENCOURT, 2013, p. 556)”
Assim, sem recusar a importância do elemento causal, a teoria restritiva objetivo-formal destaca-se por expor as características exteriores do agir, isto é, a conformidade da ação com a descrição formal do tipo penal. Contudo, diante dos crimes materiais, essa teoria encontrou dificuldades na distinção de autor e partícipe.
b) Teoria objetivo-material
Segunda essa teoria, autor não seria aquele que pratica o verbo do tipo penal, mas aquele que colabora objetivamente para o resultado delituoso. A teoria objetivo-material buscou reparar as distorções da formal-objetiva, levando em conta a maior ou menor relevância objetiva à contribuição do autor em detrimento a do partícipe. Para essa concepção, importante observar a magnitude, a intensidade e importância da conduta de cada agente.
Registre-se, contudo, que essa teoria também não aprecia os elementos subjetivos. Dessa forma, na tentativa de estabelecer diferenças objetivas com fulcro na causalidade e não no aspecto subjetivo, levaram essa teoria ao fracasso. Outrossim, a dificuldade prática de distinguir causas, circunstâncias e condições mais ou menos importantes, conduziram ao abandono pela doutrina alemã da teoria objetivo-material. Esta adotou, de forma expressa, o conceito restritivo de autor, sob o critério formal-objetivo.
A dificuldade encontrada nas teorias objetivas é que não explicam a autoria mediata, a qual o autor não pratica o núcleo do tipo, tampouco concretiza materialmente a efetivação do fato, visto se utilizar de terceira pessoa para o cometimento de crimes.
1.1.1.4. Teoria do domínio do fato
Visto referir-se ao objeto principal de estudo deste trabalho, e tendo em conta que a Teoria do Domínio do Fato será tratada de forma mais detalhada nos próximos capítulos, a menção nesta parte do estudo serve tão somente para situar o leitor diante das inúmeras teorias trazidas adiante.
Em suma, conforme a teoria do Domínio do Fato, autor é aquele quem possui o mando acerca do domínio da ação, domínio da vontade de terceiros ou domina finalisticamente a conduta criminosa, decidindo acerca de sua prática, suspensão, interrupção, condições etc. Autor é aquele que tem capacidade de executar, continuar os atos executórios ou de impedir uma conduta tipicamente prevista.
Assim, a aplicação desta teoria preenche o hiato encontrado naqueles casos que, apesar do autor não praticar a conduta inserida no verbo do tipo, deverá ser responsabilizado também como autor do delito, dado que determina a empreitada, definindo o “se”, o “onde”, o “como”, o “quem”, tendo o pleno controle fático da conduta.
1.1.1.5 Teoria adotada pelo Código Penal brasileiro
O código penal de 1940 perfilhou-se ao conceito extensivo de autor, como corolário da teoria dos equivalentes causais. Todavia, a partir da reforma penal 1984, divergências surgiram acerca de qual concepção foi adotada pelo nosso atual Código Penal.
Enquanto uma parte da doutrina entende que a reforma penal de 1984 adotou a teoria restritiva de autor, em face da diferenciação entre autor e participe, e diante da presença de institutos como a participação de menor importância (art. 29, §1º, do CP), uma outra corrente sustenta que o legislador passou a adotar a teoria restritiva complementada pela teoria do domínio do fato, haja vista a aceitação da teoria finalista da ação, conforme se observa no artigo 29, caput, §§1º e 2º, e no artigo 62, I, todos do Código Penal.
Neste sentido, leciona Alberto Silva Franco e Rui Stoco:
“Na medida em que introduziu o dolo na ação típica final, como se pode depreender da conceituação de erro sobre o tipo, na medida em que aceitou o erro de proibição e finalmente, na medida em que abandonou o rigorismo da teoria monística em relação ao concurso de pessoas, reconhecendo que o agente responde pelo concurso na medida de sua culpabilidade, deixou de entrever sua acolhida às mais relevantes teses finalistas, o que leva à conclusão de que abraçou também a teoria do domínio do fato. (SILVA FRANCO e STOCO, 2001, p.483)”
Nesse diapasão, a teoria do domínio do fato encontra aplicação diante da necessidade de se alcançar o “agente mediato” de um crime, que, embora não tenha cometido a conduta delituosa, manipula terceiro, com o propósito de que este pratique a ação típica. Segundo Fernando Capez (2011, p.370), “o executor atua sem vontade ou consciência, considerando-se, por essa razão, que a conduta principal foi realizada pelo autor mediato”.
Em contrapartida, devido a complexidade em se identificar com nitidez, no caso concreto, o controle completo do agente ante ao fato típico, a teoria do domínio do fato não pode ser sempre acatada no caso concreto.
Com efeito:
“Por outro lado, a teoria do domínio do fato não pode ser aceita em sua integralidade porque não é possível identificar com clareza, em grande número dos casos, quando uma pessoa tem ou não o controle completo da situação. Quando o mandante, por exemplo, contrata uma pessoa para matar a vítima, o executor contratado pode fugir com o dinheiro, ser preso antes de cometer o crime, ou, por outro lado, cometer delito mais grave do que o combinado. Em nenhum desses casos, o mandante tinha pleno controle da situação. (ESTEFAM e RIOS GONÇALVES, 2014, p.444)”
Além disso, a teoria do domínio do fato não se aplica aos crimes culposos, haja vista que, nesses crimes, como os agentes não querem o resultado, não há que se falar em controle dos demais sujeitos envolvidos. 163
Em conclusão, o Código Penal brasileiro, quanto ao concurso de agentes, adotou a teoria restritiva objetivo-formal de autor, pois diferencia autores de partícipes: autor será aquele que pratica o verbo do tipo penal; enquanto que partícipe será aquele que presta auxílio moral ou material ao agente. Por outro lado, no que se refere à autoria mediata, deve-se ampliar a concepção de autor, complementando com a aplicação da teoria do domínio do fato, com a finalidade de encontrar a solução mais justa e adequada à imputação da responsabilidade penal.
1.1.2. Da Participação
Tendo em conta que o Código Penal não trouxe o conceito de partícipe, coube à doutrina nacional reconhecer a distinção valorativa existente entre as ações principais, constitutivas de autoria, e as ações secundárias, referentes à participação.
Espécie do gênero concurso de pessoas, a participação em sentido estrito configura uma intervenção em uma conduta alheia, o que pressupõe a presença de um personagem principal (autor principal). O participe é aquele que não pratica a atividade propriamente executiva, todavia realiza atividade secundária que favorece a concretização da conduta delituosa. Registre-se, ademais, que, para a existência da figura do partícipe, faz-se necessário a presença de um autor principal. Na ausência desse, não há que se falar em partícipe, dado que este exerce atividade acessória a conduta típica praticada.
A subsunção da conduta do partícipe consiste em um processo de adequação típica por subordinação mediata, com a aplicação de uma norma de extensão pessoal, presente no art. 29, do CP. Nesse sentido, leciona Cezar Bitencourt (2013, p. 561): “A norma que determina a punição do partícipe implica uma ampliação da punibilidade de comportamentos que, de outro modo, seriam impunes, pois as prescrições da Parte Especial do Código não abrangem o comportamento do partícipe”.
