Resumo: Este trabalho trata da história da assistência jurídica aos pobres na Península Ibérica dos séculos XIII a XV. Para tanto, relaciona as noções de pobreza, misericórdia cristã e a imagem do soberano medieval como protetor dos pobres à institucionalização de formas jurídicas próprias de assistência processual aos necessitados no período estudado.
Palavras chaves: Assistência Jurídica. História. Idade Média. Pobreza. Poder Régio.
Abstract: This study examines the history of legal aid to the poor in Iberian Peninsula of centuries XIII to XV. To do it, relates the notion of poverty, christian mercy and the image of the medieval king as protector of the poor in the institutionalization of legal aid.
Keywords: Legal aid. History. Middle Ages. Poverty. Kingly power.
Sumário: Introdução; 1. Pobres e pobreza na Idade Média; 2. Assistência jurídica aos pobres na Idade Média; 3. O rei, protetor dos pobres; Conclusões; Referências.
Introdução
Escassos são os estudos que tratam da história da assistência jurídica, notadamente, no período medieval. Alguns afirmam, sem atentar aos documentos históricos, que, na Idade Média, inexistiu assistência jurídica aos pobres ou que nenhuma alteração significativa no tema ter-se-ia registrado desde Justiniano; outros chegam a dizer que, somente após a Revolução Francesa, o Estado se preocupou em estabelecer o patrocínio oficial aos necessitados. Tais conclusões apenas demonstram o quanto o preconceito, felizmente já desconstruído no âmbito da historiografia, de uma “idade das trevas”, “obscurantista” e “ignorante” tem prejudicado a análise histórica de temas jurídicos.
A isto acresce-se a perspectiva romanística dos estudos históricos-jurídicos que vinha prevalecendo no Brasil desde a criação dos cursos jurídicos no país. Exaltando as contribuições do sistema jurídico romano, esta perspectiva historiográfica costuma saltar da antiguidade à Era das Codificações do período pós-revolucionário, sem qualquer aprofundamento sobre o direito medieval, como se os grandes Códigos fossem uma perfectibilização dos institutos jurídicos romanos.[1]
Feitas estas considerações, enunciamos nosso problema fundamental: existiu, ao menos no plano das formas jurídicas, assistência jurídica aos pobres na Idade Média? Como explicar que diversas fontes do direito medieval ibérico previssem a atuação de um “vozeiro” ou advogado em favor dos pobres, numa época em que aquele profissional não era indispensável à administração da justiça e, portanto, não era de presença obrigatória no processo? Como compreender a afirmação de Alexandre Herculano de que, em certos casos, nos pleitos envolvendo pessoas pobres, “um dos juízes era obrigado a despir o carácter de magistrado para revestir o de defensor do desvalido”?[2] Como compreender as emissões legislativas dos reis ibéricos nessa matéria?
Responder a essas indagações demanda, primeiramente, uma análise da noção de pobreza na Idade Média e do papel do cristianismo na formação de institutos jurídicos de assistência processual aos pobres, realizada a partir de fontes históricas de natureza variada, circunscrevendo-se, porém, o corpus documental ao âmbito geográfico ibérico. Em seguida, verifica-se como o direito medieval, sobretudo a legislação régia, procurou equalizar a relativa fragilidade do pobre em juízo e analisa-se qual concepção teológico-política acerca do poder régio sustenta as fontes legislativas da assistência jurídica aos necessitados.
1. Pobres e pobreza na Idade Média
“Não atentarás contra o direito do pobre em sua causa” (Ex 23,6).
“Maldito o que viola o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva!” (Dt 27, 19).
“Então o Rei dirá aos que estão à direita: – Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes;nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim. […] – Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.” (Mt 25, 34-40)
Se a pobreza existe desde o mundo antigo, na Idade Média, a influência do cristianismo contribuiu significativamente para modificar a visão acerca da pobreza e para criar instrumentos de assistência aos pobres. Diversos textos bíblicos orientaram a conduta cristã em relação aos pobres. Seguindo os preceitos bíblicos, o cristianismo incorpora em sua espiritualidade a prática das sete obras de misericórdia corporal: dar comida a quem tem fome, dar bebida a quem tem sede, vestir os nus, visitar os enfermos, remir os cativos e enterrar os mortos. Desde os primórdios do cristianismo, a misericórdia se manifestou no tratamento dispensado aos doentes, às viúvas, aos órfãos e aos pobres, materializando-se nas obras assistenciais, de que são exemplos os hospitais cristãos, públicos e gratuitos, que, desde o século IV, começaram a surgir no oriente e no ocidente[3].
Ao longo da Idade Média, nota-se a insistência dos pregadores cristãos na necessidade de acolhimento ao pobre e da prática da misericórdia. Citando apenas fontes ibéricas, mencionamos o valenciano S. Vicente Ferrer (1350-1419), que afirmava, por exemplo, que os pobres “são a expressa imagem de Cristo” e recomendava que fossem tratados como “se fossem reis”.[4] Em seus sermões, o pregador recomendava, ainda, aos ricos que empregassem parte de seus bens em ajudar os pobres, órfãos e hospitais[5].
A literatura penitencial bem testemunha a preocupação de formar a consciências dos fiéis em relação ao tratamento que deveria ser dispensado aos pobres. Os manuais de confissão preceituavam aos confessores que examinassem o penitente quanto ao cumprimento das sete obras de misericórdia corporal.[6] Um Confessionário do século XV, compêndio de uma obra publicada anteriormente (o “Libro de las Confesiones” de Martín Pérez, publicado em 1316), atentava para obrigação dos prelados de cuidar dos pobres, órfãos e viúvas, porque todas essas pessoas foram confiadas especialmente aos bispos quando o consagraram.[7] Chegava, inclusive, a impor a sanção da excomunhão menor para aqueles que maltratassem os pobres e os despachasse contra o direito ou com o uso da força.[8]
A literatura também enfatiza a necessidade de se socorrer os desvalidos. No “Romanç d’Evast e Blaquerna”, o maiorquino Ramón Llull (1232/5-1316), em várias passagens, dá exemplo de práticas caritativas realizadas pelos personagens. Em uma das cenas, o personagem Evast ordena em seu testamento que “se funde um hospital onde sejam acolhidos e assistidos todos os pobres, desvalidos e enfermos”[9]. Em outra passagem figura um cônego que doou todos os seus bens para sair “pedindo por amor de Deus para os pobres envergonhados, desvalidos, enfermos, assim também para casar donzelas pobres e criar meninos órfãos e necessitados, a quem procurava, depois, dar mestres de letras ou artes mecânicas para que pudessem, assim, ganhar a vida”[10]. Outro trecho da novela luliana trata mais especificamente da assistência jurídica ao pobre: apresenta um cônego que se dispunha a “honrar, assistir e advogar pelos pobres e pelos órfãos e viúvas que não tinham quem lhes defendesse”[11].
Da leitura dessas fontes, constatamos que, para os medievais, o termo pobre não era um simples sinônimo de indigente; nem pobreza se identificava com a ausência de recursos materiais.[12] Em um conhecido estudo sobre o tema, o historiador francês Michel Mollat afirma que, na Idade Média, a pobreza se apresenta como uma situação temporária ou permanente de debilidade, dependência e humilhação, caracterizada pela privação dos meios que garantem força e consideração social: dinheiro, relações, influência, poder, ciência, qualificação técnica, honorabilidade de nascimento, vigor físico, capacidade intelectual, liberdade e dignidade pessoais.[13] Trata-se, pois, de uma noção ampla que, além da pobreza econômica, abrange situações diversas de fragilidade tais como a viuvez, a orfandade, a enfermidade, a velhice, o cativeiro, a prisão, o exílio, etc.
Na Idade Média, os pobres ganharam visibilidade e, com a pregação cristã, formou-se uma consciência acerca da miséria e do dever de aliviá-la. Surgiram confrarias e congregações religiosas dedicadas à prática da caridade. Surgiram instituições assistenciais tais como os hospitais, as casas para doentes mentais, asilos, orfanatos, abrigos para leprosos, etc., que contribuíram, significativamente, para melhorar as condições de vida dos desvalidos.[14] E a Península Ibérica bem cedo viu contar com estas instituições.
Diante de tantas iniciativas assistenciais, teria a Idade Média se mantido indiferente à questão da assistência jurídica ao pobre?
2. A assistência jurídica aos pobres na Idade Média
Constantino encontrou a Cruz. Doravante, o direito e os métodos de administração da justiça sofrerão crescente influência da nova religião.[15] Um dos primeiros reflexos disso, no que se refere ao tratamento do pobre em âmbito processual, foi a instituição, por Constantino, do privilégio de foro às viúvas, órfãos, enfermos e miseráveis, que poderiam deduzir suas pretensões ou defesas, em primeira instância, diretamente perante o imperador.[16] Posteriormente, Justiniano dita disposições relativas à assistência aos pobres e reitera uma regra de assistência jurídica seguramente mais antiga: prescreve ao Pretor que dê advogado ao pobre.[17]
Ao longo da Idade Média, os Bispos recomendarão que a assistência jurídica ao pobre, assegurada no ordenamento canônico, seja incorporada ao direito comum. Na Península Ibérica dos séculos XII e XIII encontram-se, em vários foros e costumes municipais, a obrigação de o alcaide elevar a voz em defesa de órfãos, viúvas, enfermos, miseráveis e de outras pessoas em situações de fragilidade, ou o dever de nomear vozeiro que fale por estas pessoas, inclusive, sob pena de ser multado acaso deixe o pobre sem assistência.[18] Por vozeiro designava-se o advogado. Não se exigia, à época, que fosse letrado. Era algum “homem bom” disposto a levar em juízo a voz de seus concidadãos ignorantes ou que, por algum motivo, eram incapazes de arrazoar pessoalmente seus pleitos.[19] Ressalte-se, que pelas disposições legais vigentes, as partes eram obrigadas a comparecer pessoalmente a juízo para arrazoarem seus pleitos, obrigação que subsistiu, mais ou menos, em Castela, até a época de Afonso X[20]. Até então, a nomeação de vozeiro ao pobre constituía exceção ao dever de as partes arrazoarem pessoalmente em juízo.[21]
Entretanto, neste contexto, importa-nos, sobretudo, analisar a prática legislativa régia no que diz respeito à institucionalização de formas jurídicas próprias de assistência aos necessitados em âmbito processual, notadamente a partir do sécullo XIII, quando, em Portugal e Castela, verifica-se um movimento de extensão e afirmação do poder real, inclusive, com tentativas de unificação jurídica.
Afonso X, o Sábio (1221-1284), rei de Castela entre 1252 e 1284, pretendeu unificar os diversos foros legislativos existentes em seus domínios. Para tanto, fez redigir três grandes obras jurídicas: o Fuero Real, o Espéculo e as Siete Partidas.
O Fuero Real (1255) proíbe a prisão por dívida daquele que, beneficiado pelo serviço do advogado, não tinha bens para pagar-lhe o salário, caso em que a ajuda do advogado teria sido prestada “por amor de Deus”.[22]
O Espéculo (1255-1260) prescreve o dever de dar vozeiro “a las personas coytadas”:
“Como os juízes devem dar vozeiros à parte que lho demandar, e ainda às pessoas coitadas; e que pena se deve dar ao vozeiro que não quiser assim fazer.
Cada um dos que dissemos que têm o poder de julgar, que mostramos nas outras leis […], dizemos que são obrigados pelo direito a dar vozeiros a ambas as partes, se lho pedirem, ou a uma delas se entende que não sabe arrazoar seu pleito. Mas, se porventura, viúva, ou órfão de pai ou mãe, ou homem de ordens, ou cavaleiro que não tenha senhor, ou outro que seja provocado a ter pleito ante o rei e não possa ter vozeiro, deve o Adiantado Maior dar-lhe vozeiro. E, se aquele com quem algum destes vier a litigar for tão poderoso de modo que o Adiantado Maior não possa dar-lhe outro tão poderoso como vozeiro, o Adiantado poderá ser o vozeiro por mandado do rei. Entretanto, enquanto for vozeiro, deve o Adiantado deixar o adiantamento.”[23]
As Sete Partidas (1256-1265) ordena aos julgadores que dêem advogado “à viúva, ao órfão e outras pessoas coitadas”:
“Viúva, órfão e outras pessoas coitadas, hão de seguir seus pleitos, às vezes, em juízo. E, porque aqueles contra quem hão de contender são poderosos, não pode faltar advogado que se atreva a arrazoar por eles. Donde dizemos que os julgadores devem dar advogado a qualquer das pessoas sobreditas que lho pedirem. E o advogado, a quem o juiz mandar, dever arrazoar por ele por módico salário. E, se porventura for tão coitada a pessoa, que não tenha do que lhe pagar, deve o juiz mandar que o faça por amor de Deus, e o advogado fica obrigado a fazê-lo. E se a parte tiver com que pagar o advogado, então dizemos que ele deve ajustar-se com ela.”[24]
A Lei das Sete Partidas equipara ao pobre a viúva e o órfão. Estes estariam numa situação de presumida fragilidade que não se identifica necessariamente com a ausência de recursos econômicos. Por outro lado, as Partidas vislumbram a possibilidade de essas pessoas chegarem a contender contra poderosos. É essa situação de fragilidade que justificaria, em âmbito processual, a obrigação de dar advogado ao pobre.
