Resumo: O presente artigo busca analisar o papel da Advocacia Pública na promoção da harmonia entre os poderes constituídos, bem como, na concretização do valor da justiça, conforme pensado pelo Constituinte de 1988. A organização dos Poderes é questão fundamental para o desenvolvimento de qualquer constituição e a Constituição Brasileira de 1988, ao tratar deste tema, inovou ao incluir no sistema de freios e contrapesos, que surge da relação entre os poderes constituídos, outras instituições que não se identificam inteiramente com nenhum dos três poderes da doutrina clássica (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário), são estas as Funções Essenciais à Justiça. Entre elas temos a Advocacia Pública, a qual será o objeto principal do presente estudo. Os objetivos específicos propostos para este trabalho são: a) realizar um estudo sobre os fins do estado democrático de direito; b) esclarecer a relação das funções essenciais à justiça para consecução destes fins, conforme pretendido pela Constituição Brasileira de 1988; c) elucidar o papel da Advocacia Pública no sistema de freios e contrapesos da nossa constituição, principalmente, na harmonização entre os poderes. Para a consecução destes objetivos utilizou-se exclusivamente o método de pesquisa bibliográfico, com a análise das obras de importantes constitucionalistas brasileiros. Como resultado, espera-se ter elaborado uma apresentação sistemática que elucidará a importância da Advocacia Pública para a construção de um Estado democrático e justo.
Palavras-chave: Organização dos Poderes. Funções Essenciais à Justiça. Advocacia Pública. Estado Democrático de Direito.
Sumário: Introdução. 1. Os fins do Estado Democrático de Direito. 2. A organização dos poderes e a judicialização da política no Estado Brasileiro. 3. O valor da justiça e as funções essenciais à justiça. 4. A Advocacia Pública no contexto da judicialização da política. Conclusão.
Introdução
A Constituição de 1988 afirmou que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, bem como, que possui como um de seus princípios o da separação dos poderes, os quais devem ser independentes e harmônicos entre si.
Contudo, tanto juristas, como sociólogos e cientistas políticos têm constatado em diversos países que o Estado Democrático de Direito – que surge no pós segunda guerra mundial como paradigma para a maioria dos estados constitucionais – vem se caracterizando pela expansão da atuação do Poder Judiciário, fenômeno que é chamado pelos especialistas de “judicialização da política”.
No Brasil a realidade não é diferente, após a Constituição de 1988, os tribunais e a Suprema Corte – STF vêm paulatinamente reconhecendo sua competência para proferirem decisões contrárias a atos que até então eram vistos como pertencentes ao poder discricionário do Executivo ou regulando matérias que só se imaginava regulamentadas por leis.
Tal realidade pode colocar em dúvida a existência de uma relação harmônica entre os três poderes, contudo, se nos atentarmos ao conteúdo do Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça presente no Título IV – Da Organização dos Poderes, é possível constatar que entre tais funções essenciais à justiça existe uma instituição que atua diretamente na harmonização destas relações, sendo ela a Advocacia Pública.
Assim, pretendemos com o presente artigo defender que a Advocacia Pública – em um contexto de tripartição de poderes e de judicialização da política, que se mostraram como características do Estado Democrático de Direito – é instituição essencial para a construção de uma relação mais harmônica entre os poderes constituídos e para a construção de uma sociedade justa.
1. Os fins do Estado Democrático de Direito
Na história do desenvolvimento dos estados modernos, estes adotaram diversas formas até que se constituíssem em Estado Democrático de Direito. A formação dos estados, como os conhecemos hoje, remonta ao declínio das estruturas feudais da idade média e ascensão dos governos absolutistas, nos quais o poder político do Estado se concentrava na mão de uma única pessoa, em geral o monarca soberano, que tanto formulava as leis, como as executava e interpretava.
Constatando-se que o poder concentrado na mão de uma única pessoa tende a corromper-se e tornar-se uma ameaça as liberdades individuais, surgem diversas teorias políticas sobre o Estado Liberal de Direito, no qual o poder do Estado passa a ser dividido em diferentes funções, exercidas por diferentes pessoas – o poder de legislar, executar e julgar passa a ser exercido por diferentes órgãos estatais.
A ideia da separação dos poderes já estava presente nos pensadores políticos da antiguidade, sendo possível localizar seus fundamentos já nas obras dos pensadores clássicos como Aristóteles, Políbio e Cícero[1]. Contudo, é no início da modernidade que estas ideias são sistematizadas, sendo Montesquieu a principal referência sobre a importância do princípio da separação dos poderes no constitucionalismo moderno.
Em sua teoria o próprio soberano está limitado pelo direito, só podendo intervir na esfera particular dos governados na medida que for previamente autorizado pela Lei, o que dá enorme relevância ao Poder Legislativo neste modelo de Estado.
Tal divisão das funções do poder gera um sistema de freios e contrapesos, no qual o poder estatal se autolimita na medida que qualquer violação dos limites constitucionais de um poder pode ser contida pelo outro.
Contudo, o modelo de Estado Liberal de Direito, ao longo do tempo, mostrou-se inadequado, pois tinha ele a vocação para garantir as liberdades individuais e a igualdade apenas de modo formal (tratamento idêntico dos cidadãos perante a lei), no entanto, dada as desigualdades materiais presentes na sociedade e a limitação que o Estado encontrava para intervir na esfera particular dos governados, na esfera privada havia uma competição desigual entre os indivíduos, o que comprometia a fruição dos direitos fundamentais pelas classes menos favorecidas[2].
Surge então, após o fim da primeira guerra mundial, um modelo de estado denominado Estado Social de Direito, no qual busca-se corrigir as distorções do Estado Liberal de Direito. Nele o governo passa a adotar uma postura mais intervencionista na esfera econômica, atuando diretamente na produção e distribuição de bens. Assume o Estado o dever de garantir um mínimo de bem-estar para os seus cidadãos.
Tais intervenções do Estado na esfera econômica exigiam decisões ágeis que não poderiam esperar a demorada elaboração de consenso no Legislativo, por isso, no Estado Social de Direito as leis passam a ser elaboradas com conteúdo mais aberto, aumentando o Poder discricionário do Executivo e, automaticamente, sua relevância.
Pretendia-se com esta atitude garantir maior igualdade material entre os cidadãos, contudo, para a obtenção deste fim, não foram poucos os estados nos quais a população foi forçada a abrir mão de suas liberdades individuais, sacrificando-se os princípios democráticos e as liberdades políticas. O nazismo na Alemanha, o fascismo na Itália e o stalinismo na União Soviética são exemplos do que o Estado Social de Direito pode se tornar.
Assim, após as experiências desastrosas vivenciadas por alguns países na implementação dos princípios do Estado Social de Direito, surge, como novo paradigma, o Estado Democrático de Direito.
Sobre o Estado Democrático de Direito, afirma José Afonso da Silva:
“A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício”[3].
Podemos dizer que esta nova concepção teórica sobre a estrutura do Estado e os seus fins busca conciliar a proteção dos direitos fundamentais, ideal basilar do Estado de Direito, com a preservação, sempre constante, dos princípios democráticos. Busca-se estruturar o Estado de modo que os direitos fundamentais sejam protegidos não apenas formalmente, como no Estado Liberal de Direito, mas materialmente também, contudo, ao mesmo tempo, sem nunca abrir mão dos ideais democráticos, erro cometido na implementação do Estado Social de Direito.
A noção que todo poder emana do povo e que por ele é exercido de forma direta ou por seus representantes é uns dos pilares do Estado Democrático de Direito, contudo, o princípio democrático não se restringe a supremacia da opinião majoritária, cria-se também um sistema de garantias, a fim de que os direitos fundamentais possam ser usufruídos por todos, mesmo pelas minorias, quando estes direitos fundamentais contrariam a opinião popular majoritária.
Para que as minorias possam ter relativa garantia de preservação de seus direitos fundamentais a) a constituição deixa de ser vista apenas como carta organizadora do Estado e expressão de ideais políticos sem força normativa, passa agora a constituição a ser dotada de supremacia que vincula todos os poderes constituídos, inclusive a atividade jurisdicional, b) há uma ampliação do controle dos atos legislativos por meios do controle de constitucionalidade, inclusive em casos de omissão, c) são ampliados o número dos chamados remédios constitucionais, bem como, os já existentes passam a ter sua possibilidade de utilização ampliada.
Dadas as características acima apresentadas que aumentaram a competência do Judiciário para rever os atos do Poder Legislativo e Executivo, a adoção do Estado Democrático de Direito como novo paradigma constitucional vem gerando, não só no Brasil, mas em todo o mundo, uma crescente expansão do Poder Judiciário, fenômeno que é chamado por alguns doutrinadores de “judicialização da política”.
2. A organização dos poderes e a judicialização da política no Estado Brasileiro
Diz a doutrina que o objetivo fundamental do princípio da separação dos poderes é criar mecanismos de limitação do poder dentro da estrutura do Estado, mediante normas jurídicas (sistema de freios e contrapesos), para que assim ele não se corrompa e não gere riscos para a garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos[4].
Podemos então dizer que o princípio constitucional da separação dos poderes apresenta-se como tentativa de institucionalização da política por meio de sua juridicização (separação das funções políticas entre órgãos mediante normas jurídicas).
Desde a publicação da obra O Espirito das Leis até o constitucionalismo contemporâneo se trilhou um longo caminho, no qual, tendo sempre como base a teoria de Montesquieu da necessidade da existência de três poderes – o Legislativo, o Executivo e o Judiciário – criou-se no constitucionalismo nacional e internacional inúmeras experiências de separação de poderes e de sistemas jurídicos de freios e contrapesos.
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) consagrou o princípio da separação dos poderes no seu artigo 2º, declarando que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Tais poderes estão melhor descritos no Título IV – Da Organização dos Poderes (artigos 44 à 135 da CF/88).[5]
Neste título são apresentadas diversas regras que demonstram a interpenetração entre os poderes, tais regras objetivam criar o equilíbrio necessário para uma relação harmônica, bem como, possibilitam que os poderes possam frear as práticas abusivas um dos outros.
São alguns exemplos do sistema de freios e contrapesos presente na CF/88: a) a possibilidade de o Chefe do Poder Executivo Editar medidas provisórias com força de lei (art. 62) e b) vetar projetos de lei aprovados pelo congresso nacional (art. 66, § 1º), bem como, c) a competência para nomear os membros do Supremo Tribunal Federal e demais Tribunais Superiores (art. 84, XIV); d) já o Congresso Nacional (poder Legislativo) é competente para autorizar e julgar o processo de impeachment do Presidente da República e dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, entre outros membros do primeiro escalão do Poder Executivo e Judiciário (art. 52, I e II), bem como, e) rejeitar o veto de projeto de lei realizado pelo chefe do Poder Executivo mediante voto da maioria absoluta dos seus membros (art. 66, § 4º); f) já o Poder Judiciário pode anular leis e atos do Poder Executivo e Legislativo, declarando sua inconstitucionalidade (art. 97).
Estas são apenas algumas normas constitucionais que demonstram a interdependência dos três poderes entre inúmeras outras.
Contudo, considerando a) o grande número de matérias disciplinadas pela CF/88 e o b) seu extenso rol de direitos fundamentais consagrados, somando-se ainda a isto, c) o ressente reconhecimento da força normativa dos princípios constitucionais, d) a ampliação das formas do Poder Judiciário de realizar o controle de constitucionalidade e da ampliação dos chamados remédios constitucionais, bem como, d) o aumento do número de legitimados para propor tais ações; todos estes fatos conjugados são apontados pelos doutrinadores como determinantes para o surgimento no Brasil do fenômeno chamado de “Judicialização da Política”.
Amandino Teixeira Nunes Júnior assim define este fenômeno:
“Os principais componentes presentes no conceito de judicialização da política podem ser assim expostos: i) presença de um novo ativismo judicial, com o surgimento de novas questões aptas a serem dirimidas pelos juízes e tribunais; ii) interesse dos políticos e administradores em adotar métodos e procedimentos típicos do processo judicial e parâmetros jurisprudenciais – ditos pelo Judiciário – nas suas deliberações.”[6]
Entre todos os instrumentos de freios e contrapesos existentes na CF/88, a jurisdição constitucional realizada pelo Judiciário é a que vem se mostrando mais eficiente no controle do poder estatal e na limitação de abusos e violações de direitos fundamentais.
A judicialização da política possui duas facetas, pois, ao mesmo tempo que a CF/88 dá amplo poder ao Judiciário para revisar os atos do Legislativo e Executivo, do mesmo modo, o Legislativo e Executivo cada vez mais tendem a observar o que é dito pelo Judiciário na interpretação da Constituição para balizar a práticas de seus atos, visando assim evitar futuras invalidações pelos tribunais das leis criadas e das políticas públicas adotadas.
Este fenômeno é ainda interpretado por alguns autores sob uma perspectiva sociológica, pois estes afirmam que a acensão do Poder Judiciário na contemporaneidade se dá em um contexto de fragmentação da sociedade civil (ausência de ideologias e identidades nacionais capazes de unificar uma grande porção da sociedade), o que gera um descredito dos partidos políticos (suas ideologias não são mais relevantes para o público em geral e os seus próprios integrantes não desenvolvem um discurso condizente com os ideais originais dos partidos), consequentemente, perde também legitimidade os Poderes Legislativo e Executivo, que são ocupados por representantes destes mesmos partidos políticos.
“O sucesso da Justiça é inversamente proporcional ao descrédito que afeta a instituições políticas clássicas, causado pela crise de desinteresse e pela perda do espírito público. A posição de um terceiro imparcial compensa o “deficit democrático” de decisão política agora voltada para a gestão e fornece à sociedade a referência simbólica que a representação nacional lhe oferece cada vez menos.”[7]
Deste modo, a judicialização da política se torna, de um modo transverso, verdadeira realização do princípio da participação política, pois o particular – que não mais se identifica com a ideologia de nenhum dos partidos existentes, ou que não reconhece mais nos partidos a fidelidade aos ideais que acredita serem valiosos – busca o Judiciário, mediante sua jurisdição constitucional, para fazer valer aquilo que considera ser a realização do interesse público ou de seu próprio interesse, mas que tem amparo constitucional e legal.
A realidade como descrita acima nos leva a conclusão que o Poder Judiciário foi colocado em evidência no Estado Democrático de Direito, instituído no Brasil pela CF/88, de um modo que nunca foi visto antes, contudo, tal Poder é inerte e só pode agir mediante provocação.
Daí que se chega ao ponto onde é importante o estudo da relevância do capítulo IV – Das Funções Essenciais a Justiça presente no Título IV – Da Organização dos Poderes da CF/88 para a compreensão do fenômeno da judicialização da política no Estado Brasileiro e do modo que o constituinte pensou a realização do valor da justiça.
3. O valor da justiça e as funções essenciais à justiça
Miguel Reale ao afirmar que o direito trata-se de uma realidade tridimensional – pois seria a norma jurídica a síntese de uma relação dialética entre fato (ser) e valor (dever ser), os quais são reciprocamente a tese e a antítese desta relação – também nos diz que a justiça é o “valor franciscano”, pois encontra sua razão de ser na medida que permite que os mais variados valores presentes na sociedade de um determinado espaço-tempo valham de forma harmônica e ordenada.
“A Justiça que, como se vê, não é senão a expressão unitária e integrante dos valores todos de convivência, pressupõe o valor transcendental da pessoa humana, e representa, por sua vez, o pressuposto de toda ordem jurídica. Essa compreensão histórico-social de Justiça leva-nos a identificá-la com o bem comum, dando, porém, a este termo sentido diverso do que lhe conferem os que atentam mais para os elementos de “estrutura”, de forma abstrata e estática, sem reconhecerem que o bem comum só pode ser concebido, concretamente, como um processo incessante de composição de valorações e de interesses, tendo com base ou fulcro o valor condicionante da liberdade espiritual, a pessoa como fonte constitutiva da experiência ético-jurídica.”[8]
Ora, cada sociedade e cada momento histórico têm seu modo de realizar o valor da justiça e o Direito reflete a tentativa de realização deste valor da convivência. Todavia, isto não significa dizer que a justiça de um espaço-tempo se identifique com o Direito desse mesmo espaço-tempo. O Direito é uma tentativa de realização do valor da justiça concreta, e não ela própria.
Em outra passagem Miguel Reale diz:
“No fundo, o jurídico é uma experiência, feliz ou malograda, de justiça, e, mesmo quando de bom êxito, tem sempre caráter provisório, tão infinita é a esperança de justiça que nos anima e nos impele através do tempo.”[9]
O constituinte de 1988 parece ter prestado atenção a este aspecto espaço-temporal do conceito de justiça e sua relação com a harmonização de valores de uma determinada sociedade, pois, além de dar amplos poderes ao Judiciário para que este possa reprimir as políticas públicas majoritárias que colocam em risco os direitos fundamentais das minorias, ciente da inércia do Poder Judiciário e que o valor da justiça se constrói mediante o diálogo das mais diversas fontes de valores presentes na sociedade, também achou por bem incluir no Título IV – Da Organização dos Poderes o Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça.
Neste capítulo são apresentadas diferentes instituições, as quais têm por missão promover os valores dos mais diferentes seguimentos da sociedade civil, a fim de que se construa um direito jurisprudencial justo.
“As funções de zeladoria, de defesa e de promoção da juridicidade deixaram de ser secundárias ou auxiliares, como se as considerava no antigo modelo passivo, para se tornarem essenciais a esse novo modelo interativo de realização da justiça, uma vez que a imputação dos valores de referência necessários à decisão já não se cinge à legada pela exclusiva atuação do Estado-legislador, mas passa a ser uma tarefa coletiva, sucessivamente desempenhada por toda uma legião de intérpretes, até alcançar aqueles investidos da função Estado-julgador, aos quais cabem as decisões terminativas dessas sequências elaborativas das normas jurídicas – e não apenas legais – que são afinal, concreta e efetivamente aplicadas.” [10]
Neste contexto, de modo mais amplo, nos é apresentado a figura do Advogado Privado (art. 133 da CF/88), o qual tem por ministério orientar e defender os interesses jurídicos privados dos mais diversos segmentos da sociedade.
Para aqueles que não possuem recursos para custear a assistência jurídica do advogado privado, o constituinte idealizou a Defensoria Pública (art. 134 da CF/88), que tem por missão prestar orientação jurídica e promover os interesses privados dos necessitados em juízo.
Há ainda a figura do Ministério Público (art. 127 à 130-A da CF/88), ao qual incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Trata-se esta instituição de uma advocacia da sociedade em geral. Promove ela aqueles interesses que não pertencem exclusivamente a um indivíduo ou grupo social, mas a toda a sociedade.
Por fim, temos a Advocacia Pública (art. 131 e 132 da CF/88), que tem por missão prestar consultoria e assessoramento jurídico à administração e a representação judicial e extrajudicial do ente público.
Tratando sobre estas duas últimas instituições, convencionou-se pensar que ao Ministério Público caberia a tutela em Juízo dos interesses públicos primários (educação, saúde, segurança e bem-estar social) e à Advocacia Pública a tutela em Juízo dos interesses públicos secundários (maximizar a arrecadação e minimizar as despesas do Estado).
Contudo, é preciso melhor desenvolver a relação da Advocacia Pública com a realização do interesse público para que se esclareça sua importância para a construção de uma sociedade justa e para a harmonização entre os poderes.
4. A Advocacia Pública no contexto da judicialização da política
Como já dito, cabe a advocacia pública buscar a tutela dos interesses do Estado e, na medida que a administração pública, de forma geral, pauta as suas ações pela realização dos interesses públicos, então cabe a advocacia pública a tutela jurisdicional destes mesmos interesses.
Contudo, a doutrina do direito administrativo costuma fazer uma distinção entre interesse público primário e interesse público secundário.
Seria o interesse público primário a realização do bem comum, é claro que este é um conceito ainda muito abstrato e aberto, mas pode-se dizer que este é todo interesse que gera benefícios a sociedade como um todo, dando-lhe melhor qualidade de vida. A constituição federal, ao enumerar os direitos e garantias fundamentais e os objetivos fundamentais da República, também nos elucida o conteúdo deste interesse.
Já o interesse público secundário seriam os interesses do próprio Estado como sujeito de direitos. No entanto, se o estado existe para a realização do interesse público primário (interesse fim), o interesse público secundário seria apenas um interesse mediático, ou seja, a forma escolhida pelo Estado para se atingir aquele fim primeiro.
“O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles.”[11]
Assim, mesmo admitindo que a Advocacia pública atua na defesa judicial e extrajudicial do interesse público secundário, pois atua na defesa do Estado como sujeito de direitos, tal prática só é válida enquanto não contraria a realização de nenhum interesse público primário e, na verdade, enquanto encontra no interesse público primário sua razão de ser, pois qualquer ação do Estado que não esteja pautada pela busca do interesse público primário está viciada pelo desvio de finalidade ou abuso de poder.
Então volta-se a questão: bem comum, dignidade da pessoa humana e promoção dos direitos fundamentais são fins, os quais podem ser realizados por diferentes meios pelo Estado. Cabe a administração pública, liderada por representantes eleitos pelo povo, definir quais os meios que serão utilizados para a obtenção destes fins.
Assim, cabe a Advocacia Pública a orientação jurídica destes representantes, para que os meios adotados não violem a Constituição e as normas vigentes. Para isso, visando a harmonização entre os poderes, deve a Advocacia Pública sempre pautar-se pela interpretação já consolidada dada a estas normas pelos tribunais.
É missão também da Advocacia Pública defender judicialmente as políticas públicas adotadas diante dos questionamentos sempre possíveis em um sistema de controle judicial da administração, mostrando ao Juiz que os meios adotados são eficientes para a realização do interesse público primário, já que este é seu maior critério de validade.
Em um contexto de judicialização da política, como o apresentado no capítulo anterior, a atuação da Advocacia Pública ganha ainda maior relevância, pois se as políticas públicas podem ser constantemente reapreciadas pelo Poder Judiciário, mesmo em seus critérios discricionários, em relação a sua conformidade com a Constituição, então o órgão que presta a consultoria e assessoramento jurídico da administração se torna vital para que as políticas públicas não sejam descontinuadas em virtude da imputação de vícios de constitucionalidade e legalidade perante o Judiciário, a Advocacia Pública se torna instituição incumbida da orientação preventiva da administração.
Contudo, o que vemos ainda na realidade brasileira, nas diferentes esferas de governo, é uma Advocacia Pública desestruturada e carente de autonomia, a qual, na mesma medida, está sujeita aos mais diversos meios de pressão para produzir manifestações jurídicas que apenas dê aspecto de legalidade e de satisfação do interesse público primário aos atos de governantes que visam, na verdade, interesses particulares dos administradores ou de sua base de poder econômico (atos com desvio de finalidade).
Do mesmo modo, esta mesma ausência de estrutura deixa a Advocacia Pública em profunda dificuldade de defender, tanto judicialmente quanto administrativamente, aqueles interesses públicos que são indisponíveis e que deveriam ter supremacia sobre o interesse privado.
Frise-se ainda que o Judiciário, ao adotar uma postura ativista no estabelecimento de políticas públicas sem uma efetiva e eficiente participação processual da Advocacia Pública, pode cometer erros que geram enormes danos a coletividade, por ser a sua decisão embasada em elementos restritos sobre a complexidade do problema enfrentado pela administração.
Assim, cabe a Advocacia Pública levar ao conhecimento do Juiz toda a complexidade da implementação das políticas públicas, quando esta já foi estudada com profundidade e objeto de deliberação pela administração, demostrando que a solução adotada pela administração, entre as soluções possíveis, é a mais viável.
Conclusão
A institucionalização das diferentes funções essenciais à justiça não pode ser interpretada de outro modo, senão que a Constituição de 1988 entende por realização da justiça a promoção dos mais diversos interesses presentes na sociedade e a sua convivência de forma harmoniosa.
É esta a missão das funções essenciais à justiça, atuar judicialmente e extrajudicialmente na harmonização dos interesses e valores dos mais diversos setores, grupos sociais e indivíduos que convivem em nosso Estado, buscando o desenvolvimento de uma sociedade justa.
Nesta perspectiva, a missão da Advocacia Pública é dupla, pois considerando sua atribuição de prestar consultoria e assessoramento jurídico à administração e de defesa judicial dos interesses do Estado, tem ela como missão não apenas harmonizar os interesses do Estado com o restante da sociedade, mas também harmonizar a relação entre os próprios poderes constituídos deste Estado, pois serve ela como canal de comunicação entre Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, levando a cada um dos demais poderes as razões de agir e decidir do outro.
A doutrina clássica se refere comumente ao princípio da harmonia entre os poderes pela existência de sistemas de freios e contrapesos, em geral, exaltando as normas constitucionais que permitem um Poder invalidar o ato praticado pelo outro, no entanto, um Estado de Justiça – no qual os direitos fundamentais não são protegidos apenas formalmente, mas são garantidos materialmente pelo Estado – não se constrói apenas se autolimitando o Poder do Estado, onde um Poder anula a prática do outro.
É preciso ir além, os Poderes – apesar de independentes entre si, o que preserva o princípio democrático – precisam ser mais harmônicos na definição dos meios de realização do interesse público, para que se alcance um maior grau de eficiência na promoção dos direitos fundamentais e do Estado de Justiça.
Neste contexto, a Advocacia Pública ganha enorme relevância, pois, se ela conseguir realizar efetivamente o seu papel constitucional de orientação preventiva da administração, bem como, de exposição dos motivos determinante da adoção das políticas públicas ao Estado-Juiz, então poderá colaborar com a harmonização dos poderes sem realizar nenhum ato que anule a prática de qualquer um deles.
Frise-se, não estamos defendendo que a existência de uma Advocacia Pública forte impedirá a existência de qualquer conflito entre os poderes, só estamos dizendo que a atuação eficiente da Advocacia Pública pode colaborar muito para a diminuição destes conflitos, auxiliando na criação de um sistema de colaboração recíproca entre os poderes constituídos.
Contudo, dada a ausência de estrutura e de garantia de autonomia à Advocacia Pública, a qual promove o interesse do Estado, interesse este que tem por fim último a realização do bem comum (interesse público primário), corremos o risco de produzirmos uma jurisprudência míope que tutele diferentes interesses privados, mas que é incapaz de produzir um Estado de Justiça, porque a forma que o Estado encontrou para satisfazer o interesse público (o bem de todos) não é devidamente representado na produção desta jurisprudência.
Frise-se, não basta termos ciência de quais fins pretendemos alcançar, é preciso saber quais meios serão adequados para a obtenção destes fins, e, neste contexto, é que o princípio da harmonia entre os poderes ganha enorme relevância, pois se os diferentes poderes optam pela utilização de meios distintos e contraditórios de realização do interesse público, então podemos nunca realizá-los.
“Tudo isso demonstra que os trabalhos do Legislativo e do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom termo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco (que, aliás, integra o mecanismo), para evitar distorções e desmandos.”[12]
Como já dito, os tribunais se tornaram hoje a principal arena dos embates políticos e da construção da visão de justiça de uma sociedade que busca materializá-la nas normas jurídicas, contudo, a falta de estrutura e de autonomia da Advocacia Pública nas diferentes esferas de governo só faz aumentar a aparente desarmonia entre os poderes constituídos e a sensação nos cidadãos de um desgoverno que adota posições contraditórias em cada um dos seus diferentes poderes.
Informações Sobre o Autor
Jaison Silveira
Graduado em Filosofia pelo Centro Universitário de Brusque – UNIFEBE 2004 e em Direito pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE 2013; é advogado e servidor público do Município de Jaraguá do Sul/SC ocupando o cargo de Procurador Municipal.