O participe não executa a ação ou omissão descrita no preceito primário do tipo penal. O critério distintivo entre autor e partícipe encontra alicerce na tipicidade. Assim, a tipicidade da conduta do partícipe emana da norma de extensão referente à participação, enquanto que a tipicidade da conduta do autor deriva da conduta típica principal incriminadora. Com efeito, por exemplo, o art. 155, do CP, prevê pena de 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão para aquele que subtrai para si coisa alheia móvel. Porém, não define pena a quem instiga a realização dessa conduta descrita no tipo. Portanto, sem a norma de extensão, não caberia pena a quem induz, instiga ou apenas auxilia a ação principal.
Via de regra, o partícipe responderá pelo mesmo delito dos autores e coautores do crime, e a sanção penal, em abstrato, será a mesma. Porém, o juiz, no momento da fixação da pena, deverá ponderar o nível de envolvimento de cada agente na realização da conduta criminosa (culpabilidade). Dessa forma, se alguém auxilia um sujeito a cometer um crime e este não se consuma por circunstâncias alheias a sua vontade, o crime será tentado para ambos. Assim, a fração numérica da diminuição da pena referente à tentativa, definida no art. 14, parágrafo único, do CP, comunica-se ao partícipe. Em alguns casos, todavia, será possível que o partícipe receba pena mais elevada do que o autor do delito, como eventualmente ocorre nos casos de autoria mediata (mentor intelectual).
Por fim, a contribuição do partícipe somente ganhará relevância jurídica, se for verificado, ao menos, início dos atos de execução da conduta criminosa.
1.1.2.1 Teorias sobre participação
Através do fundamento da punibilidade da figura do partícipe, conclui-se que a participação consiste em atividade secundária, e somente acolhe relevância jurídica quando se encontra diante de um fato principal.
Em face do princípio da acessoriedade, a tipicidade da participação não se encontra na Parte Especial do Código Penal, todavia se deduz da norma de extensão que regula a co-delinquência (art. 29, caput, do CP). Contudo, o grau de dependência da conduta do partícipe em relação à do autor é bastante controverso na doutrina e, portanto, diversas teorias buscam limitar o alcance dessa acessoriedade da participação. Dentre alguns ensinamentos, destacam-se a teoria da hiperacessoriedade, da acessoriedade extrema, da acessoriedade limitada e da acessoriedade mínima.
1.1.2.1.1 Teoria da acessoriedade mínima
Conforme essa teoria, basta que a ação principal do autor seja típica, ainda que esta não seja antijurídica. Isso equivale a dizer que, mesmo ausente a antijuridicidade da conduta do autor, constituiria crime para o partícipe. A teoria da acessoriedade mínima não merece prosperar, haja vista que se julga crime o ato de quem induz alguém a agir em legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal etc.
1.1.2.1.2. Teoria da acessoriedade limitada
Para essa teoria, somente deve responder pelo crime aquele que colaboração com a realização de uma conduta principal típica e antijurídica. Portanto, não se exige a culpabilidade do autor do crime. Basta que a conduta se amolde ao tipo da Parte Especial e que contrarie o direito, dado que a culpabilidade é individual e o fato principal, comum a todos os colaboradores. Por exemplo, se “A” auxilia e instiga “B”, inimputável, para matar “C”, e “B” pratica a ação delituosa, configura-se o concurso de pessoas, sendo “B” o autor e “A”, o partícipe do homicídio.
Essa teoria, contudo, não soluciona o que a doutrina chama de “provocação de uma situação de legítima defesa”, a qual o sujeito induz um terceiro a atacar alguém, que sabe estar armado. Este, em legítima defesa, reage e lesiona gravemente quem o instigador desejaria agredir (o induzido). Em razão do fato se encontrar justificado para o agressor, de acordo com esta teoria, o instigador não deve ser responsabilizado como partícipe. A solução correta seria a punição do instigador como autor mediato da conduta justificada. Isso porque o instigador, por possuir o domínio do fato, utilizou-se dos participantes como instrumentos para a prática de sua vontade delituosa.
1.1.2.1.3. Teoria da acessoriedade máxima ou extrema
A importância jurídica da conduta do partícipe, para essa teoria, só existe se o fato principal cometido pelo autor for típico, antijurídico e culpável, ao seguir a teoria tripartida do conceito analítico do crime. Segundo a teoria da acessoriedade extrema, não existe participação quando alguém instiga um menor a realizar crimes, pois este, em virtude de sua imputabilidade, não é considerado culpável.
Por outro lado, embora defendida por parte da doutrina, essa teoria não é a mais correta, pois se sabe que quem induz ou instiga sujeito não culpável a praticar conduta típica e antijurídica é autor mediato da infração penal.
1.1.2.1.4. Teoria da hiperacessoriedade
Para essa teoria, a responsabilização penal do autor é condição necessária para a punição do partícipe. Isso significa afirmar que, para haver participação, é preciso existir fato típico, antijurídico, autor culpável e punível. Dessa forma, se houver extinção da punibilidade em relação ao autor, não haverá responsabilidade do partícipe.
Essa teoria também não merece prosperar. Conforme os ensinamentos do professor André Estefam e Vitor Gonçalves (2014, p. 447), “é evidente o equívoco desta corrente já que a punibilidade de uma pessoa não interfere na da outra”.
1.1.2.1.5. Teoria adotada
Cabe ressalvar que o Código Penal brasileiro não adotou expressamente nenhuma das teorias descritas acima. Os doutrinadores, por outro lado, dividem-se quanto à aceitação da teoria da acessoriedade limitada e da acessoriedade máxima. Inconteste seria o afastamento das teorias da acessoriedade mínima e da hiperacessoriedade.
Os doutrinadores que defendem a teoria da acessoriedade limitada, entretanto, constituem a doutrina majoritária. Sustentam que basta a tipicidade e a antijuridicidade da conduta principal para a existência e responsabilização do partícipe.
Dado que o presente trabalho científico pretende expor a aplicação da teoria do domínio do fato no Direito Penal brasileiro, necessário adotar a teoria da acessoriedade limitada. Com efeito, diante dos casos em que o partícipe se utiliza de um agente inimputável para praticar uma infração penal, caso seja adotada a teoria da acessoriedade máxima, a qual exige os três substratos do crime (tipicidade, e culpabilidade e antijuridicidade), não haveria a justa responsabilização do partícipe, visto que, diante da imputabilidade penal, ausente o requisito da culpabilidade do autor. Nesse diapasão, evidente seria a impunidade do caso em tela.
Logo, a teoria da acessoriedade limitada encontra-se em maior consonância com a teoria do domínio do fato, haja vista que o próprio Código Penal, nos termos do art. 62, III, possibilita a punição do partícipe até mesmo diante da imputabilidade do autor.
2.1. Modalidades de autoria
2.1.1. Autoria imediata ou direta
A autoria imediata é aquela em que o próprio agente executa a conduta incriminadora prevista na norma penal, ou seja, executa pessoalmente os elementos previstos no tipo, sem se utilizar de terceiro (denominado agente instrumento) para a execução do delito.
Ademais, essa modalidade de autoria também incide quando o agente serve-se de um animal. É o que acontece, por exemplo, quando um cão adestrado subtrai coisa alheia móvel em crime de furto. Nesse caso, considera-se a execução do fato realizada pelo próprio agente.
2.1.2. Autoria mediata ou indireta
Com a finalidade de preencher as lacunas decorrentes da aplicação da teoria da acessoriedade extremada da participação, a doutrina consolidou a figura da autoria mediata. Mesmo com a consagração da teoria da acessoriedade limitada, não se esvaziou a importância da autoria mediata.
Dar-se-á a autoria mediata quando o agente do crime, para a realização da conduta tipicamente prevista, utiliza-se de outra pessoa como instrumento. Diante dessa modalidade de autoria, embora exista a pluralidade de pessoas, prevalece o entendimento no sentido de que não configura o concurso de agentes entre o autor mediato e o executor impunível, porquanto este último é meramente um instrumento, dado que atua sem vontade ou sem consciência.
Predomina o entendimento doutrinário que os pressupostos necessários para a consumação do tipo penal devem ser reunidos na figura do “homem de trás” (autor mediato) e não no executor da conduta. Dessa forma, nos crimes próprios, isto é, naqueles em que o tipo penal demanda qualidade especial do agente, faz-se necessário possuir o autor mediato (homem de trás) as qualidades ou condições exigidas pelo tipo. Portanto, por exemplo, apenas funcionário público (o intraneus) poderá ser autor mediato de um crime de peculato (art. 312, do CP), visto que esse tipo penal exige qualidade especial ao sujeito ativo. Por outro lado, nos crimes de mão própria, ou seja, aquele que exige, além da qualidade específica do autor, conduta pessoalmente praticada, impossível a presença da figura do autor mediato.
Nesse diapasão a autoria mediata, conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt (2013, p. 560), “encontra seus limites quando o executor realiza um comportamento consciente e doloso. Aí o “homem de trás” deixa de ter o domínio do fato, compartindo-o, no máximo, com quem age imediatamente, na condição de coautor, ou então fica na condição de partícipe, quando referido domínio pertence ao consorte”.
Embora o Código Penal brasileiro não descreva de forma expressa as hipóteses de autoria mediata, a doutrina estabelece os casos os quais o legislador quis prever esta modalidade de autoria:
a) Erro de tipo escusável determinado por terceiro (CP, art. 20, §2º): o agente (autor mediato) utiliza terceiro que se encontra diante de uma falsa representação da realidade (erro de tipo) provocado pelo “homem de trás”. Destarte, o médico que se utiliza de uma enfermeira para injetar uma seringa contendo substância venenosa, como o intuito de matar a vítima, responderá por homicídio doloso. A enfermeira deixará de ser punida por ausência de dolo ou culpa.
b) Erro de proibição escusável provocado por terceiro (CP, art. 21, caput): o autor utiliza-se de terceiro que não detém a consciência da ilicitude, com a finalidade de praticar fato ilícito e típico. Assim, um Juiz de Direito, por exemplo, que induz seu irmão a praticar eutanásia (homicídio piedoso), com a alegação de que se trata de uma excludente de ilicitude, será autor mediato.
c) Coação moral irresistível (CP, art. 22): o agente (autor mediato) constrange (vis relativa) terceiro (coagido) a praticar conduta típica e ilícita. O coagido ficará isento de pena, enquanto que o autor indireto será responsabilizado pelo crime.
d) Obediência Hierárquica (CP, art. 22): o superior hierárquico, desejando a prática de uma conduta típica, emana uma ordem, não manifestamente ilegal, a ser cumprida pelo seu subordinado. Apenas o autor da ordem responderá pela conduta praticada.
e) Inimputabilidade penal do autor por menoridade penal, embriaguez ou doença mental (CP, art. 62, III): o inimputável é utilizado como instrumento para a execução do delito. Ex.: um sujeito convence um menor de 12 anos a colocar um líquido no copo da vítima e esta, pensando se tratar de água, ingere veneno letal.
f) Ação justificada pelo executor: o agente suscita uma situação fática na qual o executor, supostamente acobertado por uma causa de exclusão da ilicitude artificialmente criada pelo autor mediato, pratica um fato típico. Desse modo, se o agente convence que o executor será assassinado por outrem, e o faz acreditar que se encontra em legítima defesa matando falso agressor, deverá o autor mediato responder pelo homicídio doloso.
2.1.3. Autoria por convicção
É atribuída ao agente que, mesmo tendo consciência da ilicitude do fato, realiza a conduta típica por questões de consciência, como no caso de crença política, ou religiosa.
Com efeito:
“Ocorre naquelas hipóteses em que o agente conhece efetivamente a norma, mas a descumpre por razões de consciência, que pode ser política, religiosa, filosófica, etc. […] Veja-se o exemplo de um pai, seguidor das testemunhas de Jeová, que, na qualidade de garantidor, não permite que seja realizada a necessária transfusão de sangue para salvar a vida do seu filho, ou do médico que, por motivos de convicções religiosas, não pratica o aborto na gestante cuja vida corre risco, agravando-lhe a situação. (GRECO, 2013, p. 434)”
Portanto, autor por convicção é aquele que possui o pleno e efetivo conhecimento do tipo incriminador e, por convicções que lhes são próprias, deixam de observar a norma.
Nos termos da cláusula de consciência, causa supralegal de exclusão da culpabilidade, fica isento de pena o autor por convicção, desde que não desobedeça direitos fundamentais individuais. A doutrina majoritária costuma justificar a cláusula de consciência na liberdade de crença e de consciência garantida constitucionalmente, nos moldes do art. 5º, VI, da CF/88. Dessa forma, quando não existe lesão a nenhum bem jurídico tutelado, em virtude de intervenção de outrem, não dará ensejo a nenhuma responsabilidade penal. Logo, por exemplo, mesmo que o pai, testemunha de Jeová, não autorize a transfusão de sangue em seu filho, ninguém responderá criminalmente caso o médico atue por conta própria e salve o descendente menor.
Por outro lado, a questão merece destaque quando o bem jurídico tutelado sofre efetiva lesão e detém relevante valor jurídico. Como bem observam Luis Flávio Gomes e Antônio Molina (2007, p. 450-1), quando “o bem jurídico vida é lesado, o pai responde penalmente porque entre a liberdade de crença e a lesão ao bem jurídico vida ou integridade física, possuem maior valor estes últimos”.
2.1.4. Autoria colateral ou paralela
A autoria colateral ocorre quando duas ou mais pessoas, agindo sem nenhum vínculo subjetivo e desconhecendo as intenções uma das outras, realizam determinadas condutas, direcionando-as para a prática da mesma infração penal.
