Resumo: Muito se tem discutido sobre o papel da América Latina e de seus intelectuais no âmbito das teorias sociais contemporâneas e tal fato remete à posição geopolítica do continente no mundo. A modernidade foi copiosa em construir modelos teóricos para serem transplantados a outras regiões do globo que não o próprio centro, local de sua elaboração. O principal referencial teórico utilizado para trabalhar tais noções é o filósofo argentino Enrique Dussel, um dos expoentes da corrente filosófica conhecida como Filosofia da Libertação. Frente a um contexto histórico de hegemonia das concepções neoliberais universais, muitas reflexões apresentam-se como alternativas a esse estado de coisas e se reivindicam críticas ao atual sistema social, econômico e político. Tendo isso em vista, tais proposições teóricas pretendem-se emancipadoras, sem, contudo, problematizar o próprio conceito de emancipação, o qual pode levar a distorções teórico-práticas. Sua alternatividade não ultrapassa um limite estabelecido pelo próprio ponto de vista que a sustenta, qual seja, o do centro. Por outro lado, desde há muito a noção de libertação também vem sendo utilizada para expressar ideia similar a partir de contextos distintos, que têm por ponto de partida o referencial periférico.
Palavras-chave: Logos histórico. Complexidade. Modernidade. Filosofia de libertação. Direitos humanos.
Abstract: Much has been discussed about the role of Latin America and its intellectuals in contemporary social theories, and this fact refers to the continent’s geopolitical position in the world. Modernity was copious in constructing theoretical models to be transplanted to other regions of the globe other than the center itself, the place of its elaboration. The intellectual production of the center remains closed in itself, denying itself to otherness and pretending with a theoretical tool of universalist pretensions. The main theoretical reference used to work on such notions is the Argentine-Mexican philosopher Enrique Dussel, one of the exponents of the philosophical current known as the philosophy of liberation. Faced with a historical context of hegemony of the neo-liberal conceptions of globalization, many reflections are presented as alternatives to this state of affairs and criticisms are demanded of the current social, economic and political system. With this in view, such theoretical propositions are intended to be emancipatory, without, however, problematizing the very concept of emancipation, which can lead to theoretical-practical distortions. Its alternative does not exceed a limit established by the very point of view that sustains it, that is, the center. On the other hand, the notion of liberation has long been used to express congener idea from different contexts, starting from the peripheral referential.
Keywords: Historical logos. Complexity. Modernity. Philosophy of liberation. Human rights
Sumário: Introdução. 1. Filosofia da Libertação frente a complexa da modernidade. 2. Superação do Etnocentrismo e eurocentrismo para um direito humano mais Humano. Conclusão. Referências
“Enquanto houver pobres, os direitos humanos deverão ser reinventados, renovando-os na práxis de libertação, para evitar que sejam ideologizados e utilizados como instrumentos de opressão…” (MARTÍNEZ. 2011).
INTRODUÇÃO
Atualmente, nota-se que não se precisa ser muito entendido, ou seja, ser um grande estudioso e uma mente de destaque para se fazer uma avaliação do contexto social vigente. Qualquer pessoa, através de uma conversa informal, de um bate papo caseiro sobre a vida, constata que estamos caminhando para um não sei o quê. Ou seja, que a humanidade sofre um forte abalo na sua ordem, na sua conjectura. O sistema de sociedade vigente constituiu-se por uma ideologia que assim como tantas outras na história falhou em seus propósitos. Contudo, esta, nomeada por alguns como: modernidade é tão influente e forte que acabou com quase todas as perspectivas de formas alternativas de organização social. Apoiada na crendice de que iria dar certo, que o capitalismo neoliberal, globalizado gerado pela modernidade, iria elevar a sociedade a um patamar superior foi tão acentuada que subsumiu e subsume grande parte das formas e esperanças de possibilidades de sociedades alternativas a ela.
Todavia, a partir da década de 60, surgiram-se novas correntes ideológicas enraizadas no cristianismo primitivo e no contexto social da América Latina. Dentre os vários movimentos que surgiram destas reflexões, destaca-se a Filosofia da Libertação que teve diversos momentos, dos quais vamos destacar o que é apresentado, estudado e estruturado, a partir dos anos 90, pelo argentino-mexicano, Enrique Dussel.[1]
Enrique Dussel, filósofo argentino, nascido em 24 de dezembro de 1934, atualmente com 82 anos, encontra-se radicado no México, desde 1975. É um dos maiores expoentes da Filosofia da libertação e do pensamento latino-americano em geral. Para ele, a filosofia como disciplina, discorre sobre a liberdade na obra de muitos filósofos durante a história da filosofia ocidental, mas fala da liberdade como conceituação em sua grande parte, sem uma práxis teórica. Desta forma, Dussel detém sua reflexão sobre a problemática concreta da realidade dos povos latinos e não tanto sobre o aspecto conceitual ou teórico da questão.
Os elementos histórico, o método de historicização dos conceitos, a práxis histórica da libertação, entre outros conceitos, constituem o marco teórico a partir do qual deve se pautar o discurso dos direitos humanos a serviço do povo oprimido. É sob esta perspectiva de pensadores, dentre eles, também, Ignácio Ellacuría, que se desenvolveu o ponto de partida para a realização de uma teoria crítica dos direitos humanos.
FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO FRENTE A COMPLEXA MODERNIDADE
A Modernidade possui em sua base, os direitos humanos. A análise deste direitos humanos, possui duas vertentes, se por um lado é libertador e iluminado, por outro é obscuro e opressor. Esta opressão, em se falando de América Latina, tem cerne no processo de colonização sofrido. Pensar os direitos humanos, sob o pensamento latino americano é não incidir em certos reducionismos próprios do pensamento moderno hegemônico: dogmatismo, pensamento fraco, monoculturalismo, historicismo eurocêntrico e etnocêntrico.
Dentro desta perspectiva, hodiernamente, há em processo, um movimento denominado de Filosofia da Libertação, que possui raízes na luta libertadora da América Latina, ocorrida entre as décadas de 1950 e 1970, cujo objetivo, é repensar os direitos humanos na visão latino-americana.
Por ser um movimento pragmático, a Filosofia da Libertação não se vislumbra com o que é filosófico mas sim busca, integralmente, conceituar a realidade objetiva das coisas, dando-lhe movimento e vida.
Segundo Martínez (2011), ao pensar a realidade histórica, a Filosofia da Libertação não se coaduna com fundamentações reducionistas que olvidam a complexidade que é a realidade. Este movimento deve combater estruturalmente a predominância da dogmática de fundamentos dos direitos humanos, evitando-se assim que se torne um instrumento de ideologização. Este movimento, Filosofia da Libertação não visa a defesa de um e exclusivo fundamento, sob pena de incidir na dogmática e perder seu espírito crítico, ignorando, assim, a práxis histórica.
Nesta esteira, Martínez (2011), estabelece três vias de fundamentação, estreitamente ligadas entre si, que podem ser sustentadas e argumentadas a partir da Filosofia da Libertação (o fundamento da alteridade, o fundamento sociopolítico ou da práxis de libertação, e o fundamento da produção de vida).
A Filosofia da Libertação, embora num primeiro momento tenha se inserido num conceito de pós-modernidade, posteriormente, numa visão mais ampla e baseada no logos histórico, partiu de uma ideia libertadora em busca dos fundamentos últimos para, a partir daí, poder denunciar e criticar as construções ideológicas que sustentam os sistemas produtores de vítimas e oprimidos (Martínez, 2011). E, esta mudança paradigmática ocorreu por terem os estudiosos do assunto compreendido que a Filosofia da Libertação vai além da simples superação da modernidade, cujo cerne é a dominação capitalista sustentada pela expressão ontológica da ideologia da classe burguesa, triunfante na revolução inglesa.
Enrique Dussel, como ponto central de seu pensamento, afirma que deve ocorrer uma verdadeira libertação do pensamento latino, que se mantém preso ao eurocentrismo, à filosofia européia, bem como se deve dar a libertação do trabalhador explorado. Segundo Dussel (1996, p. 20), somos apenas papagaios repetidores da filosofia que se produziu na Europa. É preciso reformular os pensamentos filosóficos latino-americanos, para trabalharmos nossa realidade.
Seria pensar que Karl Marx, que conviveu e estudou com vários outros grandes filósofos, contentasse-se em apenas comentar, ou melhor, reproduzir o que àqueles produziam, em nada acrescentando, quão prejudicados não seríamos sem sua original contribuição. Não é um desprezo da filosofia européia que é pregado por Dussel, mas uma atitude de filosofar sem que apenas se discuta o que já foi pensado.
Para Santos (2005, p. 98/99) é importante frisar que a promessa da igualdade, a promessa da liberdade e a promessa da dominação da natureza, consideradas como as três grandes promessas da Modernidade, não se cumpriram ou trouxeram consequências satisfativas. A igualdade não encontra respaldo ante a miséria caracterizada do Terceiro Mundo; a liberdade acaba sendo uma utopia diante de tanta opressão e exploração que se impõe com a violência policial, o trabalho infantil ou em condições pouco dignas, os conflitos raciais contra as minorias, a violência sexual, etc.; e a dominação da natureza produzida de forma egoísta e nada humanitária, culminando no abalo ecológico do momento. Neste empasse, deparamos com situações trazidas pela Modernidade, mas cujos resultados ou soluções não encontram guaridas nesta modernidade complexa.
Por isso que estudiosos tem situado a Filosofia da Libertação num contexto que vai além da pós-modernidade pois há um rompimento com a racionalidade moderna e uma adesão a um logos histórico que seja capaz de se responsabilizar pela realidade através da práxis histórica. Contudo, não obstante este espírito emancipador, não há um rompimento integral à busca dos “valores modernos” da igualdade e da liberdade, mas considera que ambos os valores devem fazer parte de um processo de libertação, devem conduzir à justiça social e dar prioridade à solidariedade humana, a qual tem seu fundamento na respectividade estrutural da pessoa com os demais seres humanos e o mundo na busca da produção e reprodução da vida. Em suma, a Filosofia da Libertação não pode permanecer na criação de fundamentos fracos de direitos humanos, mas deve construir fundamentos fortes, pautados na dignidade dos oprimidos, garantindo-lhes melhores perspectivas de vida.
Outro ponto, é que este movimento emancipador, ao pensar a realidade histórica, não pode se render a nenhuma fundamentação reducionista que cerceie a realidade. Esta é complexa e dentro desta complexidade é preciso repensar direitos humanos, para que estes sejam instrumentos da práxis dos povos. Por isso, a fundamentação deve possibilitar a abordagem das diversas parcelas da realidade nas quais influem e se veem afetados os processos dos direitos humanos: ética, social, econômica, cultural, política e jurídica.
SUPERAÇÃO DO ETNOCENTRISMO E EUROCENTRISMO PARA UM DIREITO HUMANO MAIS HUMANO
O movimento, Filosofia da Libertação, tem que superar o etnocentrismo dos direitos humanos, permitindo um dialogo entre as culturas, superando a ideia eurocêntrica dos direitos humanos e ampliando a visão de direitos humanos além do Ocidente, de forma a se evitar uma limitação da experiência a um único processo. Este movimento libertador deve promover a universalidade e universalização dos direitos humanos a partir dos processos de luta próprios de cada povo e cultura, criando uma globalização, que nada tem a ver com a banalização deste direitos.
O que se observa, ainda, é que grupos e movimentos sociais, em seus processos, ditos libertadores, continuam reproduzindo o discurso liberal dos direitos humanos, sendo que, em geral, não coincide nem com a sua práxis nem com os seus objetivos. Isto se leva a pensar na necessidade de se construir uma teoria dos direitos humanos capaz de responder às lutas de libertação e não meramente aos processos de liberalização.
É necessário que a filosofia latino-americana liberte-se e seja original, usando o que foi produzido para ver melhor e não para limitar, conduzindo à verdadeira produção filosófica.
Assim se passará para o segundo ponto importante da teoria de Dussel, ou seja, devemos desenvolver uma filosofia olhando para nossa realidade, para os nossos reais problemas, de forma que o passado nos sirva de norte e lição, assim como os europeus, que vivenciando uma visão de seu mundo, remete-se as tradições tentando dar respostas as suas próprias angústias, provindas de suas guerras, mas sem repetir seus antepassados, aprendendo com eles, desenhando uma nova maneira de encarar uma realidade a própria.
Não obstante, nossa filosofia deve indubitavelmente ser mesmo uma filosofia social, pois não haveria sentido em um primeiro momento se produzir uma filosofia metafísica da vida sendo que há tanta miséria e injustiça na nossa sociedade.
Dussel diz que o filósofo não tem só um papel de libertar, mas de conscientização, não um papel de ensinar, mas estar junto daquele que sofre. Uma filosofia feita a partir da práxis, literalmente da realidade social existente. É um real processo de conscientização, pois não é através do discurso que a libertação irá acontecer. Dussel diz que o latino liberta-se a partir da tomada de consciência de um olhar critico sobre sua realidade.
Acredita em um mundo de justiça, um mundo de igualdade, de possibilidades e direitos da vida, bem como a superação do encobrimento do outro, e a libertação que desencadearia.
Infelizmente, nossa produção, ainda, é a reprodução do que os europeus apresentem da nossa realidade, é uma identidade construída no desconhecimento de si mesmo, baseada no que o outro pensa e fala de nós. Conhecemos quem somos? Sabemos discursar sobre nossa realidade? Há particularidades que são só nossas? Dussel nos convida a uma mudança de paradigma, de atitude, do pensamento, uma provocação para a reflexão.
Quando falamos de América latina, pensamos nos povos de língua latina, mas no norte do globo também existem povos de língua latina como a França, o Canadá etc. De forma que isso se configura em uma visão deturpada e preconceituosa do desconhecimento do outro. A ideia muito mais complexa do que possamos imaginar, a tendência é de tentar homogeneizar. Esse é um dos traços da fragmentação da sociedade. Tanto que a classe média não se sente latino-americana, mas sim como descendentes de italianos, espanhóis, etc. É uma busca de identidade junto a Europa. Fruto de uma carência patriotista, de uma necessidade de se ver como o outro, fazendo com que qualquer pensamento próprio não seja valorizado, simplesmente por não pertencer a essa dita raça pura de europeus.
Além desta supervalorização de tudo o que é europeu, os latinos americanos também supervalorizam o que vem das Américas. Por exemplo, a produção cinematográfica dos EUA baseia-se na sua história e seu modo próprio de ver a vida e suas glórias. É um patriotismo que provoca orgulho de ser americano. O que não ocorre conosco. Os brasileiros, por exemplo, tem uma visão pessimista de nossa memória, desdenhamos, criticamos, e, podemos dizer até nos envergonhamos de nossa trajetória. Contudo, nenhuma dessas memórias pessimistas, são verdadeiras. A realidade não é nem tão gloriosa, nem tão desmoralizada, a vida é feita de percalços e vitórias em um caminho sinuoso, não linear (Martínez, 2011). É uma característica da nossa história muito marcada pela política, ou seja, pela negociação, desde a sala de aula até as relações externas, não restringindo nossa luta apenas a uma luta de classes. Por exemplo, atuais estudiosos criticam a ideia de Marx em restringir a luta de classes como o maior problema do capitalismo vigente em sua época. Segundo os críticos, ele teve uma interpretação reducionista. Para Marx, o trabalho aparece como o conceito nucleador das atividades fundamentais dos homens. Por meio do trabalho os homens reproduzem a sua vida social e, entrando em relação com a natureza, dela extraem as condições básicas de sobrevivência. E, esta se limitou, porque Marx, naquele contexto social vivente, não poderia ter uma visão mais ampla de que poderia haver ainda outros detalhes a serem abordados, pois não faziam parte de sua realidade, de forma que na América Latina caberia também se discutir sobre a questão étnica, de diferenciação de raças, fazendo uma reflexão pra além do paradigma europeu.
A América Latina é resultado da busca da ampliação da exploração, por isso há uma relação tensa internamente, de confronto. Mas não é isso que se prega, se tem na verdade uma visão de encobrimento que é pintada como um tipo de democracia mascarada, fruto de uma colonização de opressão. Uma história que nega as lutas sociais. Mesmo porque, quando se estuda nossa história, observa-se em vários autores uma breve citação sobre as lutas latinas, geralmente com um ar de derrota, pois se dá mais valor à revolução francesa, à revolução industrial e tantas outras lutas exteriores que não a nossa. Ou seja, primeiro estuda-se a universalização da filosofia, da história, para depois, de forma secundária estudar-se a nossa história, a realidade dos povos latinos e suas lutas. Tanto é que, uma falácia que nos foi implantada é que o índio somente foi escravizado por ser preguiçoso. Contudo, a fundo, buscando-se as raízes das coisas, observa-se que na verdade, o índio resistiu à escravidão e não teve nada de preguiçoso, lutou. Do mesmo modo, aduzem que se escravizou o negro porque trabalhava, mas estes também lutaram contra a opressão, no entanto isso não interessa, porque se acredita no discurso dito, no discurso feito e não no que realmente houve.
Devemos assim cultivar uma atitude de autocrítica, buscando analisar a ausência de filósofos na América latina. Porque os filósofos não fazem isso a partir de sua realidade? Parece que estamos no mundo das ideias, em conceitos platônicos sem uma aplicação prática para a realidade pungente, produzindo um pensamento deslocado e florido da nossa miséria, sem compromisso com o povo, sem engajamento. É preciso ter uma aproximação com a vida, com a realidade, vocacionar-se a partir da realidade. Porque criamos um mundo imaginário, de teorias, sem conexão com nossa realidade? Porque não temos uma ideologia ou pensamento próprios? Onde estão nossos filósofos latino-americanos? Precisamos nos conectar com o nosso próximo, ter um momento de afeto, onde se produz algum conhecimento sobre algo, um pensamento que se transforma depois em um discurso.
Primeiro a busca, o contato, a interação, depois a história. Mas, esta conquista só se efetiva, quando deixarmos de nos preocupar com outra realidade que não é a nossa e passamo a nos comprometer mais com aqueles que são a nossa realidade, ou seja, quando deixamos de vislumbrar com a teoria e passamos a buscar interagir com uma praxis real de vida.
Esta concepção da realidade histórica é mais apta para compreender o desenvolvimento dos direitos humanos. A partir dela, a clássica divisão em “gerações” ajuda a tomar consciência de que os direitos humanos não são algo estático, mas dinâmico no interior mesmo do Ocidente, frutos de conflitos e surgimentos constantes de novas subjetividades, o que permite compreender melhor que, a partir de outras culturas e civilizações, podem ser questionados em sua pretensa universalidade abstrata.
Defender as posturas idealistas dos direitos humanos, abstratas e universalistas, significa não compreender o caráter aberto e processual da história. É desconhecer a capacidade do ser humano de repensar constantemente o mundo em que vive, de assumir as possibilidades e capacidades que um momento histórico proporciona.
Dussel diz que os conceitos não são um fim em si mesmos, são apenas ferramentas para uma construção, que deve ser vivida de maneira concreta. É uma práxis, uma teoria construída com uma base ética, a partir de uma produção ética, não vendo o outro como objeto, mas como semelhante, são dois sujeitos, onde o outro é um mistério, não como uma coisa (MARTÍNEZ, Alejandro Rosillo. 2011).
De certa forma, todas as áreas do conhecimento, além da filosofia, estão começando a contribuir para uma melhor compreensão da realidade social. São ciências como a psicologia, a teologia, sociologia, e outras que precisam de fato libertar-se.
A práxis libertadora é um processo de, podemos dizer, de apropriação da tradição, de forma que esta passa a ser uma ferramenta para reflexão do intérprete, mas, também é um objeto externo que não deve ser adorado, e sim se digerir como um alimento.
Nesta esteira, Dussel adverte que nem tudo presta, deve se vomitar o que não serve e cuspir o que não acrescenta. É como o pai e a mãe que devemos ouvir, mas posteriormente superá-los, como seres independentes que somos, conseguindo fazer uma reflexão pessoal, tendo acesso às ideias novas que transformem nossa realidade (MARTÍNEZ, Alejandro Rosillo. 2011).
Esta concepção de superação e busca de uma identidade, encontra respaldo em Ignácio Ellacuría, que em suas análises nega a superposição de um macrossujeito que guie a história. A história é entendida por Ellacuría a partir da práxis humana e dos conceitos de capacitação e possibilitação. É o ser humano em sua integridade, através da práxis histórica, que toma sobre seus ombros a responsabilidade pela realidade. Daí a recusa em colocar os direitos humanos fora do contexto, da substancialidade da história, sem que isto signifique um esgotamento da criatividade humana. Uma libertação do que é místico e irreal. A práxis histórica é uma práxis real sobre a realidade. Esta recusa a uma compreensão abstrata dos direitos humanos leva Ellacuría a compreender, para além do liberalismo, a autêntica dinâmica da conquista dos direitos. Com efeito, desde esta compreensão da história pode-se realizar uma fundamentação popular e sócio-histórica dos direitos humanos, com base na satisfação das necessidades, mais em sintonia com a urgência de justiça para o Terceiro Mundo.
CONCLUSÃO
Os direitos humanos sempre existem em relação à sociedade e em função de uma concreção do ser humano. Sua compreensão a partir da teoria hegemônica defende a existência de “direitos” do indivíduo totalmente independentes das suas relações sociais e da forma como estes se constroem. E, além disso, não interessa se estes direitos se veem afetados, caso o indivíduo for indígena, empresário, operário, branco, negro, varão, mulher, etc. O famoso contrato social clássico neutraliza a capacidade criativa do ser humano. Ilude o indivíduo no sentido que ele têm direitos que, por sua vez, podem ser exigidos do Estado. E, desta forma, as pessoas perdem sua capacidade de luta pela dignidade e a construção de estruturas para o acesso igualitário aos bens que satisfaçam suas necessidades. Há uma renúncia tácita a esta capacidade de luta porque entregam ao Estado o poder de construir estas estruturas, que são edificadas em função dos interesses dos setores hegemônicos do país ou do mundo. Além disso, ao universalizar os direitos humanos, atribuindo-lhes um caráter eterno, racional e natural, invisibilizam-se as relações humanas conflitivas que deram origem à acumulação de determinados direitos, neste caso, dos direitos chamados de liberdade negativa.
Lado outro, os direitos humanos em uma teoria crítica têm seu fundamento na práxis dos povos em busca de justiça, de uma vida mais digna, com a produção e reprodução de sua vida. No atual contexto mundial, se realmente queremos levar a sério a justiça, é imprescindível assumir uma fundamentação destes direitos desde a práxis popular, e pensá-los a partir da realidade, como propõe Ellacuría. Assim, os direitos humanos não devem ser compreendidos apenas em função de uma sociedade institucionalizada, onde, com ordem, expressam-se os interesses considerados “legítimos”, mas como um espaço conflitivo onde subjetividades emergentes lutam por melhores condições de vida.
Em contramão, os direitos humanos convertem-se em um elemento ideológico que, mesmo que tenham nascido como fruto de uma subjetividade emergente, uma vez que se age a partir do poder, impede que outros sujeitos realizem processos de luta, enterrando qualquer novidade histórica. Neste contexto, por exemplo, Ellacuría pensa que determinados direitos nascidos da modernidade devem ser contemplados na construção de um novo espaço político capaz de possibilitar a superação das democracias de baixa intensidade, procedimentalistas e formalistas, que, nos países latino-americanos, são utilizadas para legitimar os interesses privatistas das classes sociais altas e das empresas transnacionais, para dar lugar a democracias onde se reconheçam novos direitos a partir das lutas sociais que reivindicam necessidades humanas. Por isso, é incorreto ver na luta pela transformação das estruturas sociais uma reivindicação exclusiva dos direitos sociais e um desprezo pelos outros tipos de direitos.
Destarte, os direitos humanos consistem no atuar responsável, frente a realidade, construindo-se espaços de luta que consigam subverter as injustiças e as opressões que impedem a satisfação das necessidades dos povos de todo o mundo. Trata-se de processos de todo tipo, não apenas normativos, como parecem afirmar as teorias liberais e determinadas correntes analíticas, mas também processos econômicos, políticos, culturais, sociais com vistas à libertação integral das pessoas. Processos que permitam a transferência de poder para os setores marginalizados das sociedades, para que através de seu empoderamento possam tornar efetivo aquilo que se prega formalmente como direito humano desde a sua própria particularidade.
Concluindo, podemos assinalar que uma teoria crítica dos direitos humanos nos leva a defender que enquanto houver oprimidos, há opressores e, nesta linha, mister se buscar uma nova perspectiva dos direitos humanos. Quando não houver mais oprimidos é porque foi superado mundialmente o estado de satisfação das necessidades básicas e foi superada também a desigualdade injusta. Ou seja, enquanto houver pobres, os direitos humanos deverão ser reinventados, renovando-os na práxis de libertação, para evitar que sejam ideologizados e utilizados como instrumentos de opressão.
Informações Sobre o Autor
Thaís Regina Santos Saad Borges
Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais