A aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia no momento da prisão em flagrante delito

Resumo: O presente trabalho consiste na análise acerca da possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela pelo Delegado de Polícia no momento em que se vislumbra uma hipótese de prisão em flagrante delito. A Autoridade Policial é o primeiro agente público, competente sob o prisma técnico-jurídico, a assegurar os direitos e as garantias fundamentais dos cidadãos. Ainda não é pacífico o entendimento sobre a possibilidade de verificação do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela pela Autoridade Policial. Entretanto, no decorrer deste estudo, serão expostos os argumentos e as soluções práticas para autorização do reconhecimento do postulado da insignificância ou da criminalidade de bagatela pelo Delegado de Polícia, de modo a efetivar os ideais de justiça dentro do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Princípio da Insignificância. Prisão em Flagrante Delito. Delegado de Polícia.

Abstract: The present work has the scope of analyzing the possible application of the principle of insignificance by the Chief of Police, at the moment someone is caught in the act while committing a crime. The Police Authority is the first public official, with competence under a technical and legal point of view, to ensure the guarantees and fundamental right of citizens. The understanding about the possibility to apply the principle of insignificance by the Chief of Police is not pacific. However, during this study, the arguments and practical solutions will be exposed to the authorization and recognition of the insignificance postulate by the Chief of Police, in order to give effect to the ideals of justice and a democratic rule of law.

Keywords: Principle of Insignificance. Prison. Chief of Police.

Sumário: Introdução. Análise e Reconhecimento do Princípio da Insignificância pela Autoridade Policial no Momento da Prisão em Flagrante Delito. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico, como conjunto de normas, deve estar interligado com os princípios que o norteiam, em especial o meta princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Dentro de uma perspectiva de Estado Democrático de Direito, para se alcançar a harmonia do convívio em sociedade, a liberdade individual deve ser considerada como regra, ao passo que o encarceramento de uma pessoa deve ser visto como hipótese excepcional.

No âmbito das ciências criminais, o direito penal, como ramo subsidiário do Direito, deve apenas se ater a questões relevantes, que não foram passíveis de solução pelos outros ramos do Direito. Nesse sentido, o direito penal não deve se preocupar com condutas que não estão aptas a lesionar bens juridicamente tutelados.

Diante dessa característica de mínima intervenção, surge o princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela, que possui como fundamento o fato de que comportamentos humanos que não são capazes de ofender o bem jurídico tutelado pela norma penal não devem ser objetos de análise do direito penal.

Tal postulado, constituído por meio de valores de Política Criminal, funciona como causa de exclusão da tipicidade material, tendo por consequência final a inocorrência da infração penal.

O princípio da insignificância já é consagrado na doutrina e na jurisprudência brasileira, de modo que o Supremo Tribunal Federal, inclusive, já definiu os requisitos que autorizam o seu reconhecimento, quais sejam: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) ausência de periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão causada ao bem jurídico tutelado.

Por sua vez, a prisão em flagrante delito é aquela que é decorrente do fato de que o crime está sendo cometido ou acabou de ser cometido. Nesta etapa de cognição sumária, o Delegado de Polícia realiza a análise dos elementos de autoria e materialidade delitiva e determina a elaboração deste procedimento de Polícia Judiciária, cerceando a liberdade do transgressor da norma penal, a fim de preservar a ordem pública.

Diante do exposto, seria possível a aplicação do princípio da insignificância, nesse momento em que se vislumbra a hipótese da prisão em flagrante delito, pelo Delegado de Polícia? Qual seria a solução mais adequada, de forma a assegurar os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e proteger o ordenamento jurídico?

ANÁLISE E RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELA AUTORIDADE POLICIAL NO MOMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO

No presente artigo, será realizada uma análise acerca da possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela pelo Delegado de Polícia no momento da verificação de uma situação de flagrante delito.