Nas Partidas, o apelo à caridade, no caso em que o beneficiado não pudesse arcar com o pagamento do “módico salário”, testemunha o influxo do cristianismo na criação da norma. Mesmo nesse caso, a atuação do causídico era impositiva.
Por outro lado, o próprio Afonso X, nas Cortes de Zamorra de 1274, instituiu a advocacia oficial nos pleitos do rei (que tramitavam perante a Corte): dois advogados, remunerados pela Coroa, encarregar-se-iam, com exclusividade, das causas dos pobres que chegassem à Corte, proibindo-se-lhe a advocacia em outros pleitos[25]. Com o tempo, os advogados dos pobres estenderam-se por diversos juízos e tribunais de Castela. Onde existiam os “advogados de pobres”, apenas em caso de impedimento desses, estavam os outros causídicos compelidos a atuar “por amor de Deus”.[26] Um ordenamento dado à cidade de Toledo, em 1441, estipulava que o salário do “advogado de pobres, órfãos viúvas e pessoas miseráveis” fosse pago pelas rendas da cidade.[27] Além disso, os necessitados podiam contar ainda com a assistência jurídica prestada pelos clérigos. Estes, embora estivessem proibidos de advogar na jurisdição civil em favor de terceiros, poderiam fazê-lo nas causas dos desvalidos.[28]
Em Portugal também se verifica, ao menos desde o século XIII, a intervenção do poder régio com vistas a equilibrar a situação processual dos necessitados, embora, assim como em Castela, a assistência jurídica estivesse prevista em vários foros municipais. Em 1264, uma lei de Afonso III estabelecia que, em caso de prisão de um “pobrico” ou de outros que não pudessem “ser dados por fiadores”, o alvazil deveria dar advogado ao preso, fixando o salário a ser pago pelo réu ao seu defensor. Se o preso não pudesse pagar ou não houvesse advogado disponível para a defesa, “um dos alvazis advogue por ele de maneira que não venha a ser condenado por falta de advogado”.[29]
As Ordenações Afonsinas (1446) estabeleceram que a responsabilidade de promover a justiça em favor dos pobres, perante os desembargadores, era do procurador dos feitos reais, remunerado pela Coroa:
“Mandamos que o Procurador dos Nossos Feitos seja Letrado e bem entendido, para saber espertar e alegar as cousas e razões que a Nossos Direitos pertencem, porque muitas vezes acontece que, por seu bom avisamento, os Nossos Desembargadores são bem informados e ainda Nossos Direitos Reais acrescentados. […] E VEJA, e procure bem todos os feitos da Justiça e das Viúvas, e dos Órfãos, e miseráveis pessoas, que à Nossa Corte vierem, sem levando deles dinheiro nem outra cousa de salário, sem advogando nem procurando outros nenhuns feitos que a Nós não pertençam sem Nosso especial Mandado, como hei dito.”[30]
As Ordenações silenciam quanto à assistência em primeira instância, mas não se deve olvidar que a Lei dos Alcaides e alguns forais impunham o dever de dar vozeiro ao pobre.
Verifica-se, assim, o esforço dos monarcas em instituir mecanismos que facilitem o acesso do pobre à justiça. Mas que concepção teológico-política acerca do poder régio anima tais providências?
