Se você atuou na linha de frente contra a Covid-19 e continuou recebendo apenas 10 % de adicional de insalubridade, provavelmente está deixando de receber 40 % sobre o seu salário-base—diferença que pode alcançar valores expressivos quando somada mês a mês desde o início da pandemia. A boa notícia é que a legislação e a jurisprudência reconhecem esse direito; a má é que ele prescreve rapidamente: a cada mês sem ação uma parcela retroativa é perdida. Conhecer as regras, saber calcular o que é devido e agir sem demora são passos decisivos para transformar esse direito em dinheiro no seu bolso.
O que é adicional de insalubridade e como funciona
O adicional de insalubridade é um plus salarial pago a quem desempenha atividades exposto a agentes nocivos acima dos limites de tolerância fixados na Norma Regulamentadora nº 15 (NR-15) do Ministério do Trabalho. Ele pode ser de 10 %, 20 % ou 40 % do salário-mínimo da região ou, caso haja norma coletiva mais favorável, sobre o salário-base do empregado. Nas profissões de saúde, o agente nocivo predominante costuma ser o biológico, classificado na própria NR-15 como de grau máximo quando o contato é permanente com pacientes infectocontagiosos ou material infectante.
Como a pandemia mudou o grau de risco biológico
A Covid-19 alterou todo o cenário de risco. Até então, muitos trabalhadores de enfermagem recebiam apenas 10 % ou 20 %, pois o entendimento predominante—sobretudo em clínicas ambulatoriais—era o de exposição eventual ou intermitente. Com a chegada de um vírus desconhecido, altamente contagioso e fatal, a exposição passou a ser caracterizada como permanente e de grau máximo para quem tratava diretamente de pacientes suspeitos ou confirmados. Na prática, isso elevou o adicional ao patamar de 40 %. Mesmo assim, muitos empregadores não reajustaram o percentual, alegando ausência de previsão específica em lei ou esperando novas regulamentações que jamais vieram.
Por que o adicional deve ser de 40 % para quem atuou contra a Covid-19
A própria NR-15 prevê que o contato permanente com doentes em isolamento por doenças infectocontagiosas exige grau máximo de insalubridade. Durante a pandemia, unidades de internação, UTIs, setores de coleta de swab, enfermarias e até ambulatórios passaram a lidar com pacientes infectados em regime de isolamento. Era impossível excluir o risco. Nesses contextos, a fiscalização do trabalho e diversas decisões judiciais passaram a reconhecer a necessidade de pagar 40 % para todos os profissionais diretamente envolvidos—médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos, auxiliares, maqueiros, profissionais de limpeza hospitalar e até motoristas de ambulância.
Base legal e normas aplicáveis
Além da NR-15, o art. 192 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) disciplina o adicional de insalubridade. A Lei 13.979/2020, editada no início da pandemia, não tratou de insalubridade, mas reconheceu a emergência sanitária e serviu de fundamento para decisões que ampliaram a proteção do trabalhador. Já a Lei 14.128/2021 criou indenização para profissionais de saúde incapacitados pela Covid-19, reforçando o caráter de alto risco da atividade. Por fim, a Portaria GM/MS 639/2020 incluiu a Covid-19 como doença ocupacional presumida, fortalecendo o argumento de exposição a agente biológico de grau máximo.
Quem tem direito
O critério principal é ter trabalhado em contato direto, contínuo ou habitual com pacientes suspeitos ou confirmados ou com materiais potencialmente contaminados. Isso inclui:
· Profissionais de enfermagem em todas as categorias
· Médicos de pronto-socorro, UTI, enfermaria Covid ou atendimento domiciliar a pacientes infectados
· Fisioterapeutas respiratórios e de terapia intensiva
· Biomédicos e técnicos de laboratório que manipulavam amostras de pacientes
· Profissionais de limpeza, lavanderia e resíduos hospitalares
· Recepcionistas e seguranças que controlavam o fluxo em alas específicas
· Motoristas e socorristas do SAMU ou de ambulâncias particulares que transportavam infectados
Como comprovar a exposição ao risco máximo
Provas típicas incluem:
Relatórios de escala que demonstrem alocação em alas Covid
Registros no Sistema de Gestão Hospitalar apontando atendimento a pacientes confirmados
Ordens de serviço que destacaram setor de trabalho pandêmico
Laudos de insalubridade internos, muitas vezes ignorados pelo RH
Fotos, vídeos e depoimentos que evidenciem uso obrigatório de EPI nível máximo
Testes positivos do próprio trabalhador, que fortalecem a tese de contato reiterado
Não raro, sindicatos reúnem essas provas por meio de documentos coletivos e ações civis públicas que podem ser usados no processo individual.
Cálculo do adicional e diferenças retroativas
Quando o empregador paga 10 % e o devido seria 40 %, a diferença é de 30 % sobre a base de cálculo (salário-base ou salário-mínimo, conforme a norma aplicável). Exemplo: um técnico de enfermagem com salário-base de R$ 3.500 recebia 10 % (R$ 350). O correto é 40 % (R$ 1.400). Diferença mensal: R$ 1.050. Se trabalhou 36 meses na linha de frente, o crédito pode chegar a R$ 37.800, acrescido de juros e correção monetária segundo os índices do Tribunal Superior do Trabalho.
Entendendo a prescrição quinquenal e a perda mensal
A prescrição trabalhista é de cinco anos contados da data em que a ação é ajuizada, limitada a dois anos após a ruptura do contrato. Como a maioria dos profissionais ainda está empregada, vale a regra quinquenal. Em junho de 2025, por exemplo, só se podem cobrar parcelas vencidas a partir de junho de 2020. Cada mês que passa sem ajuizar a demanda elimina mais um mês de retroativo, razão pela qual a orientação é agir imediatamente.
Passo a passo para reivindicar o direito
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Reunir contracheques, contrato de trabalho e documentos que provem o salário-base e o percentual efetivamente pago.
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Juntar evidências de atuação na área Covid ou de manipulação de material contaminado.
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Solicitar, se possível, laudo de condições ambientais do trabalho (PCMAT, LTCAT, PPRA ou PGR).
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Consultar um advogado trabalhista ou o sindicato da categoria para análise preliminar gratuita.
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Propor ação na Justiça do Trabalho pleiteando: a) majoração do adicional para 40 % a partir da data de início da exposição; b) diferenças de todo o período não prescrito; c) integração dessas diferenças em férias, 13º salário, FGTS e reflexos.
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Participar da perícia judicial, que confirmará o nível de exposição.
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Negociar eventual acordo, se a proposta alcançar valor justo; caso contrário, aguardar sentença.
Jurisprudência recente e decisões favoráveis
Embora cada caso dependa de prova pericial, vários Tribunais Regionais do Trabalho já reconheceram que o simples fornecimento de EPI não neutraliza por completo o risco biológico de um vírus aéreo de alta transmissibilidade. Há decisões de 2023 e 2024 concluindo que enfermeiros de UTI Covid merecem adicional de grau máximo. O TST, em julgados sobre agentes biológicos anteriores à pandemia, é firme em dizer que o contato permanente com pacientes em isolamento impõe 40 %. A tendência é a mesma para a Covid-19, pois a lógica de risco se mantém e a NR-15 não foi alterada.
Diferença entre insalubridade e periculosidade no contexto da pandemia
Periculosidade cobre riscos de explosões, eletricidade, inflamáveis ou roubos, não agentes biológicos. Alguns profissionais confundem o adicional de insalubridade de 40 % com o adicional de periculosidade de 30 %. Para quem lidou com oxigênio hospitalar em grandes volumes, pode haver cumulação, mas é raro; via de regra, a discussão se concentra na insalubridade pelo risco biológico.
Impactos financeiros e trabalhistas para empregadores
Hospitais privados, Santas Casas e operadores de home-care que descumpriram a regra podem enfrentar passivos milionários. Além das ações individuais, o Ministério Público do Trabalho vem ajuizando ações civis públicas para assegurar o pagamento coletivo. Algumas empresas, temendo condenações com juros e multas, negociam acordos coletivos, prevendo pagamento retroativo parcelado. Ignorar o tema é arriscado: a sentença trabalhista produz título executivo que pode levar à penhora de faturamento hospitalar.
Responsabilidade de hospitais e clínicas
A responsabilidade é objetiva: basta a comprovação de exposição e ausência do pagamento correto. Não há necessidade de provar culpa empresária. Além disso, eventual repasse de custo para planos de saúde ou Sistema Único de Saúde (SUS) é irrelevante para o trabalhador. A relação jurídica entre prestador e financiador não altera o direito ao adicional.
A importância do laudo pericial
Mesmo com farta documentação, o juiz costuma nomear perito engenheiro de segurança ou médico do trabalho para vistoriar o ambiente, entrevistar colegas, verificar protocolos de biossegurança e concluir se o risco foi de grau máximo. O laudo é peça-chave. Se for desfavorável, cabe apresentar quesitos, impugnar metodologias e pedir perícia complementar. Em muitos casos, o perito confirma 40 % porque identifica falhas de ventilação, EPI inadequado ou simplesmente porque o agente vírus não é neutralizado integralmente.
Papel dos sindicatos e acordos coletivos
Alguns sindicatos conquistaram cláusulas em ACTs elevando o adicional de insalubridade para 40 % durante a vigência da pandemia, o que facilita a cobrança individual. Onde não houve negociação, a via judicial continua aberta. Importante: o trabalhador não precisa esperar ação coletiva; pode ajuizar sozinho e, se houver acordo posterior, optar pela condição mais vantajosa.
Perguntas e respostas
Qual é o prazo para ajuizar a ação
A prescrição é de cinco anos; cada mês de atraso reduz o valor recuperável.
Quem paga o perito
Via de regra, a parte sucumbente. Trabalhadores hipossuficientes podem obter justiça gratuita; se vencerem, o hospital arca com o custo.
Preciso de testemunhas
Ajuda muito ter colegas confirmando a exposição diária, mas não é imprescindível se o laudo pericial reconhecer o risco.
E se eu já fui demitido
Ainda é possível cobrar, desde que a ação seja proposta até dois anos após o término do contrato e dentro do período de cinco anos retroativos.
Posso receber FGTS sobre a diferença
Sim. Diferenças de adicional de insalubridade integram a base de cálculo do FGTS; o juiz manda depositar os valores em atraso na sua conta vinculada.
Conclusão
Para quem vestiu o jaleco na linha de frente, enfrentou jornadas extenuantes e se expôs a um vírus letal, reconhecer o adicional de insalubridade de 40 % não é privilégio—é justiça. A normativa já existia, a pandemia apenas escancarou sua necessidade. O tempo, porém, corre contra o trabalhador: cada mês sem ação significa dinheiro perdido. Por isso, reúna documentos, procure orientação profissional e faça valer o que a lei já lhe garante. Seu esforço salvou vidas; garanta agora que seu salário reflita o risco que você assumiu.