No vigente modelo brasileiro, as ocorrências vislumbradas como hipóteses de prisão em flagrante delito são levadas ao conhecimento da Autoridade Policial, considerada como primeiro filtro garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos, para que, após formar seu convencimento jurídico, exare sua decisão pautada nos ditames de justiça e de legalidade.

A Autoridade Policial, ao constatar a existência de elementos de autoria e materialidade delitiva, verificando as demais circunstâncias do fato, deverá decretar a prisão em flagrante delito, lavrando o competente auto e determinando a elaboração das demais peças pertinentes a este procedimento de Polícia Judiciária. 

Ocorre que, no cenário atual, a figura do Delegado de Polícia, não raras vezes, é obrigada a deixar de lado o seu juízo de valor, para aplicar a regra fria e estanque da lei seca. Tal atitude se deve, normalmente, ao temor de punições aplicadas pelos mecanismos de controle, aos quais a Autoridade Policial está submetida.

Cumpre ressaltar, inicialmente, que o cargo de Delegado de Polícia compõe o rol das carreiras jurídicas, em que é requisito para ingresso na função pública o bacharelado em Direito, sendo que, em grande parte dos Estados-membros, são exigidas, ainda, atuação e experiência jurídica por um determinado período mínimo.

A título exemplificativo, pode ser citado o dispositivo contido no artigo 140 e seus parágrafos, da Constituição do Estado de São Paulo que prevê:

“Artigo 140 – À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§ 2º – No desempenho da atividade de polícia judiciária, instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica.

§ 3º – Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.

§ 4º – O ingresso na carreira de Delegado de Polícia dependerá de concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas, observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.

§ 5º – A exigência de tempo de atividade jurídica será dispensada para os que contarem com, no mínimo, dois anos de efetivo exercício em cargo de natureza policial-civil, anteriormente à publicação do edital do concurso.”

Com advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o fundamento norteador do ordenamento jurídico passou a ser o princípio da dignidade da pessoa humana. Consequentemente, diversos filtros foram criados e remodelados, com o objetivo de assegurar o atendimento aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

A figura do Delegado de Polícia, com o movimento pós-constituinte de 1988, também passou por transformações, se tornando a primeira barreira protetora da dignidade da pessoa humana, a fim de combater arbitrariedades e excessos decorrentes da intervenção estatal na esfera individual dos cidadãos.

Tal entendimento é extraído do artigo 144 e seu parágrafo 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que possui a seguinte redação:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpo de bombeiros militares.

§ 4º – às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”

Recentemente, com a edição da Lei nº. 12.830/2013, a postura legislativa de valorização da carreira do Delegado de Polícia vem se solidificando, especificamente no artigo 2º, “caput”, deste texto normativo que pregoa que “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”.

Diante dos preceitos normativos acima mencionados, verifica-se o fortalecimento e reconhecimento da relevante função jurídica e pública que o Delegado de Polícia exerce, qual seja, em síntese, a proteção de direitos e garantias fundamentais ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana e a efetivação dos ditames de justiça dentro do Estado Democrático de Direito.

Nesse diapasão, o professor e Delegado de Polícia Eduardo Cabette leciona que:

“Ora, o Processo Penal (e até o próprio Direito Penal) não é instrumento repressivo e sim garantia do cidadão quanto ao impedimento de ingerências arbitrárias em sua liberdade. Ele se conforma em garantismo negativo em face do Estado e, por isso, o Delegado de Polícia, como primeiro agente estatal a manejá-lo com conhecimento e formação técnico-jurídica, deve ser o primeiro anteparo do indivíduo, ponto de apoio para a sustentação de sua dignidade humana, de sua liberdade e de todos seus direitos fundamentais” (CABETTE, 2013, p. 10).

Apesar das diversas atribuições jurídicas e sociais atinentes à carreira de Delegado de Polícia, ainda é controversa a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela pela Autoridade Policial.

Exemplifiquemos com uma situação bastante corriqueira que acontece em todo o Brasil, país de grandes proporções territoriais e desigualdades sociais equivalentes, qual seja a prática de um irrelevante e pequeno furto.

Imagine-se um cenário em que um indivíduo, sem qualquer periculosidade ou antecedentes criminais, adentre no estabelecimento de uma grande rede de supermercados, de modo que, por motivos famélicos, subtraia uma fruta e saia do local sem efetuar os devidos pagamentos. Ato contínuo, os representantes legais da empresa jurídica vítima logram êxito em capturar o indivíduo, na via pública, em poder da fruta furtada para seu consumo e o conduzem para uma Delegacia de Polícia para adoção das medidas legais cabíveis.

Ora, caso a Autoridade Policial tão somente realize a análise da tipicidade formal da conduta do agente, este teria praticado, em tese, o crime de furto, capitulado no artigo 155 do Código Penal Brasileiro, que prescreve ser punível com pena de reclusão, de um a quatro anos, “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Nesta hipótese, todos os elementos do tipo penal encontram-se preenchidos, bem como estariam presentes os elementos de autoria e materialidade delitiva.

Entretanto, será que o ordenamento jurídico considera plausível e justo o recolhimento deste indivíduo ao cárcere?

Na fase judicial, não há dúvidas de que o princípio da insignificância, atendidos seus pressupostos autorizadores, será reconhecido pela Autoridade Judicial, após manifestação do representante do Ministério Público, haja vista a natureza jurídica do postulado, qual seja, a de causa supralegal de exclusão da tipicidade material.

E na fase pré-processual ou fase de investigação policial? Qual seria a razão de impedimento para aplicação do princípio da insignificância pela Autoridade Policial, quando esta se deparar com uma evidente e manifesta situação de reconhecimento do postulado da insignificância ou da criminalidade de bagatela?

Existe necessidade para a condução de uma pessoa à prisão por um fato que nem sequer seria intentada a denúncia, haja vista a falta de condição da ação penal?

Preliminarmente, é necessário registrar que o Superior Tribunal de Justiça possui um julgado no qual a Corte se manifestou contrariamente à possibilidade de análise do princípio da insignificância pela Autoridade Policial, atribuindo a referida competência apenas ao Poder Judiciário.

A referida decisão foi proferida nos autos do Habeas Corpus nº. 154.949 de Minas Gerais, julgado pelo Ministro Felix Fischer, em 03 de agosto de 2010, sendo, inclusive, encartada no Informativo nº. 441 do Superior Tribunal de Justiça.

“A Turma concedeu parcialmente a ordem de habeas corpus a paciente condenado pelos delitos de furto e resistência, reconhecendo a aplicabilidade do princípio da insignificância somente em relação à conduta enquadrada no art. 155, caput, do CP (subtração de dois sacos de cimento de 50 kg, avaliados em R$ 45). Asseverou-se, no entanto, ser impossível acolher o argumento de que a referida declaração de atipicidade teria o condão de descaracterizar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, ato a cuja execução o apenado se opôs de forma violenta. Segundo o Min. Relator, no momento em que toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso concreto. Logo, configurada a conduta típica descrita no art. 329 do CP, não há de se falar em consequente absolvição nesse ponto, mormente pelo fato de que ambos os delitos imputados ao paciente são autônomos e tutelam bens jurídicos diversos” (STJ. HC 154.949/MG. Rel. Min. Felix Fischer. DJ 03/08/2010).

Em seu voto, o Ministro Relator Felix Fischer ressalta que “verificada a ocorrência de um crime que está sendo ou acaba de ser cometido, surge para a autoridade policial o dever de agir e realizar a prisão em flagrante, o que o faz no estrito cumprimento do dever legal”. Em outro ponto do julgado, o Ministro Relator Felix Fischer conclui que “a observância do princípio da insignificância no caso concreto é realizada, a posteriori, pelo Poder Judiciário, analisando as circunstâncias peculiares de cada caso”. Neste acórdão, os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça Laurita Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi, por unanimidade, seguiram o voto do Ministro Relator.

Ousamos discordar da citada decisão, de modo que a seguir serão demonstrados argumentos e soluções práticas, a fim de consubstanciar o reconhecimento do postulado da insignificância pelo Delegado de Polícia.

O princípio da insignificância, idealizado por Claus Roxin, para fins de Política Criminal, funciona como causa de exclusão da tipicidade material da infração penal. Ora, se não há tipicidade material não podemos falar em fato típico e, consequentemente, por falta deste substrato do crime, não há sentido lógico em sequer valorar uma conduta como infração penal.

Nestes termos, o jurista Luiz Flávio Gomes prescreve que:

“No plano doutrinário (dogmático) a resposta pode ser dada com apoio nas lições de ROXIN, que desde 1970 (e diferentemente do que dizia VON LISZT) vem sustentando a construção de um novo sistema penal fundado na indivisibilidade entre Direito penal e Política criminal. Os princípios de Política criminal (exclusiva proteção de bens jurídicos, intervenção mínima – fragmentariedade e subsidiariedade -, ofensividade etc.) são relevantes não só para o legislador, senão também para o aplicador do Direito, que ao analisar as diversas categorias do fato punível (tipicidade, antijuridicidade e punibilidade), assim como os demais pressupostos da pena (culpabilidade, necessidade concreta da pena etc.), deles não pode prescindir. A consequência dogmática inevitável decorrente da incidência do princípio da insignificância é a exclusão da tipicidade do fato. O fato deixa de ser materialmente típico” (GOMES, 2012, p. 75-76).    

Logo, diante de um fato atípico materialmente, não é possível exigir que a Autoridade Policial proceda somente à análise da tipicidade formal que é o enquadramento do comportamento humano ao tipo penal previsto em lei. Do contrário, existiria um real esvaziamento da figura do Delegado de Polícia, equiparando tal carreira jurídica secular a um mero reprodutor programado de aspectos literais da norma penal, podendo, inclusive, ser igualado a um computador ou similar, destituído de convicção e juízo de valor. Com certeza absoluta, o Estado Democrático de Direito não espera uma postura inerte dos órgãos que fazem parte do sistema de justiça criminal.

O jurista português Manuel Monteiro Guedes Valente, corroborando esse entendimento, expõe que:

“Um Estado de direito democrático assente na dignidade da pessoa humana e na vontade popular, como propósito ideológico e pragmático da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, exige uma POLÍCIA que tenha como interesse e fim não só garantir a segurança interna, mas que promova o respeito e a garantia dos direitos fundamentais da pessoa na pugna pela paz jurídica e consubstancia, assim, a defesa da legalidade democrática” (VALENTE, 2009, p. 167).

Se determinada conduta não é considerada como infração penal pelo Juiz ou pelo Órgão Ministerial, de igual sorte não pode ser tratada de forma diferente pela Autoridade Policial, sob pena de insegurança jurídica de enormes proporções. O sistema jurídico deve estar interligado e pautado por decisões uníssonas e consoantes com a proteção dos direitos fundamentais e o respeito às regras e aos princípios.

Além da questão da atipicidade material reconhecida pelo Delegado de Polícia, é preciso verificar se há a reunião de todas as condições da ação penal, quais sejam a legitimidade de causa, a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a justa causa. Nessa perspectiva de aplicabilidade do princípio da insignificância, uma eventual ação penal careceria de interesse de agir e de justa causa.

Dentro do panorama da aplicação do princípio da insignificância e da prisão em flagrante delito, não há razoabilidade para que haja impedimento de ponderação pelo Delegado de Polícia. É totalmente incongruente o fato de a Autoridade Policial determinar o encaminhamento de uma pessoa ao cárcere, para que, algumas horas depois, sua liberdade seja concedida pelo Juiz. É inconcebível negar a Autoridade Policial como operador do Direito capaz de realizar o juízo de valor quanto à atipicidade material de uma determinada conduta.

Obviamente, que há que se ter cautela ao falar acerca da possibilidade de reconhecimento do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia no momento da condução de uma pessoa em situação de flagrante delito ao Distrito Policial. É necessária uma análise técnico-jurídica aprofundada e detalhada do contexto probatório, observando-se, ainda, os vetores balizadores para aplicação do referido postulado, instituídos pelo Supremo Tribunal Federal, quais sejam: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) ausência de periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão causada ao bem juridicamente tutelado.

Diante da situação apresentada, o Delegado de Polícia não pode simplesmente abster-se de realizar qualquer tipo registro, desprovido de fundamentação jurídica, para explicar os motivos que o levaram a deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante delito. Caso excessos sejam detectados, o funcionário público deverá responder nos limites da lei e do regimento orgânico.

Além do mais, é preciso que o quadro fático configure uma manifesta e indiscutível hipótese de reconhecimento do postulado da insignificância, a fim de que não haja supressão das competências do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Corroborando esse entendimento, o professor Eduardo Cabette conclui que:

“Mormente no atual contexto em que a Polícia Civil, dirigida por Delegados de Polícia de Carreira, no exercício de atos de Polícia Judiciária, é reconhecida como “atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica”, bem como é assegurada às Autoridades Policiais “independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária” (art. 140, § 2º., da Constituição do Estado de São Paulo), torna-se inafastável o poder – dever do Delegado de Polícia em reconhecer de forma fundamentada a incidência do Princípio da Insignificância em determinados casos concretos, sempre “sub censura” de eventuais conflitos de convicção perante o Ministério Público e o Judiciário que são dotados de poder requisitório e não são atrelados às deliberações do Delegado. Observando-se, desde logo, que o exercício desses poderes requisitórios ou mesmo correcionais internos em nada maculam a livre convicção da Autoridade Policial inicialmente oficiante, pois que inclusive uma decisão judicial é passível de reforma e uma manifestação do Ministério Público pode não ser acatada (v.g. rejeição da denúncia), tudo isso dentro da legalidade e do devido processo legal com os recursos a ele inerentes. Obviamente que a Autoridade Policial não é maculada em sua livre convicção quando não é submetida a pretensas sanções ou coações quando toma tais decisões de forma motivada. Caso contrário, estará sendo vítima de constrangimento ilegal e usurpação de função. Portanto, salvo em casos de gritante e grosseiro erro ou, principalmente, em situações de comprovada má-fé, a alteração da decisão inicial da Autoridade Policial mediante requisições ministeriais ou judiciais ou pela atividade correicional, não devem implicar em quaisquer sanções ou sequer ameaças de sanções ou advertências” (CABETTE, 2013, p. 11).

Já com relação às soluções práticas para a adequada e equilibrada aplicação do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela pela Autoridade Policial, dentro de um paradigma garantista, assegurando, assim, o direito de liberdade das pessoas, passamos a analisar as seguintes propostas.

Uma primeira alternativa seria o imediato arquivamento da “notitia criminis”, tendo em vista que a Autoridade Policial não deve instaurar inquérito policial ao se deparar com um fato atípico.

Cumpre destacar que o arquivamento da “notitia criminis” não se confunde com o arquivamento o inquérito policial. O próprio artigo 17 do Código de Processo Penal veda o arquivamento do inquérito policial pela Autoridade Policial.

A “notitia criminis” é apenas o conhecimento, por parte do Delegado de Polícia, acerca da suposta prática de uma infração penal. Logo, se não existir elementos de justa causa para instauração do competente inquérito policial, a Autoridade Policial poderá proceder ao arquivamento da comunicação que não vislumbre hipótese de crime, mediante despacho devidamente fundamentado. Dessa decisão de indeferimento de abertura de inquérito policial pela Autoridade Policial, caberá recurso para o chefe de Polícia, nos termos do artigo 5º, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal.

Nesse sentido, os doutrinadores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar explicitam que:

“Caso o delegado de polícia indefira o requerimento do ofendido para instauração do inquérito policial, por entender que não há infração penal a apurar, poderá haver recurso administrativo ao chefe de polícia (art. 5º, § 2º, CPP). É de se destacar que a autoridade policial, ao analisar os fatos que lhe são trazidos, deve exercer um juízo de tipicidade para aferir o enquadramento legal da possível infração. Se o fato não é previsto em lei como crime, com muita razão, não há de se falar em instauração de inquérito policial, devendo a autoridade policial negar-se a iniciá-lo. Não se cogita, na hipótese, de violação a direito líquido e certo da vítima a dar ensejo à impetração de mandado de segurança, afinal, o enquadramento legal é feito pela autoridade policial, e convencendo-se o delegado de que o fato é atípico, restaria ao eventual prejudicado, o manejo de recurso administrativo à instância superior de polícia” (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 104).

Sendo assim, diante da convicção da Autoridade Policial com relação à presença manifesta dos requisitos autorizadores de aplicação do princípio da insignificância, o Delegado de Polícia poderia, de modo fundamentado, decidir pelo arquivamento da “notitia criminis”, visto a inexistência de tipicidade material.

Com relação ao arquivamento da “notitia criminis”, o professor Eduardo Cabette ensina que:

“Nada mais óbvio do que a constatação de que a Autoridade Policial pode e deve arquivar ocorrências registradas somente de maneira fundamentada e em casos justificáveis como, por exemplo, situações em que o fato registrado é nitidamente atípico, registros ou pedidos de instauração por crimes revogados, casos em que há nítida ocorrência de prescrição ou decadência, dentre outros. Ademais, sendo a Polícia Judiciária um dos órgãos mais fiscalizados e abertos do Poder Público, certamente todas as decisões proferidas nessas condições serão correicionadas e, em caso de eventual equívoco, abuso ou mesmo má-fé, poderão ser revistas” (CABETTE, 2013, p. 9).

Apesar da incontestável possibilidade de arquivamento da “notitia criminis” pelo Delegado de Polícia, a doutrina majoritária entende que, em se tratando de hipótese de aplicabilidade do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela, estaria vedado à Autoridade Policial decidir pela não instauração do inquérito policial.

Nesse diapasão, é o posicionamento dos juristas Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:

“Restaria ainda a provocação acerca da possibilidade ou não da autoridade policial invocar o princípio da insignificância para deixar de instaurar o inquérito policial. A posição francamente majoritária tem se inclinado pela impossibilidade do delegado de polícia invocar o princípio da insignificância para deixar de atuar, pois estaria movido pelo princípio da obrigatoriedade. A análise crítica quanto à insignificância da conduta (tipicidade material) caberia ao titular da ação penal, que na hipótese, com base no inquérito elaborado, teria maiores elementos para promover o arquivamento, já que a insignificância demonstrada é fator que leva à atipicidade da conduta. Assim, deve o delegado instaurar o inquérito policial, concluí-lo e encaminhá-lo ao juízo, evitando, contudo, o indiciamento. A manifestação acerca da insignificância deve ficar com o titular da ação pena. Nada impede, porém, que instaurado o inquérito policial, possa o suposto autor da conduta insignificante, diante do constrangimento ilegal impetrar habeas corpus para trancar o procedimento investigatório iniciado” (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 104). 

Já uma segunda proposta de solução prática para a aplicação e reconhecimento do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela pelo Delegado de Polícia numa eventual situação de prisão em flagrante delito é a instauração do competente inquérito policial para apuração detalhada dos fatos apresentados na ocorrência policial e o não recolhimento ao cárcere da pessoa conduzida ao Distrito Policial.

Ao se deparar com uma situação fática apresentada na Unidade Policial, a qual, em tese, pudesse configurar hipótese de lavratura do auto de prisão em flagrante delito, o Delegado de Polícia poderia analisar a presença dos requisitos para aplicação do princípio da insignificância e, após formar seu juízo de convicção jurídica, proceder aos atos de Polícia Judiciária que visem à instauração de inquérito policial, por meio de portaria inicial, deixando de submeter a pessoa conduzida à prisão e expondo as suas considerações de forma fundamentada.

Nesta solução prática, a Autoridade Policial, tomando as cautelas necessárias, irá realizar a formalização das oitivas das partes envolvidas e tomar as providências iniciais do inquérito policial. O que se deseja com esta medida é o não encarceramento da pessoa que cometa delito bagatelar.

O inquérito policial é o procedimento de investigação criminal realizado por órgão com competência de Polícia Judiciária e presidido pelo Delegado de Polícia, que tem por objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais. Se durante a apuração nos autos do inquérito policial restar evidenciada a manifesta causa de atipicidade material da conduta do agente, deverá a Autoridade Policial ofertar o relatório final para apreciação do Poder Judiciário e manifestação do Ministério Público, a fim de que seja promovido o seu arquivamento.

No panorama de harmonia das atribuições dos órgãos que compõem o sistema de justiça criminal, acreditamos que esta solução prática para o reconhecimento do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia seja a alternativa mais equilibrada e ponderada, pois a Autoridade Policial estaria submetendo sua decisão ao crivo dos Órgãos Judicial e Ministerial. Com isso, os ideais de legalidade e justiça seriam contemplados e enaltecidos.

Nessa esteira, o professor e Delegado de Polícia Eduardo Cabette pontua que:

“[…] a função policial é eminentemente garantista em seus ângulos positivo e negativo num Estado Democrático de Direito, o que vem a sustentar o poder-dever do Delegado de Polícia reconhecer e aplicar fundamentadamente o Princípio da Insignificância nos casos concretos que lhe são apresentados. Isso visando dar concretude a valores e princípios como a legalidade, a justiça, a necessidade, a oportunidade e a proporcionalidade estrita em sua conjunção com o assegurar do Direito à Liberdade do indivíduo” (CABETTE, 2013, p. 12).

Diante do exposto, restou evidenciado que com o fortalecimento do Delegado de Polícia, como operador técnico-jurídico do sistema de justiça criminal, a sociedade estará protegida e resguardada de eventuais abusos, sendo assegurado o direito das liberdades dos cidadãos, um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por objetivo a análise acerca da possibilidade de aplicação e reconhecimento do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela pela Autoridade Policial no momento em que se vislumbre uma hipótese de prisão em flagrante delito.

Durante a pesquisa, demonstrou-se a evolução do cargo de Delegado de Polícia como operador do Direito componente do rol das carreiras jurídicas e primeiro garantidor dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

Em relação ao reconhecimento do princípio insignificância pela Autoridade Policial no momento da prisão em flagrante delito, foram expostos os argumentos contrários e favoráveis, sustentando no presente trabalho a possibilidade da referida análise pelo Delegado de Polícia.

Diante das considerações acima apresentadas, consideramos ser plenamente legal e plausível o reconhecimento do princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela pelo Delegado de Polícia no momento da prisão em flagrante delito, haja vista que com este entendimento estarão protegidos e fortalecidos o sistema de justiça criminal e o Estado Democrático de Direito.

 

Referências
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CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Delegado de Polícia e Aplicação do Princípio da Insignificância. Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/eduardocabette/2013/07/18/delegado-de-policia-e-aplicacao-do-principio-da-insignificancia/>. Acesso em: 24 mar. 2015.
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4. ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2010.
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Policial. 2. ed. Coimbra: Almedina. 2009.

Informações Sobre o Autor

Oto Sérgio Silva de Araújo Júnior

Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Especialista em Polícia Judiciária e Sistema de Justiça Criminal pela Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Especialista em Direito do Estado pelo JusPODIVM – Instituto de Excelência LTDA. Graduação em Direito pelo Centro Universitário Jorge Amado


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