A alienação parental sob a perspectiva do direito fundamental à convivência familiar saudável

Resumo: O presente trabalho aborda a evolução do instituto da família ao longo das décadas, ressaltando os desafios enfrentados face à mutabilidade dos costumes sociais, refletindo, consequentemente, na produção legislativa, até alcançar o tratamento jurídico contemplado hodiernamente. Diante de tantas alterações, o direito à convivência familiar saudável passou a ser garantido a todos os membros da família com o status de direito fundamental, tutelado pela Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, pelo Código Civil de 2002 e Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Dentre as práticas que o violam, a alienação parental vem se mostrando uma problemática de gravidade crescente, já existente no seio familiar, malgrado seja tema relativamente recente para o Direito. O fenômeno atualmente é estudado por muitos profissionais de várias áreas do conhecimento, inclusive do Direito, onde ganhou força com a edição da Lei n. 12.318/2010, a qual foi devidamente abordada no bojo deste trabalho sob o foco da proteção integral de um bem maior: a dignidade da criança e do adolescente.

Palavras-Chave: Família. Direito Fundamental à Convivência Familiar Saudável. Alienação Parental.

Abstract: The present research is about the evolution of the family over the decades, highlighting the challenges that for mutability of social customs, reflecting, consequently, in the legislative process, to reach the legal treatment included in our times. With so many changes, the right to family health has to be guaranteed to all family members with the status of fundamental right, protected by the Federal Constitution of 1988 and, later, by the Civil Code of 2002 and the Statute of Children and Adolescents of 1990. Among the practices that violate it, the Parenthal Alienation is proving a problem of increasing severity, already existing, although is relatively new to the law. The phenomenon is studied by many professionals of various areas of the knowledge, including the Law. It gained momentum with the enactment of Law n. 12.318/2010, wich it was duly addressed in the core focus of this work under the full protection of a greater good: the dignity of children and adolescents.

Keywords: Family. Fundamental Right to Family Healthy. Parenthal Alienation.

Sumário: 1 Introdução; 2 Da família: evolução conceitual do instituto e tratamento conferido pelo ordenamento jurídico pátrio; 2.1 Evolução do instituto da família e a prevalência do princípio da afetividade; 2.2 A concepção jurídica de família consagrada pela legislação contemporânea; 3 Do direito fundamental à convivência familiar saudável e sua tutela pela ordem jurídica; 4 Da alienação parental: uma análise acerca da matéria e a eficácia da lei n. 12.38/2010 na resolução da problemática; 4.1 Breve análise conceitual. 4.2 Da lei n. 12.318/2010: análise crítica acerca da sua eficácia na tutela ao direito fundamental à convivência familiar saudável; 5 Considerações Finais.

Introdução

O Direito Constitucional é responsável por acompanhar constantemente as incessantes mutabilidades axiológicas que se operam no seio da sociedade, considerando que a Constituição Federal ocupa o topo do ordenamento jurídico e propaga todo seu espírito aos demais ramos do direito, dentre eles, o Direito Civil.

De fato, o Código Civil de 1916 somente regulava a família patriarcal, constituída pelo matrimônio e sua respectiva prole, vedada, inclusive, a dissolução do casamento e negando-se a filiação havida fora do mesmo, bem como a adotiva[1].

Com a evolução social, o aspecto da afetividade passou a assumir um papel de destaque nos arranjos familiares, sobrepondo-se às antigas convenções, fato este que, consequentemente, gerou alterações na ordem jurídica até então vigente. Diversos direitos fundamentais passaram a ser tutelados pela Constituição Federal de 1988, sendo exemplo o direito à convivência familiar saudável.

Hodiernamente, não basta afiançar a convivência familiar, devendo esta se proceder da forma mais harmoniosa e saudável possível para que o Direito cumpra seu papel de assegurar o bem-estar social. Em meio às condutas atentatórias ao direito em apreço, o foco deste trabalho volta-se à alienação parental, prática que já habitava o seio familiar, malgrado tenha recebido tratamento legal apenas com a edição da Lei n. 12.318, de 26 de agosto de 2010.

Conforme o artigo 2º da lei em comento, considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

São nos conflitos gerados pelo término da relação amorosa que surgem terreno fértil para a alienação parental. Um dos genitores induz a criança ou adolescente fruto desta união a uma percepção deturpada e depreciativa sobre o pai/mãe alienado, disseminando sentimentos como ódio, desprezo, rejeição e decepção por parte do filho. Tal se deve à não aceitação da separação por uma das partes, que passa a nutrir sentimentos de abandono e rejeição, culminando num perigoso desejo de vingança, saciado através da tentativa de destruição dos vínculos afetivos que unem o ex-cônjuge e a prole.

A alienação parental é uma prática propensa a produzir efeitos traumáticos não apenas ao genitor vitimado, como até mesmo ao próprio alienador, e, e especialmente, ao jovem alienado objeto da disputa entre os pais. Nesse diapasão, o presente trabalho visa analisar o tratamento conferido pelo Judiciário brasileiro em relação à temática, tecendo uma análise crítica frente ao conteúdo da Lei n. 12.318/2010: veio ela a amenizar, senão evitar, as conseqüências maléficas acarretadas pela alienação parental?

1 Evolução Conceitual do Instituto da Família e o Tratamento Conferido pelo Ordenamento Jurídico Pátrio

1.1 Da Evolução do Instituto da Família e a Prevalência do Princípio da Afetividade

O Direito de Família, ao disciplinar o relacionamento entre pessoas, em geral provenientes do mesmo organismo familiar, vem sofrendo, nos últimos anos, significativa ampliação quanto ao seu objeto, face à evolução conceitual sofrida pelo instituto da família.

O legislador de 1916 emprestava à família a ideia de continuidade, abstraindo da mesma qualquer concepção socioafetiva. Concedia-se juridicidade apenas ao relacionamento matrimonial e ao parentesco proveniente dos laços sanguíneos, afastando-se outras formas de vínculo por afinidade, a exemplo da união estável, adoção e relações homoafetivas (DIAS, Maria Berenice, 2009, p. 30).

Atualmente, tal concepção vem sofrendo um profundo alargamento, fato que se deve à alteração hermenêutica vivenciada pela ordem jurídica ao longo dos anos. A par­tir da dé­ca­da de 60, as le­gis­la­ções bra­si­lei­ras pas­sa­ram a ser nor­tea­das pe­lo pa­ra­dig­ma pós-moderno, cuja característica principal é a valoração ju­rí­di­ca do sen­ti­men­to[2], e, consequentemente, das relações calcadas nos laços afetivos.

Alguns diplomas vieram a relativizar o tradicionalismo do matrimônio e dos laços consanguíneos, como a Lei da Adoção (Lei nº 3.133/57) e Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77).

Nesse contexto, a família deixa de ser um grupo econômico com funções previamente definidas para seus membros: homem na condição de sustento do lar e esposa responsável pela educação da prole e serviços domésticos. Ambos os cônjuges passam a ser fonte de subsistência familiar, levando ao deslocamento maciço de famílias para as cidades, onde conviviam em espaços menores, o que facilitou a aproximação de seus membros, e, por conseguinte, na valoração dos laços afetivos.

A fa­mí­lia não é mais um nú­cleo eco­nô­mi­co e de re­pro­du­ção, cujos membros eram considerados força de trabalho[3], mas constituem-se vínculos baseados na liberdade, desejo, afeto, dando origem às relações calcadas no sentimento, ao que a ordem jurídica consagrou como “princípio da afetividade”.

É bem verdade que a nova tendência da família moderna é a sua composição baseada na afeição, que surge pela convivência entre pessoas e pela reciprocidade de sentimentos. Nesse diapasão, oportunas são as lições de José Sebastião de Oliveira[4]: “a afetividade, traduzida no respeito de cada um por si e por todos os membros — a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante o corpo social — é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores características da família atual”.

Nessa nova concepção, família caracteriza-se como um grupo oriundo não apenas do casamento, como também do companheirismo, além da instituição monoparental (constituída por apenas um dos genitores e sua prole). Não há mais qualquer distinção entre filhos havidos dentro ou fora do casamento, tampouco entre a filiação consanguínea e adotiva.

Acompanhando as transformações sociais, a valorização da ideia de afinidade exigiu maior tutela às relações dela resultantes, reprimindo-se práticas como a alienação parental, situação em que um dos genitores de uma criança a treina para romper os laços afetivos com o outro, criando fortes sentimentos de temor, ódio, repúdio, desprezo em relação ao mesmo.

A seguir, teceremos algumas considerações a respeito das conseqüências acarretadas à legislação brasileira contemporânea em virtude da valoração do Princípio da Afetividade, em obediência ao ideal macro de Dignidade da Pessoa Humana.

1.2 A Concepção Jurídica de Família Consagrada pela Legislação Contemporânea

Como ciência regulamentadora dos comportamentos sociais, na busca pela ordem e bem comum, o Direito vivencia a tarefa de acompanhar a realidade social, a fim de contemplar as constantes mudanças de paradigmas, valores e princípios.

A evolução da sociedade leva à transformações que rompem com tradições anteriores, fazendo-se mister a também evolução jurídica. Tal não seria diverso quando se trata do conceito de família, o qual, repita-se, progrediu de uma acepção restrita e conservadora para uma mais abrangente, cujo principal traço é a preponderância do princípio da afetividade.

Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988 implementou diversos princípios concernentes com o novo ideal, provocando a ruptura de uma mentalidade até então considerada absoluta. Em seguida, na tentativa de adaptar-se aos novos preceitos constitucionais, o Código Civil de 2002 sofreu profundas reformas.

Dentre as contribuições trazidas pela Lei Fundamental, vislumbra-se a instauração do prin­cí­pio da plu­ra­li­da­de de for­mas de fa­mí­lias, previsto no art. 226, §§ 3º e 4º, e o artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

“Art. 226.

§3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§4º. Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.

Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.”

O núcleo familiar deixou de ser unicamente derivado do matrimônio, constituído pelos cônjuges e sua prole, estendendo a tutela à família formada por indivíduos unidos por vínculos de afinidade, a exemplo da união estável e da chamada família monoparental.

A Constituição homenageou, ainda, a igualdade jurídica entre todos os filhos, em seu art. 227, §6º, redação transcrita também pelo Código Civil, em seu art. 1.596, in verbis: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Vedado é estabelecer distinções entre as filiações outrora denominadas legítima e ilegítima, bem como entre os filhos consanguíneos ou adotivos, reflexo do preconceito teratológico existente na antiquada concepção de família.

Reforçando esse desiderato, o art. 26 do Estatuto da Criança e do Adolescente enfatiza o reconhecimento da prole havida fora do casamento, ao dispor que: “os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação”.

O Diploma Maior consagrou também o denominado “princípio da igualdade jurídica entre os cônjuges e companheiros”, com fulcro no art. 226, §5º, arrematado pelo art. 1.511 do Código Civil, a saber:

“Art. 226.

§5º. Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão pela de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.”

Abandona-se, como já delineado, a anterior concepção patriarcal e superioridade do cônjuge varão, passando a mulher a assumir não mais unicamente a função doméstica e de procriação, mas agora atividades comuns ao casal, como a administração dos bens, sustento do lar e da prole, dentre outras[5], consoante dispõe o art. 1.567 do Código Civil (rechaçando o art. 233 do anterior diploma cível[6]): “a direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos”.

Com efeito, se nossa ordem jurídica preza pela proteção integral das crianças e adolescentes, correto é que os pais exerçam ambos, o poder familiar, estejam eles juntos ou separados. A autoridade parental é dotada de deveres de amparo material, mas, principalmente, no campo existencial, devendo os genitores satisfazer outras necessidades dos filhos, notadamente de índole afetiva. É nesse contexto que a alienação parental se insere, inclusive, como conduta de violação aos deveres inerentes à autoridade parental, ao propiciar uma deturpação depreciativa da figura do outro genitor que resultam prejuízos psicológicos aos infantes e óbice ao exercício da autoridade parental do pai ou mãe vitimado.

2 Do Direito Fundamental à Convivência Familiar Saudável e sua Tutela pela Ordem Jurídica

O direito fundamental à convivência familiar, assegurado à criança e ao adolescente, está expressamente previsto no artigo 227 da Constituição Federal, atribuindo-se à família, à sociedade e ao Estado o dever de garanti-lo. In verbis:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (grifo nosso)

No plano infraconstitucional, destaca-se o artigo 4º, caput[7] da Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – cujo teor reproduz ideia similar ao dispositivo supracitado da Lei Maior, expressão da doutrina da proteção integral, que eleva crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos e estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar-lhes seus direitos fundamentais, com absoluta prioridade.

O artigo constitucional garante às crianças, adolescentes e jovens o convívio com a família, base primordial no processo de construção da pessoa humana, quando são inseridos os elementos para definição dos seus valores morais, culturais, sociais, éticos, políticos etc. Indo além, é ainda garantia do cidadão, uma vez que a família é instituição que exerce influência salutar na formação física, mental e moral do indivíduo, conferindo-o identidade dentro da sociedade e posicionando-o como cidadão detentor de direitos civis, políticos e sociais. Depreende-se, portanto, que a convivência efetiva com os genitores, ainda que após a separação do casal, é fundamental para que se desenvolvam de forma proveitosa.

Para tanto, é imprescindível que o convívio se dê de forma saudável, a fim de garantir a dignidade humana e o desenvolvimento completo da criança ou adolescente.

A respeito da matéria, o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura ao jovem o direito de ser educado e de conviver com a sua família natural em condições saudáveis, a saber:

“Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.”

Portanto, conviver em um ambiente familiar afetivo, em situação compatível com a doutrina da proteção integral, que atenda às necessidades da criança e do adolescente, constitui a base para o desenvolvimento saudável. O exercício da autoridade parental, o cuidado, o respeito e a afetividade são essenciais para a constituição da subjetividade e para introduzi-lo à vida em comunidade.

Face à importância do tema, ressalte-se a tutela concedida em âmbito internacional ao direito em apreço, ao ser ratificada pelo Brasil a Convenção sobre os Direitos da Criança (Dec. N. 99.710/90), em 24 de setembro de 1990, a qual consagra o princípio da dignidade e seus direitos inalienáveis, de igualdade e liberdade, proclamados na Carta das Nações Unidas, de 1945, bem como objetiva sua formação plena como cidadãos responsáveis.

A dita Convenção estabelece parâmetros de orientação e atuação política dos Estados que a adotaram, no afã de cumprir os princípios nela estabelecidos, visando ao desenvolvimento individual e social saudável da infância, período fundamental na formação do caráter e personalidade do indivíduo.

Analisando o teor do documento internacional, ressalte-se a importância dada à família como suporte para o crescimento físico, mental, espiritual, moral e social harmônico e saudável da criança, atribuindo-se aos genitores ou outra pessoas encarregadas, a responsabilidade de proporcionar, de acordo com suas possibilidades e meios financeiros, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança. É o que dispõe o art. 27, itens 1 e 2 da Convenção:

“1. Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.

2. Cabe aos pais, ou a outras pessoas encarregadas, a responsabilidade primordial de propiciar, de acordo com suas possibilidades e meios financeiros, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança”.

Neste sentido, não basta apenas a convivência familiar para que o jovem desfrute de condições adequadas ao seu desenvolvimento; é mister, ainda, que esta se dê de maneira saudável. Práticas como a violência doméstica, o uso de entorpecentes, condutas atentatórias à lei, moral e bons costumes, vão de encontro ao ambiente familiar saudável.

Dentre os exemplos incompatíveis ao direito fundamental em tela, destaca-se nesse trabalho a prática do ato de alienação parental, situação que existe há tempos no seio familiar, malgrado haja sido reconhecida no âmbito jurídico em período relativamente recente, com a entrada em vigor da Lei n. 12.318/2010. Segundo o art. 3º da referida legislação, a alienação parental fere o direito fundamental da criança ou do adolescente à convivência familiar saudável, à medida que prejudica sua relação afetiva com o genitor alienado e com o grupo familiar, em virtude do comportamento do genitor alienante, constituindo abuso moral e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental.

Em sede internacional, a própria Declaração acima apontada tutela em seu art. 9° o direito das crianças em manter contato com ambos os genitores, devendo ser afastadas do convívio apenas em situações extremas decretadas pela autoridade competente que violem a proteção integral e interesse maior do infante, ao vislumbrarem situações que prejudiquem a saúde e dignidade humana dos mesmos, a exemplo de maus-tratos:

Artigo 9 1. Os Estados Partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus tratos ou descuido por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança.

2. Caso seja adotado qualquer procedimento em conformidade com o estipulado no parágrafo 1 do presente artigo, todas as partes interessadas terão a oportunidade de participar e de manifestar suas opiniões.

3. Os Estados Partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança. “

Em sede jurisprudencial, a alienação parental mitiga o direito à visitação, ante a maior relevância que deve ser atribuída à situação da criança ou adolescente como sujeito hipervulnerável, garantindo-se o convívio em ambiente familiar saudável. Nesse espeque, cabível mencionar o seguinte aresto:

“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – PEDIDO DE PROVIDÊNCIA – SUSPENSÃO LIMINAR DO DIREITO DE VISITAS PATERNAS – LAUDO PSICOSSOCIAL CONCLUDENTE QUANTO À EXISTÊNCIA DE DISFUNÇÃO DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PATERNA – ALIENAÇÃO PARENTAL COMPROVADA – DECISÃO DE DEFERIMENTO MANTIDA. – O direito de visitas não se destina apenas aos genitores, mas principalmente aos filhos, cujo desenvolvimento físico, moral, mental, espiritual, em condições de liberdade e de dignidade, depende de uma convivência familiar saudável, direito este expressamente consagrado no art. 227 da CF/88. – Em função da grande relevância da convivência familiar para o desenvolvimento da criança e do adolescente é que se admite a sua suspensão somente em caráter excepcional, nos casos em que houver prova inequívoca de que a convivência do menor com um dos genitores, ou com ambos, lhe seja mais prejudicial do que benéfica. – Deve ser mantida a decisão que defere, liminarmente, a suspensão do direito de o pai visitar os filhos, tendo em vista a posterior elaboração de laudo psicossocial que atesta, de forma categórica, a existência de uma evidente disfunção no exercício da função parental.” (TJMG – Agr. Instrumento N° 1.0518.09.180577-1/001 – Des. Rel. Mauro Soares de Freitas – Dje 26/08/2010). (grifo nosso)

Feitos os seguintes apontamentos relativos ao direito fundamental da criança e do adolescente à convivência familiar saudável e sua interpretação extraída dos mencionados dispositivos legais, constitucionais e internacionais, passaremos a discorrer no próximo capítulo sobre a alienação parental, prática que se configura como uma das formas mais corriqueiras de violação ao direito em comento, analisando, posteriormente, o teor da Lei n. 12.318/2010, e sua contribuição para a resolução da problemática.

3 Da Alienação Parental: Uma Análise acerca da Matéria e a Eficácia da Lei n. 12.38/2010 na Resolução da Problemática

3.1. Breve Análise Conceitual

A Alienação Parental consiste num processo em que um dos genitores – cônjuge alienador – utiliza-se de métodos no escopo de induzir os filhos para que sintam ódio, raiva, desprezo, repúdio pelo outro genitor – cônjuge alienado – afastando-os do seu convívio, sem que para tal haja qualquer justificativa, até conseguirem que ocorra esse rechaço pelo próprio desiderato dos infantes. Na contribuição de J. Trindade[8], a Síndrome de Alienação Parental: “[…] é um transtorno psicológico que se caracteriza por um conjunto de sintomas pelos quais um genitor, denominado cônjuge alienador, transforma a consciência de seus filhos, mediante diferentes formas e estratégias de atuação, com o objetivo de impedir, obstaculizar ou destruir os vínculos com o outro genitor, denominado cônjuge alienado, sem que existam motivos reais que justifiquem essa condição. Em outras palavras, consiste num processo de programar uma criança para que odeie um de seus genitores sem justificativa, de modo que a própria criança ingressa na trajetória de desmoralização desse mesmo genitor”.

Para tanto, são empregadas todas e quaisquer estratégias, a exemplo de falsas denúncias acerca de abuso sexual ou maus-tratos, implantando nos filhos a ciência de fatos inexistentes relativos ao genitor alienado, depreciativos e hediondos. O escopo principal é a desqualificação do outro genitor, no afã de retirá-lo do convívio com os filhos, até que o alienado encontre óbice pela própria vontade do jovem.

De outra banda, a ruptura da vida conjugal, a depender do contexto, pode aflorar sentimentos por parte dos ex-cônjuges, como o abandono, rejeição, traição, dando início a um anseio de vingança. Quando a realidade da separação não é bem aceita por um deles, há situações em que se inicia um processo de destruição e desmoralização da imagem do outro, utilizando-se do afeto paterno/materno como instrumento de vingança, ao promover o afastamento e a destruição do vínculo que os une aos filhos. O detentor da guarda, exercendo influência quase que absoluta, introduz no jovem a ideia de repúdio ao genitor vitimado, que passa a ser considerado um intruso, rejeitado, cumprindo-se, assim, seu desiderato em prejudicá-lo. Nesses termos, são as lições de Maria Berenice Dias[9]: “Os filhos tornam-se instrumentos de vingança, sendo impedidos de conviver com quem se afastou do lar. São levados a rejeitar e a odiar quem provocou tanta dor e sofrimento. Ou seja, são programados para odiar. Com a dissolução da união, os filhos ficam fragilizados, com sentimento de orfandade psicológica. Este é um terreno fértil para plantar a ideia de abandonada pelo genitor. Acaba o guardião convencendo o filho de que o outro genitor não lhe ama. Faz com que acredite em fatos que não ocorreram com o só intuito de levá-lo a afastar-se do pai”.