3. O rei, protetor dos pobres
“Piedoso deve ser o rei ou príncipe, ou regente de reino, aos bons e humildes a quem a ocasião – e não a vontade – conduziu-os a errar e aos pobres e lacerados que não têm auxílio nem ajuda, e aos órfãos, e tristes, e lacerados, e enfermos, e viúvas, e necessitados, e aos que caíram de seu estado. (Livro dos doze Sábios ou Tratado da Nobreza e Lealdade, século XIII)”[31]
Eis a imagem do rei protetor dos pobres – pintada em um espelho de príncipes (speculum principis) do século XIII, obra de caráter didático-moral que tinha por fim educar os reis segundo os princípios éticos cristãos. Rei pela graça de Deus, o monarca deve exercer a justiça com plenitude e ser misericordioso. Essa imagem é incorporada na lei das Sete Partidas de Afonso X:
“Singular obra é dos reis tolher as contendas entre os homens, fazendo justiça e direito, livrando os oprimidos do poder dos injustos, e ajudando às viúvas e aos órfãos, que são gente fraca, e ainda aos estrangeiros na terra, a fim de que não sofram danos nem injustiças. E isto concorda com o que afirmam as leis antigas, que dizem pertencer ao ofício do rei, destacadamente, proteger e amparar a tais pessoas sobre todas as outras de seu senhorio.”[32]
Amparar os pobres é oficio do rei, que se faz mais necessário quando ao interesse do desvalido se contrapõem os interesses de algum poderoso. As Sete Partidas consideram que os necessitados são a parte mais fraca nas contendas com os poderosos, decorrendo daí a obrigatoriedade da assistência do advogado. Essa conexão entre assistência jurídica e tutela real é mais acentuada quando se consideram as hipóteses em que o processo era submetido à jurisdição do rei: os desvalidos eram assistidos por dois advogados remunerados pela Coroa, em Castela, ou pelos Procuradores dos Feitos da Coroa, em Portugal.
Outras emissões legislativas dos reis ibéricos que conferem particular proteção aos necessitados, demonstram a tentativa de conformar o exercício do poder régio a esta imagem do rei como protetor dos pobres. A Lei dos Poderosos[33] de D. Afonso IV de Portugal (1325/1357) proibia aos poderosos de comparecer pessoalmente às audiências, quando litigavam contra um pobre, caso em que deveriam fazer-se representar por procurador com o fim de se evitar algum injustiça no julgamento. Aí se insere também o privilégio processual[34], previsto nas Sete Partidas, de que as causas das viúvas, órfãos e pobres poderiam ser conhecidas e julgadas diretamente pelo rei (o privilégio de foro dos pobres), bem como os pleitos dos idosos, caso estes assim o quisessem, a fim de que tramitassem com maior celeridade[35]. Disposição similar se encontra nas Ordenações Afonsinas, no sentido de que o órfão, a viúva ou as pessoas miseráveis, ainda que fossem autores, poderiam escolher o Corregedor da Corte ou os juízes da Casa Civil para julgarem diretamente o feito, se não optassem pelos juízes ordinários.[36] As Ordenações previam ainda a isenção das custas processuais no agravo, desde que a parte fizesse o juramento de pobreza.[37]
Assim, a administração da justiça não prescinde do reconhecimento de um diferença fundamental entre os súditos. As Ordenações Afonsinas ressaltam que os reis, nas obras da “justiça, como de graça ou mercês, devem seguir o exemplo daquilo que Ele [Deus] fez e ordenou, dando e distribuindo a todos não por uma guisa, mas a cada um apartadamente, segundo o grau e condição, e estado, de que for”[38]. Conceder assistência jurídica e privilégios processuais aos pobres é também considerar a desigualdade que há entre os homens e buscar equilibrar, no âmbito processual, a diferança entre ricos e pobres, fracos e poderosos, com o fim de prevenir injustiças no processo.
Conclusões
Não cabe aqui, sob pena de incorrer-se em anacronismos, análise baseada em eventual noção contemporânea de assistência jurídica, uma vez que o trabalho historiográfico consiste em ouvir o que os documentos históricos têm a dizer, esforçando-se para evitar projetar sobre eles teorias preestabelecidas.[39] A aproximação que tentamos empreender teve como ponto de partida a própria Idade Média, é dizer, a mentalidade que animou o homem medieval.
Assim, não se pode compreender a existência de instrumentos de assistência jurídica na Idade Média sem considerar a influência do cristianismo na sociedade medieval. Na Idade Média, o cristianismo assentou as bases para o surgimento de iniciativas destinadas a fazer misericórdia aos necessitados. Dentre estas, não podiam faltar aquelas de ordem jurídica, tal a assistência processual àqueles que se encontravam em situação de fragilidade, notadamente, frente a eventuais poderosos. Ao produzirem normas processuais prevendo a assistência jurídica aos necessitados, os reis medievais tentaram conformar sua atividade legislativa à imagem cristã do soberano como protetor dos pobres e dispensador da justiça, ofício que a teologia política medieval atribuiu aos monarcas.
Informações Sobre o Autor
Edilberto Alves da Silva
Bacharel em Direito pela UFPI com pós-graduação na Universidade Pontifícia de Salamanca. Defensor Público Federal