Pela ausência do vínculo subjetivo, não resta configurado o concurso de pessoas, cada agente responderá pela sua conduta (crimes autônomos).
Assim, caso “A” e “B”, sem conhecimento da intenção do outro, efetuem, simultaneamente, disparos em direção à vítima “C”. Esta recebe um tiro na cabeça (o letal) e outro no pé (o qual não concorreu para a morte). A perícia afirma que o tiro na cabeça foi efetuado por “A”, e que o tiro no pé partiu da pistola de “B”. Cada sujeito deverá ser responsabilizado por aquilo que deu causa: “A” responderá por homicídio consumado, enquanto “B”, por homicídio tentado.
Portanto, necessário conhecer a existência ou não do vinculo subjetivo entre ou consortes. Haja vista que, caso exista liame subjetivo entre os agentes, caracteriza-se o concurso de pessoas, logo, serão coautores. Caso contrário, não verificado o vínculo entre os executores, serão autores colaterais.
2.1.5. Autoria incerta ou autoria colateral incerta
Ocorre autoria incerta quando, diante de uma autoria colateral, não se conhece qual dos agentes produziu o resultado naturalístico.
A autoria incerta não se confunde com a autoria desconhecida. Nesta, não se sabe quem realizou a conduta delituosa. Enquanto que na autoria incerta, sabe-se quem a realizou, todavia ignora quem determinou o resultado. Desse modo, não se pode punir um dos agentes pelo que não praticou. Absolvê-los também se torna inadmissível, visto que os participaram de um delito de autoria conhecida. Em face disso, ambos deverão responder pelo crime tentado, abstraindo-se o resultado.
2.1.6. Autoria de escritório ou aparatos organizados de poder
Originada da doutrina alemã, essa modalidade de autoria mediata se dá por intermédio de uma “máquina de poder”. O sujeito (autor de escritório) se serve de um aparato organizado de poder para a realização da conduta delinquente. Dessa maneira, o agente emite a ordem para que outro indivíduo, também culpável, realize o fato tipicamente previsto.
Esta modalidade de autoria é geralmente verificada no âmbito de organizações criminosas, hierarquicamente estruturadas, em que, certo agente, diante de uma função de comando, delibera acerca da prática de crimes por indivíduos que se localizam em posições hierárquicas subalternas. Registre-se, ademais, que essa associação delinquente caracteriza-se pela fungibilidade de seus membros, ou seja, se aquele a quem demandado não cumprir a ordem emitida pelo seu superior, outro membro poderá cumpri-la.
Nesse caso, configura-se a autoria, e não a participação, pois o domínio do fato do sujeito que determina a realização da ação criminosa confere tamanha relevância que não caberia tratar sua conduta como mero induzimento ou instigação.
Portanto, tem o domínio do fato tanto o determinador, quanto o determinado, e em face da inserção de ambos no aparato criminoso antijurídico, todos se encontrarão na posição de autores penalmente responsáveis.
2.1.7. Autoria intelectual
O autor intelectual é aquele quem realiza o planejamento da ação criminosa, como acontece nos casos comandados por chefes de organizações. Não se pode confundir, entretanto, a autoria mediata com a autoria intelectual. O mentor intelectual, haja vista ter concorrido para a conduta delituosa ao planejar, induzir ou instigar os demais cúmplices a cometê-la, é mero partícipe.
Os executores, ao comando do autor intelectual, possuem pleno discernimento acerca da infração penal praticada, portanto responderão pelo injusto praticado e, ao contrário do que ocorre na autoria mediata (domínio da vontade – vide item 3.3.2.), haverá o concurso de agentes.
Registre-se, contudo, que, conforme os preceitos da teoria do domínio do fato, a intervenção na execução do crime do autor mediato (domínio por meio de um aparato organizado de poder – vide item 3.3.2) é imprescindível para a configuração da autoria. Assim, caso o chefe de uma organização criminosa não intervenha, e dessa forma, não concorra para nenhum ato de execução, não será considerado autor intelectual, muito menos partícipe, pois indispensável sua atuação.
2.1.8. Autoria por determinação
Essa modalidade de autoria foi criada para solucionar a lacuna existente na doutrina diante de não se admitir a autoria mediata nos crimes de mão própria, tampouco nos crimes próprios quando o autor mediato não acumula as qualidades requeridas na figura típica.
Como exemplo, a doutrina costuma trazer o exemplo da testemunha que foi hipnotizada para que falte com a verdade em juízo. Nesse caso, visto que o crime de falso testemunho só pode ser cometido pela testemunha, inadmissível será a autoria mediata. Desse modo, não seria plausível deixar impune o autor que, dotado de plena eficácia causal, enseja a atuação de outrem que age sem conduta, como no caso da hipnose.
A autoria por determinação não se refere às modalidades comuns de concurso de agentes (autoria e participação). Para evitar a impunidade no caso concreto, criou-se essa espécie sui generis de concorrência. Dessa forma, por exercer o domínio do fato, responderá o sujeito por ter praticado o delito de determinar a conduta antijurídica.
2.1.9. Coautoria
No direito penal, a coautoria ocorre quando mais de uma pessoa, participam conjuntamente dos atos executórios do crime, realizando ou não o núcleo do tipo. Dessa forma, para a sua configuração, basta a consciência de colaborar no ato comum, sendo, portanto, desnecessário o acordo prévio. Logo, a consciência representa o vínculo psicológico entre os sujeitos ativos do crime, e assim a ação de todos ganha caráter de crime único. Desnecessária a prática do mesmo ato por todos os agentes. Basta tão somente que cada indivíduo colabore efetivamente para a prática do fato tipicamente previsto.
As condutas típica de todos os colaboradores, entretanto, detêm o co-domínio do fato. Na coautoria não existe acessoriedade, haja vista que traz em seu bojo a imputação imediata recíproca. Portanto, o coautor executa fato próprio, enquanto que o partícipe contribui para fato alheio.
Conforme a posição finalista, a presença do domínio do fato na conduta dos diversos intervenientes, constitui a essencialidade da coautoria. Não é necessário que o sujeito pratique todas as ações para ser qualificado como coautor, basta que, em ação conjunta (“divisão de tarefas”), colabore efetivamente à execução (não na fase preparatória) do plano global, demonstrando o controle funcional do fato.
Ademais, registre-se que, em regra, diante dos crimes de mão própria não se pode falar em coautoria, pois o verbo do tipo estabelece conduta pessoal do agente, não podendo este, entretanto, ser substituído por outrem. Todavia, a doutrina aponta uma exceção: a falsa perícia (art. 342, do CP) quando firmada dolosamente por dois ou mais peritos em conluio.
Por outro lado, os crimes próprios, entendido como aqueles que exigem determinada qualidade ou condição pessoal do sujeito ativo (ex.: peculato, art. 312, CP), são compatíveis com a coautoria. Dessa forma, por força do artigo 30, do CP, diante dos crimes próprios, a elementar do tipo penal poderá alcançar os demais agentes do delito. Assim, se três sujeitos se apropriam indevidamente de bens públicos, sendo um deles servidor público e os outros não, os não servidores públicos, desde que tenham ciência da qualidade de funcionário público do primeiro, também serão responsabilizados pela prática do crime de peculato.
3. Da teoria do domínio do fato e da sua aplicação no direito penal brasileiro
3.1. Introdução
As evoluções da sociedade contemporânea, incitadas pela globalização mundial, impulsionaram sensíveis modificações nas esferas econômica, social, cultural e política. Como era de se esperar, essas transformações também refletiram nos aparatos de poder do crime organizado, os quais desenvolveram maneiras mais eficazes e seguras visando maior êxito na consumação de crimes.
Nessa conjuntura, diversas teorias despontaram, com a finalidade de harmonizar o direito penal aos novos tempos, fornecendo-lhe instrumentos jurídicos capazes de garantir segurança aos bens jurídicos ditos relevantes pela sociedade.
Dessa forma, com o objetivo de uma adequada condenação nas hipóteses de domínio da vontade mediante aparatos organizados de poder, a teoria do domínio do fato conquista cada vez mais espaço na doutrina e jurisprudência brasileira e mundial.
O termo “domínio do fato” foi empregado, pela primeira vez, em 1915, pelo jurista alemão Hegler, em seu trabalho intitulado “Die Merkmale des Verbreches”, porém ainda não detinha o significado que lhe é atribuído atualmente, pois se relacionava apenas aos fundamentos da culpabilidade. A primeira conotação da teoria do domínio do fato, formulada no plano da delimitação da autoria, dentro dos contornos expostos por Roxin, foi apresentada, efetivamente, em 1939, por Welzel. Este apontava o controle final do fato como critério de autoria nos crimes dolosos.
Apesar do finalismo de Welzel ter sido a primeira manifestação de uma teoria do domínio do fato propriamente dita, pode-se afirmar que foi através da obra Täterschaft und tatherrschaft, publicada em 1963, que Claus Roxin desenvolveu a maior construção edificada, até então, acerca da Teoria do Domínio do Fato.
Para elaborar sua teoria, Roxin partiu da fragilidade e intangibilidade da concepção welzeliana. Estas o induziram a rechaçar a concepção do domínio do fato finalista, haja vista a incapacidade do finalismo em abarcar as diversas formas de manifestações criminosas individuais. Welzel, por alegar que o elemento “domínio do fato” constitui um pressuposto fático da autoria (critério complementar), não diferenciava espécies ou formas de domínio do fato. Para Welzel (apud Greco, 2013, p. 424), “senhor do fato é aquele que o realiza em forma final, em razão de sua decisão volitiva. A conformação do fato mediante a vontade de realização que dirige em forma planificada é o que transforma o autor em senhor do fato.”
Registre-se, portanto, que a teoria de Roxin não configura um mero aperfeiçoamento do entendimento de Welzel, mas, sim, uma estrutura absolutamente inovadora e original.
Como todo questionamento jurídico deve ser, a teoria do domínio do fato representa uma resposta a um problema concreto. Desse modo, verificou-se que tanto uma teoria puramente objetiva, quanto outra puramente subjetiva, são inadequadas para delimitar os conceitos de autoria e participação. A teoria em análise caracteriza-se, sobretudo, por ser uma tese que se inicia do conceito restritivo de autor com critérios objetivo e subjetivo, fundamentando-se pela conduta do agente e não, pelo resultado causado.
Nesse sentido, aduz Cezar Roberto Bitencourt:
“A teoria do domínio do fato, partindo do conceito restritivo de autor, tem a pretensão de sintetizar os aspectos objetivos e subjetivos, impondo-se uma teoria objetivo-subjetiva. Embora o domínio do fato suponha um controle final, “aspecto subjetivo”, não requer somente finalidade, mas também uma posição objetiva que determine o efetivo domínio do fato. (BITENCOURT, 2013, p. 559)”
Registre-se que a teoria do domínio do fato não aparece para excluir a teoria restritiva objetivo-formal (vide tópico 1.1.1.3) adotada pelo Código Penal. Sua finalidade é, desse modo, complementá-la, para que juntas encontrem uma solução justa às hipóteses que envolvam os demais casos de autoria e participação.
3.2. Teoria do Domínio do Fato: Conceito de Autor
Para essa doutrina, autor é aquele que possui o controle do fato, quem domina finalisticamente o transcorrer do crime, isto é, quem decide acerca do modo de execução, seu início, interrupção, cessação e demais circunstâncias. E mesmo nos casos daqueles sujeitos que não praticam a conduta descrita no tipo penal, serão considerados autores, se possuírem poderes para determinar a empreitada criminosa.
A esse propósito, faz-se mister trazer à colação a doutrina do eminente Claus Roxin:
“Somente poderá ser autor de um delito de domínio (Tatherrschaftsdelikte) aquele que se possa afirmar que é figura central da conduta criminosa, quem decide se e como será realizada. Assim o domínio do fato pressupõe um conceito aberto, que não se estrutura em torno a uma imperfeita definição ou formula abstrata, mas sim de uma descrição (Beschreibung) que se ajusta aos vários casos concretos. Este conceito aberto complementa-se com uma série de princípios orientadores. Autor de um delito é aquele que pode decidir sobre os aspectos essenciais da execução desse delito, o que dirige o processo que desemboca no resultado. (ROXIN, apud Sanches, 2013, p. 348)”
O “homem de trás”, incluído em um cenário de organização criminosa, também deve ser responsabilizado como autores mediatos, caso os executores diretos forem, da mesma forma, punidos como autores inteiramente culpáveis.
Também por este prisma é o entendimento do Professor Alberto Silva Franco, o qual perfilha o mesmo pensar:
“O autor não se confunde obrigatoriamente com o executor material. Assim, o chefe de uma quadrilha de roubos a estabelecimentos bancários, que planeja a ação delituosa, escolhe as pessoas que devam realizá-la, distribuindo as respectivas tarefas, e ordena a concretização do crime, contando com a fidelidade de seus comandados, não é um mero partícipe, mas sim, autor porque possui o “domínio final da ação”, ainda que não tome parte na execução material do fato criminoso. Do mesmo modo, não deixa de ser autor quem se serve de outrem, não imputável, para a prática de fato criminoso, porque é ele quem conserva em suas mãos o comando da ação criminosa (FRANCO,1995, p. 345).”
Dessa forma, a teoria do domínio do fato, com a finalidade de complementar a teoria restritiva objetivo-formal, adotada pelo o Código Penal brasileiro, surge para solucionar questões mais complexas que envolvam autoria e participação, sempre pautada na conduta do criminoso, e não, no resultado causado.
3.3 Manifestações concretas da Teoria do Domínio do Fato
O elemento “domínio do fato”, como expressão da ideia principal do acontecer típico, apresenta-se de três formas concretas: o domínio da ação; o domínio da vontade; e o domínio funcional do fato.