No afã de distanciá-los, o alienante convence o filho sobre fatos inverídicos que denigre a imagem do alienado, como se reais fossem.

É indubitável que a Síndrome de Alienação Parental é uma forma de lesão ao direito fundamental da criança e adolescente à convivência familiar saudável, previsto no ordenamento em caráter implícito (vide capítulo 02) e, portanto, deve ser duramente combatido pelos operadores do direito. A seguir, após vislumbrar o contexto historicossocial desencadeador da alienação parental, abordaremos como se deu seu reconhecimento no Brasil, até alcançar a edição da Lei n. 12.318/2010 (anexo A).

3.2 Da Lei n° 12.318/2010: Análise Crítica acerca da sua Eficácia na Tutela do Direito Fundamental à Convivência Familiar Saudável

A Lei n. 12.318/2010, ao tratar a respeito da alienação parental, veio com o escopo de promover uma efetiva e saudável participação dos genitores na formação e educação dos seus filhos, à luz da própria alteração sofrida pelo conceito de família – cujas especificações já foram devidamente abordadas no bojo do primeiro tópico deste trabalho – que não é mais considerada apenas uma instituição econômica de subsistência dos seus membros, os quais apresentavam funções previamente delineadas; agora é meio apto a permitir a realização moral, social, psicológica, cultural e econômica de seus entes, atribuindo maior valoração aos laços afetivos que os unem, e, consequentemente, distinguindo-se o vínculo conjugal da relação parental.

Entretanto, conforme especifica Elizio Luiz Perez[10], a Lei não possui o condão de estabelecer a alteração imediata das condutas que levam à alienação parental, pois é certo que estas se darão gradativamente no seio da sociedade, mas, ao revés, será um instrumento de redefinição das funções dos genitores, sendo parâmetro à atuação do Poder Judiciário ante às situações que demonstrem a presença da alienação parental, os quais eram anteriormente norteados apenas pelas decisões judiciais e escassa doutrina sobre o assunto.

No afã de cumprir tal desiderato, o art. 2º da Lei em lume, já citado alhures, procurou definir juridicamente o fenômeno da alienação parental, a fim de possibilitar a análise segura dos operadores do Direito quanto à sua configuração, impedindo que meros desentendimentos cotidianos ou fatos verídicos alegados pelos genitores sejam confundidos com a sua caracterização. 

Destarte, a alienação parental caracteriza-se pela atuação do alienador que envolva a depreciação da figura do genitor vitimado, deturpando a percepção da criança ou adolescente ao seu respeito, no intuito de impedir o estabelecimento e manutenção dos vínculos parentais. Os atos de alienação, repita-se, não estão restritos aos genitores, mas a qualquer um que detenha a guarda, autoridade ou vigilância do jovem.

Por outro viés, a Lei andou bem em empregar um caráter preventivo à prática, ou seja, não há necessidade de que ocorra um efetivo rechaço por parte do filho em relação ao genitor, mas tão somente o comportamento do guardião na direção de provocá-lo já é algo passível a configurar ato de alienação parental.

Em contrapartida, não se constata a alienação pelo simples repúdio ao genitor sem que, para tanto, tenha havido interferência do guardião, muito embora a consciência do alienador quanto a prática da alienação parental seja condição irrelevante para a sua configuração. Em outros termos, o genitor alienador poderá atuar nesse sentido por motivos de rejeição, egoísmo, inconformismo, sem que tenha noção das reais consequências que a conduta poderá acarretar[11].

Ademais, a lei procurou evitar a discussão acerca do diagnóstico da síndrome, a qual será adequadamente fornecida pelo ramo da Psicologia, não sendo especialidade da área jurídica. Por esse motivo, a Lei não trata da alienação parental como patologia, mas aborda-a sob a visão de contuda reprovável e prejudicial a terceiros, devendo ela merecer a devida reprimenda judicial. Portanto, a Lei a trata como abuso emocional à criança ou adolescente, os quais devem ser evitados – daí o caráter preventivo da legislação em comento[12].

Ainda em análise ao art. 2º da Lei, seu parágrafo único traz um rol exemplificativo contendo condutas caracterizadoras da alienação parental (incisos I ao VII), bem como acrescenta às hipóteses os atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, levados a efeito diretamente ou em conluio com terceiros. As situações previstas nos incisos remetem às consideradas práticas clássicas do alienador, a saber:

“Art. 2o. [omissis] 

Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:

I – realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; 

II – dificultar o exercício da autoridade parental; 

III – dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; 

IV – dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; 

V – omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; 

VI – apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; 

VII – mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós”. 

É indubitável que os exemplos acima elencados visam frustrar o direito fundamental à convivência familiar saudável da criança ou adolescente com o genitor vitimado. Para obstar tal efeito, a norma busca aplicar um caráter educativo, impondo limites éticos aos conflitos que envolvem a separação de casais que constituíram prole. Nesse sentido, PEREZ[13] cita o teor dos incisos IV e V acima transcritos para exemplificar situações que dificultam o exercício da autoridade parental (arts. 1.634 do CC e 21 do ECA) e o já discutido direito fundamental à convivência familiar saudável (arts. 227 da CF e 19 do ECA).

Sobre essa questão, a fim de registrar o caráter lesivo da SAP – ferindo, numa visão macro, a própria dignidade da pessoa humana do genitor prejudicado e da criança ou adolescente alvo da disputa, – a Lei foi além, especificando alguns danos que decorrem da prática da mesma em seu art. 3o (já devidamente transcrito em linhas anteriores – vide capítulo 03, tópico 3.2).

A definição jurídica da prática e a menção de um rol exemplificativo permitem ao magistrado, em casos mais simples, identificá-la de início com maior segurança, empregando celeridade na aplicação das medidas protetivas emergenciais, caso revele-se mister, a fim de restringir o exercício abusivo da autoridade parental. Em sentido oposto, situações mais complexas ainda deixaram a cargo do juiz uma voluptuosa responsabilidade, ao exigir a análise de peculiaridades do caso que permitam diferenciar atos de alienação, daquelas falhas pontuais que podem se dar no exercício da autoridade parental, ou ainda, condutas aparentemente legítimas que podem mascarar a existência da alienação[14]. Nesse ponto, o apoio técnico da Psicologia mostra-se imprescindível na atuação do Judiciário.

Por essa razão, toda e qualquer hipótese de alienação parental não afasta a possível execução de perícia psicológica ou biopsicossocial que sirva como base para a decisão judicial, nos termos do art. 5º da Lei. Tal avaliação poderá consistir, segundo o §1º do dispositivo em referência, na entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra o genitor.

A Lei foi sábia ao permitir essa interação com a Psicologia, ao passo que o estudo biopsicossocial possibilita que a criança ou o adolescente expresse seus sentimentos e desejos, como sujeito de direitos, sem que coloque-os diante de uma situação de litígio judicial, considerado um cenário relativamente árduo para eles. Ao mesmo tempo, permite ao infante a compreensão dos papeis dos operadores do direito e da própria realidade em que estão inseridos, conscientizando-os de que não são culpados pela separação dos pais nem responsáveis pela escolha da guarda. A participação do jovem nesse processo é fundamental na aferição de critérios que direcionem ao seu melhor interesse na decisão final.

Lado outro, PEREZ, citando Eduardo Ponte Brandão[15], salienta que as informações prestadas pelos filhos deve ser analisada de forma extremamente delicada, levando-se em consideração as mais diversas possibilidades, como, por exemplo, a eventual manipulação sofrida por algum dos genitores em relação àquelas declarações fornecidas.

Não se deve perder de vista, portanto, que nem todo o caso obrigatoriamente deve ser alvo de perícia, sob pena de retrocesso e morosidade da intervenção judicial. A depender das peculiaridades, há situações que visivelmente podem configurar a alienação e devem receber, de imediato, a devida reprimenda. PEREZ[16] menciona, como exemplo, infrações reiteradas à sentença judicial que estabeleceu a guarda e os critérios de visitação.

De fato, no intuito empreender celeridade e evitar lesões graves ou de difícil reparação às relações familiares, o art. 4º da Lei nº. 12.318/2010 determina a tramitação prioritária do processo em que for declarado indício de ato de alienação parental, em qualquer momento processual. Com efeito, cabe ao magistrado adotar medidas cautelares no afã de salvaguardar os interesses da criança ou adolescente envolvidos, garantindo a convivência ou reaproximação com o genitor vitimado. A urgência é necessária para evitar o afastamento e a concretização dos efeitos danosos da alienação parental, ou o seu agravamento.

No parágrafo único do artigo 4º, o legislador resguardou qualquer grau de convivência entre os genitores e sua prole, ao determinar, quando necessárias, visitações assistidas, a exceção dos casos que acarretarem riscos à integridade física ou psicológica dos infantes. Cumpre-se o desiderato de impedir a ruptura absoluta dos laços parentais entre os envolvidos, o que contribuiria para a concretização das finalidades da alienação parental, em especial na hipótese em que as acusações se mostram posteriormente inverídicas.

O artigo 6º da Lei estabelece as medidas (incisos I ao VII) aplicáveis pelo juiz em caso de caracterização da SAP, rol igualmente não taxativo, podendo, inclusive, estabelecê-las individual ou cumulativamente com outras medidas, desde que sejam suficientes a preservar os interesses da criança ou adolescente. PEREZ ressalta que o escopo desse rol não é punitivo, mas de tutela ao bem-estar psíquico dos filhos envolvidos[17]. Seguem as medidas:

“Art. 6o Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso: 

I – declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador; 

II – ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado; 

III – estipular multa ao alienador; 

IV – determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; 

V – determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; 

VI – determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; 

VII – declarar a suspensão da autoridade parental. 

Parágrafo único. Caracterizado mudança abusiva de endereço, inviabilização ou obstrução à convivência familiar, o juiz também poderá inverter a obrigação de levar para ou retirar a criança ou adolescente da residência do genitor, por ocasião das alternâncias dos períodos de convivência familiar”.

A aplicação de qualquer das reprimendas ficará a critério do juiz, a depender dos aspectos apontados no caso concreto, não existindo uma ordem de gravidade para elas ou a necessidade de impor medidas mais brandas antes daquelas consideradas mais severas.

Quanto à guarda compartilhada, muito embora seja ela apta a permitir a maior participação de ambos os genitores na formação e educação dos filhos, obstando a prática da alienação – em geral, é levada a efeito pelo genitor que obtém a guarda, e, consequentemente, possui maior influência na construção da percepção dos menores, – ela, por si só, não é suficiente para evitar a prática, tornando-se, não raras vezes, inviável a manutenção do filho em dois lares em casos de grandes beligerâncias entre os genitores ou de indicativos de alienação parental praticada por ambos. Dessa forma, ao aplicar-se a guarda compartilhada, é mister analisar se o caso em lume a indica, bem como se são convenientes outras formas de resolução da problemática.

Dentre as medidas elencadas, as mais brandas, como mera advertência, multa ou ampliação da convivência entre o menor e o genitor vitimado, pretende-se estimular a prática do exercício regular da autoridade parental e a eliminação dos abusos, antes que parta-se a aplicação de punições mais árduas[18].

De outra face, em casos envolvendo condutas mais reprováveis ou nas situações em que os atos abusivos persistam, o juiz pode determinar a suspensão da autoridade parental, a inversão da guarda, acompanhamento psicológico para o genitor alienador.

Nesse aspecto, merece a Lei elogio pelo que dispõe o inciso IV do art. 6º, revelando que não busca ela a estigmatização da figura do genitor alienador, o que desencadearia apenas um sentimento de vingança judicial. Ao determinar o acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial para qualquer dos envolvidos, sinaliza a preocupação central em reconstruir os laços familiares sadios que unem os entes familiares, inclusive os ex-cônjuges, cujo relacionamento deverá ser ao menos harmonioso para que se permita o crescimento e desenvolvimento da sua prole em ambiente adequado sob o ponto de vista moral e psíquico. O vértice educativo da norma em apreço, com rechaço a qualquer aplicação de infrações penais, pode ser vislumbrado no seguinte entendimento: “Prevaleceu a tese que atribui ênfase ao caráter educativo, preventivo e de proteção da norma, com a restrição da parte penal. Além disso, havia a dificuldade de tipificação direta dos atos de alienação parental, para efeito penal, considerando que, em muitos casos, pressupunha exame subjetivo de conduta, incompatível com a a objetividade necessária para a configuração do eventual ilícito e constatação de sua autoria”[19].

Em que pese a preocupação acerca da reestruturação das relações parentais, merece certa crítica a legislação em análise, ao priorizar o enfoque de reestruturação das relações parentais e acabar por relegar a própria punição do alienador a segundo plano, fato este passível de acarretar ineficácia das medidas e da obstacularização da síndrome no caso concreto. O legislador pode ter pouco contribuído para a amenização da alienação parental, por exemplo, ao dispensar a hipótese de perda da autoridade parental. Todavia, a sua abordagem é realizada nos arts. 155 a 163 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nessa linha de raciocínio, sob a ótica da ânsia de penalizar o genitor alienador, pode-se encarar a Lei com certo sentimento de impunidade (principalmente o pai/mãe vítima do ato), restando ao magistrado, portanto, a ponderação das peculiaridades do caso concreto para que possa optar pela melhor medida aplicável, capaz de atender ao fim de restabelecimento do relacionamento familiar saudável e harmonioso, sem perder do seu foco que a medida deve ser suficiente a evitar que a prática persista ou se repita.

Detendo-se, ainda, ao inciso VI do art. 6 da Lei, ao determinar a fixação cautelar da residência da criança ou adolescente, procurou igualmente preservar o convívio dos jovens com seus genitores, nas situações em que o guardião altera abusivamente o local do domicílio, no escopo de afastá-lo do cônjuge alienado, e, indo mais além, de viabilizar a escolha do juízo competente, com o fim de provocar visível prejuízo ao outro genitor, em razão da dificuldade de deslocamento. Atento a essa possibilidade, o legislador foi coerente ao prever o art. 8º: “a alteração de domicílio da criança ou adolescente é irrelevante para a determinação da competência relacionada às ações fundadas em direito de convivência familiar, salvo se decorrente de consenso entre os genitores ou de decisão judicial”. 

Entretanto, a mudança de domicílio do guardião a que se refere a Lei deve ser abusiva, com a nítida intenção de impedir a convivência familiar, mas não pode constituir obstáculo para a formação de outros núcleos familiares em estados ou países diversos, nem ferir o direito de locomoção das pessoas.

Urge, por derradeiro, atentar para a necessidade de comunhão e harmonia entre a norma legal em tela (Lei n. 12.318/2010) e as legislações constitucionais e infraconstitucionais (Lei n. 8.069/90) a respeito do tema, no afã de alcançar a interpretação e aplicação que melhor se adeque aos interesses dos infantes dentro da célula familiar. O princípio do melhor interesse da criança e a doutrina da proteção integral traduzem com clarividência a ideia de que, diante da possibilidade de tomarem decisões que as envolva, deve-se considerar aquelas que lhes sejam mais favoráveis sob o ponto de vista moral, físico, psicossocial, econômico, dentre outros aspectos, de forma que o interesse dos menores sempre deverá prevalecer em face dos demais. Assim, apresentando um rol exemplificativo quanto às condutas alienadoras e suas respectivas punições, o legislador buscou alcançar a essência que motivou a elaboração da própria lei: deixar a cargo do Juízo a escolha do melhor meio a propiciar a reestruturação dos laços familiares e o estabelecimento de uma efetiva convivência familiar saudável, permitindo a criança ou ao adolescente o convívio em ambiente harmonioso e livre de influências lesivas.

Considerações Finais

As consequências teratológicas acarretadas pela Alienação Parental remetem à necessidade de se preservar, tutelar e estimular as relações saudáveis no âmbito familiar. Com efeito, ainda que se dê a ruptura da relação conjugal ou convivencial, é mister que o vínculo parental seja preservado, no afã de proporcionar o bem-estar dos infantes e de seus respectivos genitores. Nesse esteio, o Princípio da Afetividade revela-se salutar na resolução de questões familiares, em especial as que envolvem os interesses dos jovens, em observância à doutrina da proteção integral e do direito fundamental à convivência familiar saudável.

Constatando os imensuráveis danos provocados aos envolvidos no processo de alienação parental, mormente aos filhos, os operadores do direito trataram de reconhecer a prática no âmbito da legislação pátria, com a promulgação da Lei n. 12.318/2010.

Analisando-a criticamente, face aos efeitos catastróficos da alienação, sob um viés tanto jurídico quanto psicológico, a lei veio em boa hora, servindo como norte de atuação do Judiciário nas questões envolvendo a alienação. A legislação atuou em beneficio do direito à convivência familiar saudável, ao favorecer a tentativa de reestruturação dos vínculos afetivos que unem todos os que participaram da alienação parental, inclusive o alienador, tratando este também como vítima. O escopo primordial da lei em comento foi restabelecer a harmonia entre os ex-cônjuges/ex-companheiros ou qualquer outro parente que haja contribuído para o caso, e os infantes, revelando a preocupação central com o interesse do menor, como ser em desenvolvimento.

Todavia, em razão desse animus do legislador, é discutível o caráter punitivo da Lei. À primeira vista, não parece ela reprimir adequadamente a conduta alienadora, o que pode ser justificável à luz do caráter restaurador das relações afetivas a que ela se dispôs a cumprir. Apenas a observância dos casos concretos em que ela for aplicada, bem como a incidência deles na realidade, juntamente com o auxílio da Psicologia, será possível esclarecer à sociedade sobre os reais efeitos da Lei n. 12.318/2010: se é ela suficiente a evitar a lesão ao direito fundamental à convivência familiar saudável.

 

Referências
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BRASIL. Código civil. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002.
BRASIL. Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 27 ago. 2010.
BRASIL. Lei nº. 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
DIAS, Maria Berenice (coord.). Incesto e alienação parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver. 2. ed, IBDFAM, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
FIGUEIREDO, Fábio Vieira; ALEXANDRIDIS, Georgios. Alienação parental. São Paulo: Saraiva, 2011.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 7.ed. v.6. São Paulo: Saraiva, 2010.
OLIVEIRA, José Sebastião. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: RT, 2002.
VE­NO­SA, Síl­vio de Sal­vo. Di­rei­to Ci­vil. Vl. 6: Di­rei­to de fa­mí­lia. 8. ed. São Pau­lo: Atlas, 2008.
 
Notas:
[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 30.

[2] BAR­BO­SA, Águi­da Ar­ru­da. Por que Es­ta­tu­to das Fa­mí­lias?. In: DIAS, Ma­ria Be­re­ni­ce. Di­rei­to das fa­mí­lias. Con­tri­bu­to do IBD­FAM em ho­me­na­gem a Ro­dri­go da Cu­nha Pe­rei­ra. São Pau­lo: Edi­to­ra Re­vis­ta dos Tri­bu­nais, 2009. p. 41.

[3] VE­NO­SA, Síl­vio de Sal­vo. Di­rei­to Ci­vil. Vl. 6: Di­rei­to de fa­mí­lia. 8. ed. São Pau­lo: Atlas, 2008. p. 3.

[4] OLIVEIRA, José Sebastião. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: RT, 2002. p. 233.

[5] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 7.ed. v.6. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 23.

[6] Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.

[7] Artigo 4º, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (grifo nosso)

[8] TRINDADE, Jorge. Síndrome de Alienação Parental (SAP). In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Incesto e Alienação Parental: realidades que justiça insiste em não ver. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 102.

[9] DIAS, Maria Berenice (coord.). Incesto e Alienação Parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver. 2. ed, IBDFAM, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 15.

[10] PEREZ, Elizio Luiz. Breves Comentários acerca da Lei da Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010), In: DIAS, Maria Berenice.(coord.). Incesto e Alienação Parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver. 2ª Ed., São Paulo, 2010, p. 64.

[11] FIGUEIREDO, Fábio Vieira; ALEXANDRIDIS, Alienação parental. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 48.

[12] PEREZ, Elízio Luiz. Ob. cit., p. 66-67.

[13] PEREZ, Elízio Luiz. Ob. cit., p. 71.

[14] PEREZ, Elízio Luiz. Ob. cit., p. 71.

[15] PEREZ, Elízio Luiz. Breves. Ob. cit., p. 76 apud BRANDÃO, Eduardo Ponte. Por uma ética e política da convivência: um breve exame da “Síndrome da Alienação Parental” à luz da genealogia de Foucault.

[16] PEREZ, Elízio Luiz. Ob. cit., p. 72.

[17] PEREZ, Elizio Luiz. Ob. cit., p. 79.

[18] PEREZ, Elizio Luiz. Ob. cit., p. 82.

[19] PEREZ, Elizio Luiz. Ob. cit., p. 84-85.


Informações Sobre o Autor

Nathalie Maia Chung

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pós-Graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera – Uniderp


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