A constitucionalização do inquérito civil: noções para um processo administrativo investigatório constitucionalizado

Resumo: Em tempos que se discute a PEC37 (Projeto de Emenda Constitucional n. 37), onde se pretende conferir competência para investigação criminal somente as Polícias Federal e Civil, afastando a competência investigatória do Ministério Público em matéria criminal, passa-se desapercebido a competência que foi conferida ao Ministério Público pela Constituição Federal e pela lei 7.347/85 para presidir o Inquérito Civil, expediente destinado a formar um caderno probatório preliminar para fomentar a propositura da Ação Civil Pública. O presente artigo pretende revisitar o instituto do Inquérito Civil com a finalidade de se perquirir sua aderência a Constituição sob o paradigma do devido processo constitucional, eleito pela Constituição como instituto fundamental em qualquer procedimento perante o Estado.

Palavras-chave: Inquérito Civil – Devido Processo Constitucional – Constitucionalização.

Abstract: In times that discusses the PEC37 (Project Constitutional Amendment. 37), where it intends to confer jurisdiction for criminal investigations only the Federal Police and Civil excising the investigatory powers of the prosecution in criminal, goes unnoticed is the competence that was given to prosecutors by the Constitution and the law 7.347/85 to chair the Civil Inquiry, expedient intended to form a preliminary evidentiary framework to encourage the filing of the Civil Action. This article seeks to revisit the Civil Survey Institute with the purpose of question its adherence to the Constitution under the paradigm of constitutional due process, elected by the Constitution as fundamental to institute any proceeding against the State.

Keywords: Civil Inquiry – Constitutional Due Process – Constitutionalisation.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 representou um ganho teórico incomensurável para a comunidade política[1] brasileira. Dentre os seus muitos preceitos, instituiu a necessidade de observância do devido processo constitucional em todos os procedimentos realizados em quaisquer das funções estatais, segundo inteligência do art. 5º, LIV e LV da CF.

Contudo, em que pese as modernas concepções de Estado Democrático, há alguns institutos ainda não revisitados por esse novo sistema. É diante desse quadro que se torna necessária a constitucionalização de institutos jurídicos.

Nessa esteira exsurge grande preocupação com a constitucionalização do Inquérito Civil, pois embora seja um Instituto que está grande evidência atualmente (principalmente com as discussões do poder investigatório criminal do Ministério Público), ainda não teve suas bases constitucionais perquiridas.

Como será discutido, o Inquérito Civil, a iniciar pela expressão que o nomeia com a conotação tipicamente inquisitorial, se mostra inadequado ante o Estado Democrático de Direito, posto que em seu âmbito não há a observância dos direitos fundamentais do devido processo constitucional.

José Alfredo de Oliveira Baracho já advertia na introdução de sua obra, publicada há quase 30 anos, que “a defesa dos direitos individuais contra os excessos do poder público constitui tema fundamental para corrigir os diversos excessos de atuação da atividade estatal em nossos dias” (1984, p.1)

Destarte, o presente artigo perquire sobre a possível inconstitucionalidade do atual modelo de Inquérito Civil sob a ótica do Estado Democrático de Direito, bem como a impropriedade do termo “Inquérito”, que por certo, já deveria ter sido objeto de uma leitura constitucionalizada.

2 BREVÍSSIMA NOÇÃO SOBRE ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Em uma visão contemporânea[2], constitui-se em Estado Democrático de Direito aquele estado “legitimado pelo devido processo em suas extensividades procedimentais”, se submetendo ao princípio da reserva legal, como forma de concretizar um “sistema de direitos fundamentais líquidos e certos”, conforme preceitua Rosemiro Pereira Leal. (2002, p. 194)

Na visão de Kildare Gonçalves Carvalho “o Estado Democrático de Direito compreende a limitação jurídica do arbítrio do poder político e a estabilidade jurídica das garantias individuais”. O mesmo autor continua esclarecendo que este modelo de estado tem a “Constituição como norma suprema, o que reclama uma adequação de todo o ordenamento infraconstitucional com as normas constitucionais” (CARVALHO, 2006, p. 955).