3.3.1. Domínio da ação: autoria imediata
Corresponde a autoria propriamente dita. Aqui, o autor pratica pessoalmente o fato típico, detém o domínio da própria ação (Handlungsherrschaft), e realiza todos os elementos da conduta típica, ou seja, trata-se, portanto, de autoria imediata ou direta (vide o item 2.1.1).
Assim, aquele que desfere socos causando lesões corporais em outrem tem o domínio da ação, logo jamais será simples partícipe. Pelo contrário, quem domina a ação, mesmo que aja a mando ou pedido de terceiro, será autor imediato.
Registre-se, por fim, que até mesmo aquele que pratica o crime mediante erro de proibição inevitável determinado por terceiro (CP, art. 21) será autor direto. Logicamente, será autor exculpado ou inculpável, todavia, ainda assim, autor da ação criminosa, apesar de não ser necessariamente o único.
3.3.2. Domínio da vontade: autoria mediata
A segunda forma de manifestação do elemento “domínio do fato” está no denominado domínio da vontade (Willensherrscahaft) de terceiro. Este, devido a circunstâncias do caso concreto, é reduzido a simples instrumento. Aqui, o autor imediato, incorrendo em erro ou coação, age sem o controle de sua vontade, esta, no entanto, é controlada pelo autor mediato (“homem de trás”). Haja vista possuir o domínio da vontade e o controle da ação, apesar de não praticar verbo nuclear previsto no tipo penal, o “homem de trás” deve ser responsabilizado como o verdadeiro autor.
No Código Penal brasileiro, a manifestação do domínio da vontade por aquele que tira proveito de um agente não culpável poderá ocorrer nas seguintes hipóteses: erro de tipo inescusável determinado por terceiro (CP, art. 20, § 2º); erro de proibição escusável provocado por terceiro (CP, art. 21, caput); coação moral irresistível (CP, art. 22); obediência hierárquica (CP, art. 22); e inimputabilidade penal do executor por menoridade penal, embriaguez ou doença mental (CP, art. 62, III).
Além das hipóteses mencionadas acima, há outra forma de autoria mediata: o domínio por meio de um aparato organizado de poder. Assim, aquele que se utiliza de uma estrutura verticalmente organizada, afastada da ordem jurídica, e emite uma ordem cuja execução será praticada por agentes fungíveis, deverá ser responsabilizado como verdadeiro autor dos fatos praticados. Dessa forma, os chefes de governos totalitários, de organizações criminosas ou de organizações terroristas devem ser responsabilizados como autores mediatos.
Nesse sentido, Roxin apud Luís Greco e Alaor Leite:
“Isso significa que pessoas em posições de comando em governos totalitários ou em organizações criminosas ou terroristas são autores mediatos, o que está em conformidade não apenas com os parâmetros de imputação existentes na história, como o inegável fato de que, em estruturas verticalizadas dissociadas do direito, a responsabilidade tende não a diminuir e sim a aumentar em função da distância que se encontra um agente em relação ao acontecimento final. (RT 933, 2013, p. 65)”
Registre-se que, diferentemente do que ocorre nas mencionadas formas tradicionais de autoria mediata, nessa, os executores são absolutamente responsáveis, ou seja, os comandados, integrantes de um aparato organizado de poder, são culpáveis (imputáveis).
Para a configuração desta forma de autoria mediata, alguns requisitos obrigatórios devem ser observados: (1) a emissão, contrária ao direito, de uma ordem decorrente de uma posição de poder dentro um aparato verticalmente organizado; (2) organização dissociada do direito; (3) e a fungibilidade dos colaboradores.
Essa concepção de domínio da organização gerou grandes discussões na doutrina e jurisprudência. Discute-se se essa teoria deveria incidir também nas organizações não dissociadas do direito, como por exemplo, as empresas privadas.
Os doutrinadores que defendem essa tese afastam a necessidade desse requisito. Roxin, contudo, insiste nesse critério. E assegura que somente as organizações que se encontrem apartadas da ordem jurídica, tal como grupos terroristas, máfias etc., garantem ao superior hierárquico o domínio da atuação dos seus comandados. Assim, em empresas, não se aplica a teoria do domínio do fato. Nesse caso, as ordens ilegais configurarão apenas instigação ou induzimento.
Nesse diapasão, Luís Greco e Alaor Leite:
“O fundamento da autoria mediata por domínio da organização não repousaria, assim, em um cru poder de mando, mas no funcionamento “clandestino”, na conformação completamente apartada da ordem jurídica. Em organizações moldadas conforme a ordem jurídica, como sociedades empresárias em geral, é de se esperar que ordens ilegais emitidas por algum superior não sejam automaticamente cumpridas por terceiros autorresponsáveis, isto é, que não estão em erro e nem coagidos. Doutro modo, estar-se-ia partindo da presunção de que sociedades empresárias são organizações criminosas. (GRECO e LEITE, 2013, p. 65)”
Por fim, ressalte-se que “o domínio da organização” não se confunde com o domínio do fato por meio de um aparato organizado de poder. Dominar a organização constitui apenas mais uma maneira de se chegar ao domínio do fato, porém não suficiente. Isso ocorre porque ocupar posição de comando em uma organização criminosa não faz, por si só, do sujeito autor mediato. Posição hierárquica não significa concorrer para o fato. Nesse sentido, necessário para caracterização da autoria a emissão de uma ordem em uma estrutura vertical organizada, dissociação da ordem jurídica e fungibilidade dos agentes.
3.3.3. Domínio funcional do fato: coautoria
A terceira e última forma de dominar o fato encontra-se nas atividades conjuntas, onde dois ou mais agentes, cooperam mutuamente, em divisão de tarefas, com o objetivo comum de realizarem uma conduta descrita por um tipo penal. Esses serão considerados autores, ou melhor, coautores.
Imagine que “A” e “B” em mútuo acordo de vontades, combinem de assaltar o carro de uma vitima “C”, parada em um semáforo. Enquanto “A” aponta uma arma para a vítima, “B” subtrai os seus valores pessoais. Injustiça ocorreria caso “A” respondesse tão somente pelo crime de ameaça (CP, art. 147), ao passo que “B”, pelo crime de furto (CP, art. 155).
Nesse sentido, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
“[…] TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO. 3. Cumpre ressaltar, por relevante, que, em tema de concurso de agentes, a autoria pode se revelar de diversas maneiras, não se restringindo à prática do verbo contido no tipo penal. Assim, é possível, por exemplo, que um dos agentes seja o responsável pela idealização da empreitada criminosa; outro, pela arregimentação de comparsas; outro, pela obtenção dos instrumentos e meios para a prática da infração; e, outro, pela execução propriamente dita. Assim, desde cada um deles – ajustados e voltados dolosamente para o mesmo fim criminoso – exerça domínio sobre o fato, responderá na medida de sua culpabilidade. (STJ – HC: 191444 PB 2010/0217862-8, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 06/09/2011, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/09/2011). (grifos nossos).”
