Resumo: O presente artigo tem como objetivo a explanação da importância das responsabilidades civis pré e pós-contratuais, no contexto do direito das obrigações. Na explanação, serão trazidos conceitos doutrinários acerca da boa-fé objetiva, dos deveres acessórios de conduta, das responsabilidades supracitadas, seus desdobramentos, problematizações acerca da tratativa rasa a respeito do tema e, sobretudo, da sua importância e da consequente necessidade de que lhe seja garantida maior atenção. [1]
Palavras-chave: Direito das obrigações. Responsabilidades Civis Pré e Pós-Contratuais. Boa-fé. Deveres Acessórios de Conduta.
Abstract: The present work has as its aim the exposure of the importance of the pre and post-contractual liabilities, within the context of the law of obligations. In the exposure doctrinal concepts will be brought to light, concerning the objective good faith, the accessories obligations of conduct, the aforementioned liabilities and its developments, discussions about the shallowness on the subject and, most importantly, its relevance and the consequent need to guarantee greater attention to this topic.
Keywords: Law of Obligations. Pre and Post-Contractual Liabilities. Good Faith. Accessories Obligations of Conduct.
Sumário: Introdução. 1. Boa-Fé Objetiva. 1.1 Conceito. 1.2 Surgimento. 1.3 Os Deveres Acessórios De Conduta. 2. Responsabilidade Civil Pré-Contratual E Pós-Contratual. 2.1 A Responsabilidade Civil Pré-Contratual. 2.2 A Responsabilidade Civil Pós-Contratual. 2.2.1 A Teoria Da Culpa Post Pactum Finitum. 2.3 Fundamentos Jurídicos. 3. O Projeto De Lei Nº 6.960/02. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo possui como objeto de análise a boa-fé objetiva e as responsabilidades pré e pós-contratuais. Destarte, com o fito apresentá-lo de forma mais adequada, será abordado, primordialmente, o conceito de boa-fé objetiva, o qual se baseia na ideia de lealdade e cooperação entre as partes da relação obrigacional, visando à efetividade dos interesses destas. Será discutido, ainda, as origens e os efeitos da boa-fé objetiva, principalmente no que tange aos deveres acessórios de conduta e sua perduração não apenas durante a relação contratual, mas também antes da criação desta – nas chamadas negociações preliminares – e após a sua extinção pelo adimplemento.
Feito isso, o artigo direcionar-se-á a um maior aprofundamento a respeito das responsabilidades pré e pós-contratuais, as quais se constituem, basicamente, na existência de deveres de lealdade, proteção e informação entre as partes durante as negociações preliminares e mesmo após o adimplemento da prestação, fato este que se relaciona diretamente com a boa-fé objetiva.
Posteriormente, visando o melhor entendimento sobre o assunto, será apresentada uma conceituação conjunta sobre tais responsabilidades supracitadas e, logo após, mais especificidades acerca de cada uma delas. Além disso, serão trazidos os fundamentos jurídicos existentes no ordenamento jurídico brasileiro a respeito das responsabilidades, mais precisamente o artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal de 1988 e os artigos 421 e 422 do Código Civil de 2002, com o objetivo de expor como ocorre a aplicação destes.
Por fim, será realizada uma breve reflexão acerca do Projeto de Lei 6.960/02, que objetiva, entre outras modificações, a determinação mais clara sobre as responsabilidades pré e pós-contratuais, no artigo 422 do Código Civil atual, a fim de ampliar a aplicação do princípio da boa-fé objetiva em casos concretos.
1 BOA-FÉ OBJETIVA
1.1 CONCEITO
O princípio da boa-fé objetiva é, hoje, considerado um dos princípios cernes do Direito das Obrigações, regendo, assim, relações jurídicas de cunho patrimonial. Entretanto, o conceito teórico deste princípio nunca foi expressamente delimitado ou determinado. É o que afirma Mackaay (2012, ps. 150 e 157) quando diz que “in none of the Civil Codes is the concept well defined”[2] e que “good faith is found in most legal systems and in many different areas of law. Yet the meaning of the concept is far from agreed on.”[3]
Posto isto, é clara a percepção de que o princípio apresenta uma visibilidade mais relacionada à sua aplicação prática nas relações obrigacionais e que seu conceito teórico se encontra sujeito a análises doutrinárias. Diante disso, a doutrina recorre frequentemente a termos como lealdade e cooperação, na tentativa de definir o princípio da boa-fé objetiva.
Utilizando do conceito proposto por Mackaay (2012, p. 154), a boa-fé, quando objetiva, “refers here to not taking advantage of an asymmetry in the relationship in circumstances that would lend themselves to it.”[4] Assim, tal princípio se apresenta, em suma, como um mandamento de conduta capaz de estabelecer um molde ético de lealdade, cooperação e solidariedade, que é estendido a todas as partes envolvidas em determinada relação obrigacional. As ações destas partes, quando em vínculo obrigacional, devem, por sua vez, se encontrar dentro do molde previsto pela boa-fé.
Seguindo o pensamento ilustre de Silva (2006, p.31), o princípio da boa-fé “se manifesta como máxima objetiva que determina aumento de deveres”. Isso, pois abrange todas as partes de uma relação obrigacional, como já dito, podendo vir a criar deveres até mesmo para credores, que, tradicionalmente, eram vistos apenas como os titulares de direitos. Exerce, ainda, “função harmonizadora, conciliando o rigorismo lógico-dedutivo da ciência do direito do século passado (século XIX) com a vida e as exigências éticas atuais.” (SILVA, 2006, p. 40).
1.2 SURGIMENTO
O princípio da boa-fé tem seu surgimento expresso no § 242 do Código Civil alemão, também conhecido por BGB, que impôs o dever de ação correlato à boa-fé dos sujeitos nas relações jurídicas, em todas e quaisquer fases destas. Também pela doutrina alemã ocorreu o surgimento da teoria da culpa post factum finitum ou responsabilidade pós-contratual, a qual será analisada posteriormente.
Contudo, diferentemente do ordenamento alemão, na legislação brasileira, o princípio da boa-fé não se encontra expresso em uma única cláusula, como regra geral. Surge, incialmente, no Código Comercial de 1850, conforme ensina Pereira (2013, p.23): “O desenvolvimento do instituto da boa-fé objetiva, no Brasil, seguiu caminhos próprios. O seu reconhecimento como cláusula geral a impor a tomada de um padrão de comportamento é usualmente identificado como uma conquista do denominado Direito do Consumidor. Não se verificou a efetivação de uma conquista a partir da práxis, mas sim, contrariamente, foi o direito legislado que se antepôs aos porvindouros desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema. É importante destacar, no entanto, que o Código Comercial brasileiro de 1850 foi o primeiro instrumento legislativo, no ordenamento jurídico pátrio, a conceber a boa-fé objetiva, tratando-a como necessário vetor interpretativo dos contratos de natureza comercial.”
Apesar disso, a aplicação desse princípio pela jurisprudência não ocorreu prontamente. Sobre tal questão, Pereira (2013, p.24) expõe que: “Em verdade, trata-se de texto que não foi implementado no plano prático, restando letra morta em um instrumento normativo. Importante ressaltar, contudo, que os tribunais brasileiros, àquela época, sequer detinham dados teóricos necessários para o reconhecimento e aplicação da boa-fé objetiva como cânone interpretativo a exigir dos contratantes padrões de comportamento.”
Posteriormente, de forma mais destacada, tal princípio veio a aparecer nos artigos 4º, III e 51 do Código de Defesa do Consumidor e, por fim, foi estendido aos artigos 113, 187 e 422 do Código Civil de 2002. O último artigo é, por sua vez, o que mais se aproxima de uma cláusula geral, permitindo, segundo entendimento doutrinário, uma interpretação extensiva que inclua a existência da chamada responsabilidade pós-contratual.
Apesar do exposto, existem diversas críticas ao artigo 422 do Código Civil, que postulam este artigo e sua redação como insuficientes e deficientes no concernente ao alcance da pluralidade de eventos que podem ser abrangidos pela boa-fé. Nesse sentido, argumenta Azevedo (1999, online): “O artigo é insuficiente, deficiente e, além de tudo, revela que está num paradigma anterior aos tempos em que estamos vivendo. Ele está no paradigma do sistema que alguns dizem aberto, de cláusulas gerais e conceitos indeterminados. No meu modo de entender, já estamos, no mundo, hoje, em outro paradigma.”
Assim, é afirmado que este artigo acaba por limitar a boa-fé ao momento da conclusão do contrato até sua execução, excluindo de seu alcance às fases pré e pós-contratual, o que se mostra, de certa forma, incompatível com a sociedade jurídica atual.
1.3 OS DEVERES ACESSÓRIOS DE CONDUTA
O dominante efeito da aplicação do princípio da boa-fé como mandamento de conduta no âmbito das relações obrigacionais se encontra, como já mencionado, no aumento de deveres em determinada relação. Mais especificamente, no surgimento dos chamados deveres acessórios de conduta, também denominados como deveres anexos, secundários ou instrumentais.
Tal acontecimento – aumento de deveres – se dá por meio da extensão do princípio da boa-fé a todas as partes existentes em determinada relação obrigacional[5].
Por meio da aplicação da boa-fé, se torna esperado de ambos os polos da relação obrigacional, tanto dos credores quanto dos devedores, uma conduta mútua direcionada ao outro, embasada na lealdade, na cooperação e na solidariedade. Os deveres acessórios existentes em determinada relação obrigacional irão, assim, surgir na busca pela satisfação da prestação, conciliando esta com o respeito aos ditames da boa-fé. Nesse sentido, entende-se que tais deveres anexos visam à garantia de resultados úteis decorrentes da realidade da prestação.
Contudo, é aqui de importante destaque a caracterização dos deveres anexos como deveres independentes da prestação principal, podendo, por tal fato, sobreviver até mesmo após o adimplemento desta, assim como estarem presentes ainda nas negociações preliminares. Conclui-se deste fato apresentado que, diferentemente dos deveres dependentes da obrigação principal, os deveres acessórios podem existir e perdurar, devendo ser respeitados e gerando responsabilidades tanto anteriormente à criação da relação contratual quanto posteriormente à prestação e extinção da obrigação.
2 RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL E PÓS-CONTRATUAL
O vínculo jurídico obrigacional, como afirma Gonçalves (2014, p. 45.), é composto por dois elementos principais: o débito, dever abstrato na consciência do devedor no sentido de satisfazer a obrigação; e a responsabilidade, que “confere ao credor não satisfeito o direito de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação”.
Surge, então, como resultado dos deveres acessórios originários da boa-fé, a extensão da responsabilidade contratual para além do momento de execução e conclusão do contrato, devendo-se levar em conta que tais deveres não se relacionam com a prestação principal como dito, podendo, portanto, existir até mesmo após o seu adimplemento.
Por isso, e por estes deveres se direcionarem a ambos os polos da relação, a responsabilidade do devedor se estende também à conduta que este deverá ter para adimplir a prestação. Além disso, o credor se torna igualmente responsável por uma conduta leal e solidária ao devedor, devendo facilitar e proporcionar o adimplemento eficaz da prestação por este último.
Outrossim, não há olvidar que tal extensão da responsabilidade contratual também alcança as fases de negociações preliminares. Ou seja, a violação aos deveres acessórios de conduta mesmo antes da criação da relação contratual é capaz de configurar a denominada responsabilidade civil pré-contratual.
A boa-fé objetiva se estende, pois, às diversas fases da relação obrigacional, como afirma posicionamento da Corte Suprema do Chile, citada por Mackaay (2012, ps. 149-150): “[…] la buena fe contractual […] ha de estar presente em todas las etapas de desenvolvimento del contrato, esto es, desde las negociaciones preliminares, pasando por la celebracion y ejecución del mismo, hasta las relaciones posteriores al término del contrato inclusive.”[6]
Em síntese, a boa-fé se mostra como o principal fundamento para que se torne possível o surgimento e a aplicação da responsabilidade pré-contratual e pós-contratual, exigindo-se das partes uma conduta que evite forte prejuízo à outra em todas as fases da relação obrigacional.
Nesse sentido, ao afirmar a insuficiência do artigo 421 (atual 422) do Código Civil Brasileiro, conforme posicionamento já brevemente destacado na seção 2.2., Azevedo, defendendo a existência e aplicação da boa-fé na fase pré-contratual, afirma que tal artigo é insuficiente, entre outros motivos, pois: “(…) se limita ao período que vai da conclusão do contrato até a sua execução. Sempre digo que o contrato é um certo processo em que há um começo, prosseguimento, meio e fim. Temos fases contratuais — fase pré-contratual, contratual propriamente dita e pós-contratual. Uma das possíveis aplicações da boa-fé é aquela que se faz na fase pré-contratual, fase essa em que temos as negociações preliminares, as tratativas. É um campo propício para o comportamento de boa-fé, no qual ainda não há contrato e podem-se exigir aqueles deveres que uma pessoa deve ter como correção de comportamento em relação ao outro (AZEVEDO, 1999, online).”
Expondo, igualmente, a insuficiência na fase pós-contratual, afirma que “porque se está dito "boa-fé na conclusão" e "na execução", nada está dito sobre aquilo que se passa depois do contrato. Isso também é assunto que a doutrina tem tratado — a chamada "responsabilidade pós-contratual" ou post pactum finitum.”, (AZEVEDO, 1999, online), citando três exemplos comprovadores de sua tese. Um destes segue transcrito abaixo, devido à sua relevância: “O proprietário de um imóvel vendeu-o e o comprador o adquiriu por este ter uma bela vista sobre um vale muito grande, construindo ali uma bela residência, que valia seis vezes o valor do terreno. A verdade é que o vendedor gabou a vista e aí fez a transferência do imóvel para o comprador — negócio acabado. Depois, o ex-proprietário, o vendedor foi à prefeitura municipal, verificou que não havia a possibilidade de construir um prédio em frente, mas adquiriu o prédio em frente ao que tinha vendido e conseguiu na prefeitura a alteração do plano diretor da cidade, permitindo ali uma construção. Quer dizer, ele construiu um prédio que tapava a vista do próprio terreno que havia vendido ao outro — esse não era ato literalmente ilícito. Ele primeiramente vendeu, cumpriu a sua parte. Depois, comprou outro terreno, foi à prefeitura, mudou o plano, e aí construiu. A única solução para o caso é aplicar a regra da boa-fé. Ele faltou com a lealdade no contrato que já estava acabado. É, portanto, post pactum finitum.”
Tais responsabilidades serão mais bem explanadas nas seções seguintes.
2.1 A RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL
O conceito de responsabilidade pré-contratual, também denominada culpa in contrahendo, foi o primeiro a ser desenvolvido. Surgiu em 1861, na Alemanha, por obra do jurista alemão Rudolph Von Jhering, o qual, preocupado com as necessidades práticas, visava regulamentar acerca da responsabilidade existente no decorrer das negociações preliminares e na formação da relação contratual.
De acordo com Jhering (2008, p. 41), “O imperativo da diligentia contratual vale, tal como para relações contratuais formadas, também para relações contratuais em formação, uma sua violação fundamenta aqui, como ali, a acção contratual de indemnização.”
A responsabilidade pré-contratual se relaciona, assim, com a extensão da responsabilidade às fases prévias ao estabelecimento da obrigação, devendo as partes, também nesse período inicial, agirem em respeito à boa-fé, haja vista que, caso alguma das partes incorra em culpa e boa-fé objetiva, deverá indenizar a parte contrária pelos danos sofridos in contrahendo, de modo que a situação retorne ao seu status quo ante, ou seja, ao estado inicial.
Em outras palavras, a aplicação da culpa e da boa-fé objetiva na esfera pré-contratual, assim como na pós-contratual, em uma análise mais abrangente, se mostra necessária para a harmonia do trâmite contratual e conseguinte proteção dos contraentes, como Jhering (2008, p.32) afirma: “Não são apenas as relações contratuais formadas, mas antes logo as que estão em formação que devem têm que estar sob a proteção das regras sobre a culpa, se não se quiser que o tráfico contratual seja neste aspecto obstaculizado de forma significativa, que cada contraente seja exposto ao perigo de se tornar vítima de negligência alheia.”
Todavia, não há olvidar que a pretensão de indenização tem como base a vinculação contratual, vez que, como apresentado acima, a responsabilidade pré-contratual, assim como a pós-contratual, se encontra ligada aos contratos. Neste sentido, enquanto a proposta contratual não for aceita pela outra parte, não haverá qualquer risco de lesão, visto que a vinculação à diligentia in contrahendo se inicia com a proposta (JHERING, 2008, p. 33).
É interessante expor, nesse mesmo diapasão, o que Fritz leciona sobre o assunto: “A culpa in contrahendo pela celebração de contrato nulo é considerada atualmente apenas uma das hipóteses da ampla figura da responsabilidade pré-contratual, assim como o rompimento injustificado das tratativas. De fato, a responsabilidade pré-contratual é figura bem mais ampla e não se limita a esses dois casos, mas surge sempre que durante a fase de preparação do negócio jurídico uma das partes causa dano a outra em função da violação de um dever decorrente da boa-fé objetiva (FRITZ, 2012, p.2).”
A mesma autora dispõe, ademais, que o caso mais frequente que a doutrina e a jurisprudência nacionais admitem diz respeito à ruptura injustificada das negociações, a qual: “Surge quando uma das partes desperta na outra a certeza de que o negócio será concluído e posteriormente, sem motivo justo, abandona as conversações, comportamento considerado desleal, isto é, contrário ao dever de agir com lealdade e consideração pelos interesses do outro, ínsito à ideia de boa-fé objetiva (FRITZ, 2012, p. 3).”
Fritz (2012, p. 36) leciona, outrossim, que, inicialmente, as partes são livres para iniciar e abandonar negociações, sem motivação, sendo que, no que concerne a esse período, cada parte arca com as despesas efetuadas. Todavia, isso se modifica quando uma das partes dá como certa a celebração do contrato, criando ou fortalecendo a confiança legítima pela outra parte de que o contrato será celebrado. Dessa forma, é necessária a apresentação de motivação legítima à ruptura, para se eximir da responsabilidade.
Nesse sentido, a autora aponta requisitos específicos da responsabilidade por abandono injustificado das conversações, sendo estes a confiança legítima de que o contrato será realizado e a violação da lealdade, através do rompimento ilegítimo. Além desses, são requisitos, também, aqueles genéricos da responsabilidade civil, a culpa e o nexo causal entre o rompimento e o dano.
Já a responsabilidade pós-contratual, conceito desenvolvido após o surgimento de um pensamento de aplicação da culpa além da esfera estritamente contratual, que teve seu marco inicial com a culpa in contrahendo de Jhering, como citado acima, caracteriza-se pelo respaldo à boa-fé nas fases posteriores ao adimplemento da prestação. Esta responsabilidade será mais bem explanada na seção posterior.
Por sua vez, no sistema jurídico brasileiro, a existência da responsabilidade pré e pós-contratual trata-se de entendimento doutrinário, por meio de interpretação extensiva do art. 422 do Código Civil de 2002. Entretanto, tal interpretação apresenta apoio prático das Supremas Cortes, e as responsabilidades pré e pós-contratual vêm sendo objetos jurisprudenciais, apesar de não serem frequentemente aplicadas e não existir sequer grande quantidade de obras doutrinárias quanto à matéria.
Porém, estas responsabilidades são reconhecidas em âmbito nacional, como se pode perceber através da seguinte afirmação do Supremo Tribunal de Justiça: “Responsabilidade pré e pós-contratual. Jornada STJ 25: O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual.” (STJ, 2002, p.5). Ademais, o enunciado n. 170 da III Jornada de Direito Civil diz: “A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase das negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”.
Conforme leciona o ilustre doutrinador Tartuce (2014, p. 583), apesar de parecidos os enunciados supracitados (25 e 170), possuem conteúdo diferente, uma vez que o enunciado n. 25 dirige-se ao juiz, enquanto o n. 170 dirige-se às partes do negócio jurídico.
2.2 A RESPONSABILIDADE CIVIL PÓS-CONTRATUAL
Primeiramente, faz-se mister compreender o conceito de responsabilidade civil contratual. Esta decorre do inadimplemento, por parte do devedor, da obrigação estabelecida contratualmente. Por conseguinte, terá o devedor que reparar os danos causados ao credor, pelo não cumprimento da obrigação, objetivando-se, pois, que este retorne ao status quo ante, isto é, ao estado anterior à criação do vínculo obrigacional entre as partes.
Por sua vez, a responsabilidade civil pós-contratual resulta do não cumprimento dos deveres acessórios de conduta – informação, lealdade e proteção -, os quais são oriundos de uma relação contratual entre credor e devedor. Tais deveres são aqueles anexos aos deveres principais indispensáveis ao cumprimento da prestação, decorrentes do princípio basilar da boa-fé objetiva, desenvolvido anteriormente.
Tal responsabilidade, de acordo com Costa (2009. p.358), “se traduz na possibilidade de surgir um dever de indenização derivado da conduta de uma das partes depois da referida extinção do contrato”. Isto é, para que reste configurada a responsabilidade civil pós-contratual, faz-se mister que uma das partes do contrato viole os deveres anexos de conduta, acarretando em danos à parte contrária, os quais deverão ser indenizados pela parte violadora.
Cabe ressaltar, ainda, que tal violação dos deveres acessórios de conduta deve ocorrer após o adimplemento da relação contratual, haja vista que, como já explanado anteriormente, se a violação ocorrer antes da formação do contrato, configurar-se-á a chamada responsabilidade civil pré-contratual. Todavia, se ocorrer durante a execução da relação contratual, restará configurada a responsabilidade civil contratual.
Outrossim, ressalta-se a importância da distinção entre a teoria da culpa post pactum finitum e a pós-eficácia continuada, visto que esta última não prevê, após a extinção do contrato, o cumprimento dos deveres acessórios, mas somente no decorrer de seu cumprimento, enquanto a primeira prevê o cumprimento mesmo após a extinção da relação obrigacional.
Pelo exposto, segundo Costa: “Entende-se, na verdade, que, não obstante se encontrarem cumpridas as obrigações de prestação contratuais, se impõe aos contraentes o dever de se absterem de comportamentos susceptíveis de colocar em perigo ou prejudicar o fim do contrato” (COSTA, 2009. p.358).”
Em suma, entende-se que, mesmo após a extinção do contrato pelo adimplemento, espera-se que as partes ajam com respaldo nos deveres anexos de conduta, se abstendo se comportamentos que possam colocar em perigo ou prejudicar o término da relação contratual.
2.2.1 A TEORIA DA CULPA POST PACTUM FINITUM
A teoria da culpa post pactum finitum, também conhecida como responsabilidade civil pós-contratual, refere-se, como já dito anteriormente, à responsabilidade gerada pelos danos causados a uma das partes do contrato após sua extinção pelo adimplemento.
De acordo com Donnini (2004, p. 85-86.), tal ideia não é recente, vez que surgiu em 1910, no cenário jurídico alemão, e começou a ser aplicada pela jurisprudência alemã em 1925, quando o tribunal alemão apreciou um caso concreto, o qual decidiu que, após o término de uma cessão de crédito, o cedente não deveria adotar condutas que colocassem obstáculos à outra parte da relação jurídica, isto é, deveria agir em conformidade com os deveres laterais, acessórios e anexos existentes, decorrentes do princípio da boa-fé, os quais, mesmo não inscritos no contrato, devem ser cumpridos também após a extinção da relação contratual, em respeito à responsabilidade pós-contratual.
No Brasil, há a adoção da responsabilidade pós-contratual. Entretanto, esta se dá de maneira escassa. Nesse sentido, faz-se de suma importância o destaque à jurisprudência a seguir, a qual oferece aplicabilidade prática à teoria da culpa post factum finitum:
“RESPONSABILIDADE CIVIL PÓS-CONTRATUAL. INFORMAÇÕES ERRADAS. CULPA DA EMPRESA. DANO MORAL. A obrigação do empregador de agir com lealdade, lisura e consideração para com seu obreiro excede o período de execução do contrato, alcançando a fase anterior à contratação e posterior à rescisão, configurando a chamada responsabilidade civil pré e pós-contratual, pautada no princípio da boa-fé objetiva, e amparada nos arts. 186 e 422 do CCB. Verifica-se a culpa da empresa recorrente ao prestar informações do ex-obreiro de modo imprevidente, mesmo depois de provocada para ratificar ou retificar os respectivos dados, impondo-se ao ex-empregador o dever de reparar o dano provocado, em face da aplicação da teoria da culpa "post pactum finitum". […] (TRT-7 – RO: 2005720105070027 CE 0000200-5720105070027, Relator: JOSÉ ANTONIO PARENTE DA SILVA, Data de Julgamento: 11/06/2012, Primeira Turma, Data de Publicação: 22/06/2012 DEJT)”.
Como é possível inferir do precedente supra, os deveres de lealdade e cooperação entre os sujeitos da relação contratual devem tanto anteceder quanto preceder a execução do contrato, sob pena de configuração de culpa in contrahendo ou culpa post pactum finitum. No caso em tela, o contratante agiu com culpa ao prestar informações imprudentes a respeito do contratado, devendo, por consequência, reparar os danos acarretados, em razão da configuração de responsabilidade civil pós-contratual, haja vista que houve violação dos deveres anexos de conduta após a execução do contrato.
Segundo Lopes (2006. p.51), são três as razões que justificam a adoção escassa da responsabilidade pós-contratual pelos tribunais brasileiros. A primeira seria o pequeno número de casos concretos que caracterizam efetivamente a culpa post factum finitum. A segunda causa seria a dificuldade de comprovação dos danos resultantes da violação dos deveres acessórios. Por fim, a terceira e última razão diz respeito à possível comodidade de alguns tribunais e a falta de regulamentação expressa a respeito da teoria, o que resulta no indeferimento dos pedidos feitos pelas partes que saíram prejudicadas da relação contratual, mediante o fundamento de que a extinção do contrato gera extinção do vínculo obrigacional.
2.3 FUNDAMENTOS JURÍDICOS
As responsabilidades civis pré e pós-contratuais apresentam embasamento tanto em leis infraconstitucionais quanto em lei constitucional. O último se faz presente no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, que diz respeito à dignidade da pessoa humana, princípio tido como fundamental à ordem social. Contudo, para efetivação da justiça social, bem como do comportamento cooperativo entre as partes da relação contratual, faz-se extremamente importante a conexão do princípio supracitado com os princípios da solidariedade e da igualdade, buscando, deste modo, garantir a dignidade humana. Enquanto isso, os fundamentos infraconstitucionais estão presentes no Código Civil Brasileiro de 2002, mais precisamente em seus artigos 421 e 422.
Conforme dispõe o artigo 421 do Código Civil de 2002: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Isto é, o aspecto da função social do contrato constitucional trata-se de um fundamento importante da responsabilidade civil pré e pós-contratual, haja vista que impõe à relação contratual um papel social, limitando eticamente a autonomia da vontade e a liberdade de contratação, levando-se sempre em conta o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, visando, deste modo, afastar as possíveis desigualdades decorrentes de cláusulas que não estejam de acordo com a boa-fé objetiva. Ou seja, a combinação entre dignidade da pessoa humana e função social do contrato se mostra como fundamento essencial da responsabilidade civil pré e pós-contratual.
Ainda neste ínterim, o artigo 422 do Código Civil de 2002, ao dispor que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, faz menção ao princípio da boa-fé objetiva e impõe às partes o dever de agir conforme preceitos éticos, leais e cooperativos, tanto antes quanto durante e após a extinção de qualquer relação contratual.
Nesse sentido, segundo entendimento de Filho: “Embora o Código Civil, no seu art. 422, só se tenha referido à boa-fé na conclusão e na execução do contrato, doutrina e jurisprudência firmaram entendimento no sentido de que esse dispositivo se aplica também às fases pré e pós-contratual (FILHO, 2012, p.318)”.
Diante disso, com o objetivo de aumentar o número de julgamentos sobre as teorias da culpa in contrahendo e culpa post pactum finitum, o Deputado Ricardo Fiúza propôs a complementação do artigo 422 do CC/2002, por intermédio da formulação do Projeto de Lei n. 6.960/2002, visando, deste modo, uma adoção legislativa expressa sobre a responsabilidade civil pré e pós-contratual, fato este que será mais bem analisado no tópico a seguir.
3 O PROJETO DE LEI Nº 6.960/02
O projeto de Lei 6.960/2002, apresentado pelo Deputado Ricardo Fiúza, elencou proposta de alteração de 188 artigos do Código Civil atual. Dentre as modificações propostas, é de fundamental importância a análise da concernente ao artigo 422. Nesse sentido, o Projeto da Câmara dos Deputados (2002 A, p.5) propôs a seguinte alteração na redação deste artigo:
“Os contratantes são obrigados a guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução e fase pós-contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade.”
Nesse contexto, o referido Deputado argumentou no sentido de que o dispositivo (art. 422 do CC) é detentor de deficiências e insuficiências, sendo estas concernentes à falta de clareza quanto à aplicação da boa-fé objetiva às fases pré e pós-contratuais (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2002 A, p.39).
De fato, a realidade da regulamentação não expressa da aplicação da boa-fé objetiva às fases pré-contratuais e pós-contratuais acarreta prejuízos, uma vez que grande parte dos magistrados não interpreta tal artigo adequadamente. Destarte, seria de fundamental importância regulamentação mais clara e precisa sobre este assunto, o que proporcionaria maior efetividade à aplicação do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratuais, uma vez que seria, de certo modo, unificada a interpretação do artigo 422, o que diminuiria consideravelmente as controvérsias existentes. Não obstante, não foi aprovada a mudança na redação do artigo 422 do Código Civil, havendo a seguinte argumentação:
“Pela manutenção do texto, que fala em “conclusão do contrato”, que compreende a fase de negociação, elaboração, assinatura, e da sua “execução”, que compreende o cumprimento ou descumprimento das obrigações contratuais, bem como a solução dos conflitos entre as partes. Não devemos ceder à tentação de deixar tudo explícito, até mesmo o óbvio (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2002, B, p.8).”
Todavia, cumpre salientar que, mesmo com a rejeição da modificação na redação do artigo 422, ficando este com a redação original, não há olvidar sobre a existência da boa-fé objetiva e sua aplicação no direito das obrigações e, no que tange a presente análise, nas fases pré-contratual e pós-contratual. Ademais, tal circunstância, que já é aceita majoritariamente pela doutrina, tem sido aplicada na jurisprudência nacional. Contudo, a aplicação ainda não é grandiosa e poderia ser ampliada com a mudança na redação do artigo, haja vista que parte dos magistrados ainda entendem que não há a aplicação do princípio da boa-fé objetiva nas fases pré e pós-contratuais, deixando, desta feita, a desejar na resolução de conflitos desse tipo.
4 CONCLUSÃO
Tendo em vista todas as considerações explanadas no decorrer do presente trabalho, unidas às concepções da atual arena das relações privadas, não há como olvidar a importância do princípio da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais e, sob a ótica deste trabalho, nas responsabilidades pré e pós-contratuais, uma vez que, através da aplicação do referido princípio, é possível constatar a existência de deveres anexos de conduta tanto nas negociações preliminares quanto depois de alcançado o adimplemento, haja vista que, em grande parte das relações obrigacionais, para que a prestação seja aproveitada e para que sejam atingidos os interesses do credor, faz-se mister que existam tais deveres acessórios de conduta, que consistem, basicamente, no dever de informação, lealdade e proteção após a extinção o vínculo obrigacional pelo adimplemento.
Outrossim, em uma época na qual as complexidades das relações obrigacionais têm aumentado consideravelmente e em ritmo bastante acelerado, é primordial que haja maior atenção a aspectos como esse, uma vez que a aplicação da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais e, mais especificamente, em todas as fases contratuais, é, de certo modo, a aplicação da dignidade da pessoa humana à ótica do direito civil pós-contratual, haja vista que traz valores fundamentais, como a cooperação e a lealdade, o que e retira a relação pautada na submissão de credor sobre devedor que, anteriormente, era consideravelmente vigente, uma vez que pautava-se, basicamente, na autonomia da vontade, a qual não era legitimamente limitada.
Em suma, apesar de não restar dúvidas quanto à existência do princípio da boa-fé objetiva nas responsabilidades pré e pós-contratuais, nota-se que não é este, ainda, aplicado de forma significativa, visto que não há determinação legal explícita a respeito, dependendo, destarte, de interpretações de magistrados. É também por esse motivo que se faz essencial maior tratativa desse assunto, a fim de que seja alcançada interpretação uníssona acerca do tema e, inclusive, determinação legal mais explícita, o que facilitaria a plenitude do entendimento e a sua aplicação concreta às relações obrigacionais.
Informações Sobre os Autores
Jéssica Linhares Martino Martins
Acadêmica de Direito na Universidade Federal de Lavras – UFLA
Júlia Garcia Haical Haddad
Acadêmica de Direito na Universidade Federal de Lavras – UFLA
Larissa Valim de Oliveira Farias
Acadêmica de Direito na Universidade Federal de Lavras – UFLA