Não basta, destarte, vislumbrar-se um Estado Democrático de Direito em formação, onde se permita, por tal motivo, a mitigação de qualquer direito fundamental que seja, mormente, aqueles que formam o sustentáculo democrático. Como adverte Rosemiro Pereira Leal:

“A Constituição democrática é um conjunto jurídico institucional que, quanto a direitos fundamentais que a caracterizam e definem, não é, como adverte Popper, um referente de espera infinita de uma implementação pela história ou pelo metabolismo do despertar gregário da consciência do ser social[…]”(LEAL, 2002, p. 194)

Ressalta Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias que “a democracia, atualmente, mais do que forma de governo, é um principio consagrado nos modernos ordenamentos constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder”. (DIAS, 2010, p. 58).

Desta forma, deve-se exigir em todos os procedimentos e diretrizes do Estado e de seus legitimados a submissão aos princípios fundadores do Estado. Tais diretrizes devem ser observados como base da hermenêutica e interpretação constitucional, “como marca do caráter inclusivo da cidadania no postulado do Estado Democrático de Direito”, conforme ressalta Rodolfo Viana Pereira. (PEREIRA, 2007, p. 173)

Portanto, qualquer que seja o Instituto jurídico presente no ordenamento deverá adequar-se ao Estado Democrático de Direitos, sob pena de sua inconstitucionalidade.

3 ATRIBUIÇÃO CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O Ministério Público é definido pelo texto constitucional, em seu art. 127, como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Como tal, o Ministério Público “não promove a defesa dos interesses dos governantes, de quem se acha desvinculado, mas busca a realização dos interesses da sociedade”. (CARVALHO, 2006, p. 941)

Portanto, competem ao Ministério Público as funções institucionais previstas na Constituição Federal, Estadual e na Lei Orgânica do Ministério Público, devendo exercer tais misteres à luz do Estado Democrático de Direito, mormente por ser um de seus guardiões, conforme art. 127 da CF.

A Constituição Federal em seu art. 129 elencou as atribuições do Ministério Público, as quais se prestam a garantir a efetivação dos três preceitos básicos previstos no art. 127 da própria Constituição. Na mesma esteira, a Constituição do Estado de Minas Gerais, em seu art. 120, prevê as atribuições do Ministério Público Estadual, seguindo as mesmas diretrizes da Constituição Federal.

Por sua vez, a Lei n. 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público) traz em seu artigo 25 as atribuições do Ministério Público, que apenas amplia, nos limites constitucionais, a gama de atribuições ministeriais.

Deve-se ressaltar de forma o caráter essencial da função do Ministério Público à Justiça, bem como os avanços representados pela atuação de tal, mormente após a promulgação da Constituição Federal.

4 INQUÉRITO CIVIL

O Inquérito Civil é tido como um procedimento inicial de caráter preparatório que foi atribuído como função institucional ao Ministério Público. Consubstancia-se como meio usado para preparação do conjunto probatório, o qual permite a análise da pertinência ou não da propositura de ação com fins de proteção e efetivação de funções constitucionais atribuídas.

Perceba-se que Mazzilli, que dedicou um livro ao tema, reconhece uma função subsidiária ao Inquérito Civil, qual seja, “também se presta para colher elementos que permitam a tomada de compromissos de ajustamento ou a realização de audiências públicas e emissão de recomendações pelo Ministério Público” (MAZZILI, 1999, p.46)

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho esclarece que o sistema inquisitório tem raízes no Direito Canônico, na velha Roma, principalmente em seu momento de decadência. Ele surgiu no seio da Igreja Católica como resposta defensiva aos hereges. Ele admitia a denúncia secreta e a possibilidade de instalação de ofício de uma investigação pelo próprio julgador. (2009, p.225)

No Brasil, o instituto surgiu através da Lei 7.347/1985. Segundo Hugo Nigro Mazzilli, foi inspirado no inquérito policial como um mecanismo investigatório para colheita de informação preparatória antes de exercer-se acusação penal. (MAZZILLI, 1999, p. 40). O mesmo autor afirmou que “Ministério Publico precisava de mecanismos próprios e diretos de investigação na área civil, que pudessem fornecer-lhe base para as ações a seu cargo” (MAZZILI, 1999, p. 43)

Como bem lembra Mazzilli, embora tenha surgido o Inquérito Civil na Lei de Ação Civil Pública, na qual existem outros legitimados para a propositura, o Inquérito Civil é exclusivamente de competência do Ministério Público.

A Constituição Federal em seu art. 129, inciso III e a Constituição do Estado de Minas Gerais, no art. 120, inciso III, com a mesma redação, assim como a  Lei n. 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público) em seu artigo 25 inciso II, atribuem ao Ministério Público entre outras funções, a promoção do Inquérito Civil.

Por sua vez, o art. 8º da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Publica) atribui tal função e traz um delineamento básico do procedimento do Inquérito Civil, estabelecendo que o Ministério Público poderá instaurar sob sua presidência o Inquérito Civil, podendo requisitar de qualquer órgão público ou particular, certidões, informações, exames e perícias. Tais apontamentos também estão presente no art. 25 da Lei Orgânica do Ministério Público.

Vale ressaltar que a Constituição Federal garantiu ao Ministério Público uma serie de garantias que lhe permitem o exercício de seu mister de forma isenta e sem ingerências ou pressões de outras esferas.

No Inquérito Civil é permitido ao Ministério Público requerer documentos, ouvir pessoas, ouvir o Acusado, realizar a produção de prova pericial, propor o termo de ajustamento de conduta.

Perceba-se que a Constituição assegura ao Ministério Público um procedimento no qual ele dispõe de autoridade para realizar verdadeira produção antecipada de provas, inclusive de caráter pericial-técnico. A formação do Inquérito Civil confere-lhe o caráter de um procedimento preparatório o qual se reveste de uma oficialidade própria.

Embora possa se dizer que o que se produz no Inquérito Civil são elementos exclusivamente para convicção do Ministério Público (MAZZZILI, 2009, p. 48), ou seja, não é prova, o próprio autor esclarece que o inquérito civil possui valor como prova em juízo, já que decorre uma investigação pública e de caráter oficial. (MAZZILI, 2009, p. 53)

Na mesma esteira, a Lei 7.347/85 permite ainda ao Ministério Público a propositura de um Termo de Ajustamento de Conduta, o que invariavelmente poderá acarretar ao indiciado a perda de bens ou restrição de direitos, e ademais, tem sua homologação pelo Poder Judiciário dispensada.

Dessas ponderações, não se pode olvidar que o Inquérito Civil reveste-se um procedimento que deveria se qualificar como processo, afastando seu caráter inquisitorial, onde o Acusado/Investigado não pode participar da formação de tal e demonstrar a insubsistência do que lhe atribuído. Por ser enxergado como um iter preparativo dá-lhe a interpretação de ser desnecessário  o contraditório e a ampla defesa, o que não se pode admitir.

5 PROCESSO E PROCEDIMENTO.

A teoria do processo teve grande ganho teórico a partir dos ensinamentos de Fazzalari, quando este elaborou sua teoria estruturalista, realizando uma útil diferenciação do procedimento e do processo. Ainda mais, como adverte André Cordeiro Leal, a partir do entrelaçamento do processo com todas as atividades estatais implica na penetração do processo em todas as funções estatais. (2008, p. 112)

A partir da teoria de Fazzalari, estabelece-se pelo processo, uma estrutura onde se permite às partes a participação da produção do provimento. Esse provimento, que ganha caracteres de decisão, pode ocorrer em qualquer âmbito procedimental, inclusive, como é o caso do estudo, no momento de um procedimento investigatório.

Para Fazzalari, o que difere o procedimento do processo é a estrutura dialética do procedimento, ou seja, o contraditório. Essa estrutura, na visão Fazzalariana, permite a participação dos destinatários na fase preparatória, de forma que cada um dos contraditores possa exercitar escolhas, reações, controles e também sofra os controles e reações dos outros, de forma que o autor do ato (provimento) deva prestar contas.(2006, p. 119 e 120)

Portanto, o procedimento, como sequência de normas, de atos e de posições subjetivas na formação da estrutura do procedimento (FAZZALARI, 2006, p. 113) se difere de processo pelo caráter dialético do último.

Com essas informações iniciais, não se pode olvidar que no inquérito civil há uma estrutura previamente designada em lei (ainda que precariamente), onde se tem uma sequencia de atos, onde se forma a estrutura de um procedimento, onde se pode observar partes com posições subjetivas diferenciadas, com a finalidade de um ato decisional (a propositura da ação pelo Ministério Público, estabelecer um Termo de Ajuste de Condutas), de onde ressai que a expressão “inquérito” poderia ser substituída pela expressão “procedimento”.

Resta saber, contudo, se é necessário a participação das partes em contraditório bem como a observância do devido processo constitucional, como forma de renomear este instituto como processo.

6 necessária observância do contraditório e da ampla defesa. Cogitações de um processo administrativo de apuração de lesão civil

Embora tenham traçado, em linhas gerais, as regras que norteiam o Inquérito Civil, a Constituição e demais leis ficaram silentes quanto à necessidade de oportunizar o direito ao Investigado ao Contraditório e a Ampla Defesa. Em regra, os autores afirmam pela desnecessidade da observação do contraditório e da ampla defesa. Isso porque mencionam que o que se produz no Inquérito Civil não é prova e sim elementos para a propositura da ação.

Ademais, há a cogitação de que em sede de Inquérito Civil não há a figura do acusado, o que aliada a forma inquisitorial do Inquérito Civil, dispensaria a necessidade de se garantir as prerrogativas do contraditório e da ampla defesa.

No entanto, há algumas considerações a serem observadas antes de se estabelecer esse juízo de valor.

A primeira delas é a questão da produção de provas no Inquérito Civil. Hugo Nigro Mazzili informa que quando o Ministério Público tem a notícia de uma lesão ou risco de lesão a um interesse que justifique sua atuação, ele poderá fazer inspeções pessoais, requisitar a realização de perícias, ouvir interessados e testemunhas, ouvir o causador do dano e requisitar documentos. (2009, p. 153) Vale dizer que como lembra o próprio autor, no Inquérito Civil o Ministério Publico se reveste de poderes instrutórios, presidindo o procedimento. (2009, p. 153)

Em um segundo momento, cabe observar a valorização do elemento de prova que é produzido no âmbito do Inquérito Civil. De certo, que em tese, como a prova não foi produzida sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, não deveria ser esta valorizada no âmbito do processo. Contudo, Hugo Nigro Mazzilli diz que “quando regularmente realizado, o que nele se apurar tem validade e eficácia em juízo, como as perícias e inquirições” (MAZZILI, 2009, p. 53)

Por outro lado, ainda deve se considerar a celebração do Termo de Ajustamento de Conduta. É que o Ministério Público, ao final do Inquérito Civil, poderá propor ao suposto causador do dano o ajustamento de sua conduta. Neste termo o Ministério Público pode estabelecer obrigações e propor a execução forçada pelo descumprimento. Vale dizer que o termo de ajustamento de conduta tem caráter de titulo executivo extrajudicial, ou seja, não permitirá ao Acusado a discussão por meio de provas, isto com fulcro no art. 5º, parágrafo sexto da Lei 7.347/85.

Noutra esteira, cabe destaque que o Ministério Público tem a faculdade de dar publicidade ao Inquérito Civil, conforme redação do inciso VI da Lei 8.625/93. Veja que o Ministério Público teria a prerrogativa de dar publicidade dos procedimentos mesmo que deles não participem aqueles cujos destinos estão sendo ali discutidos.

Dessas colocações, que poderiam se colocar ao lado de outras questões práticas, é que se tem a conclusão de que a matéria discutida no âmbito do Inquérito Civil poderia de certa forma causar alguma restrição de direito ao suposto causador do dano, sem que ele disponha de um meio para implementar fiscalidade e de demonstrar sua versão em face do que fora produzido.

Por outro lado, tem-se que a conclusão do Inquérito não deixa de ser um provimento (ou acertamento) das matérias discutidas em seu bojo, o que faz crer ser necessário a participação do suposto causador da lesão e até mesmo do interessado.

A Constituição Federal garante no artigo 5°, inciso LV que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Tal dispositivo materializa expressamente os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Os princípios do contraditório e da ampla defesa se inscrevem como direitos fundamentais, o que os torna eficazes e imediatamente aplicáveis, de forma que sua eficácia não depende de norma específica. Como tais “o reconhecimento dos direitos fundamentais não é suficiente, desde que não vem acompanhado de garantias que assegurem a efetividade do livre exercício de tais direitos.” (BARACHO, 2008, p. 53)

Conforme adverte José Alfredo de Oliveira Baracho “as interpretações de uma norma ordinária não podem desconhecer o conteúdo normativo do direito fundamental.” (2008, p. 54)

O princípio do contraditório garante ao destinatário de futura decisão o direito de se opor aos atos produzidos em seu desfavor ou de fornecer uma interpretação jurídica diferente daquela feita, valendo-se de todos os meio inerentes.

Na visão de Aroldo Plínio Gonçalves o contraditório seria:

“a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os ´interessados´, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor” (Gonçalves, 1992, p. 120).

Já a ampla defesa seria a garantia constitucional do destinatário da decisão de valer-se de todos os elementos de formação de convicção, de forma processualizada, com a finalidade de demonstrar de por a salvo sua liberdade. Para Rosemiro Pereira Leal ampla defesa é:

“o direito processualmente garantido a um espaço procedimetnal cognitivo à construção de fundamentos obtidos dos argumentos jurídicos advindos de liberdades isonômicas exercidas em contraditório na preparação das decisões”. (LEAL, 2002, p. 171)

Conforme pontuado acima, a observação de tais princípios quando se discute direitos pessoais e a liberdade do individuo não é mera faculdade, e sim uma exigência constitucional auto executável.

Segundo essas cogitações, a supressão de tais prerrogativas se mostra inconstitucional e faz com que um órgão que recebe a missão de zelar pelo Estado Democrático de Direito, mitigue dois de seus principais princípios.

Em um Estado Democrático de Direitos, quando um órgão responsável pela guarda da Democracia mitiga um princípio como o do Contraditório e o da Ampla Defesa em um procedimento sob sua presidência há verdadeiro retrocesso constitucional.

Vale destacar a advertência de Rosemiro Pereira Leal “a “valoração” no direito democrático ocorre pelo juízo discursivo processualizado ao atendimento dos direitos fundamentais e não pelas estratificações ideologizadas das bases sociais pressupostas de uma racionalidade exorcizável.” (LEAL, 2002, p. 189)

É por esta razão, que de mais a mais, a expressão Inquérito, que tem suas raízes ligadas nos Tribunais de Inquisição, não pode ser usada em um texto constitucional, eis que completamente divorciada do sentido de Estado Democrático de Direito.

A revisão do posicionamento adotado na interpretação do Inquérito Civil dada pelo Ministério Público e chancelada pelos Tribunais tem caráter emergencial. Diferente caráter não tem a premente necessidade de adequação do termo Inquérito, o que não pode ser admitido na era da efetivação dos Direitos Fundamentais.

É por estas razões é que em uma leitura constitucionalizada do instituto jurídico estudado, seria correto em falar em processo administrativo de apuração de lesão civil, onde cada uma das expressões estaria em consonância com a Constituição Federal.

Nesta expressão, se teria processo, uma vez que se observaria o devido processo constitucional, incluindo aí a ampla defesa e o contraditório; administrativo, posto não ser judicial; apuração, posto ter caráter preliminar e preparatório; lesão civil, englobando aí todos os danos causados a direitos difusos, coletivos, ordem econômica, moralidade administrativa, patrimônio histórico, ambientais e demais outros para os quais o Ministério Público encontra-se legitimado.

7 POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL

Em que pese às conclusões do breve estudo feito no sentido de se enxergar o Inquérito Civil como um processo, com a observância do contraditório e da ampla defesa, o posicionamento jurisprudencial é no sentido de não estender o contraditório ao Inquérito Civil.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região pontuou no Agravo Interno n. 0018563-42.2008.4.03.0000, que a “jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal consolidou-se no sentido de que os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório não se aplicam à fase do inquérito civil, haja vista a sua natureza administrativa, procedimento de caráter pré-processual, que se destina à colheita de informações para propositura da ação civil pública”.

Observa-se que a justificativa de ser um procedimento administrativo, após a Constituição Federal, não pode mais dar guarida ao afastamento do devido processo constitucional, já que está previsto na Constituição Federal que o devido processo será observado em qualquer processo, seja de que ordem for.

Por outro lado, a conclusão do Tribunal Regional do Rio Grande do Sul, nos Embargos de Declaração n. 1476-59.2006.8.21.700, de sua Segunda Câmara Cível, de que não há “violação dos princípios do contraditório e ampla defesa no inquérito civil dada sua natureza inquisitorial”, também é incompatível com a Constituição Federal, já que essa afasta-se de sistemas inquisitoriais e garantiu a todos em quaisquer processos o contraditório e a ampla defesa, como forma de participar dialeticamente da decisão que poderá influir em direitos.

As conclusões dos Tribunais após as cogitações acima, não afastam a necessária revisitação do instituto do Inquérito Civil para considerá-lo um processo administrativo.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme asseverado a Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público, entre as outras funções, a função de promover o Inquérito Civil como forma de garantia da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

No entanto, pode se ver que o referido caráter atribuído ao Inquérito Civil faz com que o mesmo padeça de uma clara incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito, tornando-se um instrumento ilegítimo, capaz de implicar sérios prejuízos aos Investigados.

Destarte, conclui-se pela necessidade urgente de uma nova releitura do Instituto do Inquérito, emprestando-lhe uma interpretação conforme a Constituição, suprimindo-lhe o termo Inquérito, como forma de efetivação do Estado Democrático de Direitos, e considerando o tratamento de processo administrativo.

 

Referências
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BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo Constitucional. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito Processual Constitucional. 1. reimpr.. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
BRÊTAS DE CARVALHO DIAS, Ronaldo. Processo Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 12. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. In Constituição e Processo. Coordenação MACHADO, Felipe Daniel Amorim Machado. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Tradução de Eliane Nassif. 8. ed. Campinas: Book Seller, 2008.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 1. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. 1. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
MAZZILLI, Hugo Nigro. O Inquérito Civil. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica Filosófica e Constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
 
Notas:
 
[1] Definição de comunidade política

[2] Giorgio Agamben diz sobre o contemporâneo como sendo aquele que "pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse, inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.” (2009, p. 58/59)


Informações Sobre o Autor

Clenderson Rodrigues da Cruz

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade de Itaúna. Pós-Graduado lato sensu em Direito Processual pelo IEC da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (IEC PUC Minas). Mestre em Direito Processual no Programa de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutorando em Direito Processual PUC Minas. Professor.


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