Posto isso, observa-se que tão somente mediante o ajuste de vontades pactuado entre os executores, divisão de tarefas, e finalidade de juntos cometerem um crime, configura-se o domínio funcional do fato, logo serão coautores do fato em sua integralidade, e não, pela parte que o executaram. Essa responsabilidade penal é chamada de responsabilidade conjunta ou imputação recíproca.
3.4. Afastamento da teoria do domínio do fato em algumas espécies de crimes
O elemento domínio do fato não consta em todas as espécies de crimes. Diante do seu conceito restritivo de autor, a teoria do domínio do fato limita-se aos crimes comissivos dolosos. Logo, necessária se faz a vontade e a consciência de dominar a situação fática criminosa.
3.4.1. Crimes Culposos
Pela própria natureza destes crimes, a teoria do domínio do fato não é aplicável aos crimes culposos. Percebe-se, com facilidade, que não existe domínio do fato não voluntário, isto é, não desejado pelo autor da conduta. O resultado não é pretendido pelo autor e, pela ausência do dever de cuidado, produz consequências involuntárias, porquanto não há que se falar em controle final de um fato.
Nesses termos, leciona Cerezo Mir apud Masson (2014, p. 532):
“[…] Mas tropeça com dificuldades nos delitos imprudentes porque neles não se pode falar de domínio do fato, já que o resultado se produz de modo cego, causal, não finalista. Por este motivo, Welzel se viu obrigado a desdobrar o conceito de autor. Nos delitos imprudentes é autor todo aquele que contribui para a produção do resultado com uma conduta que não responde ao cuidado objetivamente devido. Nos delitos dolosos é autor quem tem o domínio finalístico do fato.”
Ressalte-se, outrossim, que os crimes culposos devem ser regidos pelo conceito unitário de autor, rechaçando a diferenciação entre autor e as demais formas de participação.
Nesse contexto, Cezar Roberto Bitencourt citando as lições de Jescheck explica:
“A doutrina alemã trabalha com dois conceitos distintos de autor: nos delitos dolosos utiliza o conceito restritivo do autor fundamentado na teoria do domínio do fato, e nos delitos culposos utiliza um conceito unitário de autor, que não distingue autoria e participação. (JESCHECK apud Bitencourt, 2013, p. 559)”
Assim, o tipo culposo alcança um resultado não perseguido pela finalidade, sendo espontaneamente apenas causado, logo não se pode falar em domínio do fato.
3.4.2. Crimes omissivos
Por meio de uma conduta negativa do sujeito, através de um “não fazer”, o autor do crime omissivo possui o dever de impedir o resultado naturalístico. Aqui, não se aplica a teoria do domínio do fato. Observa-se que o resultado acontece em virtude de uma abstenção do agente, portanto, visto que, o omitente não domina a vontade de terceiro, somente descumpre sua obrigação pessoal de agir e impedir o resultado.
A esse propósito, faz-se mister trazer o entendimento do eminente Professor Damásio de Jesus:
“A teoria do domínio do fato, que rege o concurso de pessoas, não tem aplicação aos delitos omissivos, sejam próprios ou impróprios, devendo ser substituída pelo critério de infringência do dever de agir. Na omissão, o autor direto ou material é quem, tendo dever de agir para evitar um resultado jurídico, deixa de realizar a exigida conduta impeditiva, não havendo necessidade de a imputação socorrer-se da teoria do domínio do fato. O omitente é autor não em razão de possuir o domínio do fato, mas sim porque descumpre o mandamento de atuar para evitar a afetação do objeto jurídico. Se não age, não pode dirigir o curso da conduta. Assim, nos delitos omissivos próprios, autor é quem, de acordo com a norma da conduta, tem a obrigação de agir, nos omissivos próprios, é o garante, a quem incumbe evitar o resultado jurídico, ainda que, nos dois casos, falte-lhes o domínio do fato. (DAMASIO, 2001, informativo do Complexo Jurídico n. 23).”
O “elemento domínio do fato” exige, portanto, uma conduta positiva do agente. A necessidade de exercer o controle da conduta ilícita a ser executada por terceiros ou tomar o domínio da sua própria ação, afasta a aplicação da teoria do domínio do fato aos crimes omissivos.
3.4.3. Crimes de mão própria
Os crimes de mão própria também são fundamentados por critérios distintos da concepção do “domínio do fato”. Esses classificam como autor aquele que pratica, pessoalmente, a conduta típica nuclear, sendo impossível a coautoria ou autoria mediata.
Assim, quando um advogado instrui uma testemunha a prestar informações falsas, não há que se falar em domínio do fato, não poderá, assim, ser autor do crime de falso testemunho (art. 342, do CP). O mencionado causídico, nesse exemplo, se houver suborno, incidirá no crime do art. 343, do CP, corrupção ativa de testemunha; caso não haja suborno, comete, como partícipe, o crime do art. 342, do CP.
Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“HABEAS CORPUS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. SUPRESSAO DE INSTÂNCIA. FALSO TESTEMUNHO. COAÇAO NO CURSO DO PROCESSO. PARTICIPAÇAO DO ADVOGADO. GRAVE AMEAÇA. EXAME APROFUNDADO DE PROVAS.
1. Se a questão da inépcia da denúncia não foi enfrentada pelo Tribunal de origem, tampouco ali suscitada, não pode ser examinada, agora, por esta Corte, sob pena de supressão de instância.
2. O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão de que, apesar do crime de falso testemunho ser de mão própria, pode haver a participação do advogado no seu cometimento.
3. Os argumentos relativos à falta de provas para a condenação e à inexistência de grave ameaça a configurar o delito de coação no curso do processo não podem ser analisados na via estreita do habeas corpus por exigirem exame aprofundado de provas.
4. Ordem conhecida em parte e denegada. (HC 30.858 / RS, 12/06/2006, Sexta Turma, rel. Min. Paulo Gallotti) (grifos nosso)”
3.5. Domínio do fato na lei do crime organizado – lei nº 12.850/2013
Publicada em 02/11/2013, a Lei 12.850/2013 trouxe o conceito de organização criminosa e traçou novos meios de prova e procedimentos de investigação criminal, alterando o Código Penal e revogando integralmente a Lei 9.034/95.
Essa inovação legislativa, tendo em conta a crescente organização dos aparatos criminosos de poder, pôs à disposição do Estado instrumentos mais eficazes no combate ao crime organizado.
Apesar do objetivo desse trabalho não se tratar da apreciação dos novos tipos penais trazidos pela nova Lei, necessário apresentar algumas considerações acerca do tema. Nos termos do § 1º, do art. 1º, da Lei 12.850/2013, organização criminosa consiste na associação de quatro ou mais indivíduos, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, objetivando a prática de infrações penais, cujas sanções máximas em abstrato sejam superiores a quatro anos, ou de caráter transnacional.
Diante do conceito apresentado, verifica-se a clara influência da teoria do domínio do fato no texto do tipo penal em comento. Ao trazer a “divisão de tarefas”, a Lei assegura que serão autores todos os sujeitos que colaborarem através da organização, para o sucesso da empreitada criminosa, independentemente da sua posição hierárquica dentro da estrutura criminosa.
Segundo a aludida teoria, nos casos em que a estrutura criminosa contribui de forma decisiva para o sucesso do crime, existindo divisão de trabalho, haverá coautoria.
Ademais, nos exatos termos do § 3º, do art. 2º, da Lei 12.850/2013, a pena do crime será agravada para aquele que detém o poder de comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, embora não pratique pessoalmente atos executórios. Ora, visível mais uma notória influência da teoria do domínio do fato, haja vista que autor não é somente quem realiza a conduta prevista no tipo penal (autoria imediata), mas também aquele que possui o domínio da decisão acerca a concretização do fato delituoso, punindo de forma mais dura o comportamento de quem exerce o comando da organização delinquente.
3.6. Ação Penal 470: o caso do “mensalão”
Durante o julgamento da Ação Penal 470, a teoria do domínio do fato ganhou destaque no noticiário brasileiro. Em razão da dificuldade de se encontrar indícios concretos, visto que a denúncia fora construída basicamente de cruzamento de depoimentos, o até então procurador-geral da República Roberto Gurgel trouxe à baila a Teoria do Domínio do Fato. Defendia que, apesar dos executores do crime organizado moderno deixarem poucos indícios, têm o controle final da conduta delituosa.
Ao final do julgamento, o relator do processo, Joaquim Barbosa, utilizou-se desta teoria para condenar José Dirceu, ex-ministro chefe da Casa Civil da Presidência da República.
Segue abaixo o informativo do Supremo Tribunal Federal nº 128:
“Na sessão de 10.10.2012, os Ministros Celso de Mello e Ayres Britto, Presidente, subscreveram, às inteiras, a proposição do relator. O decano da Corte expressou que o diálogo institucional — um dos meios de legítima realização da própria ideia de democracia consensual — não autorizaria a utilização criminosa do aparelho de Estado, isto é, a manipulação ilícita do aparato governamental, em ordem a viabilizar a consecução de objetivos reveladores de práticas que transgredissem a legislação penal. Definiu que a teoria do domínio do fato seria plenamente compatível com o modelo de concurso de pessoas e inteiramente harmônica com o sistema constitucional brasileiro. Salientou que essa doutrina, cuja prática justificar-se-ia nos delitos de domínio, não se trataria de construção ad hoc. Estimou, ainda, presente requisito da fungibilidade do indivíduo, precisamente em virtude da divisão de tarefas. Avaliou ter ocorrido, na espécie, prova validamente produzida e, portanto, que se revelaria processualmente apta, a conferir fundamento ao juízo de condenação proferido. O Presidente delineou que, em acordos políticos celebrados argentariamente, agremiações teriam sido açambarcadas para aliança perene, indeterminada no tempo e incondicionada materialmente para votar todo e qualquer projeto de interesse do partido hegemônico. Em seguida, discorreu que, ao se fazer esse tipo de aliança, alterar-se-ia arbitrariamente o perfil ideológico ressaído das urnas em eleição popular. Manifestou encontrar os signos da culpabilidade do juízo de imputação, no que pertine aos integrantes do “núcleo político”, a partir dos próprios termos de interrogatório. Rematou que a serventia da teoria do domínio do fato seria instrumental e ajudaria a individuar a responsabilidade penal. (AP 470/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, 9 a 11.10.2012.) (grifos nosso)”
Em visita ao Brasil, o jurista alemão Claus Roxin rechaçou a má aplicação de sua teoria no caso do “mensalão”. Segundo o próprio jurista (entrevista concedida à Folha de SP, em 11/11/2012), “a pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso”.
Na mesma entrevista, Roxin asseverou que “a posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero “ter que saber” não basta. Essa construção ["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta”.
Dessa forma, verificou-se equivocada a aplicação da Teoria do Domínio do Fato pelo Supremo Tribunal Federal, haja vista que essa doutrina não afasta a necessidade da prova da culpa, tampouco autoriza a condenação baseada em presunções. Portanto, não se pode dizer que a condenação dos réus no caso do “mensalão” foi fundamentada na teoria do domínio do fato, e sim, em outras questões que se apossaram de sua denominação.
Conclusão
As constantes evoluções sociais cobram adaptações ao Direito Penal para que se adeque as mudanças no cenário criminal fático. Com a finalidade de encontrar uma punição mais justa para aqueles que se ocultam ante aos atos executórios, isto é, utilizam-se de terceiros para cometer crimes, a concepção do elemento “domínio do fato” constitui uma ferramenta útil, visando, sobretudo, alcançar também os sujeitos que se distanciam do núcleo do tipo penal incriminador.
Diante dos crimes praticados em concurso de pessoas, a aplicação complementar da Teoria do Domínio do Fato faz-se necessária para evitar o desrespeito ao principio da proporcionalidade. Não fosse dessa forma, deixar-se-ia de punir aquele que participa da execução do delito, mas não realiza efetivamente o verbo descrito no tipo penal.
Conforme exposição deste estudo monográfico, indispensável reconhecer a importância da teoria do domínio do fato como uma basilar teoria jurídica que, em complemento à teoria restritiva, preenche um inquietante vazio no conceito do restritivo de autor. Registre-se que o conceito clássico de autor na concepção da teoria restritiva não se encontra superado. Pois a doutrina do domínio do fato dirige-se para fins de complementar a teoria restritiva, e não, para eliminá-la.
Ademais, não se trata de uma teoria que indicará a punição ou não do agente no caso concreto, e sim, se o agente será considerado autor ou partícipe, para aferir sua devida culpabilidade. Para tanto, busca observar a conduta típica dos agentes não apenas sob o critério objetivo, mas também valorizando sua colaboração subjetiva. Assim, ao adotar um critério misto (objetivo-subjetivo), a teoria do Domínio do Fato corrige inúmeros equívocos que alcançariam o aplicador do direito ante a uma mera interpretação literal da lei penal.
Circunscrita à esfera das infrações penais comissivas dolosas, visto que os crimes culposos caracterizam-se pela ausência do domínio factual, os doutrinadores utilizam-se de dois conceitos distintos de autor: o restritivo para as crimes dolosos, complementados pela teoria do domínio do fato; e o conceito unitário para os delitos culposos, haja vista que esses crimes não admitem a teoria do domínio do fato, logo não se distingue autoria de participação.
Portanto, o presente trabalho almejou comprovar a verdadeira necessidade de se adotar no ordenamento jurídico-penal a complementação do conceito de autor proposta por esta teoria. Assim, aplicada e fundamentada nas percepções propostas por Welzel e Roxin, delimitada com exatidão aos casos típicos de concurso de agentes, a teoria do domínio do fato desenvolve-se rumo à utilidade e adequação penal, visando sempre à eficiência na aplicação do direito e à segurança jurídica diante o caso concreto.
Informações Sobre o Autor
Marcos Cesar Barbosa Maggi
Graduado em Bacharelado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco Turma 2004. Pós- Graduado em Direito Penal e Processual Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus