Robson Zanetti*
A apuração de haveres é o resultado da resolução da sociedade com relação a um dos sócios, enquanto a liquidação e partilha constituem o resultado da dissolução.[1]
No caso de resolução da sociedade com relação a um dos sócios seus haveres são apurados e depois pagos, sem que a sociedade seja dissolvida.
A) O valor de reembolso
O art. 1031 do Código Civil estabelece que:
“ Art. 1031 – Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.”
a) A proporção de haveres segundo a integralização de quotas
O sócio receberá seus haveres da sociedade, se houver saldo positivo, conforme a sua participação no capital social. Essa participação deve ser analisada segundo o número de quotas integralizadas. Sendo o sócio remisso expulso, o valor de seu crédito corresponde às entradas que realizou, descontadas da indenização devida à pessoa jurídica[2], se houver.
O valor da quota deve ser o seu valor econômico, ou seja, aquele decorrente do fluxo de caixa projetado associado à taxa de crescimento esperado e ao índice de retorno adequado ao setor[3].
A apuração de haveres normalmente não pode ser demandada por quem não é sócio[4], porém admitem-se exceções, assim, no casamento pelo regime da comunhão universal de bens, comunicam-se todos os bens, inclusive as quotas, mas não o status de sócio.[5]Não importa que as quotas estejam somente no nome de um dos cônjuges.[6] Desta forma, o cônjuge que recebe em partilha quotas sociais tem legitimidade ativa para apurar haveres[7]. Em caso de morte do sócio, uma vez apurados os haveres, estes serão pagos aos sucessores do sócio falecido, assim, o espólio devidamente representado, poderá ajuizar a ação de dissolução da sociedade cumulada com a apuração de haveres, independentemente da autorização dos herdeiros e da finalização do inventário.[8] A legitimidade ativa pode ser atribuída ao espólio, representado pelo inventariante [9]. Os herdeiros do sócio pré-morto têm legítimo interesse em obter a apuração de haveres.[10]
A sociedade também poderá requerer a apuração de haveres, por exemplo, quando for cumulado pedido de resolução da sociedade com relação a um dos sócios por causa de exclusão figurando no pólo ativo os sócios e a sociedade[11] ou no caso do exercício do direito de retirada, figurando somente esta no pólo ativo, não sendo admitida a intervenção voluntária no processo do sócio retirante quando o interesse for meramente econômico e não jurídico.[12]
O terceiro prejudiciado, provando o nexo de interdependência entre o seu interesse e a relação jurídica submetida à apreciação judicial, poderá apelar ( art. 499, do Código de Processo Civil ) e anular a decisão que homologa a partilha amigável, visando lesá-lo. Assim ocorre quando ele demonstrar ser credor da meeira e de um dos herdeiros e por ocasião da divisão de quotas deixada pelo sócio morto, não for realizada a apuração de haveres, em desobediência ao previsto no parágrafo único do art. 993, do Código de Processo Civil.[13]
O sócio participa do recebimento de haveres por ter sido sócio. Se ele renuncia seu status não tem direito a haveres.[14]
A ação de apuração de haveres deve ser movida contra a sociedade e não contra o sócio[15], não existindo responsabilidade solidária dos sócios ao seu pagamento, salvo disposição em contrário[16], pois a solidariedade não se presume, resulta da lei ou da vontade das partes ( art. 265, Código de Processo Civil ).
b) Critérios de apuração dos haveres
1 – A apuração de haveres segundo o contrato social, a convenção entre os sócios e feita judicialmente
Uma vez não havendo estipulação contratual[17] estabelecendo a forma de apuração de haveres, os sócios poderão decidir como serão apurados e se não houver acordo entre eles sua apuração será feita judicialmente ( CPC/73, art. 668 c/c art. 1.218, VII do CPC/39 ).[18] A fixação também será judicial quando a estipulação contratual trouxer enriquecimento ilícito da sociedade e dos demais sócios.[19]
O fato da apuração dos haveres ter sido feita extrajudicialmente, e, na época o credor ser notificado para acompanhá-la, com a indicação de técnico, e, ainda, ser colocado a sua disposição o valor apurado pela sociedade a título de balanço de determinação, recusando-se o credor assinar o recibo de entrega, não o impede de questionar judicialmente os valores apurados no dito balanço.[20]
Para se evitarem discussões posteriormente, os sócios devem estabelecer no contrato social ( art. 1031 do Código Civil ) ou através de um pacto parasocial[21] como será feita a avaliação da quota para que se apurem os haveres do sócio ( art. 668 do CPC/1939, em vigor ex vi do art. 1218, VII do CPC/1973 )[22] e esse seja reembolsado[23][24].
2 – Balanço especialmente levantado[25]
A) O momento da apuração de haveres
A apuração de haveres do sócio se verifica no momento de sua efetiva desvinculação da sociedade. Esse momento normalmente ocorre quando a sociedade toma conhecimento mediante notificação, dos casos de recesso e saída imotivada[26]. No caso de morte do sócio, no dia do seu óbito[27]; no caso de exclusão, o momento se dá quando o sócio toma conhecimento da vontade social[28] quando ela for realizada extrajudicialmente e, judicialmente, com o momento em que se verificar o trânsito em julgado da decisão[29].
Na apuração de haveres realizada judicialmente as controvérsias patrimoniais são levadas a perícia. Normalmente os tribunais não têm acolhido a produção de prova pericial durante o processo de conhecimento, mas tão somente no caso da fase de execução da sentença.[30] Não concordamos com esse posicionamento porque a produção de prova pericial para a apuração de haveres é uma medida conservatória, que nada trará de prejuízo para a fase de execução da sentença.[31]
No caso de morte de um dos sócios, o espólio administrará transitoriamente as quotas do de cujus enquanto se procede a apuração de haveres, não sendo o espólio sócio e nem administrador da sociedade.[32]
ii – A situação patrimonial da sociedade
Não pode ser aceito o preço arbitrado de forma unilateral pela sociedade, sem o consentimento do sócio ou seus sucessores beneficiários dos haveres. Dessa forma e de outras, havendo conflito sobre a apuração de haveres será feita uma perícia[33] e o laudo do perito, uma vez acolhido pelo juízo, atesta o valor dos haveres[34] formalmente. É nomeado um perito para fazer a apuração de haveres e não o liquidante[35]. Se houver dúvida com relação aos esclarecimentos prestados por escrito pelo perito, poderá ser feito pedido de esclarecimento em audiência.[36]
O perito não representa a sociedade e nem age como liquidante, mas poderá a vir em certos casos, supervisionar e fiscalizar o processo de apuração de haveres.[37]
A quota do sócio será liquidada com base na situação patrimonial real da sociedade[38], buscando-se a exata verificação física e contábil dos bens e direitos da sociedade que formam seu ativo[39].
A situação patrimonial da sociedade deverá tomar como base o balanço especialmente levantado ( art. 1031, caput, do Código Civil ). A avaliação dos haveres do sócio deve ser feita com base no preço de mercado de seus ativos à data do fato, devendo-se buscar o valor real dos bens[40], não bastará a simples verificação contábil da sociedade, nem a realização do inventário[41] compondo os bens que integram seu ativo permanente, pois, existindo bens que por vezes não estejam contabilizados no balanço e que constituam patrimônio da sociedade também deverão ser avaliados. Devem ser avaliados os dividendos[42], o fundo de reserva instituído pela vontade dos sócios[43] na medida da respectiva participação social[44], o patrimônio incorpóreo[45], especialmente o estabelecimento[46], visando definir o valor do reembolso[47]. Devem ser avaliados os bens imateriais, como a marca[48], o nome empresarial, o saber-fazer e o passivo invisível ou projetado, como os encargos trabalhistas, indenizações, …[49]. Ainda, as importâncias não pagas a título de pro-labore até a data da exclusão[50], bem como indenização ao sócio excluído por dano moral se houver.[51] O balanço serve como meio de apuração dos haveres e não como um fim em si. Ele é tomado como referencial.
Existe uma tendência jurisprudencial determinando que a apuração de haveres do sócio seja feita com base no balanço de determinação, independentemente da causa de resolução da sociedade. Esse balanço de determinação é uma criação da doutrina jurídica e não da teoria da contabilidade.[52] Ele apura os haveres de forma independente dos balanços anteriores. Ele pode ser realizado durante a instrução do processo de resolução da sociedade[53] e mesmo antes, através da produção antecipada de provas.
O balanço de determinação deve seguir as regras de contabilidade e através dele se faz uma simulação de liquidação da sociedade[54], simulando-se a realização total dos bens do ativo e a satisfação do passivo social, para se chegar a um valor do acervo líquido da sociedade, ou seja, imagina-se a sua dissolução e liquidação. Data venia, porém, tal entendimento jurisprudencial merece limites, pois, na resolução da sociedade com relação a um dos sócios, por exemplo, não se nomeia liquidante[55], como ocorre na dissolução total. O que poderá ocorrer é a nomeação de perito para realizar a apuração de haveres através da liquidação da sentença por arbitramento.[56]
O balanço de determinação, além de atualizar os fatos contábeis verificados entre a data do encerramento do último exercício e a data do seu levantamento, altera os critérios de avaliação dos bens do ativo e passivo, de sorte a contabilizá-los a valor de saída ( “ valor de mercado “ )[57]. Na maioria das vezes ele não é submetido à deliberação dos sócios e isso faz com que ele não possa ser oposto contra quem não participou de sua aprovação.[58]
Os sócios podem determinar que o último balanço aprovado seja utilizado como critério para apuração de haveres, pois o balanço não aprovado pelo sócio falecido, excluído ou que se retira, não serve como fonte para a apuração de haveres.[59]
B) O reembolso dos haveres
Uma vez apurado os valores, o art. 1031, §2º, do Código Civil estabelece que a quota será liquidada e paga em dinheiro, no prazo de 90 dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário. Este valor será pago assim quando não houver controvérsia sobre o quantum.
Havendo disposição contratual em contrário, diante da ausência de conflito judicial, prevendo o pagamento em várias parcelas, esta disposição contratual deve ser respeitada, a não ser que haja enriquecimento ilícito da sociedade e dos demais sócios, por isso, os valores apurados devem ser atualizados, contando-se juros moratórios[60] e mais correção monetária do quantum apurado[61], a qual deve incidir desde a data do levantamento técnico-contábil até a data do pagamento.[62]
Uma vez o contrato estabelecendo a forma de pagamento e havendo resistência, superando-se o momento oportuno[63] para a satisfação das parcelas previstas no contrato social[64], o pagamento deve ser feito de uma única vez[65] e em dinheiro.[66] O prazo para pagamento começa a correr a partir da citação da sociedade porque este foi o momento de sua constituição em mora.[67] É a sociedade que faz o pagamento, sendo os sócios remanescentes subsidiariamente responsáveis pelo pagamento dos haveres no limite do capital social integralizado.[68]
Poderia o credor ajuizar ação pedindo a tutela antecipada visando à fruição do capital que resultaria da apuração tempestiva dos haveres? Entende-se que não, pois a apuração de haveres trata-se de direito de crédito cuja satisfação impontual só da margem a correção monetária e juros.[69]
Não havendo disposição contratual e nem convenção das partes em contrário, havendo litígio, o valor do reembolso é obtido judicialmente mediante perícia física e contábil ( balanço geral e apuração integral )[70] devendo ser pago em parcela única[71]em dinheiro[72], salvo disposição em contrário, após homologado o laudo pericial,[73] desconsiderando-se o prazo contratual. O valor deve ser corrigido monetariamente a partir da data do efetivo prejuízo.[74]
O prazo legal para pagamento de 90 dias ( art. 1031, §1º, Código Civil ) a partir do trânsito em julgado da sentença que homologar a conta de liquidação[75] às vezes pode ser difícil de ser cumprido[76], pois, se o pagamento for feito em espécie, poderá ocorrer a descapitalização da sociedade e ela ter a continuidade de suas atividades prejudicada, alterando então o julgador a forma de pagamento, visando a manutenção da atividade.[77] Por outro lado, a garantia dos credores é enfraquecida em virtude da redução do capital social corresponde ao valor pago, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota ( art. 1031, §1º do Código Civil).
Para evitar tal situação, é importante que os sócios estabeleçam no contrato social de que forma serão apurados os haveres, para que não existam problemas com a continuidade das atividades sociais devido ao pagamento que deve ser realizado ao sócio ou seus sucessores, pois se houver previsão contratual cumpre-se o que constar no contrato social, pagando-se os haveres no número de parcelas dele constantes.[78]
Em certo casos, poderá não parecer justo que a sociedade, sem liquidez, tenha que pagar os haveres do sócio em dinheiro[79] e em tão breve espaço de tempo, ficando com bens e direitos, porém, sem capacidade imediata de tranformá-los em dinheiro, mesmo porque, o preço estabelecido na perícia pode não ser o preço real de compra, traduzido somente num preço de mercado, mas sem compradores[80], ou seja, vale o preço, mas quem o paga? Assim, entendemos que se não houver dinheiro suficiente para ser pago a título de haveres ao sócio, correspondente a sua participação na quantia disponível, deverá ser seguida a ordem de penhora descrita no art. 655 do Código de Processo Civil, transformando esses bens em dinheiro, seja extrajudicial ou judicialmente e o preço obtido, pago em valor correspondente a participação do sócio referente ao bem vendido e não a sua participação total na sociedade. A forma de pagamento deve preservar a continuidade das atividades empresariais.
Havendo litígio na apuração judicial de haveres, a sociedade é responsável pelo pagamento dos honorários de sucumbência.[81]
Numa sociedade formada somente pelo casal quando desfeita a união estável, deve ser feita a apuração de haveres na sociedade empresária para verificar a existência de crédito de cada cônjuge.[82]
Com a resolução da sociedade, os sócios têm o prazo de 180 dias para resolver se irão recompô-la, se a transformarão em outra forma societária, se o único sócio exercerá a atividade individualmente ou será pedida sua dissolução. Este prazo não dá direito a sociedade para não liquidar, conforme estabelecido legalmente, as quotas do sócio visando a apuração de seus haveres dentro do prazo de 90 dias.
* Advogado. Doctorat Droit Privé pela Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Corso Singolo em Diritto Processuale Civile e Diritto Fallimentare pela Università degli Studi di Milano. Autor de mais de 100 artigos e das obras Manual da Sociedade Limitada: Prefácio da Ministra do Superior Tribunal de Justiça Fátima Nancy Andrighi e A prevenção de Dificuldades e Recuperação de Empresas. É também árbitro e palestrante