Sim, o segurado que já recebe auxílio-acidente pode, em tese, obter auxílio-doença caso volte a ficar temporariamente incapaz para o trabalho, desde que cumpra todos os requisitos exigidos. Contudo, os dois benefícios não são pagos simultaneamente. Enquanto perdurar o auxílio-doença, o pagamento do auxílio-acidente fica suspenso, voltando a ser restabelecido a partir da cessação da incapacidade temporária. A regra decorre da interpretação conjunta do artigo 86 da Lei 8.213/1991, do artigo 124, §2.º, da mesma lei, e dos atos normativos internos do INSS, que vedam a cumulação financeira mas preservam o direito de reativação. A seguir, desenvolvemos todos os aspectos legais, práticos e estratégicos envolvidos nessa coexistência de direitos, fornecendo exemplos, jurisprudência e um roteiro passo a passo para segurados e operadores do Direito.
conceitos fundamentais dos benefícios
O auxílio-acidente é indenizatório. Ele compensa, com 50 % do salário-de-benefício, a redução permanente da capacidade laboral após consolidação das lesões. Não exige afastamento contínuo do trabalho e pode ser percebido em conjunto com salários, pensão por morte ou outro auxílio-acidente referente a membro distinto, mas não com aposentadoria.
Já o auxílio-doença (rebatizado pela Lei 13.846/2019 como auxílio-por-incapacidade temporária) tem natureza substitutiva do salário, pago enquanto houver impossibilidade de exercer atividade habitual por período superior a quinze dias. Extingue-se com a recuperação, a conversão em aposentadoria por incapacidade permanente ou a reabilitação profissional.
fundamento legal da não cumulação simultânea
O artigo 124, §3.º, da Lei 8.213 determina que “não se acumularão o auxílio-doença com qualquer auxílio-acidente”, mas o próprio artigo 86, §2.º, assegura que o auxílio-acidente “não será devido quando o segurado já estiver recebendo outro benefício de espécie diversa, salvo pensão por morte”. A leitura sistemática indica suspensão, não cancelamento. Ao cessar o auxílio-doença, o auxílio-acidente retorna no mesmo valor e na mesma DIB (data de início), preservando atrasados eventualmente devidos.
requisitos para a concessão do novo auxílio-doença
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qualidade de segurado mantida (período de graça ou contribuições em dia);
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carência de doze contribuições, exceto em acidente de qualquer natureza ou doenças previstas em lista do Ministério da Saúde/Previdência;
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incapacidade temporária comprovada em perícia médica;
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requerimento formal via Meu INSS, telefone 135 ou PSS.
procedimento administrativo passo a passo
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protocolar atestado médico inicial (ASO ou laudo) no Meu INSS;
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agenda-se perícia;
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se deferido, o sistema SISBEN suspende automaticamente o pagamento do auxílio-acidente;
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o segurado pode acompanhar no aplicativo a movimentação do benefício original, indicado como “suspenso” até a data prevista de cessação do auxílio-doença;
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após alta, o auxílio-acidente é restabelecido sem necessidade de novo pedido, salvo erro; em caso de omissão, formalizar “Solicitação de Restabelecimento de Auxílio-Acidente”.
reflexos trabalhistas
Quando o auxílio-doença tem natureza acidentária (código B-91), o contrato de trabalho fica suspenso, conta tempo de serviço e gera estabilidade de doze meses após a alta. O FGTS deve continuar a ser recolhido. Se o auxílio-acidente havia sido concedido em virtude do mesmo acidente, a empresa não recolha FGTS durante a fase anterior, mas passa a recolher a partir do afastamento temporário pela nova incapacidade.
jurisprudência dominante
– TRF-4, AC 5008645-37.2020.4.04.7108: reconheceu a suspensão e posterior restabelecimento do auxílio-acidente, com pagamento das parcelas vencidas desde a alta do auxílio-doença.
– STJ, AgInt no REsp 1.721.685/RS: reafirmou que a acumulação financeira viola o art. 124, mas a suspensão não implica renúncia ao direito.
– TNU, Tema 216: fixou tese: “É legítima a suspensão do auxílio-acidente durante o recebimento de auxílio-doença; restabelece-se automaticamente após a cessação deste”.
cálculo dos valores ao restabelecer
O auxílio-acidente é reajustado pelos mesmos índices aplicáveis às aposentadorias e volta corrigido. Exemplo: benefício inicial R$ 1.200,00 em 2022. Durante 8 meses em 2024 o segurado recebeu auxílio-doença de R$ 2.000,00. Em 2025, ao restabelecer, seu auxílio-acidente passa a R$ 1.260,00 (IPCA-E acumulado). Diferenças não são devidas, pois houve suspensão legítima, não cancelamento.
estratégias de defesa do segurado
– sempre verificar se a suspensão ocorreu corretamente;
– exigir carta de concessão do auxílio-doença e, depois, do restabelecimento;
– guardar todos os comprovantes bancários;
– se o INSS não reativar, protocolar requerimento de “restabelecimento” antes de ingressar em juízo;
– em ação judicial, pedir tutela para reativação imediata e recálculo retroativo.
riscos de erro administrativo
Falhas comuns: manutenção simultânea dos pagamentos (gerando cobrança posterior), cancelamento definitivo do auxílio-acidente ao invés de suspensão, restabelecimento com valor incorreto ou data errada. Todos podem ser revistos em esfera administrativa ou judicial, sem decadência para erros de cálculo (Súmula 160 TCU).
interações com a reforma da previdência
A EC 103/2019 não alterou a vedação de acumular financeiramente, mas mudou fatores de cálculo. O auxílio-acidente continua sendo 50 % do salário-de-benefício, enquanto o auxílio-doença passou a ter 91 % da média apurada sobre todos os salários. Isso pode criar diferença relevante, justificando o interesse do segurado em requerer o auxílio-doença mesmo ciente da suspensão temporária do auxílio-acidente.
exemplos práticos
Exemplo 1 – João recebeu auxílio-acidente por perda parcial de audição (2021). Em 2024 sofre hérnia de disco e obtém auxílio-doença. O INSS suspende o primeiro benefício. Após seis meses, João retorna ao trabalho e o auxílio-acidente é restabelecido automaticamente.
Exemplo 2 – Maria, costureira, recebe auxílio-acidente por perda funcional de mão esquerda (2020). Em 2025 desenvolve depressão grave. O INSS defere auxílio-doença comum. Ao cessar, não reativa o auxílio-acidente. Ela ingressa com Mandado de Segurança, obtém decisão liminar determinando restabelecimento e pagamento corrigido desde a alta.
Exemplo 3 – Paulo recebe auxílio-acidente. Sofre novo acidente de trânsito e solicita auxílio-doença. O sistema, por falha, manteve os dois pagamentos. Dois anos depois, o INSS cobra devolução. Paulo apresenta defesa administrativa demonstrando erro exclusivo da autarquia e boa-fé, evitando desconto.
perguntas e respostas
Recebo auxílio-acidente; posso recusar o auxílio-doença para não suspender meu benefício?
Pode, mas perderá a cobertura previdenciária durante a incapacidade. A recusa também afeta direitos trabalhistas, como estabilidade.
Preciso cumprir nova carência?
Não, se a nova incapacidade decorreu de acidente de qualquer natureza ou ocorrer dentro do período de graça.
O valor do auxílio-doença pode ser menor que meu auxílio-acidente?
Sim, se sua média salarial diminuiu. Nesse caso, avalie financeiramente, mas lembre-se de que o auxílio-doença garante recolhimento de FGTS (código B-91).
Se virar aposentadoria por incapacidade, perco o auxílio-acidente?
Sim. A lei proíbe acumular auxílio-acidente com qualquer aposentadoria.
O INSS pode descontar valor pago em duplicidade?
Pode, mas deve respeitar processo administrativo e princípio da boa-fé. Geralmente parcela em até trinta vezes.
conclusão
Quem já recebe auxílio-acidente mantém o direito de buscar auxílio-doença sempre que enfrentar nova incapacidade temporária. A lei não permite pagamentos simultâneos, mas assegura a suspensão provisória do primeiro benefício, com restabelecimento automático após a alta. Para o segurado, isso significa proteção integral da renda sem perda definitiva de direitos; para a empresa, envolve atenção a obrigações trabalhistas durante o afastamento. Conhecer as regras, guardar documentação e agir rapidamente diante de falhas administrativas são passos essenciais para garantir o equilíbrio econômico do trabalhador e evitar litígios prolongados.