Resumo: O presente estudo busca apresentar um paradigma conceitual que demonstre a necessidade de se propugnar por políticas públicas que garantam atuações estatais no sentido de concretização do direito à seguridade social, como requisito elementar à concretização da dignidade da pessoa humana. Ocorre que os direitos sociais, onde estão inseridos o direito à seguridade social, como direitos de segunda dimensão, demandam para sua existência, a atuação do Estado. E nesse sentido, derivam questionamentos quanto ao modelo ideal de Estado, bem como, o limiar de atuação mínima desse Estado, de forma a viabilizar a existência desses direitos. Concebendo o direito à seguridade social como um direito fundamental, a partir da força normativa da Constituição, defendendo-se a eficácia das normas programáticas, quer se buscar instrumentos de afirmação desses direitos, incluindo-os no “Mínimo Existencial” necessário a uma vida digna, impedindo que o Estado se refugie, justificando sua apatia, na idéia de “Reserva do Possível”.
Palavras-chave: seguridade social – dignidade da pessoa humana – direito fundamental – estado liberal/social – “mínimo existencial” – “reserva do possível”.
Abstract: This study seeks to present a conceptual paradigm that demonstrates the need to advocate for public policies that guarantee state actions towards achieving the right to social security as a prerequisite to the achievement of basic human dignity. It happens that the social rights, which are inserted the right to social security, as rights of the second dimension, demand for their existence state action. And in that sense, derive some questions about the ideal model of state, as well as the minimum threshold of performance that State, in order to enable the existence of such rights. Conceiving of the right to social security as a fundamental right, from the normative force of the Constitution, defending the efficacy of the program standards, whether they seek to assert these rights instruments, including them in the "Minimum Existential" necessary for a dignified life, preventing the State from taking refuge, justifying their apathy, in the idea of " Reserve of the Possible".
Keywords: social security – human dignity – fundamental right – estate liberal/social – "minimum existential" – "reserve of the possible”.
Sumário: 1. Introdução; 2. Do estado absoluto ao estado neoliberal. 3. A dignidade da pessoa humana como teleologia constitucional 4. Da eficácia das normas constitucionais 5. Da eficácia das normas programáticas 6. Dos direitos fundamentais 7. Dos desafios à concretização do direito à seguridade social 8. Do direito à seguridade social 9.conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O tema que se pretende abordar, em uma significação primeira, já evoca um questionamento primordial, que reside na construção de uma concepção ideal de Estado; que considere os paradigmas de justiça na aplicação das políticas públicas, essas consideradas como instrumento de libertação do homem; adotando como vetor onipresente, a significação da dignidade da pessoa humana.
Assim, contextualizado o tema, várias questões daí emanam, ao se debruçar na elaboração de um construto doutrinário que dê significação e aponte uma direção metodológica a ser seguida.
E nesse desiderato, constata-se que a Constituição Federal ampliou, de forma significativa, o rol de direitos sociais; incluídos nesses, o direito à Seguridade Social.
Em contrapartida, a sociedade passou a exigir uma maior atuação desse Estado, o qual, apesar de “Social”, resigna-se diante do contingenciamento orçamentário; não realizando esses direitos constitucionais, porquanto.
Assim, levando-se em consideração as limitações materiais do Estado Nacional, pretende-se discutir a possibilidade de se concretizar o direito à Seguridade Social, a partir do real sentido do conceito de “Mínimo Existencial”. Para tanto, parte-se de um enfoque constitucional, tendo como parâmetro a dignidade humana; atento, ao revés, a um postulado que propugna por concepção restritiva de direitos, baseado no conceito de “Reserva do Possível”.
A par dessas considerações, quer se apontar que com a implantação do Estado Constitucional de Direito, todas as normas constitucionais passaram a ser dotadas de supremacia jurídica, providas, que são, de eficácia jurídica; notadamente, as normas definidoras de direito, dotadas de aplicação imediata, como se pode depreender do artigo 5º, § 1º da Constituição Federal.
De outra parte, ao se pretender evidenciar o conceito de “dignidade da pessoa humana”, quer se trazer a lume uma significação filosófica do termo, de modo a se alcançar uma tessitura jurídica que a faça visível e, portanto, objetivável. Problema maior de superar a vagueza de sua conceituação.
E nesse ponto, considerando, como já mencionado, que a implementação de políticas públicas está adstrita à reserva orçamentária, insere-se a temática da justiça distributiva, a partir da visão de Ronald Dworkin[1], entre outros representantes da corrente filosófica do igualitarismo liberal, em contraponto às demais teorias de justiça (Chaïm Perelman, Alf Ross), apresentando um paradigma baseado no direito de igualdade de consideração e no direito de ser tratado como um igual.
Desse modo, a partir da concepção terminológica que entende os princípios como mandamentos de otimização, defendidas por Robert Alexy[2], quer se delinear um conceito de dignidade da pessoa humana, considerando a noção de “Mínimo Existencial” em contraponto à noção de “Reserva do Possível”.
2. DO ESTADO ABSOLUTO AO ESTADO NEOLIBERAL
A primeira manifestação do que se pode hoje compreender como Estado Moderno apresenta-se no final da Idade Média, com a Renascença, a partir do surgimento do conceito de Soberania.
Nesse sentido, Paulo Bonavides[3] pontua que:
“Mas nunca deslembrar que foi a soberania, por sem dúvida, o grande princípio que inaugurou o Estado Moderno, impossível de constituir-se se lhe falecesse a sólida doutrina de um poder inabalável e inexpugnável, teorizado e concretizado na qualidade superlativa de autoridade central, unitária, monopolizadora de coerção”.
O Estado Absolutista apresenta-se fundado na monarquia divina, justificada no direito natural, a partir do enunciado de que a soberania do monarca adviria de um mandamento divino.
A partir da quebra desse paradigma vem a lume o Estado de Direito, cujo marco inicial pode ser apontado com a Queda da Bastilha, na data de 14 de julho de 1789. Assim, Paulo Bonavides[4] explica que:
“Tornando às raízes da ascensão política da Burguesia até se tornar classe dominante, verificamos que o fenômeno não se pode desmembrar das guerras de religião e das competições econômicas que dificultam em certa maneira a chamada política do equilíbrio europeu.
Dessa política se faziam órgãos as Dinastias reinantes, as quais oscilavam entre a paz e a beligerância, entre a diplomacia e as armas, entre a segurança e a instabilidade.
Mas foi no caldo desses conflitos que se fez paulatinamente a ascensão da classe burguesa, até o dia em que, levando a cabo por via revolucionária o desafio do Absolutismo, pôde ela decretar o fim da caduca sociedade de privilégios ainda presente por corolário da herança feudal enxertada no corpo da Monarquia absoluta, qual apêndice morto ou cadáver de uma ordem econômica extinta: a dos feudos medievais.”
Caminhando um pouco mais na história da humanidade, surge o Estado Social, como conseqüência da reforma do modelo clássico do Estado Liberal. Tem origem na década de 1920, advindo de três experiências políticas e institucionais, baseadas em três acontecimentos históricos: a Revolução Russa de 1917, a reconstrução da Alemanha após a Primeira Guerra e a Revolução Mexicana e suas conseqüências (como a fundação do PRI – Partido Revolucionário Institucional).
Seu embasamento teórico, fixando as bases do garantismo social, advém de três documentos derivados dos fatos históricos relatados, quais sejam: a Constituição de Weimar de 1919; a Constituição Mexicana de 1917 e a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na Rússia revolucionária de 1918.
Nesse sentido, Marcus Orione Gonçalves e Érica Paula Barcha Correia[5] apontam que: “Diante da ameaça socialista do início do século, o Estado capitalista teve se reestruturar. A sua resposta, desde o primeiro instante de dificuldade, foi a adoção de um Estado de bem-estar social”.
Tal conformação estatal caracteriza-se pela conjugação das garantias das liberdades individuais com o reconhecimento dos direitos sociais.
E, justamente nesse momento, é que surge uma concepção de seguridade social, com lastro na intervenção estatal, com o fito de garantir iguais oportunidades a todos. A esmiuçar tal momento histórico, Paulo Bonavides[6] explica que:
“Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social”.
O Estado, portanto, passa a chamar para si, a solução dos problemas sociais, a partir da ruptura de determinados aspectos da ordem política, social, jurídica e econômica existentes até então. Nesse sentido, Marisa Santos[7] pontua que:
“Essa intervenção do Estado nas estruturas sociais, por meio da garantia dos direitos sociais está diretamente ligada ao Estado Democrático, pela preservação dos direitos e garantias fundamentais.
O Estado de bem-estar pretende garantir padrões mínimos de vida digna para o indivíduo e a comunidade, considerando como necessidades básicas a expansão do emprego, a saúde, a educação”.
Ainda, Celso Antonio Bandeira de Mello[8] delineia o seguinte quadro:
“Até um certo ponto da História havia a nítida e correta impressão de que os homens eram esmagados pelos detentores do Poder Político. A partir de um certo instante começou-se a perceber que eram vergados, sacrificados ou espoliados não apenas pelos detentores do Poder Político, mas também pelos que o manejavam; os detentores do Poder econômico. Incorporou-se, então, ao ideário do Estado de Direito o ideário social, surgindo o Estado Social de Direito também conhecido como Estado do Bem-Estar (Welfare State) e Estado-Providência. O arrolamento de direitos sociais aparece pela primeira vez na história constitucional na Constituição Mexicana de 1917, vindo depois a encontrar-se estampado também na Constituição de Weimar, de 1919. O Estado Social de Direito representou, até a presente fase histórica, o modelo mais avançado de progresso a exibir a própria evolução espiritual da espécie humana. A Constituição Brasileira de 1988 representa perfeitamente este ideário, que, todavia, entre nós, jamais passou do papel para realidade”.
O Estado Social teve seu apogeu a partir de 1945, momento em que passou se utilizar da doutrina econômica de John Maynard Keynes[9]; que, a grosso modo, tem fundamentos voltados à busca do pleno emprego a partir do endividamento público. Nesse sentido, a lançar um pouco de luz nessa temática econômica, Bernard Gazier, explica que:
“Keynes não é de maneira algum o inventor da política que consiste em lutar contra o desemprego por um programa político, por um estímulo estatal na forma, particularmente, de grandes obras. Essa política já pairava no ar dos anos 1920 e era pregada por muitos. Mas o que ele buscou, e encontrou, foi uma argumentação sistemática capaz de justificá-la, quantificá-la e articulá-la como outras políticas”.
Entretanto, a partir da década de 1970, com crise do petróleo, ocorreu um desmanche real nas intenções e nas ações estatais de cunho social. Tal postura ideológica dos governos provocou um processo de retorno aos postulados do Estado Liberal.
Essa desconstrução do Estado Social atingiu o seu clímax nos governos de Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América e Margaret Thatcher, na Inglaterra. Seu réquiem ocorreu em 1989, decretado por um documento chamado de “Consenso de Washington”, em que se sobrepôs o controle dos gastos públicos à finalidade social do Estado, a despeito de qualquer imperativo axiológico. Nesse momento, vem a lume a concepção de Estado Neoliberal.
E nesse passo, explicando essa nova conformação estatal, André Ramos Tavares[10], esclarece que:
“Em decorrência do panorama de crises que se instalou, assiste-se mais recentemente, a uma mudança de parâmetros para a atuação do Estado, numa retomada comedida das idéias concebidas para o Estado liberal, em face da crise observada tanto no modelo Welfare State quanto no modelo socialista de economia.
Nas palavras de Gilberto Dupas ocorre, atualmente, que o “discurso liberal varreu as economias mundiais”. A redução das dimensões do Estado tem sido apresentada como capaz de resolver os problemas de um setor público estrangulado por suas dívidas. E arremata, ainda: “A idéia de que o Estado tende intrinsecamente à ineficiência voltou com toda força nos discursos mais conservadores quando se evidenciam os problemas de financiamento e gestão dos governos nos países centrais”.
De outra parte, apesar do fracasso congênito, o socialismo acabou por ter reflexos também na “socialização” já operada no capitalismo (que se verificava em algumas partes do mundo), levando a uma retomada dos postulados liberais e a uma postura de retrocesso na intervenção estatal até então desenvolvida”.
Entretanto, como ensina Amartya Sen[11], não se pode prescindir do desenvolvimento do homem, visto que o Estado somente se justifica com um meio para tanto, e não como um fim em si mesmo. Ora, como enuncia Darcy Azambuja[12], o Estado só se faz crível como um meio para que o homem realize sua “felicidade social, é um sistema para conseguira a paz e a prosperidade. O Estado tem fins, não é um fim”.
Assim, em tempos atuais, ao Estado Democrático de Direito, mesmo sob uma inflexão neoliberal, impõem-se novas funções, deslocando o paradigma estatal vigente, a partir da transmudação de sua estrutura administrativa; de um Estado garantidor da ordem a um Estado prestador de serviços, o que era conhecido por Estado Social.
3. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO TELEOLOGIA CONSTITUCIONAL
Em uma primeira noção, como paradigma informativo, a acepção que se pretende abordar de dignidade da pessoa humana, em que pese apresentar um fundamento filosófico, como que a viabilizar uma maior densificação jurídica, deve ser colocada em uma perspectiva mais ampla possível, de forma a buscar sua essência em um espectro de direitos abrangente a todos os aspectos da personalidade humana. Nesse desiderato, Ingo Wolfgang Sarlet[13] ensina que:
“Nesse contexto, costuma apontar-se corretamente para a circunstância de que o princípio da dignidade humana constitui uma categoria axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-lo de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas. Há que se reconhecer, portanto, que também o conteúdo do conceito de dignidade da pessoa humana (a exemplo de inúmeros outros preceitos de contornos vagos e abertos) carece de uma delimitação pela práxis constitucional, tarefa que incumbe a todos os órgãos estatais”.
Ainda nesse passo, no intuito de se enunciar tal acepção, a doutrina de André Ramos Tavares[14] explica que:
“Dessa forma, a dignidade do Homem não abarcaria tão-somente a questão de o Homem não poder ser um instrumento, mas também, em decorrência desse fato, de o Homem ser capaz de escolher seu próprio caminho, efetuar suas próprias decisões, sem que haja interferência direta de terceiros em seu pensar e decidir, com as conhecidas imposições de cunho político-eleitoral (voto de cabresto), ou as de conotação econômica (baseada na hipossuficiência do consumidor e das massas em geral), e sem que haja, até mesmo, interferências internas, decorrentes dos, infelizmente usuais, vícios”.
Caminhando nessa derivação, Ana Paula de Barcellos[15] defende a necessidade do Estado, em primeiro lugar, ofertar um mínimo social existencial, para, somente então, garantir que todas as pessoas tenham uma existência digna. Assim, segundo o seu entendimento, faz-se necessário o atendimento a um núcleo com um conteúdo básico. Nesse sentido, assevera que:
“Esse núcleo, no tocante aos elementos materiais da dignidade, é composto de um mínimo existencial, que consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade”.
Por conta dessa concepção, Ana Paula de Barcellos[16] inclui como integrantes desse “conteúdo básico”, os seguintes direitos: educação fundamental, saúde básica, assistência no caso de necessidade e o acesso à Justiça.
Por seu turno, o art. 5º, § 1º da Constituição Federal, revela, em sua normatividade, uma imposição aos Poderes Públicos de alicerçar a eficácia máxima e imediata aos direitos fundamentais. Tal postulado busca apregoar a força dirigente da Constituição e o caráter vinculante dos direitos e garantias fundamentais, irradiados aos Estados e reciprocamente a todos os cidadãos (considerados em uma acepção ampla). Nesse sentido, manifesta-se Ingo Wolfgang Sarlet[17], nos seguintes termos:
“Tal se justifica pelo fato de que, em nosso direito constitucional, o postulado da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais (art. 5. § 1º, da CF) pode ser compreendido como um mandado de otimização de sua eficácia, pelo menos no sentido de impor aos poderes públicos a aplicação imediata dos direitos fundamentais, outorgando-lhes, nos termo desta aplicabilidade, a maior eficácia possível”.
No entanto, é necessário evidenciar até que ponto podem os entes públicos deixar de efetivar a concreção das normas constitucionais que disciplinam os direitos sociais, sem que exista ofensa aos direitos subjetivos dos indivíduos protegidos, ante a inexistência de recursos públicos suficientes. E nesse sentido, Guilherme Amorim Campos da Silva[18] é enfático, ao explicar que:
“No âmbito do constitucionalismo contemporâneo, a realização dos direitos humanos e dos direitos sociais constitui-se em condição legitimadora de qualquer ordem jurídica estabelecida. (…) A função dos sistemas de direito, na realidade contemporânea, deve ser orientada instrumentalmente para a tradução de princípios e previsões normativas em ações públicas e judiciais vertidas para sua realização. Caracterizando uma concepção antropocêntrica das Constituições modernas e contemporâneas, Häberle identifica nova estrutura de funções e competências estatais, que se encontram a serviço do ser humano”.
Portanto, uma vez delimitado o conceito de dignidade da pessoa humana, ainda que impropriamente, caberá ao Estado atuar no sentido de sua concretização coletiva, mesmo que por um prisma principiológico, instrumentalizando o normatizado na Constituição Federal.
4. DA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Inicialmente, é necessário que se perceba dois aspectos correlacionados à ação normativa. Assim, deve-se entender por eficácia ou aplicabilidade da lei, a validade jurídica e social da norma. Tem íntima relação com a aplicação ou execução da norma jurídica no plano fático, ou seja, como condicionadora da conduta humana. Difere-se, ao revés, da vigência da norma, a qual diz respeito à validade formal desta. Assim, diz respeito à técnica-jurídica da norma. Sua escorreita elaboração normativa, no que tange ao órgão elaborador.
Nesse sentido, em uma primeira análise há que ponderar que todas as normas constitucionais apresentam eficácia. Entretanto, gradações poderão ser vislumbradas nessa conformação afirmativa. Assim, tal eficácia poderá ser jurídica e social. Em outros casos, tal eficácia será somente social. A clarificar tal postulado, José Afonso da Silva[19], em texto clássico, já asseverava que:
“Não só deve ficar firmada a natureza jurídica de todas as normas das constituições rígidas, como sua natureza de direito constitucional. Nossa Constituição, como a maioria das cartas políticas contemporâneas, contém regras de diversos tipos, função e natureza, por postularem finalidades diferentes, mas coordenadas e inter-relacionadas entre si, formando um sistema de normas que se condicionam reciprocamente. Algumas delas são plenamente eficazes e de aplicabilidade imediata; outra são de eficácia reduzida, dependem de legislação que lhes integra o sentido e atue sua incidência, não são de aplicabilidade imediata, mas são aplicáveis até onde possam”.
Nesse sentido, ainda, Michel Temer[20] explica que:
“Eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos. Eficácia jurídica, por sua vez, significa que a norma está apta a produzir efeitos na ocorrência de relações concretas; mas já produz efeitos jurídicos na medida em que a sua simples edição resulta na revogação de todas as normas anteriores que com ela conflitam”.
Dentro desse contexto, portanto, desenvolveram-se as teorias classificatórias das normas constitucionais, levando em consideração sua eficácia. Assim, a jurisprudência e a doutrina constitucional norte-americanas criaram o conceito de classificação das normas constitucionais, que leva em consideração a sua aplicabilidade. Nesse sentido, segundo essa concepção, as normas constitucionais classificam-se em self-executing provisions e not self-executing provisions.
Tal classificação surgiu da evidência de que as constituições concretizam normas, princípios e regras de caráter geral, que devem ser convenientemente desenvolvidos e aplicados pelo legislador ordinário. Assim, as disposições constitucionais poderão ser classificadas como disposições auto-executáveis, ou seja, aplicáveis por si mesmas e disposições não-executáveis por si mesmas.
Quanto às disposições auto-executáveis, podem ser consideradas aquelas que são revestidas de plena eficácia jurídica, por regularem diretamente as matérias, situações ou comportamentos de que cogitam. Por sua vez, as disposições não auto-executáveis são aquelas de aplicabilidade dependente de leis ordinárias.
A crítica a tal classificação resulta do fato de todas as normas constitucionais serem dotadas de força imperativa. Assim, cada norma constitucional é sempre executável por si mesma até onde seja suscetível de execução. Nesse sentido, José Afonso da Silva[21] pondera que:
“A classificação pura e simples das normas constitucionais em auto-aplicáveis e não auto-aplicáveis não corresponde, com efeito, à realidade das coisas e às exigências da ciência jurídica, nem às necessidades práticas de aplicação das constituições, pois sugere a existência, nestas, de normas ineficazes e destituídas de imperatividade, como bem demonstra o conceito de Cooley, quando fala em regras “sem estabelecer normas cujo meio se logre dar a esses princípios vigor de lei”.
A partir dessa concepção, tem-se, portanto, que as normas constitucionais, por terem eficácia, irradiam seus efeitos jurídicos. Ocorre, no entanto, que a eficácia de certas normas não se manifesta em sua inteireza, sendo necessária a emissão de uma normação jurídica ordinária ou complementar executória, prevista ou requerida. Assim, partindo desse pressuposto, as normas constitucionais diferenciam-se levando em consideração o grau de seus efeitos jurídicos.
Desse modo, adotando-se a classificação de José Afonso da Silva, as normas se classificam em normas constitucionais de eficácia plena, contida e limitada.
As normas constitucionais de eficácia plena são aquelas que produzem todos os seus efeitos desde a entrada em vigor da constituição, independentemente de norma integrativa infraconstitucional. Nesse sentido, segundo explica José Afonso da Silva[22]:
“(…) são as normas que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata. Situam-se predominantemente entre os elementos orgânicos da constituição. Não necessitam de providência normativa ulterior para sua aplicação. Criam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, desde logo exigíveis”.
Por sua vez, as normas constitucionais de eficácia contida são aquelas que incidem de forma imediata e podem produzir todos os efeitos requeridos. No entanto, preveem meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida, em certos limites, e em dadas certas circunstâncias. Assim, esclarece Pedro Lenza[23] que:
“A restrição de referidas normas constitucionais pode se concretizar, não só através de lei infraconstitucional, mas também, em outras situações, pela incidência de normas da própria constituição, desde que ocorram certos pressupostos de fato, como por exemplo, a decretação do estado de defesas ou de sítio, limitando diversos direitos (arts. 136, § 1º., e 139 da CF/88).
Além da restrição da eficácia das referidas normas de eficácia contida tanto por lei, como por outras normas constitucionais, conforme visto acima, a restrição poderá se implementar, em outras situações, por motivo de ordem pública, bons costumes e paz social, conceitos vagos cuja redução se efetiva pela Administração Pública”.
Finalmente, as normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida: não produzem, somente com a entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais. Tais normas necessitam de uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a eficácia. Necessitam de uma lei integrativa infraconstitucional.
Entretanto, há que ponderar que as referidas normas produzem um efeito mínimo, ou seja, o efeito de vincular o legislador infraconstitucional às suas determinações.
As normas de eficácia limitada dividem-se em normas de princípio programático e normas de princípio institutivo ou organizativo.
Normas programáticas são aquelas que possuem um conteúdo social e buscam a interferência do Estado na ordem econômico-social, mediante prestações positivas, a fim de propiciar a realização do bem comum, através da democracia social.
Por sua vez, as normas de principio institutivo têm conteúdo organizativo e regulativo de órgãos e entidades, respectivas atribuições e relações. Têm, assim, natureza organizativa. Sua principal atribuição é a de esquematizar a organização criação ou instituição dessas entidades ou órgãos.
Tratam-se, portanto, daquelas normas por meio das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos a fim de que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei.
5. DA EFICÁCIA DAS NORMAS PROGRAMÁTICAS.
Como já explicitado, derivado das pressões sociais ocorridas durante a vigência do Estado Liberal, evidenciando a necessidade de uma intervenção estatal; através de um processo de democratização paulatina, veio a lume o Estado Social.
Tal estado de coisas vicejou do confronto com os princípios liberais, através de um processo democrático, originando a democracia social. E por tais razões, as mudanças repercutiram nos textos constitucionais contemporâneos, de forma a serem inseridos em seu teor, diversas matérias de conteúdo social.
Nesse sentido, muitas normas foram traduzidas no texto constitucional, na forma de princípios, como esquemas genéricos, programas a serem desenvolvidos ulteriormente pela atividade dos legisladores ordinários. Tais normas são denominadas normas constitucionais de principio programático. Trazendo a lume tal questão, Jorge Miranda[24] explica que as normas programáticas:
“(…) são de aplicação diferida, e não de aplicação ou execução imediata; mais do que comandos-regras, explicitam comandos-valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial – embora não único – o legislador, a cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios em que vêm revestidas de plena eficácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem já ( ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirma que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjectivos; aparecem, muitas vezes, acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente indeterminados”.
Desse modo, tais normas ditam ao Estado para onde se vai e como se vai, buscando atribuir-lhe fins, esses, outrora, liquidados pelo liberalismo econômico.
As normas programáticas, portanto, estão indissociavelmente ligadas ao Estado Social, bem como, a implementação dos direitos sociais. Surgem juntamente com o Estado Social, de modo a viabilizar a postura intervencionista do Estado, no intuito de concretizar os valores da igualdade material; propiciando aos seus cidadãos condições mínimas de existência.
Tal característica teleológica confere as normas constitucionais programáticas relevância e função de princípios gerais de toda a ordem jurídica. Estão, portanto, na base do regime político. Contêm princípios gerais informadores de toda a ordem jurídica. São elas que determinam a realização de fins sociais, através da atuação de programas de intervenção na ordem econômica, com vistas à realização da justiça social e do bem comum.
E desse modo, por apontarem os fins sociais e as exigências do bem comum, as normas programáticas contribuem para se desvendar o sistema jurídico nacional, na medida em que revelam as tendências sócio-culturais da comunidade; princípios básicos que, entre outros, informam a concepção do Estado e da sociedade e inspirando, portanto, a ordem jurídica positiva vigente.
Assim, elas exprimem os valores sob os quais está fundada e pelos quais se inspira a ordem jurídica positiva. Em razão dessa característica, tais normas são aplicáveis, até onde possam, independentemente de lei prevista. Frisando, que nesse caso, a lei integrativa somente instituirá a completa aplicabilidade das normas em questão.
Como referido, no entanto, há que se ponderar que as normas, ante a sua natureza constitucional, são de aplicabilidade imediata quanto à legislação anterior; bem como, em relação à legislação futura, que a elas deve se conformar. Da mesma forma, as normas programáticas, também são aplicáveis em relação às normas da constituição preexistente. Assim, impõem certos limites à autonomia de determinados sujeitos, privados ou públicos, e ditam comportamentos públicos em razão dos interesses a serem regulados.
Portanto, as referidas normas têm por objeto a disciplina dos interesses econômico-sociais; não tem força para se desenvolver integralmente, tornando-se programa a ser realizado pelo Estado por meio de leis ordinárias ou outras providências; são normas de eficácia reduzida, não sendo operantes com relação aos interesses que lhes constituem objeto especifico e essencial.
Por tais características, então, as normas constitucionais programáticas são dotadas de caráter imperativo e vinculativo. Não se tratam de normas de imediata aplicabilidade, como já referido. No entanto, isso não nega o caráter positivo e jurídico dessas normas.
De outra parte, há que se ponderar que as normas que disciplinam as relações econômico-sociais sofreram duas transformações no decorrer do século XIX. Em primeiro lugar, deixaram de ser normas abstratas e passaram a ser normas concretas jurídicas positivas. Ainda, tais normas integraram-se a outras normas destinadas a atuar como uma completa e pormenorizada regulamentação jurídico-constitucional de seus pontos mais delicados.
Tais normas, portanto, apresentam um caráter teleológico, determinando a realização dos fins sociais, através da atuação de programas de intervenção na ordem econômica, de modo a concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana.
Entretanto, fica em suspenso a solução que redunde na eliminação do caráter abstrato e incompleto das normas definidoras de direitos sociais; visto que o simples reconhecimento dos direitos sociais não é suficiente para reequilibrar a situação de inferioridade dos menos favorecidos.
Ademais, não pode confundir disposições programáticas e princípios constitucionais. As normas e princípios assumem conotações diferentes.
Assim, normas são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo. Por sua vez, princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas contendo valores e bens constitucionais.
Por outro lado, as normas programáticas são normas informadas pelos princípios, definidoras de direitos econômicos e sociais específicos; uma vez que revelam o compromisso entre as forças políticas liberais e tradicionais e as reivindicações populares de justiça social.
Ainda, há que se argumentar que por constarem no texto constitucional, já afirma a juridicidade das normas programáticas. Estas enunciam normas jurídicas que vinculam todas as demais produções normativas inferiores. São regras que cerceiam a atividade dos legisladores futuros, que no assunto programado, não podem ter outro programa.
Finalmente, há que se frisar que o fato de dependerem de providencias institucionais não quer dizer que não tenham eficácia. Portanto, fica claro que a amplitude das ações do Poder Público depende da existência de fontes de custeio. Diz-se, por isso, que os direitos sociais e prestações estão sob a “Reserva do Possível”.
Nesse sentido, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal[25]:
“INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”.
Entretanto, considerando que a determinação do caráter prestacional do “Mínimo Existencial” exige o respeito de determinadas obrigações da parte do Estado e os argumentos tradicionais de escassez de recursos e imprecisão normativa não podem ser utilizados de forma absoluta para justificar a ineficácia do direito referido. Portanto, a adoção das medidas necessárias para dar-lhe efetividade, impõe-se, na esfera jurídica. Desse modo, Jediael Galvão Miranda[26] assim se manifesta:
“Portanto, a dignidade da pessoa humana é valor fundamental que dá suporte à interpretação de normas e princípios da seguridade social, de molde a situar o homem com o fim de seus preceitos, e não como objeto ou instrumento.
Em tema de seguridade social, garantir o mínimo existencial (um dos núcleos do princípio da dignidade humana) para assegurar subsistência digna e vida saudável ao indivíduo atingido por diversas contingências sociais”.
Assim, como já defendido anteriormente, ante o imperativo constitucional, o atendimento às necessidades humanas é motivo suficiente para se concretizar os direitos fundamentais. O que pode ocorrer é que não havendo meios de efetivá-los todos de uma só vez, deve-se efetivar os principais. É justamente nesse pormenor é que reside a dimensão positiva do princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, o “Mínimo Existencial” necessário à sobrevivência com dignidade deve ser resguardado pelos direitos sociais.
Não se pode olvidar, entretanto, que o cumprimento desse imperativo constitucional exige a garantia de meios que satisfaçam as mínimas condições de vivência digna do indivíduo e de sua família. Nesse aspecto, o “Mínimo Existencial” vincula as prestações estatais para que sejam cumpridas as aspirações do Estado Democrático de Direito. Como explica Norberto Bobbio, trata-se de uma característica essencial dos direitos sociais, na medida em que não basta consagrá-los, para existirem, é preciso sua realização. Assim, devem ser levadas em consideração, condições objetivas próprias, externas ao campo jurídico[27].
Conclui-se, portanto, que as normas programáticas apresentam eficácia, a par de sua axiologia, apontam um caminho, que é progressivamente alcançado, por meio de etapas; as quais implicam em sua densificação, de modo a se aproximar do ideal imaginado pelo legislador constitucional. E, ao revés, não prescindem de um mínimo, que deverá já ter existência verificável.
6. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Em uma ótica inicial, pode-se ponderar, quanto à gênese dos direitos fundamentais; que suas principais fontes de inspiração originaram-se no pensamento cristão e na concepção dos direitos naturais.
Entretanto, como explica o professor José Afonso da Silva[28], a evolução histórica através das várias acepções doutrinárias tem relevante papel na concepção desses direitos, através de reivindicações e lutas sociais.
Traçado esse panorama inicial, conceitualmente, tem-se que os direitos fundamentais do homem constituem-se em situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo (Carta Constitucional), em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana.
De forma ainda mais clara, direitos fundamentais, nas palavras de José Afonso da Silva[29]: “são aquelas prerrogativas e instituições que o Direito Positivo concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”. São direitos constitucionais, na medida em que se inserem no diploma constitucional. Nesse sentido, a doutrina constitucional, majoritariamente, reconhece três níveis de direitos fundamentais. São os chamados direitos de primeira, segunda e terceira geração (dimensão). Nesse sentido, pronuncia-se Celso de Mello[30] nos seguintes termos:
“(…) enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais e concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de um essencial inexauribilidade”.
Assim, os direitos de primeira geração correspondem aos direitos e garantias individuais e políticas clássicas, surgidos institucionalmente a partir da Magna Carta, de 1215, espraiando-se nos séculos posteriores, através de documentos históricos, como por exemplo, a Paz de Westfália, em 1648; o Habeas Corpus Act, de 1679; o Bill of Rights, de 1688 e as Declarações Americana, de 1776 e Francesa, de 1789. Constituem-se em direitos de defesa frente ao Estado. São direitos que surgem frente da idéia de submissão do Estado a uma constituição. Nasceram historicamente da necessidade de contenção do Estado frente a pessoa humana. Portanto, tratam-se de direitos que representavam um ideologia de afastamento do Estado das relações individuais e sociais.
Portanto, sob tal concepção, caberia ao Estado, tão somente, ser o guardião das liberdades, permanecendo longe de qualquer interferência no relacionamento social. Tais direito são nominados de “liberdades públicas negativas” ou ainda, de “direitos negativos”, já que, como mencionado, exigem, do Estado, uma postura de abstenção. Nesse sentido, manifesta-se Paulo Bonavides[31], nos seguintes termos:
“Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente.
Se hoje esses direitos parecem já pacíficos na codificação política, em verdade se moveram em cada país constitucional num processo dinâmico e ascendente, entrecortado não raro de eventuais recuos, conforme a natureza do respectivo modelo de sociedade, mas permitindo visualizar a cada passo uma trajetória que parte com freqüência do mero reconhecimento formal para concretização parciais e progressivas, até ganhar a máxima amplitude nos quadros consensuais de efetivação democrática do poder”.
Quanto aos direitos de segunda geração, os mesmos representam uma etapa de evolução na proteção da dignidade da pessoa humana. Assim, uma vez conquistados os direitos de primeira geração, o homem passa a luta pelos direitos de segunda geração; redundando no surgimento do denominado Estado Social. São inspirados pela Revolução Industrial européia, a partir do século XIX, ante as péssimas condições de trabalho impostas aos operários. Porém, somente são institucionalizados no início do século XX, com o fim da 1ª Guerra Mundial.
Tem, de uma maneira abrangente, como essência, a preocupação com as necessidades humanas. E nesse viés, buscam a satisfação das necessidades primordiais das pessoas, a fim de que se possa alcançar patamares mínimos de existência, desfraldando, em sua marcha, a bandeira da dignidade da pessoa humana, com intento de buscar uma significação maior à vida, que uma sucessão de misérias. E; no presente contexto, portanto, ao Estado não é dado se abster. Ao revés, deverá agir, atuando no sentido de se buscar a superação das carências individuais e sociais, por princípio institucional. Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes[32] explica que:
“Vinculado à concepção de que ao Estado incumbe, além da não intervenção na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios matérias e implementar as condições fáticas que possibilitem efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos”.
Por tal razão, os direitos de segunda geração são denominados direitos positivos. Possuem, também, a denominação de “direitos de crença”, na medida em que trazem em seu bojo, a esperança de uma participação ativa do Estado.
Com relação aos direitos fundamentais de segunda geração, manifesta-se Marisa Ferreira dos Santos[33], nos seguintes termos:
“Os Direitos fundamentais de segunda geração exigem do Estado, ao contrário, um comportamento positivo, ou seja, de fornecimento de prestações destinadas ao cumprimento da igualdade e redução dos problemas sociais. São exemplos de direitos sociais os direitos relativos à Seguridade Social, à subsistência, ao trabalho. Sua presença, porém, tendo em vista a necessidade de meios e recursos, já que se exigem prestações positivas do Estado, esteve relegada, por muito tempo, a normas de caráter programático, situação que vem sendo modificada ao longo do tempo. Já há Constituições, inclusive a do Brasil de 1988, que deram aplicabilidade direta e imediata a certos direitos sociais, conferindo ao indivíduo direito subjetivo de exigir do Estado prestações positivas, como, exemplificativamente, a assistência á saúde (direito de todos e dever do Estado, conforme dispõe o art. 196).”
São direitos de segunda geração, por exemplo, os direitos sociais, econômicos e os culturais; seja em seu viés individual ou em seu viés coletivo.
Por seu turno, no que toca aos direitos fundamentais de terceira geração, os mesmos vieram a lume a partir de uma nova convergência de direitos, voltados à essência do ser humano, no que tange a sua razão de existir e ao destino da humanidade. Tais direitos consideram o ser humano enquanto gênero, não adstrito ao indivíduo ou mesmo a uma determinada coletividade. Estão fundados em um sentimento de solidariedade e fraternidade. Tem como fundamento ser a pessoa humana correlacionada com o próximo, independentemente de fronteiras físicas ou econômicas. Figuram como mais uma conquista social, que contribuiu para a ampliação dos horizontes de proteção e emancipação da pessoa humana.
Assim, tais direitos são representados pela aspiração da paz mundial, do desenvolvimento econômico, da proteção ao meio ambiente, da proteção do patrimônio comum da humanidade e o direito à comunicação. Modernamente, a doutrina considera tais direitos agregados aos difusos e coletivos. Nesse sentido, manifesta-se Alexandre Sturion de Paula[34]:
“Evidencia-se que os direitos fundamentais de terceira dimensão não representam mais uma utopia, no entanto ainda não guardam a efetividade que se espera para que a solidariedade e a fraternidade, assim como de regra os próprios direito fundamentais não representam mera retórica. Apenas a título de exemplificação, constatamos que, ao passo que o terrorismo e guerras motivadas pelos tanques ianques afrontam os direitos fundamentais apresentados, fatos com a recente tragédia oriunda do maremoto e do tsunami, que causaram milhares de mortes e destruição em grande escala no sul asiático, demonstram que a solidariedade e fraternidade universal estão presentes no consciente das Nações, validando a concreta existência dos direitos fundamentais de terceira dimensão”.
Finalmente, há aqueles que admitem uma quarta geração de direitos oriundos da denominada globalização do Estado neoliberal. Tais direitos possuem foco na sociedade globalizada, a qual ampliará os horizontes materiais e intelectuais de todo o ser humano. Nesse sentido, explica Paulo Bonavides[35]:
“A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social.
São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”.
Tais direitos, portanto, propugnam pela necessária proteção de toda pessoa humana a fim de que não ocorra a dominação de um povo por outro, ante o inexorável processo de globalização, que redunda na relativização da Soberania Estatal, com seus consectários legais e axiológicos.
Finalmente, à guiza de uma conclusão possível, os direitos fundamentais representam um construto dogmático coeso e inseparável, de modo que uma geração de direitos não implica na superação da anterior. Portanto, adotando a terminologia de dimensões de direito, tem-se a verberar pela sua essência totalizante, a partir de espectros normativos.
7. DOS DESAFIOS À CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SEGURIDADE SOCIAL
Em uma abordagem inicial, pode-se entender que os direitos sociais se constituem em formas de tutela pessoal. Alexandre de Moraes[36] conceitua-os da seguinte forma:
“(…) direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal”.
Nesse sentido, quanto aos direitos sociais, José Afonso da Silva[37] manifesta-se no seguinte teor:
“Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direito que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direito individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício da liberdade”.
Tais direitos têm previsão no artigo 6º, da Constituição Federal[38]. Tal artigo, por seu turno, apresenta a seguinte conformação: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Os direitos sociais são dotados de importância única dentro de qualquer Estado Democrático de Direito. Entretanto, diferentemente dos direitos fundamentais de primeira geração, aqueles chamados de direitos de defesa, não existe consenso acerca da sua aplicabilidade e efetividade imediatas e, tampouco, em relação ao caráter de direito subjetivo que, porventura, possam expressar. Tal é o cerne do problema concernente à efetiva implementação do direito à seguridade social.
Inicialmente, claro se afigura que direitos sociais condicionam os direitos individuais, como por exemplo, o direito de propriedade. Portanto, não se pode olvidar, com relação aos direitos sociais, o seu caráter de complementaridade dos direitos individuais. E nesse sentido, a conexão dos direitos individuais, civis e políticos com os direitos sociais, na medida em que ausentes o suprimento das necessidades básicas, não se pode falar, por exemplo, em plenitude da liberdade. Justamente nesse ponto reside a necessidade de se implementar a eficácia dos direitos sociais na maior medida possível.
Assim, valendo-se do preceituado por Amartya Sen, quer se evidenciar a importância dos direitos sociais na existência dos direitos individuais, enfocando-os a partir desse prisma de fundamentalidade na construção das liberdades substantivas; e, ao revés, a constatação, por esse economista, de que as liberdades individuais conformam as liberdades sociais.
Nessa linha de raciocínio, Amartya Sen[39] faz a menção à ligação umbilical entre os direitos de primeira dimensão e os direitos de segunda dimensão, através de uma derivação recíproca de sustentabilidade mútua, onde a ocorrência de um viabiliza existência de outro e vice versa. Desse modo:
“Deve ter ficado claro, com a discussão, precedente, que a visão da liberdade aqui adotada envolve tanto os processos que permitem a liberdade de ações de decisões como as oportunidade reais que as pessoas têm, dadas as suas circunstâncias pessoais e sociais”.
Nesse sentido, ainda, manifestou-se Marisa Ferreira dos Santos, nos seguintes termos: “Ficou reconhecido que a dignidade da pessoa humana só existe se o homem tiver garantida não só sua liberdade individual, como também se lhe propiciado o direito à educação, à cultura, à seguridade social e ao trabalho”. (SANTOS, 2004, p. 32). Por sua vez, Celso Lafer[40] conclui que:
“A primeira geração de direitos viu-se igualmente complementada historicamente pelo legado do socialismo, vale dizer, pelas reivindicações dos desprivilegiados a um direito de participar do “bem-estar social”, entendido como os bens que os homens, através de um processo coletivo, vão acumulando no tempo. É por essa razão que os assim chamados direitos de segunda geração, previstos pelo welfare state, são direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos – como o direito ao trabalho, à saúde, à educação – têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira geração, o homem na sua individualidade. Daí a complementaridade, na perspectiva ex parte populi, entre os direitos de primeira e de segunda geração, pois estes últimos buscam assegurar as condições para o pleno exercício dos primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos ao pleno uso das capacidades humanas. Por isso, os direitos de crédito, denominados direitos econômico-sociais e culturais, podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais: procuraram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num sentido amplo, impedindo, desta maneira, a invasão do todo em relação ao indivíduo, que também resulta de escassez dos meios de vida e de trabalho”.
Dentro desse entendimento, é fundamental imprimir eficácia aos direitos sociais, sob pena de se inviabilizar todo o sistema de direitos fundamentais, na medida em que, estando os direitos sociais carentes de efetivação, inaplicáveis se farão os direitos individuais, direitos inaugurais do sistema jurídico protetivo da pessoa humana, ante o fato dos direitos sociais concentrarem, em sua essência, a razão da existência dos direitos de primeira geração. Nesse sentido, ainda, Ana Cristina Costa Meireles[41] pondera que:
“Em verdade, a garantia dos direitos sociais, hoje, representa condição necessária para que se possibilite o efetivo gozo dos direitos de liberdade civis e políticos clássicos. Sem aqueles, este restam esvaziados de conteúdo e não passam de meras promessas inscritas em um papel ao qual, inclusive, nem todos têm acesso.
Ora, os direitos sociais surgem quando, em uma sociedade de relações mais complexas, já não bastavam como direitos fundamentais os direitos à vida, à liberdade e a propriedade”.
Assim, a partir do momento em que o Estado passa a intervir na economia, de forma a proporcionar a satisfação das necessidades dos indivíduos; nas constituições de tais Estados, nada mais natural que a inserção de normas que reflitam esse seu novo papel.
De outra ponta, os direitos sociais apresentam como uma de suas características a relevância do conteúdo econômico, na medida em que demandam recursos públicos disponíveis para que sejam concretizados. Tratam-se, portanto, de direitos subjugados à conjuntura econômica. E desse modo, por dependerem de prestações positivas por parte do Estado, os direitos sociais acabam por esbarrar nas limitações de recursos materiais e financeiros que condicionam a atuação do Estado.
E mais, em viés eminentemente pragmático, ainda, enfrentam as especificidades contidas no orçamento, que fixa as previsões de receita e define a despesas a serem efetuadas. Justamente por tais razões que se sustenta que a efetividade dos direitos sociais se encontra subordinada a chamada Teoria da “Reserva do Possível”, na medida em que o Poder Público somente poderá implementar as políticas públicas dentro de sua capacidade financeira.
Entretanto, e tal ponderação deverá ser apresentada em tom enfático, a “Reserva do Possível” jamais poderá se tornar um óbice à preservação de um mínimo necessário à garantia da dignidade humana; sob pena de se esvaziar a teleologia Estatal. Como já referido, sem o suprimento desse mínimo existencial, não há que se falar em liberdade ou igualdade, uma vez que a dignidade humana é o alicerce e o ponto de partida para a efetivação de qualquer direito fundamental. Nesse sentido, manifesta-se Daniel Machado da Rocha[42], nos seguinte teor:
“Os direitos sociais prestacionais, tais como a saúde, previdência, habitação, educação, na medida em que sua implementação reclama a mediação estatal, têm a sua realização umbilicalmente relacionada com a organização de políticas públicas. Fatores como o planejamento e a priorização de determinadas atividades, os condicionamentos institucionais – isto é, a existência de uma estrutura administrativa dotada de organização e capacidade técnica para a prestação de serviços – e um orçamento compatível, não podem ser ignorados. Na mesma linha, CID ressalta que o acolhimento nas Constituições e nas Declarações supraestatais configura apenas o ponto de partida, já que, inexistindo uma organização social e econômica capaz de possibilitar a efetividade dos direitos econômicos sociais e culturais, o reconhecimento estatal ou internacional atuaria no vazio, e as posições atribuídas aos sujeitos careceriam de conteúdo real. Por força de tais circunstâncias, os direitos a prestações (principalmente quando se cogita de direitos originários a prestações) tem sido objeto de uma acirrada polêmica que pode ser sintetizada em três linhas básicas: a) os que reconhecem essa condição, mas negam o seu caráter de direitos fundamentais; b) os que reconhecem essa condição, mas negam a mesma eficácia dos direitos de primeira dimensão; C) aqueles que defendem tanto a condição de direitos subjetivos quanto a eficácia dos direitos sociais fundamentais”.
Desse modo, impende fazer-se uma análise quanto ao direito subjetivo de se exigir do Estado a concretização do direito social. Inicialmente, há que se referir à concepção de José Afonso da Silva, o qual entende não haver direito subjetivo individual em relação a direitos fundamentais sociais, exceto na sua vertente negativa. Tal concepção retira a possibilidade de se pleitear juridicamente condições mais dignas de vida[43].
Ainda nessa vertente, uma segunda teoria, capitaneada por Ricardo Lobo Torres, partindo da concepção de cidadania de Marshall, restringe a efetivação dos direitos sociais, a partir de postulados jurídico-formalistas de inspiração liberal na interpretação e implementação desses direitos. Entretanto, não nega, de forma peremptória, a subjetividade aos direitos fundamentais sociais, dando-lhes maior amplitude. Assim, toma por base a doutrina do status de Jellinek, buscando, a partir daí, a delimitação da atividade do Estado frente ao indivíduo. Assim, explana Ricardo Lobo Torres[44]:
“Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as condições matérias da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados”.
Finalmente, uma terceira teoria, ligada à concepção de Estado Social ou Estado Democrático de Direito, defendida por Paulo Bonavides, Andreas Krell, Lenio Luiz Streck, postula pela aplicação e efetivação dos direitos fundamentais sociais[45].
Tal teoria preconiza que os limites para o exercício dos direitos fundamentais estão vinculados à preservação das condições sociais, pressupostos de uma ação estatal ativa e positiva na efetivação desses direitos. Nesse sentido, manifesta-se Dirley da Cunha Júnior[46]:
“Os obstáculos que usualmente se erguem contra essa imediata aplicabilidade é que, segundo pensamos, não podem prevalecer ante a inquestionável vontade do constituinte de ver os direitos fundamentais que consagra diretamente usufruídos por seus titulares, independente da vontade do legislador ordinário. Esclarecemos, porém, que o “mínimo existencial” ou “padrão mínimo social”, como objeto de imediata e irrecusável garantia dos direitos sociais, compreende um completo, eficiente e qualificado atendimento básico das necessidades vitais do indivíduo, como saúde, educação, alimentação, moradia, assistência, variando seu conteúdo, evidentemente, de país para país”.
Nessa ponderação de valores, é essencial a invocação do princípio da proporcionalidade para se resguardar o equilíbrio entre a reserva do possível e o mínimo existencial, impedindo, assim, o retrocesso nas conquistas sociais. Nesse passo, manifestou-se o STJ, conforme o REsp nº 811608/RS, onde figurou com relator o Ministro Luiz Fux[47], asseverando que:
“Consoante os novos rumos interpretativos, a par de dar-se eficácia imediata aos direitos fundamentais, atribuiu-se ao intérprete a missão de desvendar o grau dessa aplicabilidade, porquanto mesmo que não se pretenda dar máxima elasticidade à premissa, nem sempre se estará infenso à uma interpositio legislatoris, o que não ocorre, vale afirmar, na porção do direito que trata do mínimo existencial”.
Portanto, prudência é recomendável na aplicação, de forma irrestrita, da Teoria da “Reserva do Possível” à realidade brasileira, visto que a mesma fora concebida levando em consideração um parâmetro emanado da sociedade germânica. Ora, são situações diametralmente opostas, que não podem ser regidas por um mesmo paradigma. De uma parte, tem-se um país europeu, onde os mecanismos de proteção social já foram instalados e funcionam, possibilitando um patamar de igualdade sociológica aceitável, porém não ideal. Na outra parte, vislumbra-se um país localizado na periferia do capitalismo global, onde impera a desigualdade social e o quase abandono de grande parcela da população pelo Estado.
Dessa feita, tal teoria dever ser encarada com mesuras, ante a inexorável implementação do Estado Gerencial, sob os auspícios da Responsabilidade Fiscal, notadamente após a Lei Complementar nº 101/00, como vetor impositivo na propugnação, pelos gestores públicos, das políticas públicas estatais. Afinal, o imperativo constitucional determina a implementação do Estado Social em nosso país, como fundamento dessa República Federativa. Nesse pormenor, manifesta-se Marisa Ferreiras dos Santos[48], nos seguintes termos:
“A única forma de dar cumprimento ao preceito constitucional que elegeu a justiça social como objetivo da Ordem Social, é dar efetividade aos direitos sociais.
A efetivação dos direitos sociais. De seu turno, por expressa disposição constitucional, tem um modus operandi constitucionalmente estabelecido: é por meio do desenvolvimento, fundado na solidariedade social, que se poderá chegar à justiça social.
Não há como se dissociar o conceito de justiça social dos objetivos fundamentais da República. O art. 3º da Constituição, além de determinar que a República procure a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, promovendo, também, o bem de todos sem discriminações, determinou que se construa uma sociedade livre, justa e solidária, e se garanta o desenvolvimento nacional.
Todos os instrumentos contidos na Ordem Social são desdobramentos objetivos da República. Somente o desenvolvimento nacional, que se efetivará mediante a solidariedade social, é capaz de garantir que todos os direitos sociais sejam efetivados.”
Em outro ponto de vista, o imperativo constitucional da concretização dos direitos sociais tem grande apoio na chamada Teoria da “Proibição do Retrocesso”. Tal teoria preconiza que após a previsão legal de direitos fundamentais sociais, surge para o cidadão o direito subjetivo de exigir a concretização dessas prestações; bem como, o preceito de que tais direitos incorporam-se ao patrimônio jurídico, não mais podendo ser suprimidos ou terem a sua amplitude reduzida.
Trata-se da dimensão negativa dos direitos sociais, os quais sob esse viés, colocam-se como instrumentos de defesa em relação a atos de governo que importem em ofensa, pelo Estado, aos direitos de seus cidadãos.
8. DO DIREITO À SEGURIDADE SOCIAL
O artigo 194, da Constituição Federal de 1988, conceitua seguridade social do seguinte modo: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Ainda, a partir do enunciado no artigo 193 da Constituição Federal, tem como objetivos: “o bem-estar e a justiça social”.
Essa se constitui, portanto, em um instrumento de bem-estar, uma vez que garante os mínimos necessários à subsistência do indivíduo; e, desse modo, reduz as desigualdades advindas da ausência de ingressos financeiros, conduzindo, dessa forma, à justiça social. Nesse sentido, Jediael Galvão Miranda[49], explica que:
“Os objetivos, propósitos ou valores primários da seguridade social propriamente ditos são, isto sim, extraídos do comando do art. 193 da Constituição Federal, e em certa medida se confundem com os próprios fins de cada área de abrangência da seguridade social (previdência, assistência social e saúde). A seguridade social, como direito social que é, tem por objetivos promover e assegurar o bem-estar e justiças sociais, propiciando meios de subsistência ao desvalido e ao trabalhador atingido por determinadas contingências sociais, a todos garantido os meios disponíveis para promoção, proteção e recuperação da saúde”.
Assim, com base na solidariedade institucionalizada, a sociedade alia-se ao Estado, garantindo o mínimo necessário à sobrevivência àqueles que nada dispõem. Concebem, portanto, a Seguridade Social, construída a partir de um sistema que engloba três subsistemas: a saúde, a previdência e a assistência social.
A previdência social só beneficia aqueles que contribuem para o custeio e dá cobertura às necessidades decorrentes das contingências determinadas pela Constituição, conforme enumeração disposta no artigo 201 daquele diploma legal. Assim, só quem contribui tem cobertura, dando à previdência social um caráter de seguro social.
Por seu turno, a saúde e a assistência social independem de contribuição. São direitos fundamentais, como direitos sociais, oponíveis em relação ao Estado, na forma disciplinada pela lei. Desse modo, o artigo 196 da Constituição Federal prescreve que todos têm direito à saúde; tratando-se, ao revés, de um dever do Estado, que deve ser prestado, independentemente de contribuição ao custeio, ou da condição social ou econômica do postulante.
Quanto à assistência social, a mesma presta-se a auxiliar os desamparados, independentemente de contrapartida. A prestação da assistência social à pessoa que dela necessitar considera-se um direito inerente à sua condição humana; sendo exigível do Estado, dentro das condições legais. Em síntese, Jediael Galvão Miranda[50] pontua que:
“O art. 6º da Constituição Federal relaciona como direitos sociais, dentre outros, a saúde, a previdência social e a assistência, núcleos da seguridade social, que se constitui em direito fundamental do homem. Com especificidade, a seguridade social é tratada na Constituição Federal no Título “Da Ordem Social”, que tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.
Nesse contexto, as normas que regem a seguridade social são destinadas a regular interesses gerais da coletividade e não são submetidas a uma relação de voluntariedade entre o particular e o Estado, como se contrato privado fosse; estão jungidas ao poder de Império do Estado, na disciplina das relações de proteção social. Disso se conclui que a sua natureza jurídica é de direito social, inserido, no entanto, no ramo de direito público”.
Desse modo, a Seguridade Social constitui-se em um direito social, considerando o conjunto de ações coletivamente prestadas, em prol do bem-estar e da justiça social, resgatando a dignidade da pessoa humana.
9. CONCLUSÃO.
À guiza de conclusão, tem-se claro que a igualdade material é o objetivo derradeiro dos direitos sociais. Finalidade precípua da Seguridade Social. E, portanto; ao Estado não é facultado a omissão frente à concretização desse postulado. Assim, é imperativo que este preste aos seus cidadãos, benefícios e serviços que possibilite a implementação do bem-estar e justiça social.
No entanto, qualquer argumentação que se teça nesse sentido, deve ser filtrada por uma acepção crítica, que deve prescindir, portanto, de uma assepsia falseada da realidade social. Desse modo, há que evidenciar a profunda crise porque passa o Estado Social. E, portanto, em sendo o direito à seguridade social, um direito prestacional, a saúde financeira do Estado é elemento de importância fundamental, para a existência do mesmo.
Desse modo, parece necessário romper com o paradigma estrutural, responsável pelo ocaso do Estado Social, que a par das questões econômicas, é responsável por uma gestão pública que se funda no signo impeditivo de concreção de direitos capitulados em normas de cunho programático.
Tal conclusão é derivativa do fato da dignidade da pessoa humana avultar como garantia de sua liberdade individual. Ora, somente é possível exercer os chamados direitos fundamentais de primeira geração a partir da garantia de um mínimo existencial apto a garantir a sobrevivência com dignidade; o que deve ser garantido pelo Estado, sua razão de existência.
O princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, integra toda a lógica dos direitos fundamentais; sendo que cada direito fundamental, em maior ou menor grau, objetiva a proteção da dignidade humana.
Tal noção está ligada à concretização do bem-estar social; visto que a dignidade da pessoa humana constitui-se em núcleo principiológico da Constituição Federal, a subjugar toda a tessitura normativa da Carta Magna.
Dessa forma, a efetivação dos direitos sociais de prestação depende de um padrão uniformizado de atuação dos poderes estatais. A inércia do Poder Público ou a adoção de medidas parciais, não lograrão êxito em atingir o desiderato constitucional, quanto a fornecimento de prestações de caráter universal.
Torna-se, portanto, temerário, simplesmente aplicar a Teoria “da Reserva do Possível” em uma conformação pura, ante a realidade social diversa da experimentada nos Países Europeus. Assim, o “Mínimo Existencial” deve ser garantido a todo cidadão a partir de políticas públicas definidas e condizentes com a noção de Estado Democrático de Direito; que prescindam a condicionamentos financeiros. Ao revés, ter-se-á a ineficácia absoluta dos direitos fundamentais.
Permeia a Constituição, como norte para sua implementação, o objetivo maior do bem-estar e da justiça social. Portanto, a exigência de uma maior atuação do Estado mostra-se como um direito subjetivo que não pode ceder passo ao despropósito dos governos; sob pena de comprometer o fim essencial do Estado, qual seja, a concretização da dignidade da pessoa humana de seus cidadãos.
Referências
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Notas:
[1] DWORKIN, 2002, p. 349.
[2] ALEXY, 2008, p. 90.
[3] BONAVIDES, 2003, p. 21.
[4] BONAVIDES, 2003, p. 28.
[5] GONÇALVEZ e CORREIA, 2008, p. 21.
[6] BONAVIDES, 2004, p. 186.
[7] SANTOS, 2004, p. 99.
[8] MELLO, 2004, p.43.
[9] GAZIER, 2011, p. 48.
[10] TAVARES, 2003, pp. 64 e 65.
[11] SEN apud BITTAR; ALMEIDA, 2009, p. 522.
[12] AZAMBUJA, 2011, p.145.
[13] SARLET, 2007, pp. 117 e 118.
[14] TAVARES, 2009, p. 557.
[15] BARCELLOS, 2002, p. 304.
[16] BARCELLOS, 2002, p. 305.
[17] SARLET, 2007, pp. 388 e 389.
[18] SILVA, 2004, p. 39.
[19] SILVA, 1998, p. 47.
[20] TEMER, 1998, p. 23.
[21] SILVA, 1998, p. 75.
[22] SILVA apud LENZA, 2006, p. 82.
[23] LENZA, 2004, p. 82.
[24] MIRANDA apud MORAES, 2004, p. 35.
[25] ADPF 45 MC/DF, Relator. Min. Celso de Mello, julgamento em 29/04/2004, DJ 04/05/2004.
[26] MIRANDA, 2007, p. 24.
[27] BOBBIO, 1992, p. 44
[28] SILVA, 2006, p. 173.
[29] SILVA, 2006, p.178.
[30] STF- Pleno – MS nº 22.164/SP – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17 nov. 1995, p. 39.
[31] BONAVIDES, 2004, p. 563.
[32] MENDES, 2007, p. 06.
[33] SANTOS, 2004, p. 27.
[34] PAULA, 2006, p. 45.
[35] BONAVIDES, 2004, p. 571.
[36] MORAES, 2004, p. 203.
[37] SILVA, 2006, pp. 286 e 287.
[38] BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 6º.
[39] ZEN, 2010, p. 32
[40] LAFER, 2006, pp. 127-128.
[41] MEIRELES, 2008, p. 93.
[42] ROCHA, 2004, p. 96.
[43] ESTEVES, 2007, p.28.
[44] TORRES apud ESTEVES, 2007, p.267.
[45] ESTEVES, 2007, p. 29.
[46] JÚNIOR, 2006, p.273.
47] Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 811608/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJU de 04.06.2007.
[48] SANTOS, 2004, pp. 134 e 135.
[49] MIRANDA, 2007, p. 23
[50] MIRANDA, 2007, p. 09.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Gazetta Simões
Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília (UNIVEM). Pós-graduado, com Especialização em Gestão de Cidades (UNOPEC). Direito Constitucional (UNISUL). Direito Constitucional (FAESO). Direito Civil e Processo Civil (FACULDADE MARECHAL RONDON). Direito Tributário (UNAMA). graduado em Direito (ITE-BAURU. Analista Judiciário Federal – TRF3. Professor de graduação de Direito na Associação Educacional do Vale do Jurumirim (EDUVALE AVARÉ). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Instituto Palatino. Membro do Conselho Editorial da Revista Acadêmica de Ciências Jurídicas da Faculdade Eduvale Avaré. – Ethos Jus. Co-autor da obra “Ativismo Judicial – Paradigmas Atuais” (2011) Letras Jurídicas. Co-Organizador da obra “Ensaios Sobre a História e a Teoria do Direito Social” (2012) Letras Jurídicas