Resumo: O presente artigo, através de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, buscará expor um debate acerca da compreensão da causa de pedir como componente do objeto litigioso do processo. Desse modo, a causa petendi pode ser compreendida como delimitador da atividade jurisdicional, vinculando, ao lado do pedido, o provimento judicial a ser proferido. Tal raciocínio é possível de ser sustentado através de uma visão instrumental e efetiva da tutela jurisdicional buscada mediante o processo.
Palavras-chave: Causa de pedir. Objeto litigioso do processo. Instrumentalidade. Processo Civil.
Sumário: 1. Introdução. 2. Objeto litigioso do processo. 2.1. Jurisdição como expressão de poder do estado. 2.2. Digressão de Ricardo de Barros Leonel (doutrina alemã e italiana). 3. Princípio dispositivo. 3.1. Inércia da jurisdição e iniciativa probatória do juiz. 3.2. Princípio dispositivo e delimitação do objeto litigioso do processo. 4. Princípio da adstrição ou congruência. 4.1. Congruência entre sentença e pedido. 4.2. Sentença extra, ultra e citra petita. 5. Causa de pedir. 5.1. Breves considerações. 5.2. Causa de pedir próxima e remota. 5.3. Causa de pedir ativa e passiva. 5.4. Causa de pedir simples e composta. 5.5. Teorias da substanciação e da individuação. 5.6. Demandas autodeterminadas e heterodeterminadas. Direitos absolutos e relativos. 6. Pedido. 6.1 breves considerações. 6.2. Pedido certo e determinado e pedido genérico. 6.3. Interpretação restritiva do pedido. 7. Instrumentalidade do processo como justificativa da adoção da causa de pedir como integrante/delimitador do objeto litigioso do processo. 8. A essencial importância do contraditório para a delimitação do objeto litigioso do processo com base não somente no pedido, mas também na causa de pedir. 9. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
Distante de objetivar um exame exaustivo do tema, bem como longe de propor soluções estanques ao debate, busca o presente trabalho trazer à lume discussão a respeito da causa de pedir como integrante/delimitador do objeto litigioso do processo. A partir de análise da doutrina especializada, inclusive com algumas remissões à doutrina estrangeira, procurar-se-á estabelecer indagação no sentido de ser possível pautar a atividade jurisdicional em face dos fatos e fundamentos jurídicos expostos na petição inicial, ainda que não decorram estritamente do pedido formulado na exordial.
Abordados os princípios processuais correlatos ao assuntos, tais como o princípio dispositivo e o princípio da congruência, tecer-se-á comentário também acerca de postulados constitucionais como o contraditório, de forma a subsidiar o quanto alegado neste artigo científico. À luz da instrumentalidade do processo e da necessidade de uma prestação jurisdicional efetiva, a adoção da causa petendi como elemento do objeto litigioso do processo será discutida sob o prisma explicitado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o que demonstrará ainda mais a importância prática do tema em testilha, além da evidente relevância acadêmica que engloba a matéria, tendo em vista que os estudiosos até hoje se debruçam sobre ela, no entanto, sem formar um consenso.
Questionamentos poderão surgir durante a leitura: “Considera-se extra ou ultra petita a sentença que interpreta o pedido à luz da causa de pedir, mesmo que tal pedido não tenha sido formulado da forma tecnicamente correta?”, ou ainda, “É possível extrair, dos fatos e fundamentos jurídicos expostos na peça vestibular, o que realmente pretende o autor, mesmo que isso implique, numa primeira análise, interpretação ampliativa do pedido?”. Não somos audaciosos em pretender respondê-los de forma veemente, mas sim, estimular o debate e a incursão nessa seara deveras interessante não só para a concretização dos reais escopos do processo, mas para o prestígio dos pressupostos basilares do sistema.
Desse modo, evidencia-se o presente ensaio como mola propulsora para o contínuo debate acerca do objeto litigioso do processo, quais os elementos que o integram e qual sua importância para delimitar a atividade jurisdicional.
2. OBJETO LITIGIOSO DO PROCESSO
Para Cândido Rangel Dinamarco, o objeto do processo nada mais é que “a pretensão trazida pelo demandante ao juiz em busca de satisfação.”[1] Aduz ainda, o sempre festejado professor da USP que “Objeto do processo é o que ordinariamente se chama mérito […]”.
No volume II de seu Instituições de Direito Processual Civil, o brilhante autor paulista discorre acerca do objeto do processo com a profundidade e clareza que são típicas de suas obras. Não se apegando às eventuais divergências quanto à terminologia adotada (objeto do processo, objeto litigioso ou objeto litigioso do processo), o que realmente convém salientar é a importância deste instituto, sobre o qual todos os sujeitos do processo (partes, juiz e seus auxiliares) explicitarão seus interesses.
É sobre o objeto litigioso do processo que o autor formula sua pretensão e veicula sua demanda, bem como é sobre o objeto litigioso do processo que o réu elabora sua defesa e que são produzidas as provas. Ainda, é sobre o objeto litigioso do processo que o juiz decidirá o conflito posto ao Poder Judiciário.
Assaz relevante faz-se ressaltar que, apesar de utilizarmo-nos do conceito de objeto do processo elaborado por Cândido Rangel Dinamarco, não nos filiamos ao seu ponto de vista que explicita a ideia de que o objeto litigioso do processo consiste exclusivamente no pedido formulado pelo demandante, com a extromissão da causa de pedir. Ressaltadas todas as devidas vênias a um dos baluartes do processo civil moderno em nosso país, entendemos, como restará claro no decorrer do trabalho, que além do petitum, a causa petendi também integra o objeto litigioso do processo, ao menos, para delimitá-lo.
Impende destacar que, muito embora não reconheça a causa de pedir como integrante do objeto do processo ou, ainda, elemento delimitador deste, aduz Cândido Rangel Dinamarco o seguinte:
“Isoladamente, o objeto do processo não é suficiente para traçar os limites do provimento jurisdicional a proferir. A regra de correlação entre o provimento e a demanda exige também que sejam respeitados os limites da causa de pedir e da composição subjetiva desta (autor, réu) […]. Essa observação, contudo, não leva a incluir a causa de pedir ou os sujeitos no conceito ou no âmbito do objeto do processo. Uma coisa é definir os lindes da sentença a proferir (art. 128), que incluem os fundamentos suscetíveis de integrar a motivação da sentença; outra, saber qual a matéria está sendo julgada, ou seja, qual a pretensão.”[2]
Muito embora se considere prudente afastar-se de uma relação estanque entre as teorias da substanciação e da individuação da causa de pedir – tema deveras importante para a compreensão do objeto litigioso do processo –, como se verá adiante, a posição de Habscheid, trazida por José Rogério Cruz e Tucci em seu A causa petendi no processo civil, aproxima-se de um ponto interessante em relação ao que se procura suscitar com o pensamento ora desenvolvido.
Para o aludido jurista, é correto admitir o fato constitutivo do direito do autor como integrante da causa de pedir e, portanto, como elemento formador do objeto litigioso do processo. Desse modo, o autor elenca a pretensão (relativa à coisa demandada) e o estado de fato (relativo à causa de demanda) como componentes do chamado streitgegenstand.
O que realmente contribui para o entendimento moderno da causa de pedir como delimitador do objeto litigioso do processo é sua crítica a tese de Schwab, que inclui tão somente o pedido como importante para a individuação da demanda. Desse modo, como veremos de forma mais minudente linhas abaixo, a ideia de Habscheid que contribui para o ponto de vista exposto resume-se no fato de que “Não havendo identidade de causa petendi, tem-se um novo objeto litigioso.”[3]
Também tecendo crítica ao posicionamento de Schwab, Heinitz[4] aduz que “a causa petendi, é e continuará sendo um elemento indispensável para a individuação da demanda, e, por isso, constitui tarefa da ciência processual delinear com toda a clareza possível a sua conceituação.” Frise-se que, em momento oportuno, será feita uma breve digressão na doutrina alemã acerca do tema, bem como serão objeto de análise de forma particular as teorias da substanciação e da individuação, bem como serão expostas considerações a respeito da causa de pedir.
O que se reputa válido mencionar neste tópico é tão somente a importância da causa petendi como mais que um simples parâmetro para a interpretação do pedido como delimitador do objeto litigioso do processo, podendo ser considerada uma verdadeira parte integrante deste.
Para Gianozzi[5], a causa petendi além de delimitar o objeto litigioso do processo ao lado do pedido, é integrada pelo fato constitutivo do direito controvertido e influi sobre o problema da modificação da demanda. Daí a relevância do estudo desse instituto para compreender a efetiva prestação da tutela jurisdicional. Também critica o afastamento da causa de pedir no âmbito do objeto litigioso do processo, o professor italiano Elio Fazzalari, para quem há de ocorrer uma “coordenação entre a situação substancial e processo”, para que seja fixado o conteúdo do objeto litigioso do processo.
Por fim, Cruz e Tucci, em obra de leitura obrigatória para os estudiosos do direito processual civil que se debruçam ao estudo dos problemas relativos à individuação da demanda e seus elementos identificadores, bem como para quem se atém à análise do objeto litigioso do processo, efetua brilhante síntese conclusiva, afirmando o seguinte:
“[…] não nos parece realmente possível dissociar-se, para a demarcação do objeto litigioso, a relação existente entre o direito material e o ato processual que tem por pressuposto a afirmação daquele, no sentido imprimido por Fazzalari, ou seja, a alegação da situação substancial como elemento integrante da pretensão deduzida. O objeto litigioso do processo, portanto, identifica-se com a circunstância jurídica concreta deduzida em juízo in status assertionis, que aflora individualizada pela situação de fato contrária ao modelo traçado pelo direito material. Entendemos, pois, que a sistematização idealizada por Fazzalari tem, na verdade, o grande mérito de valorizar a causa petendi, colocando-a, salvo engano, em perfeita sintonia com prestigiosa doutrina que centra o direito subjetivo no âmago da fenomenologia do processo”.[6]
Endossando tal entendimento, de que a causa de pedir, devidamente integrada pelos fatos e ao lado do pedido, possui extrema relevância no que concerne ao objeto litigioso do processo, assevera, com a mestria que lhe é peculiar, o professor José Roberto dos Santos Bedaque o seguinte, verbis:
“O objeto do processo e da tutela jurisdicional não é um ato ou um fato, mas um direito, que precisa ser identificado mediante seus atos constitutivos Essa identificação depende das especificidades do direito material. Aquele que pede a tutela jurisdicional o faz porque, em razão de determinados fatos da vida, supostamente amparados por regras substanciais, pretende o reconhecimento de um direito”.[7]
Em arremate, convém reputarmo-nos, também, às preciosas lições de Fredie Didier Jr., senão vejamos:
“Discute-se muito sobre em que consiste o objeto litigioso: se ele é apenas o pedido ou se nele se inclui também a causa de pedir. O tema é tormentoso. Alguns doutrinadores não chegaram a qualquer conclusão, outros anunciam posição sem maior aprofundamento, mas segundo a maior parte da doutrina o objeto litigioso do processo é o pedido. José Rogério Cruz e Tucci, contudo, defende que o objeto litigioso do processo é o pedido identificado com a causa de pedir. Há uma tendência doutrinário de seguir esse último entendimento, adotada neste trabalho, até mesmo em razão do regramento da coisa julgada no direito brasileiro, que exige a identidade de pedido e de causa de pedir para a sua configuração (arts. 301, § 2º, 474, ambos do CPC).”[8]
Não se pode olvidar, sob pena de tornar o trabalho carecedor até de plausibilidade, que uma das obras mais citadas dentre os doutrinadores consultado foi “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”[9], do eminente Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Sydney Sanches, cujas lições iluminara grande parte dos autores citados neste humilde artigo.
2.1. JURISDIÇÃO COMO EXPRESSÃO DE PODER DO ESTADO
Tecer breves considerações acerca do que é jurisdição torna-se importante partindo-se da premissa que orienta o presente trabalho: a adoção da causa de pedir como elemento delimitador do objeto litigioso do processo e, consequentemente, da atuação jurisdicional.
A análise do tema abordado tem raízes no próprio conceito de jurisdição (se é que é possível um consenso acerca de tal conceito), posto que a esta pode ser considerada como expressão de um poder do Estado, e a intensidade de sua interferência numa relação jurídica processual entre dois ou mais sujeitos de direitos possui salutar relevância para o debate proposto.
A necessidade de delimitar o âmbito de atuação do Estado-Juiz na resolução de uma demanda, à luz dos seus elementos identificadores, acaba por implicar no estudo da causa petendi e sua influência para a efetiva prestação jurisdicional. Muito embora o estudo analítico da jurisdição fuja completamente ao escopo deste artigo, convém trazer à baila sucintos apontamentos no intuito de contextualizar o tema, posto que deveras abrangente.
Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos Araujo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, autores talvez da mais completa e mencionada obra acerca da Teoria Geral do Processo[10] discorreram acerca do tema, lecionando que a jurisdição, em sua essência “é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça”.
Arrematam os autores, na obra de leitura obrigatória a todos os estudiosos do direito processual civil, que a jurisdição é “ao mesmo tempo, poder, função e atividade”. Poder, pois o monopólio jurisdicional por parte do Estado é capaz de impor deveres e obrigações aos indivíduos. Função, pois cabe ao Estado-Juiz exercer seu papel de pacificador social. Atividade, pois o processo é também procedimento, portanto, um conjunto de atos concatenados, englobados, assim, os exercidos pelo juiz regularmente nela investido.
Um dos princípios jurídicos expressos no ordenamento jurídico pátrio e afeto diretamente à jurisdição é conhecido como “inércia jurisdicional” e será tratado com o devido afinco em momento oportuno. Neste instante, basta afirmar que, levada em conta a finalidade do Poder Jurisdicional de pacificar conflitos, estes devem ser postos pelas partes (indivíduos), sendo vedada, via de regra, a atuação ex officio e a prestação da tutela sem efetiva provocação.
Fredie Didier Jr. elabora interessante conceito de jurisdição cuja transcrição ipsis litteris é mais do que válida para a compreensão do instituto. Afirma o renomado jurista baiano:
“A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o Direito de modo imperativo (b) e criativo (c), reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tornar-se indiscutível (g).”[11]
Longe de querer esmiuçar o conceito de jurisdição supratranscrito, é importante tão somente ressaltar seu caráter solucionador de conflitos concretos. O Poder Judiciário age onda há uma crise, um conflito cujas partes são incompetentes para dirimir sem a intervenção de um terceiro imparcial (heterocomposição). A atividade criativa emanada do poder jurisdicional decorre da provocação à resolução de um problema concreto.
De acordo com Mauro Capelletti, ao comparar a jurisdição com a legislação, afirma que aquela, ao contrário desta, “produz preceitos, ministra direito para cada caso singular; ousarei dizer, não trabalha para armazenar, mas por encomenda, sob medida”.[12]
Luiz Guilherme Marinoni, em sua Teoria Geral do Processo tece críticas às tradicionais concepções acerca do vocábulo “jurisdição”, alegando que esta se relaciona nitidamente com a efetivação do direito material, à luz das garantias fundamentais constitucionais, não se limitando a criar norma individual para pacificar o conflito exposto num caso concreto.
O referido autor, na obra mencionada no parágrafo acima, é contundente em aduzir que “na decisão jurisdicional, há uma inquestionável integração e complementação entre os planos do direito material e do direito processual, mediante a visualização das necessidades do direito material a partir da Constituição”.[13]
Lícito concluir, pois, que muito embora seja a jurisdição exercício de um poder do Estado, este, no intuito de pacificar conflito a ele levado pelas partes, deve pautar sua atuação na efetividade do direito material a ser tutelado, sob a égide das garantias fundamentais previstas na Lei Maior do ordenamento jurídico pátrio.
2.2. DIGRESSÃO DE RICARDO DE BARROS LEONEL (DOUTRINA ALEMÃ E ITALIANA)
Feitas brevíssimas considerações a respeito da moderna concepção de jurisdição, temos por conveniente expor igualmente breve escorço histórico a respeito da compreensão do que vem a ser o objeto litigioso do processo. Em outras palavras, mostra-se deveras instigante um esboço de desenvolvimento daquilo que irá limitar o exercício do poder jurisdicional do Estado.
Em obra denominada “Causa de Pedir e Pedido – O Direito Superveniente”[14], o Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Promotor de Justiça, Ricardo de Barros Leonel expõe interessante quadro, elencando a doutrina alemã e italiana, com base em argumento contundente, como grandes influências da doutrina brasileira acerca do estudo do objeto litigioso do processo.
Na obra oriunda da Tese de Doutoramento do autor, são explicitadas as teorias alemãs de Karl Schwab e Walter J. Habscheid, bem como também é estudada a doutrina italiana acerca do tema, sendo expostas as contribuições de Giuseppe Chiovenda, Enrico Tulio Liebman, Mario Bellavits, Ernesto Heinitz, Augusto Cerino Canova e Elio Fazzalari.
Como já dito, argumento contundente levou o autor da obra em exame a mencionar tal doutrina como essencial para o desenvolvimento do debate, e essa mesma razão é o que nos leva a reproduzi-la: sem dúvidas, estes dois países exerceram forte influência no direito processual civil pátrio, bem como debruçaram-se mais intensamente sobre o assunto.
Frise-se que na produção acadêmica nacional acerca do objeto litigioso do processo existem diversas obras das quais não se nega o conhecimento, entretanto, por se tratar de obra didática e proposta por jovem e talentoso jurista, nos apegaremos a seu ponto de vista, no entanto, não cairemos no devaneio de simplesmente “deixar de lado” os demais trabalhos já escritos acerca do tema e que possuem relevância para o propósito do presente artigo.
Precipuamente, cumpre exaltar que para Schwab[15], em linhas rasas, o objeto do processo é o pedido. Em sua obra, o doutrinador alemão realiza uma análise dos principais doutrinadores conterrâneos de sua época, chegando a conclusão de que uma pretensão processual seria objeto da decisão judicial, ou seja, objeto litigioso do processo.
Buscando um conceito unitário para aplicar à problemática envolvendo o objeto do processo, Schwab constrói uma concepção de objeto do processo para que surta em efeitos nas diversas espécies de ações, contribuindo para a solução das contendas relacionadas ao desenvolvimento do processo em juízo.
Por fim, de acordo com Ricardo de Barros Leonel, Schwab migra para uma posição conciliatória entre as teorias substanciais e processuais do objeto do processo, no entanto, pendendo ainda o doutrinador germânico para a segunda corrente, mesmo reconhecendo a importância do estado de coisas ou acontecimento material como seu elemento do objeto do processo.
Ainda na doutrina alemã, o membro do Ministério Público Paulista traz à baila o entendimento de Walter J. Habscheid[16], contemporâneo de Karl Heinz Schwab. Apesar de também ser adepto da concepção processualista do objeto do processo (este sendo o pedido), Habscheid opôs críticas a tal linha de raciocínio, alegando que o objeto litigioso do processo não poderia se resumir unicamente ao pedido (conclusão do autor).
Com base na ZPO (CPC alemão), o referido doutrinador posiciona-se no sentido de que o objeto do processo possui dois elementos: a “coisa” pretendida e a “causa” da demanda. Tais elementos vinculariam o julgador, em sua concepção, dando eficácia ao brocardo latino ne eat judex ultra petita partium.
No que concerne à doutrina italiana, o Doutor em Processo Civil pela Faculdade do Largo de São Francisco elenca diversos autores que exerceram, e ainda exercem, fortíssima influência no direito nacional, tais como Chiovenda e Liebman.
Muito embora se reconheça que a pedra de toque da doutrina italiana, no desenvolvimento dos estudos sobre o direito processual, esteja centrada no conceito de ação, ao contrário da doutrina alemã, que concentrou suas análises no objeto litigioso do processo, os italianos não se olvidaram de se pronunciar de forma veemente sobre o assunto.
Perceptível a correlação que os doutrinadores italianos procediam, entre o objeto litigioso do processo e os três elementos identificadores da demanda, nos remetendo à teoria dos tria eadem mencionada linhas acima. No entendimento de Ricardo de Barros Leonel, ora compartilhado, considera-se que Chiovenda[17] aduz como objeto do processo tanto o pedido como a causa de pedir (elementos objetivos da demanda), relacionando-os como conteúdo indispensável da demanda.
Para Liebman[18], os contornos da ação devem ser observados pelo juiz quando do seu julgamento, ou seja, prestigia o princípio da congruência, adiante estudado com o vagar necessário para sua melhor compreensão. Tal premissa é compatível com a preocupação sobre o que será objeto da cognição judicial e, posteriormente, da decisão proferida. Assim como Chiovenda, Liebman exalta a teoria da identificação da demanda a partir de seus três elementos que, por sua vez, são configurados e fixados através da ação.
Mauro Bellavitis[19] também foi adepto da teoria embasada por uma concepção processual do objeto litigioso do processo. Seu trabalho monográfico consistiu em uma crítica à doutrina de Savigny, que relacionou o objeto do processo com a relação jurídica de direito material travada entre as partes. O aludido doutrinador italiano destacou em sua obra a identificação da demanda, a partir da teoria dos tria eadem, através da relação indissociável entre eles existente (p. ex.: necessária correlação entre causa de pedir e pedido, para identificação objetiva da ação).
Embora cuide-se de jurista austríaco, Ricardo de Barros Leonel tratou da contribuição de Ernesto Heinitz[20] dentro da seara da doutrina italiana, tendo em vista seu exercício de docência na Universidade de Florença. O referido autor correlacionou o objeto litigioso do processo com a importância de se definir o âmbito da coisa julgada. Reconhecendo o objeto do processo como pretensão processual, afirma que este é composto de pedido e causa de pedir, encontrando-se verdadeira dificuldade quando da sua delimitação na demanda.
Demonstrou a importância do estudo do objeto litigioso do processo para correta aferição da coisa julgado, Augusto Cerino Canova[21]. Denominou os três elementos da ação como sujeitos, conteúdo do direito deduzido e fato constitutivo. Interligou estes dois últimos à existência de demandas autodeterminadas e heterodeterminadas, adotando, portanto, a teoria da individuação da causa de pedir. Mister repisar que tais tópicos serão objeto de abordagem particular em momento oportuno.
Por fim, o processualista cuja obra restou resenhada expõe a contribuição de mais um jurista italiano para a compreensão do objeto litigioso do processo, qual seja, Elio Fazzallari[22]. Esse autor teve como característica marcante de seu trabalho a aproximação entre direito material e processual através da instrumentalidade, o que consiste também na esteira intelectiva adotada no presente trabalho. Desse modo, conotaremos tal posicionamento como espécie de filiação, o que implica num tratamento diferenciado acerca do ponto de vista desse festejado jurista.
Válido salientar o conceito de processo elaborado por Fazzallari, consistente na concepção por tanto reproduzida de processo como procedimento em contraditório. Para o autor, o processo se apresenta como instrumento de proteção ao direito material, se efetivando com a devida tutela jurisdicional. Daí a importância da causa de pedir como elemento formador do amplo objeto litigioso do processo.
Ante o exposto, é possível depreender que mesmo os autores, sejam eles os alemães ou os italianos, entendem que a causa de pedir, quando não integrante do objeto litigioso do processo, tem fundamental importância na sua formação. Muito embora a autoridade das teorias que afirmam ser unicamente o pedido objeto do processo, consideramos inegável que a influência da causa petendi é salutar na delimitação da atividade jurisdicional e, por isso, componente indissociável do objeto litigioso do processo.
Esclarecida tal questão, faz-se necessário salientar que a análise de pressupostos processuais negativos (v.g. litispendência e coisa julgada), bem como o estudo minucioso de questões correlatas não constitui o objetivo deste trabalho, posto que este consiste num esboço de conferir legitimidade a uma espécie de interpretação lógico-sistemática da petição inicial a ser realizada pelo julgador ao decidir um processo, levando em conta a causa de pedir, e não somente o(s) pedido(s), ao proferir a sentença.
3. PRINCÍPIO DISPOSITIVO
3.1. INÉRCIA DA JURISDIÇÃO E INICIATIVA PROBATÓRIA DO JUIZ
Uma premissa constante em dois dispositivos da Lei Adjetiva Civil comporta a essência do conteúdo do princípio dispositivo: a iniciativa da parte. No atual diploma, o art. 128 dispõe que “O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.” Nesse sentido, o art. 262 assevera em sua redação que “O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial.”
O princípio dispositivo é consagrado pela doutrina especializada e bastante utilizado pela jurisprudência pátria na resolução das contendas no âmbito processual, se relacionando com a ideia de inércia jurisdicional. As lições de Eduardo Talamini e Luiz Rodrigues Wambier dispõem nesse sentido, haja vista defenderem tais autores que a provocação do interessado é condição para a manifestação do Estado-Juiz.
“O princípio dispositivo (ou da inércia) é aquele segundo o qual cabe à parte, isto é, àquele que se diz titular do direito que deve ser protegido, colocar em movimento a máquina estatal (isto é, a estrutura do Poder Judiciário), para que dela obtenha uma concreta solução quanto à parcela da controvérsia, ou do conflito (a essa parcela denomina-se lide) trazida a juízo.”[23]
Sobre o aspecto da norma do impulso oficial – instauração da demanda – Humberto Dalla Bernardina de Pinho explicita preocupação no que concerne às exceções previstas em lei constantes no art. 2º do projeto do novo código, quando o juiz poderá atuar de ofício, mitigando em parte o princípio dispositivo. O doutrinador traz ainda o exemplo do art. 284 do anteprojeto, que autoriza a concessão ex officio pelo juiz de medidas urgentes em situações excepcionais ou quando houver expressa previsão legal.[24] Destaca o referido autor o seguinte:
“Nunca é demais lembrar que o juiz que age de ofício deve ter um extremo cuidado para que, mesmo involuntariamente, não venha a se aproximar de uma das partes, ferindo a imparcialidade que deve nortear sua conduta na condução do processo. Vulnerada a imparcialidade, comprometida também estará a isonomia, salvo se o juiz fundamentar analiticamente sua decisão, de modo a demonstrar que está a garantir a igualdade no sentido material.”[25]
Para Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco o “Princípio da ação, ou princípio da demanda, indica a atribuição à parte da iniciativa de provocar o exercício da função jurisdicional.” Arrematam os autores em sua clássica Teoria Geral do Processo que “A jurisdição é inerte e, para sua movimentação, exige a provocação do interessado.”[26] Aduzem, ademais, que há como manifestação do chamado “princípio da ação” a vedação ao juiz em tomar providências que superem os limites do pedido.
Muito embora se reconheça, hodiernamente, postura ativa por parte do juiz, esta ainda encontra limites perante a inércia da jurisdição, conforme explicita o Superior Tribunal de Justiça em recente julgado cuja ementa se reputa conveniente transcrever:
“RECURSO ESPECIAL – "SUGESTÃO" DO JUIZ PARA QUE TERCEIRO INTEGRE A RELAÇÃO PROCESSUAL – NULIDADE – PRINCÍPIOS PROCESSUAIS DA DEMANDA, INÉRCIA E IMPARCIALIDADE – RECURSO PROVIDO. 1. Ao Juiz não é dada a possibilidade de substituir-se às partes em suas obrigações, como sujeitos processuais, exceto nos casos expressamente previstos em lei, sob pena de violação dos princípios processuais da demanda, inércia e imparcialidade. 2. Recurso provido”. (REsp 1133706/SP, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/03/2011, DJe 13/05/2011).
Na mencionada obra de leitura obrigatória para os estudiosos do direito processual brasileiro, os autores relacionam o princípio dispositivo com a iniciativa de produção de provas (instrução probatória). Mesmo ao discorrer que “O princípio dispositivo consiste na regra de que o juiz depende, na instrução da causa, da iniciativa das partes quanto às provas e às alegações em que se fundamentará a decisão.”, os autores reconhecem que, diante da colocação do direito processual como ramo do direito público e atento às suas novas necessidades e missões, o juiz hoje não mais se limita a simplesmente assistir à produção de provas, podendo e devendo tomar a iniciativa desta (art. 130 do CPC). É possível enxergar, todavia, que a junção do conteúdo do princípio dispositivo com o denominado princípio da demanda traduz a identidade do postulado ora debatido.
Interessante julgado do Superior Tribunal de Justiça explicita essa nova “visão publicista” do processo e da atuação jurisdicional no âmbito da produção de provas, senão vejamos:
“O processo civil moderno tende a investir o juiz do poder-dever de tomar iniciativa probatória, consubstanciando-se, pois, em um equilíbrio entre o modelo dispositivo e o inquisitivo. Contudo, a atividade probatória exercida pelo magistrado deve se opera em conjunto com os litigantes e não em substituição a eles.” (REsp 894.443/SC, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 17/06/2010, DJe 16/08/2010).
Representado pelo brocardo latino iudex iudicare debet allegata et probata partium, chega a ser divido em sentidos formal (ligada à própria disposição da causa: princípio da demanda) e material (afeta a conformação da pretensão e o andamento processual). O que se vê é o interesse do próprio Estado-Juiz em ver bem conduzido o processo, não estando mais alheio a tal, fato decorrente de sua publicização.
3.2. PRINCÍPIO DISPOSITIVO E DELIMITAÇÃO DO OBJETO LITIGIOSO DO PROCESSO
É importante frisar que o prisma sob o qual será analisado tal postulado é o trazido por José Roberto dos Santos Bedaque em seu apontamento sobre a divergência acerca do real conteúdo do aludido princípio dispositivo, relacionado ao ônus de iniciação cabível às partes quando da delimitação do objeto litigioso. Afirma o autor, citado por Fredie Didier Jr., que “Fala-se, por exemplo, que tal princípio significa, em sentido amplo, deixar para as partes o ônus de iniciação, determinação do objeto, impulso do processo e produção de provas.” [27]
Dessume-se, portanto, ser imprescindível analisar o princípio dispositivo, além dos enfoques da inércia da jurisdição/impulso oficial e iniciativa probatória das partes e do juiz, sob o prisma da delimitação do objeto litigioso do processo quando da formulação da demanda pelo autor.
José Carlos Barbosa Moreira, outro baluarte do direito processual civil brasileiro também traz a lume questão referente ao princípio dispositivo sob a ótica ora proposta, vejamos:
“[…] fala-se de princípio dispositivo a propósito de temas como o da iniciativa de instauração do processo, o da fixação do objeto litigioso do processo, o da tarefa de coletar provas, o da possibilidade de autocomposição do litígio, o da demarcação da área coberta pelo efeito devolutivo do recurso, e assim por diante. Nada força o ordenamento a dar a todas essas questões, com inflexível postura, respostas de idêntica inspiração.”[28]
Não obstante o festejado professor defender outra acepção do princípio dispositivo, a questão referente à propositura da demanda e a delimitação do objeto do processo será o ponto nodal do estudo desse princípio no presente trabalho. Configurado como expressão da ampliação dos poderes do juiz em suas mais variadas vertentes, o princípio dispositivo importa para a compreensão do tema ora proposto a fixação do objeto do litígio realizada pela parte e a vinculação do julgador a tal fixação, numa primeira análise.
A iniciativa da parte em delimitar o âmbito no qual será prestada a tutela jurisdicional, através da exposição da causa de pedir e do pedido não se confunde com a impossibilidade de condução do processo pelo julgador, a fim de dar efetividade a este. Desse modo, eis o escopo do princípio dispositivo interessante à discussão ora proposta: “As partes têm liberdade na submissão da matéria ao Poder Judiciário, inclusive na sua amplitude (formatação da causa de pedir e do pedido: princípio da demanda), mas não têm disposição sobre a atividade jurisdicional no perscrutar do objeto litigioso.”[29]
Na doutrina processual lusitana, trazida à lume por Cruz e Tucci em sua multicitada obra, Antonio Montalvão Machado afirma que, no processo civil português “o juiz deixou de ser ‘estranho’ relativamente às postulações dos litigantes, porque, no regime atual, desempenhando missão ‘colaboradora1, pode ele ‘interferir’ na exposição fática da demanda, sugerindo ao autor e ao réu a complementação das respectivas alegações; ‘o juiz tem, pois, hoje um papel eminentemente activo e dinamizador, como, de resto, está expresso no preâmbulo do CPC de 95’”.[30]
Dito isto acerca do princípio dispositivo, imperioso tecer outras breves considerações acerca do princípio da adstrição, também consagrado pela comunidade jurídica como princípio da congruência e que diz respeito a correlação entre a causa de pedir e o pedido em face da decisão proferida no processo.
4. PRINCÍPIO DA ADSTRIÇÃO OU CONGRUÊNCIA
4.1. CONGRUÊNCIA ENTRE SENTENÇA E PEDIDO
Outro princípio processual que merece destaque no âmbito da discussão que se propões é o princípio da adstrição. Comumente denominado de princípio da congruência, tal postulado reflete a necessidade de correlação entre a petição inicial e a sentença.
Já foi dito que a petição inicial é o instrumento da demanda e veicula uma pretensão, consubstanciando-se numa espécie de “modelo de sentença”. Pois bem, os mesmo artigos do Código de Processo Civil que disciplinam o princípio dispositivo acima tratado, contém a essência do princípio da adstrição/congruência.
Se o juiz deve decidir a lide nos limites em que foi proposta (art. 128, do CPC), sendo-lhe vedado conferir prestação maior ou diversa do que foi pleiteado, é evidente que sua atuação está adstrita ao veiculado na petição inicial, devendo guardar congruência com o quanto requerido pelo autor e rebatido pelo réu.
Vicente Greco Filho[31], numa espécie de “fusão” entre o princípio dispositivo (já comentado) e o princípio da congruência (ora tratado), discorre acerca do que denomina “princípio da iniciativa da parte”. Salienta o referido autor que “Tal princípio, fundamental para a garantia da individualidade da jurisdição, que também significa respeito ao patrimônio jurídico dos indivíduos, tem como consequência a limitação objetiva da sentença ao pedido como foi formulado.”
Portanto, ao afirmar que é de ônus do autor, quando do início da demanda, delimitar seu objeto e que a este o juiz está vinculado, Vicente Greco Filho une os princípios dispositivo e da congruência no chamado “princípio da iniciativa das partes”. Arremata o autor, no volume seguinte de sua obra[32], de forma a ratificar o que aqui aduzimos que “A inércia do juiz, que deve decidir apenas sobre o que foi pedido pela parte, assegura a equidistância que deve manter entre os litigantes. O juiz que promove a demanda ou decide fora do pedido compromete sua condição de sujeito imparcial.”
Cumpre ressaltar que não se desconhece o fato da doutrina divergir quanto à classificação da congruência como verdadeiro princípio do direito processual civil. Não obstante a distinção ser de grande valia para a correta interpretação do instituto, bem como do vigor e extensão de sua aplicação, sendo regra, ou sendo princípio, é norma, e por isso deve ser observada e aplicada com o devido critério.
Comentando a cizânia doutrinária acima mencionada, Andrea Boari Caraciola[33] em trabalho específico sobre o tema, aduz que a congruência realmente encontra-se na categoria dos princípios jurídicos, dada sua relevância decorrente do fato de consubstanciar-se “como verdadeira garantia contra arbitrariedade e excesso de poder do Estado-Juiz” afirmando, no entanto, o seguinte:
“Em sentido diverso, há doutrinadores que não sistematizam a congruência como princípio, mas, sim, como simples regra técnica de procedimento. Esse é o entendimento de Mauro Cappelleti e Cândido Rangel Dinamarco, entre outros, que apontam um equívoco perpetrado quando da sistematização da matéria no campo dos princípios, advertindo tratar-se, isto sim, de um falso princípio, ou seja, de um comando interno que incide sobre o processo.”
Muito embora vozes autorizadas da doutrina se levantem contra a classificação da congruência como princípio, o que realmente importa é que, extreme de dúvidas, esta configura um elemento limitador à ingerência estatal na discussão acerca do direito postulado e refutado em juízo pelos litigantes que travam uma relação jurídica processual.
Para a discussão ora proposta, o princípio da congruência se torna relevante a partir de um questionamento, a saber: a sentença deve ser congruente/adstrita ao somente ao pedido stricto sensu veiculado na petição inicial? Entendemos que não. Necessário frisar que, no entendimento seguido neste trabalho, afigura-se possível uma interpretação mais veemente da causa de pedir, se não integrante do objeto litigioso do processo, elemento delimitador contumaz deste.
Pautando-se pelo prisma da limitação do exercício da jurisdição, a concepção de Cândido Rangel Dinamarco[34], muito embora seja clara ao excluir a causa de pedir do objeto do processo, serve de norte para a compreensão do que ora se expõe, senão vejamos:
“A regra de correlação entre o provimento e a demanda exige que também sejam respeitados os limites da causa de pedir e composição subjetiva desta (autor, réu) […]. Essa observação, contudo, não leva a incluir a causa de pedir ou os sujeitos no conceito ou no âmbito do objeto do processo. Uma coisa é definir os lindes da sentença a proferir (art. 128), que incluem os fundamentos suscetíveis de integrar a motivação da sentença; outra, saber qual a matéria que está sendo julgada, ou seja, qual a pretensão.”
Dessa forma, em que pese a doutrina majoritária entender que a congruência deve se dar entre o pedido e a sentença, o Superior Tribunal de Justiça possui reiterados julgados no sentido de também englobar a causa petendi nessa relação de adstrição, como veremos de forma pormenorizada na conclusão deste singelo trabalho. Por ora válidas algumas transcrições, in verbis:
“1. Segundo o princípio da adstrição ou da congruência, deve haver necessária correlação entre o pedido/causa de pedir e o provimento judicial (artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil), sob pena de nulidade por julgamento citra, extra ou ultra petita. 2. O provimento judicial está adstrito, não somente ao pedido formulado pela parte na inicial, mas também à causa de pedir, que, segundo a teoria da substanciação, adotada pela nossa legislação processual, é delimitada pelos fatos narrados na petição inicial.” (REsp 1169755/RJ, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 06/05/2010, DJe 26/05/2010). Grifos nossos.
Acerca de acolhimento diverso, pela sentença, de matéria estranha ao pedido e a causa de pedir, asseverou o STJ que deve ser feito “[…] o cotejo da causa de pedir e do pedido com a r. sentença de procedência da pretensão reintegratória, no objetivo de se verificar a observância ou não do princípio da congruência (CPC, arts. 128 e 460) […]”[35].
A respeito da vedação do julgamento além, aquém ou diverso do pedido, bem como discorrendo com a maestria que lhe é peculiar sobre a mitigação do princípio da congruência, eis as palavras de Luiz Guilherme Marinoni[36]:
“Essa proibição tinha que ser minimizada para que o juiz pudesse responder à sua função de dar efetiva tutela aos direitos. Melhor explicando, essa regra não poderia mais prevalecer, de modo absoluto, diante das novas situações de direito substancial e da constatação de que o juiz não pode mais ser visto como um “inimigo”, mas como representante de um Estado que tem consciência que a efetiva proteção dos direitos é fundamental para a justa organização social.”
Consciente de que nesta passagem, o festejado autor trata de sentenças e meios executivos em relação aos arts. 461 e 461-A, ambos do CPC, não se pode ser leviano ao ponto de tachar como conveniente tal citação ao quanto exposto no presente artigo, no entanto, o referido posicionamento serve de baliza para um entendimento acerca de uma suposta nova concepção a respeito do princípio da congruência.
Compactuamos, nesse diapasão, com as lições de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery ao afirmarem, em seu Código de Processo Civil comentado que “por pedido deve ser entendido o conjunto formulado pela causa (ou causae) petendi e o pedido em sentido estrito.”[37]
4.2. SENTEÇA EXTRA, ULTRA E CITRA PETITA
A redação do art. 460 do CPC afirma que “É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.”. Embora sua redação reste um tanto quanto “truncada”, depreende-se do mencionado dispositivo legal que o juiz, ao sentenciar o processo, está circunscrito à pretensão do autor, seja esta o pedido, “iluminado pela causa de pedir”, ou o pedido ao lado da própria causa petendi.
Portanto, é vedado pela legislação processual vigente as chamadas sentenças ultra, extra e citra petita. A grosso modo, pode-se dizer que é proibido ao julgador dar mais, menos ou coisa diversa ao quanto pleiteado pelo autor. Repise-se que o “menos” aqui não se confunde com a procedência parcial do pedido, e sim, como eventual omissão na apreciação de algum pedido, o que nos leva a crer que a sentença citra ou infra petita pode e deve ser corrigida por meio dos embargos de declaração (art. 535 e inciso II, do CPC).
Em feliz síntese a respeito do tema, Vallisney de Souza Oliveira[38] assegura que a decisão que viola o ordenamento jurídico pátrio nesse sentido, pode ser subjetiva, quando insere sujeitos estranhos à relação jurídica processual em sua hipótese de incidência, ou objetiva, quando guarda incongruência com o pedido formulado na demanda. Eis as palavras do Juiz Federal e Doutor em direito processual civil pela PUC-SP, in verbis:
“Na incongruência objetiva ultra petita o órgão jurisdicional concede mais do que o reclamado; na incongruência extra petita o juiz outorga algo que não foi pedido pelas partes; na incongruência citra petita olvida pronunciar-se sobre algum ou alguns dos pedidos e, portanto, concede menos que o postulado. Todas as três espécies são vícios de que padece a sentença transgressora do princípio da congruência.”
Conforme já explicitado, entendemos que a sentença pode incorrer num dos vícios ora elencados se distanciar-se, além do pedido, da causa petendi. É defeso ao julgador decidir a lide fora dos limites em que lhe foi posta, como assevera a Lei Adjetiva Civil, portanto, é vedado ao juiz fundamentar sua decisão em fatos diversos dos postos em juízos, o que não ocorre com a qualificação dos fundamentos jurídicos, ou melhor dizendo, do enquadramento normativo, tendo em vista os brocardos latinos iura novit curia e da mihi factum dabo tibi ius.
Nessa esteira intelectiva, é possível depreender que tanto o dispositivo da sentença deve estar adstrito ao petitum, como a fundamentação/motivação do pronunciamento jurisdicional deve guardar congruência com a causa petendi (mesmo que se considere apenas sua vertente remota).
A esse respeito, Vallisney de Souza Oliveira, em interessante trabalho onde se debruça exclusivamente a esse assunto, leciona, acerca dos julgamentos em desacordo com o pedido, que se faz “mister incluir decisões em desconformidade também com a causa de pedir, o que faz com que a matéria se relaciona não somente com o princípio da congruência, mas, também, com o da plenitude e da fundamentação das decisões.”[39]
Arremata o autor, que muito embora pareça adotar posicionamento um tanto quanto discrepante do ora esposado, “[…] para melhor caracterizar os defeitos da sentença contendo ultra, extra e citra petição, cumpre compreender no petitum a causa petendi.”[40]
Em relação ao entendimento jurisprudencial emanado dos sodalícios pátrios, o autor multicitado no presente tópico aduz que, em que pese haver certa confusão, a interpretação dos aludidos vícios da sentença se dá de forma correta, em seu ponto de vista. Ressalta, ademais, não ser reconhecida, pela interpretação dos tribunais que estes “[…] apliquem inflexivelmente a nulidade, nem que, por outro lado (embora seja a tendência para o futuro), em face da constante mitigação do princípio da congruência, sejam demasiadamente parcimoniosos no reconhecimento da nulidade da sentença.”.
Num caso concreto que serve de fundamento para o presente trabalho e, embora seja prudente trazê-lo à baila neste momento, terá retomada sua análise no esboço de conclusão, o STJ, através de decisão monocrática do Ministro Relator, negou seguimento a recurso especial, liminarmente, interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região cujo trecho da ementa faz-se salutar transcrever:
“[…] 1. Não obstante os autores tenham requerido o reconhecimento da qualidade de contribuinte individual do instituidor da pensão, há nos autos sólida prova de que, na verdade, tratava-se de segurado especial, trabalhador rural em regime de economia familiar. 2. Aplicação do princípio da instrumentalidade das formas, para, abrandado o formalismo excessivo, mitigar-se o princípio da congruência e, diante da prova dos autos, conceder o benefício por fundamento diverso do postulado na inicial. […]”[41]
Desse modo, embora expressa no Código de Processo Civil brasileiro a vedação das sentenças extra, ultra e citra petita, o princípio da congruência vem sendo cada vez mais observado à luz da causa petendi que influencia a formulação do petitum, bem como se afigura mais propensa a atual concepção do processo, sob o pálio de sua instrumentalidade e da efetividade da justiça, eventual mitigação ao postulado da adstrição contundente somente ao pedido.
5. CAUSA DE PEDIR
5.1. BREVES CONSIDERAÇÕES
Tendo em vista a jurisdição – o chamado dizer o direito – ser um exercício do poder estatal, faz-se necessário estabelecer os limites dessa atuação, fixando as questões que serão resolvidas no processo (ou relação jurídica processual), ou seja, seu objeto litigioso. Eis o ponto inicial para a compreensão da causa petendi como, além de elemento identificador da demanda, também delimitador do objeto litigioso do processo.
A causa de pedir, ao lado do pedido e das partes, é um dos chamados “elementos da ação”, ou, ainda, ao lado somente do pedido, é um dos “elementos objetivos da demanda”. Disposta no inciso III, do art. 282, do CPC a causa de pedir consubstancia-se, de acordo com a literalidade da legislação processual civil vigente em nosso ordenamento, no fato e nos fundamentos jurídicos do pedido.
Consagrada como elemento formador do trinômio identificador da demanda, a causa de pedir possui relevância para aferição de pressupostos processuais negativos, tais como a litispendência e a coisa julgada. A ideia advém da gênese romana denominada dos tria eadem, que engloba tais elementos identificadores no intuito de vedar a propositura de uma nova ação, ou melhor, do desenvolvimento de uma outra relação jurídica processual com o mesmo objeto (os mesmo elementos).
Cumpre asseverar que o Código de Processo Civil brasileiro adotou os ensinamentos de Enrico Tulio Liebman, para quem a causa de pedir é o fato jurídico com todas as suas circunstâncias que fundamenta a demanda autoral. Nas palavras de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, enquanto o pedido resume-se ao que o autor visa obter do Estado-juiz, a causa de pedir configura os fatos jurídicos que deram ensejo ao direito que o autor alega ter e as normas jurídicas que albergam sua pretensão.[42]
No escólio de Eduardo Talamini e Luiz Rodrigues Wambier, a causa de pedir é a “razão do pedido” e afirmam que esta é “o conjunto de fundamentos levados pelo autor a juízo, constituído pelos fatos e pelo fundamento jurídico a ele aplicável”.[43]
Reiterando que a Lei Adjetiva Civil dispõe que cabe ao autor indicar em sua petição inicial o(s) fato e o(s) fundamento(s) jurídico(s) do pedido, convém salientar que adotou o nosso ordenamento a chamada teoria da substanciação. Muito embora umbilicalmente ligada com a causa de pedir, a teoria da substanciação será tema de tópico específico, por demandar uma análise mais detalhada no intuito de indagar a possibilidade de incidência da instrumentalidade do processo e da efetividade da tutela jurisdicional em relação à delimitação do objeto litigioso da relação jurídica processual.
Por enquanto, basta afirmar que a teoria da substanciação é considerada oposta a teoria da individuação (muito embora possa, em verdade, complementá-la, sendo verdadeira a recíproca) e, como já possível deduzir, não exige tão somente a argumentação dos efeitos jurídicos que se pretende, e sim, principalmente, os fatos que dão subsídio a tais efeitos jurídicos.
Ponto duvidoso que pode causar confusão quando da compreensão da causa de pedir como elemento da ação e delimitador do objeto litigioso do processo é o fato de que não se misturam o “fundamento jurídico” e o “fundamento legal” da demanda. O primeiro integra a própria causa de pedir como requisito da petição inicial, já o segundo, não vincula o julgador, tendo em vista a existência dos brocardos latinos iura novit curia (desnecessidade de indicação dos dispositivos legais que embasam a pretensão, pois “o juiz conhece o direito”) e da mihi facti dabo tibi ius (“dá-me os fatos que te darei o direito”).
Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhardt “[…] quando se fala em causa de pedir, alude-se ao fato que, segundo o autor, conduz a um determinado efeito jurídico. Não entram em jogo aí a norma legal invocada e a qualificação jurídica dos fatos”.[44] No mesmo sentido, Humberto Theodoro Jr. assevera que “O importante é a revelação da lide através da exata exposição do fato e da consequência jurídica que o autor pretende atingir.”.[45]
5.2. CAUSA DE PEDIR PRÓXIMA E REMOTA
Na doutrina processualista nacional, é comum a divisão da causa petendi utilizando-se da terminologia “próxima” e “remota”. Sendo assim, tem-se que a causa de pedir, embora seja um elemento da demanda, possui duas vertentes de análise.
Nas palavras de Alexandre Freitas Câmara[46], “causa remota é o fato constitutivo do direito afirmado em juízo, e causa de pedir próxima é o fato alegado gerador do interesse de agir.” De acordo com este doutrinador, a redação do inciso III, do art. 282, do Código Processual Civil, ao falar de “fato”, refere-se à causa de pedir próxima, ou seja, a lesão ou ameaça de lesão ao direito do autor. Os fundamentos jurídicos do pedido, por sua vez, reputam-se integrantes da causa de pedir remota, consubstanciado no fato constitutivo do direito do autor.
Embora Alexandre Freitas Câmara aduza essa conceituação com base em escólio de Nelson Nery Júnior, em seu Código de Processo Civil Comentado, estudiosos sobre o tema trazer um contraponto a tal posicionamento, como, por exemplo, Fredie Didier Jr[47]. com base nas lições de José Rogério Cruz e Tucci. Ao formular esquema mínimo que sintetiza a causa petendi, Fredie Didier Jr. reputa a causa de pedir remota como o fato (fato jurídico) e, por sua vez, a causa de pedir próxima como o fundamento jurídico (relação jurídica substancial deduzida).
Nessa senda, reza a doutrina de José Rogério Cruz e Tucci[48] o seguinte:
“Inferida, da exposição da causa de pedir remota, a relação fático-jurídica existente entre as partes, a causa petendi próxima (ou geral) se consubstancia, por sua vez, no enquadramento da situação concreta, narrada in status assertionis, à previsão abstrata, contida no ordenamento de direito positivo, e do qual decorre a juridicialidade daquela, e, em imediata sequência, a materialização, no pedido, da consequência jurídica alvitrada pelo autor”.
De acordo com as lições de Vicente Greco Filho[49], “A causa de pedir próxima são os fundamentos jurídicos que justificam o pedido, e a causa de pedir remota são os fatos constitutivos, tanto os fatos descritivos da relação jurídica quanto o fato contrário do réu e que justifica o interesse processual.”.
Explicitando minuciosamente o suporte fático que possui sua pretensão, cabe ao autor, em seguida, demonstrar sua repercussão jurídica da maneira que entender correta, esperando provimento judicial favorável, em outras palavras, pugnando por um efeito jurídico através do cumprimento desse requisito do instrumento que veicula a demanda (petição inicial).
Sendo assim, a título exemplificativo, pode-se discorre sobre determinada situação hipotética (mas plenamente comum na praxe forense) de uma ação de despejo baseada na inadimplência do locatário, face ao locador, referente às prestações mensais do contrato de locação. É possível infirmar do aludido exemplo, que os fatos que compõem a causa petendi são a relação jurídica contratual firmada entre as partes litigantes e a quebra dessa relação através do descumprimento de cláusula contratual. Estamos diante, portanto, da causa petendi remota.
A partir dessa visão, a causa de pedir remota engloba “o fato constitutivo do direito do autor associado ao fato violador desse direito, do qual se origina o interesse processual para o demandante.”. Deixamos de lado, por ora, apesar de extremamente relevante, as especificidades da causa de pedir remota de acordo com a natureza das ações (declaratória, constitutiva e etc.).
A repercussão no mundo do direito da relação jurídica material e de sua quebra, implica nos fundamentos jurídicos do pedido, ou seja, na causa de pedir próxima (no exemplo citado, o direito de perceber os valores não pagos e de ocupar o imóvel). Aqueles fatos, narrados na petição inicial, possuem relevância jurídica e são tutelados pelo ordenamento jurídico, o que vincula ao autor demonstrar tal relevância e repercussão e, logo após, materializá-las no pedido.
O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, considerou como aspecto relevante tanto a causa de pedir próxima, como a causa de pedir remota, ao julgar conflito de competência a respeito de ação previdenciária. Para esclarecimento do quanto decidido pela Corte Infraconstitucional, necessário transcrever ipsis litteris a ementa do aludido julgado:
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PREVIDÊNCIA PRIVADA. DESLIGAMENTO. DEVOLUÇÃO. VALORES E DIREITOS. JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. 1 – A competência se define pela natureza da demanda, ou seja, pelo pedido e pela causa de pedir. Na espécie, a causa de pedir remota é o contrato de previdência privada firmado pelo autor com a ré. A causa de pedir próxima é o descumprimento da avença, relativa ao plano de previdência privada. 2 – A demanda, pois, é eminentemente de índole civil, não tendo relevância o fato de ser plano de previdência privada, contratado em face da ex-relação empregatícia do autor com a Brasil Telecom (antiga TELEMS). Não há pedido de relação de trabalho ou empregatícia, tão pouco de verbas trabalhistas, mas de devolução de valores em decorrência de desligamento do plano. 3 – Conflito conhecido para declarar competente o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, suscitante.” (CC 108.195/MS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/11/2009, DJe 23/11/2009). Grifos nossos.
Vê-se, pois, a importância do assunto, bem como da classificação adotada jurisprudencialmente em relação à divisão da causa petendi nos aspectos ora analisados, posto que o STJ já decidiu que importa, “para a identificação do pedido, a dedução dos fundamentos de fato (causa de pedir próxima) e dos fundamentos de direito (causa de pedir remota) da pretensão.”[50] Acerca de pressuposto processual negativo, o Tribunal da Cidadania debateu sobre tal denominação ao julgar que “Para fins de litispendência, as ações serão idênticas quando possuírem os mesmos elementos, a saber, mesmas partes, mesma causa de pedir (próxima e remota) e o mesmo pedido (mediato e imediato).”[51] Nessa esteira intelectiva, na via contrária do mesmo raciocínio, entendeu o STJ que “A causa de pedir, próxima e remota (fundamentos de fato e de direito, respectivamente) deve ser a mesma nas ações, para que se as tenha como idênticas; por isso, se a causa de pedir remota é mesma, mas a causa de pedir próxima é diversa, não há litispendência.”[52]
Independentemente de filiação a qualquer dos entendimentos elencados, importa realmente asseverar, de forma objetiva nesse tópico, que a causa petendi, conforme a literalidade do dispositivo do CPC concernente a tal requisito da petição inicial, compreende tanto o fato como os fundamentos jurídicos do pedido. Se tal ou qual se consubstancia na vertente remota ou próxima da causa de pedir, muito embora tal contenda possua relevância tanto acadêmica como prática, não configura temática central desse artigo, que se volta de forma nuclear a identificar a causa de pedir como elemento formador do objeto litigioso do processo, bem como delimitador da atividade jurisdicional.
Depreende-se, portanto, desse entendimento, que tanto os fatos quanto os fundamentos jurídicos compõem a causa petendi. Em outras palavras, não basta a mera narração dos fatos constitutivos, tampouco a simples menção à previsão do ordenamento jurídico acerca de determinada situação. Faz-se necessária, desse modo, uma exposição coerente desses dois conteúdos integrantes da causa petendi, as duas faces da mesma moeda, quais sejam, a causa de pedir remota e próxima.
Nessa senda, importante destacar que, como dito linhas acima, os fundamentos jurídicos do pedido não se confundem com seus fundamentos legais, esses desimportantes quando da elaboração do instrumento da demanda. Outrossim, despiciendo também a correta indicação acerca do nomen iuris, desprezado para a compreensão da causa de pedir em nosso sistema processual.
5.3. CAUSA DE PEDIR ATIVA E PASSIVA
Impende destacar, noutra banda, que existe posição doutrinária no intuito de dividir a causa de pedir em ativa e passiva. Nesse diapasão, um dos ícones do direito processual civil brasileiro, José Carlos Barbosa Moreira admite que, por exemplo, “Se o autor reclama a restituição de quantia emprestada, a causa petendi abrange o empréstimo, fato constitutivo do direito alegado (aspecto ativo), e o não pagamento da dívida no vencimento, fato lesivo do direito alegado (aspecto passivo).”[53]
Em razoável pesquisa na doutrina pátria, é possível compreender que tal divisão é caracterizada, em nosso país, pela forte influência dos autores italianos nos estudos acerca do direito processual civil. Apoiado em doutrina italiana, Cruz e Tucci menciona idêntica posição esposada por Zanucchi[54], ao afirmar que o fato constitutivo do direito do autor é denominado de causa ativa, enquanto o fato do réu contrário ao direito é denominado de causa passiva.
Repisa ainda, o sempre citado professor, que para Franchi[55], é possível, inclusive, que exista tão somente causa petendi passiva, como, por exemplo, numa ação de anulação de contrato por vício de vontade. Em tradução livre, o autor brasileiro cita o autor italiano ao lecionar que “o fato negativo surge após a conclusão do contrato” e “afirmar que o direito à resolução tenha aflorado antes é a mesma coisa que dizer que todos os contratos são rescindíveis por inadimplemento.”
Em brilhante observação, a qual nos valemos neste trabalho, Fredie Didier Jr.[56] explica que, para a doutrina que reputa coerente a divisão da causa de pedir quantos a estes dois aspectos, é salutar destacar que tanto a causa de pedir ativa, quanto a causa de pedir ativa, estão abrangidas pela causa de pedir remota, que engloba tanto o fato constitutivo do direito do autor, como o fato violador do direito do autor, conforme mencionado linhas acima.
Tendo em vista que a divisão da causa de pedir em ativa e passiva debruçar-se sobre o interesse de agir do autor, que por sua vez é condição da ação, tem-se evidenciada sua importância para compreender os contornos do que se pretende com o presente trabalho. A dificuldade em distinguir o aspecto ativo e passivo da causa petendi é salientada por Cândido Rangel Dinamarco[57]. Em sua obra, afirmou o festejado processualista: “A distinção entre causa de pedir ativa e passiva não é nítida em todos os casos, mas às vezes reveste-se de muita valia, seja para a boa compreensão da versão sustentada pelo autor, seja para a delimitação precisa da causa de pedir (art. 128).”.
Está aí a correlação entre a causa de pedir, sua divisão em ativa e passiva, e a delimitação do objeto litigioso do processo: a delimitação precisa da causa de pedir e o art. 128, da Lei Adjetiva Civil. Renato Montans de Sá[58], ao tratar da causa de pedir e sua relação com o objeto litigioso do processo, aduz, sobre tema ainda a ser abordado, que “é sobremodo importante a perfeita configuração entre a causa de pedir ativa e passiva para verificar os limites objetivos da coisa julgada: é possível haver duas causas com a mesma causa de pedir ativa, conquanto haja diferentes causas de pedir passivas.”
5.4. CAUSA DE PEDIR SIMPLES E COMPOSTA
Para José Rogério Cruz e Tucci[59], a causa petendi é simples “quando um único fato a integra”. No exemplo utilizado para aferir a causa de pedir remota e a causa de pedir próxima (ação de despejo), temos uma causa de pedir simples, pois o suporte fático que embasa a pretensão processual é único, qual seja, o inadimplemento contratual.
Quando uma pluralidade de fatos dá ensejo a um pedido, temos evidenciada a chamada “causa de pedir composta”. Nas palavras do mencionado autor, cujo trabalho acerca da causa de pedir é um dos mais completos encontrados na doutrina processual pátria, a causa petendi é composta “na hipótese em que corresponde a uma pluralidade de fatos individuadores de uma única pretensão.”.
Fredie Didier Jr., também embasado na concepção de causa de pedir composta explicitada por José Rogério Cruz e Tucci, formula interessante exemplo a respeito, cuja citação é válida a título didático e ilustrativo da situação em espeque, senão vejamos.
“A causa de pedir na ação de responsabilidade civil subjetiva é composta. O substrato fático que autoriza a incidência do art. 186 do CC-2002 compõe-se de quatro elementos: conduta, culpa, nexo de causalidade e dano. Só terá direito à indenização (responsabilidade civil; efeito jurídico) aquele que conseguir demonstrar a existência destes quatro requisitos (fato jurídico composto). A falta de um deles implica a impossibilidade de obter-se o efeito jurídico pretendido, pela insubsistência do fato tido por jurídico. Não incidirá a norma pela falta de um dos elementos do suporte fático.”[60]
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhardt[61] aduzem que pode a petição inicial conter mais de uma causa de pedir, não correlacionando, no entanto, tal hipótese com a classificação ora descrita. Discorrem os festejado autores que é possível a ocorrência dos seguintes fenômenos, in verbis:
“i) vários fatos de igual estrutura com repercussão na esfera jurídica de uma pessoa; ii) vários fatos de igual estrutura com repercussão nas esferas jurídicas de diversas pessoas; e iii) vários fatos de diferente estrutura com repercussão na esfera jurídica de uma pessoa.”
Frise-se, de mais a mais, que a doutrina especializada ainda classifica a causa petendi como complexa, em casos onde uma pluralidade de fatos dá ensejo a uma pluralidade de pretensões. Araken de Assis, em trabalho acerca da cumulação de ações, explica que “Declinando o autor, simultaneamente, mais de uma causa de pedir próxima e remota, estando o fato e a consequência relacionados em cada uma, resta pouca dúvida de que há mais de uma causa, e, conseguintemente, cumulação de ações.”.[62]
Muito embora não se desconheça outras espécies de classificação da causa petendi, tais como a divisão da causa de pedir em estática ou unifactual e dinâmica ou plurifactual, iremos resumir tais distinções nas já expostas pois, não obstante o modo sucinto com o qual foram tratadas, acreditamos que restou alcançado o objetivo de contextualizar a análise ora realizada.
5.5. TEORIAS DA SUBSTANCIAÇÃO E DA INDIVIDUAÇÃO
Talvez um dos tópicos mais importantes do presente trabalho, o estudo do tema demonstrou ser imprescindível o tratamento das referidas teorias em momento próprio e específico. A doutrina pátria, com fortes influências das escolas processualistas alemã e italiana, discorreu – e ainda discorre – sobre o tema suscitando eventuais controvérsias, posicionamentos polêmicos e levantando questões sem uma resposta definida.
Como já mencionado, o objetivo deste artigo é ventilar a possibilidade concreta da adoção da causa de pedir como delimitador do objeto litigioso do processo e, consequentemente, da atuação do Estado-Juiz no exercício da jurisdição. Desse modo, salutar compreender como o ordenamento jurídico pátrio compreende a causa petendi e a define como razão ou motivo da demanda, com o papel de qualificar o pedido.
Em linhas gerais, costuma-se dizer que a teoria da individuação, ou teoria da individualização, encarta posicionamento no sentido de que a causa de pedir exige, tão somente, um fundamento de direito, não sendo relevantes as exposições fáticas veiculadas no instrumento da demanda. Nessa senda, há de se frisar que tal conclusão é aplicável nos casos onde se trata de direitos absolutos, como por exemplo, os relativos à propriedade. Quando o direito em testilha for de caráter relativo, caso dos direitos obrigacionais, a causa de pedir exigirá os fundamentos fáticos e de direito, mesmo em se tratando da teoria da individuação.
Por outro lado, a teoria da substanciação, também chamada de teoria da substancialização, exige que a causa petendi contenha fundamentação fática e fundamentação jurídica, sendo válido considerar que, para parte da doutrina, a teoria da substanciação considera exigido tão somente, para configuração da causa de pedir, o fundamento de fato trazido na petição inicial.
Dito isto, passemos ao exame preciso e analítico de cada uma dessas teorias, seus adeptos, as discussões que as envolvem, bem como o entendimento acerca da aplicabilidade no direito brasileiro de uma ou de outra teoria. Nesse diapasão, registre-se que a doutrina geral, leia-se os Manuais e Cursos de direito processual civil, em boa maioria limitam-se a dizer que o ordenamento jurídico pátrio adotou a teoria da substanciação da causa de pedir, em contraponto à teoria da individuação, tendo em vista o quanto disposto pelo art. 282, inciso III, do Código Processual Civil.
Humberto Theodor Jr. afirma que “Quando o Código exige a descrição do fato e dos fundamentos jurídicos do pedido, torna evidente a adoção do princípio da substanciação da causa de pedir, que se contrapõe ao princípio da individuação.”.[63]
Fredie Didier Jr., por sua vez, nos diz que “o nosso CPC adotou a teoria da substancialização da causa de pedir, segundo a qual se exige do demandante indicar, na petição inicial, qual o fato jurídico e qual a relação jurídica dele decorrente.”. Arremata o renomado jurista baiano, cujas lições já restaram aqui reproduzidas acerca desse tema, tendo em vista a concordância do posicionamento ora adotado nessa questão, que “Não basta a indicação da relação jurídica, efeito do fato jurídico, sem que se indique qual o fato jurídico que lhe deu causa – teoria da individualização.”.[64]
Citado por Fredie Didier Jr., Araken de Assis, em trabalho já mencionado, afirma, no tocante à teoria da individuação, que “a causa de pedir se completa, segundo a teoria em apreço, somente pela identificação da demanda, na inicial, da relação jurídica da que o autor extrai certa consequência jurídica.”.[65]
Em posição divergente quanto ao conteúdo da causa de pedir – mas não em relação à adoção da teoria da substanciação pelo CPC pátrio –, Alexandre Freitas Câmara chega a afirmar que “O Direito brasileiro adota, sem sombra de dúvidas, a teoria da substanciação, sendo a causa de pedir, no Direito pátrio, formada exclusivamente por fatos. Os fatos jurídicos que fundamentam a pretensão.”.[66]
Mesmo com essa aparente unanimidade acerca da adoção da teoria da substanciação pela legislação processual nacional, o debate acerca do assunto é deveras instigante, principalmente para o estabelecimento da causa de pedir como elemento delimitador da atuação do juiz, sendo parte integrando do objeto litigioso do processo, ao lado do pedido.
Com base em diversos doutrinadores de escol, principalmente advindos da Itália, Ricardo de Barros Leonel sintetiza de forma bastante feliz em que se encerra a distinção entre as citadas teorias, ao afirmar que “pela teoria da substanciação a demanda judicial deve ser elaborada mediante a descrição dos fatos (causa agendi remota), enquanto para a teoria da individuação é necessário que o autor esclareça o direito ou a relação jurídica afirmada (causa agendi proxima).[67] Analisando tal assertiva, vislumbra-se questionamento a respeito da real adoção irrestrita do Código de Processo Civil brasileiro à teoria da substanciação. Expliquemos.
A opção de seguir cada uma dessas teorias, de forma estanque, implica em diversas consequências, principalmente, no que diz respeito à repropositura de demandas, ou seja, incidência dos pressupostos processuais negativos da litispendência e da coisa julgada. Vejamos tais implicações.
Consabido que, de acordo com o art. 301, inciso V e §§ 1º, 2º e 3º, do Codex Processual Civil, a litispendência é matéria que precede a discussão meritória, configurando-se quando ajuizada uma ação idêntica a outra que está em curso, ou seja, com os mesmo elementos (partes, pedido e causa de pedir). Sendo assim, adotada a teoria da substanciação nos moldes ora explicitados, é possível, com base em outros fatos constitutivos, propor ação veiculando demanda com as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma fundamentação jurídica.
Por outro lado, não ofenderá a coisa julgada, tampouco ultrapassará os limites de sua eficácia preclusiva, a demanda ajuizada na situação acima descrita, quando ao invés de estar em curso, a outra ação contiver sentença de mérito transitada em julgado. Repise-se, nessa seara de discussão, que a adoção da teoria da substanciação implica também a adoção da regra da eventualidade, onde o autor deve exaurir o rol de fatos constitutivos de seu direito ao veicular a demanda através da inicial.
Em contrapartida, adotada a teoria da individuação em sua essência, resta vedada a propositura de ação (ou formulação de demanda) baseada em fatos preexistentes, mas não alegados, posto que o que realmente importa é o conteúdo do direito deduzido. Problema se encontra quando os fatos (por não fazerem parte da causa de pedir) podem ser alterados, gerando contratempos ao encerramento do processo, tendo em vista a necessidade de se estabelecer o contraditório sempre que alegados novo suporte fático para a pretensão.
Não se pode, num trabalho com esse escopo, olvidar-se de debruçar-se acerca do entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema em testilha. Consabido que o STJ é a corte responsável pela uniformização e melhor interpretação do direito federal infraconstitucional (portanto, das regras e princípios processuais), mostra-se sobremaneira interessante adentrar no tratamento que tal sodalício dá ao assunto em questão.
Um tanto quanto alheio à eventual cizânia doutrinária, o STJ através de sua jurisprudência remansosa e pacífica posiciona-se no sentido de que, realmente, o direito brasileiro adota a teoria da substanciação da causa de pedir, conforme é possível depreender da leitura do seguinte excerto de julgado:
“[…] O direito brasileiro adota, quanto à causa de pedir a teoria da substanciação, e não a teoria da individuação, para a qual conta a qualificação jurídica dos fatos. Ainda que a parte deva indicar, na petição inicial, quais consequências jurídicas pretende extrair dos fatos descritos na inicial, o juiz não está vinculado, nesse ponto, ao que pretendeu o autor. A parte dá os fatos, para que o juiz lhe dê o direito. […]” (REsp 1089570/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/04/2010, DJe 22/06/2010).
Em postura ainda mais radical quanto à importância dos fatos, embora reconhecendo que os fundamentos jurídicos também compõem a causa de pedir, já decidiu a Corte Infraconstitucional que “No Direito brasileiro, aplica-se a teoria da substanciação, segundo a qual apenas os fatos vinculam o julgador, que poderá atribuir-lhes a qualificação jurídica que entender adequada […]”.[68]
Ainda em relação ao entendimento que os fatos delimitam a causa de pedir e vinculam o julgador, em aresto que será adiante comentado de forma minuciosa, o STJ asseverou que “O provimento judicial está adstrito não só ao pedido formulado pela parte na inicial, mas também à causa de pedir, que, de acordo com a Teoria da Substanciação, é delimitada pelos fatos narrados na petição inicial.”[69]
Demonstrado contundente contraposição do ordenamento jurídico pátrio à teoria da individuação, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou reiteradamente no sentido de que “O Processo Civil Brasileiro adota a Teoria da Substanciação da Causa de Pedir, de forma que não há resumir a "matéria unicamente de direito" da lide ao puro exame da norma jurídica.”.[70]
Ante os julgados ora colacionados, é possível concluir que o Superior Tribunal de Justiça se distancia da discussão travada na doutrina, acerca do conteúdo da causa de pedir (se composta exclusivamente por fatos ou também por fundamentos de direito), bem como da necessidade de se contrapor a teoria da substanciação em face da teoria da individuação (não considerando um suposto caráter complementar entre elas que fazem um “meio-termo” ser adotado pelo processo civil brasileiro).
O que resta claro, da análise dos julgados trazidos à baila, é que o STJ é uníssono em afirmar que o Brasil adota a teoria da substanciação e, independentemente se essa engloba ou não os fundamentos jurídicos do pedido, o que realmente importa para a delimitação da atuação do julgador é o suporte fático exposto pelo autor em sua petição inicial.
Mister frisar, nesse diapasão, que de acordo com Cruz e Tucci, a doutrina espanhola busca a adoção de uma chamada “‘tese sincrética’, segundo a qual a causa petendi deve ser ‘faticamente substanciada e juridicamente individualizada’”. A superação entre o antagonismo entre as teorias da substanciação e da individuação também é delineado pela doutrina processualista espanhola devido ao fato de sua “inutilidade científica e errônea formulação”.[71]
5.6. DEMANDAS AUTODETERMINADAS E HETERODETERMINADAS. DIREITOS ABSOLUTOS E RELATIVOS.
Ainda sobre as teorias da substanciação e da individuação, no sentido de se buscar o verdadeiro posicionamento do CPC, bem como a melhor interpretação de como deve ser interpretada a causa petendi, evidencia-se de grande valia tecer breves comentários acerca dos direitos relativos e absolutos e das demandas autodeterminadas e heterodeterminadas.
É que parte da doutrina especializada não enxerga uma inclinação irrestrita da legislação processual pátria pela teoria da substanciação, com o completo desprezo à teoria da individuação. Percebe-se que, tal distinção pode encontrar pontos de convergência a depender do direito material deduzido em juízo e da natureza da ação proposta.
Também derivada da influência da doutrina italiana, mais especificamente de Cerino Canova, as demandas são divididas em autodeterminadas e heterodeterminadas de acordo com o direito a ser tutelado. Uma demanda autodeterminada é aquela em que se discute a respeito de um direito absoluto, como por exemplo, o direito de propriedade. Diz-se absoluto tal direito, em linhas superficiais, pois repercute de forma erga omnes, ou seja, além das esferas jurídicas dos que litigam em sua razão. Dúvida não há que o direito de propriedade se opõe a todo e qualquer sujeito de direito, observadas as nuances legais e constitucionais, evidentemente.
Nesses casos – onde a situação é vinculada a um direito absoluto – a demanda se identifica apenas pelo direito invocado, pouco importando, a título ilustrativo, seu fato constitutivo (forma de aquisição da propriedade), se por usucapião, alienação, sucessão e etc.
Noutra senda, as demandas heterodeterminadas se relacionam com direitos relativos, v.g., os direitos obrigacionais e reais de garantia. Tais demandas se identificam pelo direito e pelo suporte fático. Válido ressaltar que, há quem diga que tal distinção das demandas – em autodeterminadas e heterodeterminadas – importa apenas para os sistemas que adotam a teoria da individuação da causa de pedir.
Tal assertiva mostra-se plausível, haja vista a redação do art. 282, inciso III, do CPC determinar a exposição do fato e dos fundamentos jurídicos do pedido, sendo, em primeira análise, adotada a teoria da substanciação. Em outras palavras, mesmo se tratando de uma demanda autodeterminada, portanto referente a um direito absoluto, não basta ao autor apresentar um título constitutivo de propriedade numa ação de imissão de posse, sendo-lhe imposto uma descrição fática dos acontecimentos da vida, mesmo que considerada em menor proporção do que a descrição fática exigida em uma demanda heterodeterminada que cuide de um direito relativo.
Desse modo, é razoável a conclusão que, mesmo que se entenda pela adoção da teoria da substanciação da causa de pedir pelo CPC brasileiro, esta se mostrará mais ou menos relevante a partir da análise sob a perspectiva da natureza do direito tutelado.
6. PEDIDO
6.1 BREVES CONSIDERAÇÕES
De início, sobre o pedido, válido salientar que, como não se consubstancia em objeto de análise primordial do presente trabalho, sua discussão será bem mais sucinta do que a concernente à causa de pedir. Cingir-se-á o debate aos requisitos de certeza e determinação do pedido, bem como da vedação ao seu caráter genérico.
Não alheio às classificações do pedido em mediato (pretensão a um bem da vida) e imediato (pretensão a um provimento jurisdicional), bem como os ensinamentos referentes às suas espécies de cumulação, nos limitaremos em reproduzir o conceito de que o pedido é o núcleo da petição inicial, consistente naquilo que se postula ao juiz, em virtude da causa de pedir.
Embora o respeitabilíssimo escólio de Vicente Greco lecione que “O pedido, de acordo com a doutrina moderna, é o objeto litigioso da ação ou do processo, isto é, a matéria sobre a qual incidirá a atuação jurisdicional, com força decisória.”[72], entendemos, como restou explicitado durante todo o artigo e será confirmado nos tópicos subsequentes e no esboço de conclusão, que a causa de pedir também pode ser considerada elemento integrante do objeto litigioso do processo.
6.2. PEDIDO CERTO E DETERMINADO E PEDIDO GENÉRICO
A redação da primeira parte do caput do art. 286 do Código Processual Civil preleciona que “O pedido deve ser certo ou determinado.” A respeito da mencionada norma, José Miguel Garcia Medina tece o seguinte comentário, que ora se transcreve: “'Certo' é o pedido imediato, elaborado com exatidão acerca da tutela jurisdicional pleiteada (a ausência de precisão acarreta a inépcia da petição inicial, cf. art. 295, parágrafo único); 'determinado' é o pedido quando individuado o bem da vida (…)”.[73]
Com Humberto Theodoro Jr. e demais vozes autorizadas da doutrina, temos pacífico que a certeza e a determinação do pedido não são sinônimos, tampouco requisitos alternativos, portanto, a locução “ou” deve ser lida como “e”, relacionado à adição[74]. Tal dispositivo reflete a atecnia do legislador, que pode ser superada com o esforço interpretativo realizado pelo operador do direito.
Alexandre Câmara chega, inclusive, a afirmar que “Determinação e certeza, portanto, se completam, sendo essenciais para que se possa delimitar o objeto do processo.”[75] Nesse sentido, afirma o STJ, ao julgar o REsp nº 445.413/DF que “O pedido contido na inicial – embora certos e determinados – sujeitam-se à interpretação pelo julgador.” Na mesma esteira intelectiva, asseverou a Corte Infraconstitucional, no REsp 748.433/DF o seguinte, verbis:
“Dispõem os arts. 282 e 286 do CPC que o autor deve formular pedido certo e determinado, bem como determina o art. 460 do mesmo diploma que a prestação jurisdicional é delimitada pelo pedido. Porém, o rigor da forma não impõe que o autor enumere seus pedidos em tópico separado na petição inicial, sendo suficiente que os pleitos sejam claros e bem delineados. Em processo, normalmente a forma das manifestações das partes não prevalece sobre o conteúdo se o teor deste deixar evidente a finalidade a que o ato visa.”
Pode se depreender, portanto, que muito embora haja formulação do pedido afastada do rigor técnico, é possível compreendê-lo a partir de todo o conteúdo da petição inicial, pois esta, em seu conjunto, é que consubstancia-se no veículo da demanda.
Os incisos I a III, do art. 293 do CPC, por sua vez, enumeram as hipóteses onde o próprio legislador prevê a possibilidade de flexibilização da regra de certeza e determinação dos pedidos, admitindo o pedido genérico. Importante destacar que tais exceções legais não se relacionam com as exceções expostas neste artigo, que visa, precipuamente, aplicar à casuística as premissas que envolvem a instrumentalidade do processo.
Mais uma vez, nos remetendo ao comentário acerca da legislação processual exposta na obra do professor e advogado paranaense José Miguel Garcia Medina, temos que o pedido genérico é aquele “realizado de modo abrangente e impreciso quanto aos seus limites.”[76] Para subsidiar o argumento trazido à baila neste humilde trabalho, faz-se salutar mencionar nota feita por Negrão, Gouvêa e Bondioli, onde elencam excerto de julgado asseverando que “Não se considera pedido genérico o que, embora deficientemente formulado permite correta compreensão do seu alcance.”[77]
Ainda acerca dos requisitos do pedido aduzidos pela Lei Adjetiva Civil no artigo ora analisado, podemos citar, por exemplo, julgado que afirmou o seguinte: “Compreende-se no pedido o que logicamente dele decorre. […] Nessa ordem de ideias, não deve o julgador desconsiderar os 'pedidos implícitos e os formulados por invocação expressa a peças de instrução da inicial.'”[78]
Ao compulse do CPC comentado cujas citações são inevitáveis, colhe-se, ainda, os seguintes excertos jurisprudenciais que valem à pena serem transcritos ipsis litteris: “Se determinado pedido há de ser tido como implícito na postulação mais ampla, sob pena de esta não poder ser atendida ou quedar-se inócua, não se há de dizer que o juiz prestou tutela jurisdicional sem que a tenha a parte requerido.”[79]
Desse modo, em que pese a literalidade do Código em prever a certeza e determinação do pedido, bem como as hipóteses legais de admissão do pedido genérico, em diversos casos concretos os tribunais brasileiros tem tal regra com dotada de certa maleabilidade, haja vista a necessidade de efetividade do provimento jurisdicional.
6.3. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DO PEDIDO
A redação do art. 293, do Código de Processo Civil possui a seguinte redação, litteris: “Os pedidos são interpretados restritivamente, compreendendo-se, entretanto, no principal os juros legais.” Comentando o referido dispositivo legal, José Miguel Garcia Medina aduz que “O pedido delimita a atividade jurisdicional. O julgamento além do pedido é considerado ultra petita.”[80]
No escólio de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery “O autor é quem delimita a lide, deduzindo o pedido na petição inicial (CPC 128).” De acordo com o comentário dos referidos autores acerca da redação do art. 293, do Código de Processo Civil “A sentença deve ser dada de forma congruente com o pedido (CPC 460), não podendo conceder ao autor mais do que ele pediu, nem decidir abaixo do que foi pedido, nem fora dos limites do pedido.” Arrematam os doutrinadores que “Ao interpretar o pedido, o juiz deve fazê-lo de forma restritiva.”[81]
Se reconhece, portanto, que a restrição relativa à interpretação do pedido elaborado na petição inicial está diretamente ligada à delimitação do objeto litigioso do processo e à limitação da atuação jurisdicional. Assim sendo, uma análise superficial do art. 293 do CPC poderia levar o intérprete a descartar a hipótese de uma compreensão ampla do pedido e da causa de pedir como integrantes do meritum causae a ser decidido. Ocorre que não é esse o posicionamento jurisprudencial esposado, inclusive, pelo Superior Tribunal de Justiça.
Também em obra de legislação comentada, dentre as mais utilizadas pelos operadores do direito, Gouvêa e Bondioli[82], em obra originária do saudoso Theotonio Negrão, trazem notas extraídas da jurisprudência da Corte Infraconstitucional aduzindo que “O pedido não deve ser extraído apenas do capítulo da petição especificamente reservado aos requerimentos, mas da interpretação lógico-sistemática das questões apresentadas pelas partes ao longo da petição.”[83]
Repise-se, nessas seara, que os aludidos autores ainda trazem à baila o seguinte excerto de julgado, verbis: “Se o pedido comporta mais de uma interpretação, deve-se recorrer à causa petendi para a respectiva compreensão.”[84] Farta é a jurisprudência a respeito do tema, inclinando-se sempre ao entendimento de que a interpretação restritiva do pedido não implica o desprezo à causa de pedir, como fundamento para decisão a ser proferida. Em termo práticos, encara-se a causa petendi como elemento integrante do objeto litigioso do processo, ao menos, é o que parece.
A seguinte ementa é esclarecedora, verbis:
“PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ARTS. 128 E 460 DO CPC. VIOLAÇÃO NÃO CONFIGURADA. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA. TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO. AGRAVO DESPROVIDO. I. O provimento judicial está adstrito não só ao pedido formulado pela parte na inicial, mas também à causa de pedir, que, de acordo com a Teoria da Substanciação, é delimitada pelos fatos narrados na petição inicial. II. O acolhimento de pedido extraído da interpretação lógico-sistemática de toda a argumentação desenvolvida na peça inicial, e não apenas do pleito formulado no fecho da petição, não implica julgamento extra petita. III. O acórdão regional reconheceu direito do autor que se incluía no bojo mais abrangente do pedido, qual seja, a concessão de pensão especial devida aos portadores da deficiência física conhecida como "Síndrome da Talidomida" que, de acordo com o art. 1º da Lei nº 7.070/82, é devida a partir do pleito administrativo. Ao contrário do que procura fazer crer o agravante, ao fixar o termo inicial do benefício pleiteado, o Tribunal a quo nada mais fez que interpretar de forma ampla o pedido formulado pela parte. IV. Agravo regimental desprovido”. (AgRg no Ag 1351484/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 20/03/2012, DJe 26/03/2012).
No tópico que se segue, o tema será abordado, mais uma vez, sob o prisma da jurisprudência do STJ, com enfoque à luz da instrumentalidade do processo, bem com da sua necessidade de ser efetivo. Nesse sentido, ao fazer alusão à efetividade do processo, asseverou o Tribunal da Cidadania que “Os pedidos, como manifestações de vontade, devem ser interpretados à luz do princípio da efetividade e da economia processual […].” Salientou o aresto citado, a respeito dos postulado mencionados, que estes “visam conferir à parte um máximo de resultado com um mínimo de esforço processual.”[85]
Com efeito, impende destacar que não esta a se tratar das exceções legais à interpretação restritiva do pedido, v.g. a previsão do próprio caput do art. 293 do CPC e também a disposição do art. 290, da própria Lei Adjetiva Civil,[86] muito embora se reconheça que a compreensão ora exposta se aplica, com maior ou menor intensidade, a depender da natureza da demanda.
7. INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO COMO JUSTIFICATIVA DA ADOÇÃO DA CAUSA DE PEDIR COMO INTEGRANTE/DELIMITADOR DO OBJETO LITIGIOSO DO PROCESSO
Como encontra-se disposto no presente trabalho, o tema em debate é abordado de forma tendente a englobar, no objeto litigioso do processo a causa petendi. No entanto, ultrapassado o momento de discussão das diversas vertentes doutrinárias a respeito do instituto, bem como da teoria(s) adotada(s) pelo ordenamento jurídico brasileiro para compreensão deste elemento da demanda, resta evidenciar que um princípio processual cada vez mais prestigiado tanto doutrinariamente, como jurisprudencialmente, pode dar guarida ao esboço de entendimento ora explicitado.
De acordo com o exposto anteriormente, adotamos o conceito de objeto litigioso do processo elaborado por Cândido Rangel Dinamarco, contudo, ressaltadas todas as vênias ao aludido jurista de escol, entendemos que seu conteúdo não se resume ao pedido, e sim, a este somado a causa de pedir. E para sustentar tal posicionamento, sob o risco de parecer, superficialmente, paradoxal, aduzimos o princípio da instrumentalidade das formas no processo civil, minuciado de forma brilhante pelo mencionado doutrinador[87].
Adverte-se, nesse mister, que em nenhuma hipótese tem-se o petulante objetivo de demonstrar suposta contradição no escólio de Dinamarco, e sim, esclarecer que o escopo instrumental do processo pode revelar a plausibilidade da adoção da causa petendi como integrante do objeto litigioso do processo e, nesse diapasão, conduzi-la a elemento determinante para a efetivação da tutela jurisdicional, quando da prolação da decisão judicial no caso concreto.
Consabido que a doutrina moderna consiste em observar o fenômeno processo a partir de diversos ângulos, levando em conta seus escopos para a afirmação de seus reais objetivos. Podemos falar, nesse mister, em uma conjugação entre a atuação da vontade concreta da lei e uma justa composição da lide, mirando sempre um processo civil de resultados. Observados, então, devem ser os escopos social e político, além do escopo jurídico do processo.
O que ora se expõe não configura oposição ao que afirma Dinamarco, mas sim, procura-se elucidar que, conotando a causa de pedir como integrante/delimitador do objeto litigioso do processo, tem-se por atendidos de forma mais relevante os diferentes escopos do processo, e consequentemente, tem-se valorizado seu caráter instrumental. Para melhor compreensão do quanto alegado, faz-se salutar trazer à baila um caso concreto submetido ao Superior Tribunal de Justiça através do recurso especial nº 1.235.926/SP.
O caso tomou proporções nacionais e foi veiculado amplamente pela imprensa, em suas mais variadas formas, por tratar de assassinato de homossexual por chamados skinheads.[88] Não obstante a gravidade da situação e o clamor popular que a envolve, resumirmo-nos a comentar seu aspecto processual, tendo em vistas o objetivo deste estudo. Os autos trataram de ação indenizatória proposta pelo companheiro da vítima face a Editora Globo, por veiculação de matéria jornalística a respeito.
De acordo com o relatório elaborado pelo Relator do caso no STJ (Ministro Sidnei Beneti), a sentença de piso que julgou improcedente o pedido trazido na petição inicial, restou reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujo acórdão que deu parcial provimento ao apelo do autor foi objeto do apelo nobre. A recorrente (in casu, a Editora Globo) alegou, segundo consta, que o aresto vergastado não poderia prover o recurso de apelação determinando pagamento de indenização por uso indevido da imagem, posto que o autor não incluiu em seus pedidos qualquer indenização nesse sentido, mas tão somente em razão dos supostos dano morais sofridos. Sustentou, nessa senda, a recorrente, ofensa ao art. 460 do CPC.[89]
Transcrevendo trechos do acórdão recorrido e da peça vestibular formulada pelo autor recorrido, o Superior Tribunal de Justiça asseverou, no aludido julgamento, que embora formulado pedido de indenização por danos morais, dos fatos narrados depreendeu-se que a situação envolvia indevida exposição da imagem, o que também fundamentou o pleito reparatório. Discorreu o Tribunal da Cidadania, a respeito, que “[…] da petição inicial se conclui que o autor busca indenização pela divulgação de matéria referente a fato a ele relacionado, bem como a publicação de sua fotografia, sem sua autorização, embora tenha considerado tais eventos como ofensas morais […]”.
Embora tal julgado não se reputa expressamente à instrumentalidade das formas no processo civil como fundamento da interpretação adotada, nos parece claro que o desapego à técnica pura e simples e a compreensão lógica da petição inicial consubstanciam-se na busca da efetividade da tutela jurisdicional.
Noutro giro, trazendo à lume de forma substancial e concreta o aludido postulado, tem-se o julgamento do recurso especial nº , também pelo Superior Tribunal de Justiça. Convém transcrever, ipsis litteris, ementa de julgado onde forma rejeitados embargos de declaração opostos contra acórdão que não conheceu recurso especial, senão vejamos:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. PRESTAÇÃO JURISDICIONAL INSUFICIENTE E AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INEXISTÊNCIA. EMBARGOS ACOLHIDOS, SEM EFEITO MODIFICATIVO. 1. O processo é "um instrumento a serviço da paz social" (DINAMARCO), de modo que o formalismo deve ser afastado para que o rigor exacerbado não restrinja a prestação jurisdicional digna e justa. Inexistência dos vícios previstos nos artigos 458 e 535 do CPC.2. O acórdão proferido pela instância a quo reconheceu direito da autora que, em última análise, se incluía no bojo mais abrangente do pedido proemial, qual seja, a reparação de danos, em harmonia com o princípio da substanciação, adotado por nosso legislador processual, em consonância com os fundamentos de direito e de fato da pretensão, sempre havendo a considerar o princípio da mihi factum, dabo tibi ius. 3. Embargos de declaração acolhidos, sem efeito modificativo, porém”. (EDcl no REsp 442795/RJ, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, QUARTA TURMA, julgado em 23/10/2007, DJ 19/11/2007, p. 230).
Da leitura da ementa supratranscrita é possível desumir que prestigiou-se a instrumentalidade das formas em detrimento do formalismo processual. Deveras interessante, todavia, é a fundamentação do decisum ora analisado, que a todo momento cita a obra de Dinamarco, sob o fundamento de elevar a instrumentalidade sobre o rigor técnico. O caso tratado no processo sob comento diz respeito ao atropelamento de uma professora, que atravessava a rua na pista de pedestres, por um ônibus, no ano de 1985. Ao resolver o processo aproximadamente 22 (vinte e dois anos) após seu início, o Ilustre Ministro Relator afirmou que “o formalismo deve ser afastado para que o rigor exacerbado não restrinja a prestação jurisdicional digna e justa.”
Baseado em especializada e consagrada doutrina, o acórdão recorrido trouxe a seguinte citação, verbis:
“Falar em instrumentalidade do processo, não é falar somente nas suas ligações com a lei material. O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos indivíduos que a compõem: e, estando o bem estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por três ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídico. A consciência dos escopos da jurisdição e sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social (…) constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político" (ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, "Teoria Geral do Processo", Malheiros Editores, São Paulo, 2000, 16ª ed., p. 41).
Com espeque no art. 159 do Código Civil Revogado, a autora da ação pretendeu pura e simplesmente a reparação dos danos causados pelo acidentes. Acerca disso, afirmou o STJ que “Seja qual for a denominação que o causídico, à época, deu ao dano suportado efetivamente pela autora – se físico, material, patrimonial, estético, espiritual ou até, implicitamente, moral – buscava ela, objetivamente, a reparação do dano.”
Cumpre ressaltar, inclusive, que a Corte Infraconstitucional afirmou, ainda, que, no caso, “a petição inicial, embora longe de se revelar modelo de clareza e de precisão, serviu, não obstante, a definir o sentido e o conteúdo da pretensão da autora, de molde a propiciar à parte contrária amplo e irrestrito exercício de seu direito de defesa”. Dito isto, reputa-se, mais uma vez, evidente a adoção do princípio da instrumentalidade do processo, bem como resta configurada a inegável essencialidade do devido contraditório à subsidiar o entendimento consolidado.
Frise-se, por fim, que restou mantida a decisão que, considerado o pleito inicial mencionado linhas acima, concedeu “pensão mensal de 3 (três) salários-mínimos mais quantia correspondente a 100 (cem) salários-mínimos para atender a reparação da dor física, que vem sofrendo a autora até os dias atuais.”
8. A ESSENCIAL IMPORTÂNCIA DO CONTRADITÓRIO PARA A DELIMITAÇÃO DO OBJETO LITIGIOSO DO PROCESSO COM BASE NÃO SOMENTE NO PEDIDO, MAS TAMBÉM NA CAUSA DE PEDIR
De acordo com os arts. 300 e 302, caput, ambos do CPC é possível concluir que o réu se defende dos fatos. Eis as redações dos aludidos dispositivos da Lei Adjetiva Civil, verbis: “Art. 300. Compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir.” e “Art. 302. Cabe também ao réu manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial. Presumem-se verdadeiros os fatos não impugnados, salvo: […]”.
Desse modo, a regra a respeito da impugnação específica dos pedidos perpassa, inevitavelmente, pela manifestação defensiva por parte do demandado. É nesse mister que se evidencia a importância do respeito ao contraditório para a afirmação da causa de pedir como integrante do objeto litigioso do processo. Como restou explicitado, composta a causa de pedir pelos fatos e fundamentos jurídicos do pedido – de acordo com a literalidade do inciso II, do art. 282, do CPC –, tem-se que a manifestação do réu acerca dos fatos narrados na petição inicial é crucial para considerar a limitação objetiva da demanda que engloba a causa petendi.
Um exemplo extraído da casuística é capaz de elucidar tal assertiva. Proposta ação indenizatória por parte de candidato a mandato eletivo, preterido face a posse de candidato que fraudou pleito eleitoral (fraude posteriormente confirmada), contra Órgão Legislativo Estadual, esta foi julgada procedente e transitou em julgado. Dentro do prazo legal (art. 495 do CPC) ajuizou o Órgão Legislativo Estadual ação rescisória.
Tal ação visou desconstituir a decisão judicial que o condenou ao pagamento da indenização, tendo sido extinta sem resolução do mérito, sob o argumento de que o autor referiu-se à sentença de piso e não ao acórdão de 2º instância, circunstância que ensejou a impossibilidade jurídica do pedido (art. 267, inciso VI, do CPC) face ao efeito substitutivo previsto pelo art. 512, do CPC[90].
Em embargos de declaração, o Órgão alegou que em sua fundamentação foi exposta de maneira contundente a existência de decisão de segunda instância, a qual manteve a sentença a quo em sua integralidade. Além disso, salientou que seu pedido resultou em “rescisão da decisão proferida no processo nº […]”. Convém repisar, nessa senda, que em sede de parecer, o Ministério Público simplesmente ultrapassou tal posicionamento, opinando pela procedência da rescisória, posto o estrito cumprimento, por parte da Órgão Legislativo Estadual, do art. 219, do Código Eleitoral[91]. Frise-se, ainda, que de acordo com o embargante, estabelecido o contraditório, o embargado manifestou-se sobre todos os fatos e fundamentos jurídicos do pedido, inclusive, não se manifestando por matéria prejudicial de mérito, embora essa possa ser reconhecida ex officio, por ser matéria de ordem pública.
Rejeitados os aclaratórios, foi interposto recurso especial, pelo Órgão Legislativo Estadual, alegando violação aos arts. 485, inciso V, 512 e 535, caput e inciso II, todos do Código de Processo Civil, suscitando, ainda, a existência de divergência jurisprudencial. Asseverou em suas razões que considerando que toda a narrativa desenvolvida na inicial, foi no sentido de informar a existência de decisão de segunda instância, que, nos termos do art. 512 do CPC substituiu a sentença de primeiro grau, é forçoso concluir que a decisão proferida no processo, a que se refere a parte como alvo da rescisória, é, sem dúvida, a decisão do tribunal ad quem.
Aduziu, por outro lado, que a parte contrária compreendeu perfeitamente o objeto da ação, não acarretando nenhum prejuízo à defesa, tanto que silenciou a respeito dessa questão e defendeu-se adequadamente, sem qualquer dificuldade. Traz à baila, ainda, o REsp nº 744.271/DF, como dissonante do aresto vergastado. Admitido o apelo nobre na origem, até agora não houve pronunciamento do STJ a respeito.
O que se aproveita da situação narrada é, mais uma vez, válido repetir à exaustão, a salutar essencialidade do contraditório para se aproveitar a causa petendi como delimitador do objeto litigioso do processo. Confirmada a efetiva defesa quanto aos fatos narrados na petição inicial, é possível ao julgador levar em conta a causa de pedir não somente para motivar o pronunciamento judicial, mas para fixar o que será decidido e como será decidido.
Necessário repisar que no exemplo prático exposto, em sede de opinativo, o Ministério Público sequer se manifestou a respeito de eventual impossibilidade jurídica do pedido, tendo em vista suposta atecnia quando da formulação do petitum na inicial da rescisória (rescisão da decisão proferida no processo nº […]). Desse modo, vislumbra-se a inconformidade do decisum combatido com o ora sustentado e com a orientação majoritária da Corte Infraconstitucional a respeito. Nesse sentido, vejamos os termos do aresto paradigmático trazido pelo recorrente como configurador do dissenso pretoriano, in verbis:
“Recurso especial. Ação rescisória. Objeto. Sentença. Possibilidade. – Quando for suscitado apenas "error in procedendo" no recurso de apelação, não há que se falar em substituição da sentença pelo acórdão prolatado no julgamento do recurso. Nesta hipótese, é viável apontar a sentença como objeto da ação rescisória. – Outrossim, o fato de ter sido utilizada a expressão "sentença" ao invés de "acórdão" não se mostra suficiente para impedir a análise do mérito da ação rescisória, devendo o equívoco ser considerado mera irregularidade. Recurso especial conhecido e provido.” (REsp 744271/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/06/2006, DJ 19/06/2006, p. 136).
Impende, nesse diapasão, transcrever trecho da fundamentação do decisum cuja ementa resta supratranscrita, litteris:
“Ainda, como fundamento subsidiário, é preciso considerar que, mesmo entendendo que o objeto da rescisória deveria ter sido o acórdão prolatado no julgamento da apelação, não se mostra razoável deixar de admitir a demanda, notadamente quando – ressalte-se – todos os outros requisitos formais foram devidamente preenchidos. […] Com estes fundamentos, deve ser acolhida a pretensão do recorrente apresentada neste recurso especial, seja porque o objeto da ação rescisória, na hipótese, deveria ser, efetivamente, a sentença, considerando que esta não foi substituída pelo posterior acórdão; seja porque, em razão do princípio da efetividade da jurisdição, deve ser considerada mera irregularidade a referência à sentença ao invés da menção ao acórdão.”
Observe-se que, muito embora não traga em seu corpo menção expressa à instrumentalidade do processo civil, tampouco explicite a importância do contraditório na adoção da causa petendi como fundamento do objeto litigioso do processo, urge asseverar que o acórdão proferido pelo STJ prestigia princípio correlato com tudo que se aduz no presente artigo, qual seja, a efetividade da jurisdição, representada pelo desapego ao rigor formal excessivo e ampla compreensão da matéria fática posta nos autos.
Para Nelson Nery Jr., “o princípio do contraditório, além de se constituir fundamentalmente em manifestação do princípio do estado de direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação […]”. Nessa linha de raciocínio, leciona o multicitado doutrinador que “tanto o direito de ação quanto o direito de defesa são manifestações do princípio do contraditório.”[92]
Desse modo, entende-se que, formulado o pedido de forma deficiente ou atécnica, pode o julgador socorrer-se dos fatos e fundamentos jurídicos expostos na petição inicial (causa de pedir) para decidir a lide. Ocorre, todavia, ser imprescindível que tais fatos e fundamentos tenham sido efetivamente refutados pelo réu, com o estabelecimento do devido contraditório, com o fito de evitar ser proferida decisão estranha ao objeto litigioso do processo, a chamada decisão surpresa ou decisão de terceira via[93].
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ressaltadas, mais uma vez, as devidas vênias aos doutrinadores de escol que excluem da formação do objeto litigioso do processo a causa de pedir, entendemos que tal elemento da demanda constitui-se essencial para sua limitação objetiva e para efetiva prestação jurisdicional, observando o processo através dos seus reais escopos, o que implica abrangência na compreensão da instrumentalidade.
Da doutrina especializada colhem-se lições no sentido de que “Se a causa de pedir não integra o pedido, certamente o identifica.”[94] O sempre festejado Arruda Alvim afirma o mesmo, ao asseverar que “embora a causa petendi não integre o pedido, ela o identifica.”[95] Citando o entendimento ora reputado, o STJ já decidiu, no mandado de segurança nº 9.315-DF que “A decisão judicial não está limitada apenas pelo pedido formulado pela parte, mas também pela causa de pedir deduzida, sendo esta elemento delimitador da atividade jurisdicional na ação.”
Desse modo, sendo sustentado que a causa de pedir identifica ou ilumina o pedido, bem como consiste em sua razão ou fundamentação, é plausível concluir que esta possui função sobremaneira relevante nos limites da atividade do julgador. Por outro lado, conclui-se também ser possível, além do diverso enquadramento jurídico dos fatos, por parte do juiz, em relação ao quanto exposto pelas partes, a interpretação lógico-sistemática da causa petendi e do petitum, sendo este último compreendido de forma ampla quando, por exemplo, formulado sem atender à melhor técnica e precisão.
Fundamentando tal posicionamento, encontram-se diversos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido, cuja transcrição restou efetuada no decorrer desse artigo científico. É possível, ademais, trazer à baila premissa esposada em aresto relatado pelo saudoso Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, cujas lições jurisprudenciais, principalmente relacionadas ao direito processual civil, restarão por muito tempo refletidas. Eis o seu teor, verbis:
“PROCESSUAL CIVIL. INDENIZAÇÃO. PROTESTO INDEVIDO DE TÍTULO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA DO PEDIDO, A PARTIR DE UMA ANÁLISE GLOBAL DA PETIÇÃO INICIAL. DANOS EMERGENTES. DANOS MORAIS. DISTINÇÃO. PRECEDENTE. DOUTRINA. RECURSO DESACOLHIDO. I – O pedido é o que se pretende com a instauração da demanda e se extrai da interpretação lógico-sistemática da petição inicial, sendo de levar-se em conta os requerimentos feitos em seu corpo e não só aqueles constantes em capítulo especial ou sob a rubrica "dos pedidos". II – Embora não tenha constado, na espécie, pedido expresso por danos morais, toda a argumentação da petição inicial foi nesse sentido. Isso quer dizer que se extrai do pedido a pretensão de danos morais, a despeito de a autora havê-los genericamente denominado "danos emergentes". III – Além disso, na espécie, a deficiência na formulação do pedido não acarretou prejuízo à defesa, notadamente porque a própria ré não argumentou, na contestação e nem na apelação, a inépcia da inicial ou a ocorrência de julgamento fora dos limites postulados, tendo essa última questão surgido de ofício, e apenas quando do julgamento da apelação.” (REsp 284480/RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 12/12/2000, DJ 02/04/2001, p. 301). Grifos nossos.
Aceitável, portanto, é a conclusão de que não há sentença ultra ou extra petita quando o provimento jurisdicional, atendo-se à causa de pedir, mais precisamente aos fatos narrados pelo autor na petição inicial, e devidamente rebatidos pelo réu na contestação, julga procedente pedido mal redigido, mal formulado ou afastado do rigor técnico. Nesse mesmo sentido, o REsp nº 120.299/ES, 76.153/SP, AgRg no REsp nº 1.1.195.680/RN e AgRg no Ag nº 567.773/RJ. Frise-se que tal comportamento também não configura ofensa ao art. 293 do Código de Processo Civil, conforme delineado em tópico anterior.
O que ora se pretende não é desconstituir quaisquer posicionamentos doutrinários a respeito do objeto litigioso do processo e a limitação objetiva da demanda em relação à atuação jurisdicional. O que se propõe, em verdade, é uma leitura da causa petendi sob à ótica do processo como um meio, e não como um fim, não subsistindo a interpretação restritiva do pedido, tampouco eventual impropriedade no momento de sua realização, em face dos modernos contornos que permeiam o processo civil.
Baseando e ratificando o arguido nesta singela exposição, eis as lições do Tribunal da Cidadania, sodalício responsável pela uniformidade na interpretação do direito federal infraconstitucional de acordo com os basilares postulados do ordenamento jurídico pátrio: “Os pedidos, como manifestações de vontade, devem ser interpretados à luz do princípio da efetividade e da economia processual, que visam conferir à parte um máximo de resultado com um mínimo de esforço processual.”[96]
Não só a legislação processual vigente, mas a própria Lei Maior do ordenamento jurídico pátrio permitem que a atividade cognitiva realizada pelo juiz abranja o contexto fático exposto nos autos, em prol da instrumentalidade do processo, da efetividade da prestação da tutela jurisdicional, observado o postulado do contraditório e do livre convencimento motivado em todos os seus termos.
Informações Sobre o Autor
Roberto Santos Pedreira de Souza
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Jorge Amado e Pós-Graduando em Direito Processual Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia – UFBA. Assessor Jurídico da 2ª Vice-Presidência do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia