Resumo: Observa-se que, na sociedade contemporânea, o Sistema Penal tem atuado de maneira seletiva sobre as camadas mais pobres, de forma a não reconhecê-las a partir de sua condição de cidadão. Diante disso, estrutura-se um poder paralelo que busca adaptar-se à realidade social, encontrando na criminalidade sua identidade.
Palavras-chave: Sociedade de consumo. Criminalização. Exclusão social. Dignidade da pessoa humana.
A partir da Revolução Industrial, entramos na sociedade de consumo. O homem passou a estruturar sua forma de sobrevivência e dignidade em razão da capacidade/necessidade de consumir bens e acumular patrimônio, estabelecendo-se uma íntima relação entre cidadão e consumidor. Parece inevitável neste contexto a sobreposição valorativa do ter em relação ao ser, relegando à condição humana uma posição secundária e descartável.
Transportando esse contexto para a realidade periférica da América Latina, em especial o Brasil, percebe-se que tais problemas tendem a agravar-se ainda mais. Pode-se dizer que aqueles indivíduos que não detêm recursos econômicos estão não apenas excluídos das relações de consumo, como também de todo contexto social, de forma a lhes serem privados valores mínimos de dignidade. Basta uma pessoa perder o emprego para desencadear toda uma série de problemas, tais como: assistência médico-sanitária (saúde), pagamento de escola e cursos profissionalizantes (educação), pagamento do aluguel (moradia), alimentação, acesso à justiça (precariedade da Defensoria Pública), dentre inúmeros outros.
Segundo Fábio Roberto D’Avila[1], é neste contexto que se abrem oportunidades para a exclusão do homem de sua condição de pessoa. Face à contínua incapacidade de adaptação às regras impostas pelo poder público, bem como sua total inutilidade, improdutividade e miserabilidade, observa-se a segregação absoluta de determinados indivíduos, que acabam, inevitavelmente, sendo destituídos da condição de cidadãos.
Para Alexandre Wunderlich[2], “o homem é treinado para viver num mundo em que a qualidade de vida significa quantidade de coisas. Hoje, não se é reconhecido pelo que se é, mas pelo que se tem”.
Em uma sociedade dita de consumo, é possível afirmar que o status de cidadão está condicionado à capacidade de consumir. A perda dessa condição se dá justamente em decorrência da ausência da “mão” do Estado na esfera social. Humberto Mariotti[3] também explora o assunto, apontando que: “Muitas vezes, criamos (ou outros criam para nós) necessidades artificiais. Na prática, esse fenômeno se manifesta de várias maneiras. Uma das principais é o mecanismo de muitas das atuais estratégias de marketing: a) primeiro, levar as pessoas a acreditar que necessidade é a mesma coisa que desejo (o que a torna insaciável); b) em seguida, criar necessidades artificiais; c) o resultado é que essas – sejam quais forem – jamais serão satisfeitas, o que equivale a transformar o viver num projeto maníaco de aquisição, acumulação e consumo”.
Integrando esse tema às Ciências Criminais, Salo de Carvalho[4] argumenta que: “Ao descartar a pessoa como valor, visto supérflua nesta nova ordem, projeta-se a necessidade de maximização dos aparatos de controle penal/carcerário. A alternativa ao Estado providência, portanto, passa a ser o ‘Estado penitência’, configurando uma máxima que parece ser a palavra de ordem na atualidade: Estado social mínimo, Estado penal máximo.” […] “Gesta-se, no interior dessa ideologia, uma saída plausível para aqueles que foram destituídos da cidadania: a marginalização social potencializada pelo incremento da máquina de controle penal, sobretudo carcerária.”
Frente a essa realidade, as conseqüências do processo de criminalização refletem-se em um sofrimento ainda maior dessa massa populacional vulnerável e excluída, que se torna permanentemente violentada em sua dignidade e integridade. Desenvolve-se nos dias atuais um Estado policial compelido a responder às desordens causadas pela miséria, configurando-se naquilo que Loïc Wacquant[5] chama de “ditadura sobre os pobres”.
Observa-se claramente uma opção pelo discurso jurídico-penal policialesco e militarizado de combate ao inimigo, em detrimento de políticas sociais integradoras. Ou seja, todo o problema social torna-se penal. Vera Malaguti Batista[6], ao abordar essa problemática, afirma que a guerra contra a pobreza tem sido substituída por uma guerra contra os pobres, inclusive com participação do exército, aparelhado com armas de grosso calibre.
A violência urbana, a “criminalidade clássica”, o “criminoso de rua” e o crescimento de vilas e favelas confirmam, pelo menos em parte, a insuficiência de um poder público comprometido com questões sociais. Como conseqüência, têm-se favorecido o fortalecimento de discursos não-oficiais de grande expressão, paralelamente ao poder estatal, como forma de inclusão social.
Entende-se, portanto, que não é por acaso que obras como O Abusado, de Caco Barcelos, Cabeça de Porco, de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athaíde e Estação Carandiru, de Dráuzio Varela; filmes como Cidade de Deus; e o rap dos Racionais MC’s representam a “voz” e os valores culturais de grande parcela da população brasileira.
De fato, essa população procura inserir-se de alguma forma em uma sociedade que tem em sua gênese a necessidade de consumo. Todavia, essa inserção é encontrada a partir de uma identidade com a vida criminal, onde a arma de fogo, o tráfico de drogas, o roubo, o jogo, a prostituição e a pichação constituem-se nos valores de uma sociedade abandonada pelo poder público.
Em 2007, os dados estatísticos apresentados pelo Departamento Penitenciário Nacional, no Estado do Rio Grande do Sul apontam que os crimes que abrangem o maior número de detentos são os de roubo qualificado (4.724) e o tráfico de drogas (1.781)[7]. Um voltado contra o patrimônio e outro decorrente justamente de uma prática comercial ilegal, que movimenta um lucrativo mercado.
Já na década de 1970, Boaventura de Sousa Santos[8] denunciou um poder paralelo não-oficial, que chamou de Pasárgada, em alusão a uma das maiores e mais antigas favelas do Rio de Janeiro, relatando a sua dura construção e ocupação, considerada pelo Poder Público como juridicamente ilegal. Afirma Boaventura[9] que os moradores locais reuniram-se com o fim de defender seus interesses contra as pressões da burguesia urbana sobre o aparelho do Estado, pois pretendiam remover Pasárgada em bloco para os arredores os bairros marginais da cidade, libertando os terrenos para empreendimentos urbanísticos.
Nesse contexto, é importante referir que os moradores locais apresentavam um discurso jurídico dominado pelo uso do topoi[10], aberto e permeável às influências de discursos afins, “eficaz antídoto ao legalismo”[11], que se adéqua de acordo com o auditório, pois quem soluciona os problemas locais vive no mesmo ambiente e conhece o quadro cotidiano.
Os moradores criaram associações, que incorporaram um sistema jurídico próprio, sujeito aos influxos da realidade social. Em que pese a não profissionalização daquele que exerce as funções jurídicas em Pasárgada, pode-se afirmar, a partir de Boaventura, que esse discurso tende a apresentar um espaço argumentativo mais amplo e adequado.
Os anos se passaram, e hoje se observa que as associações de moradores já não produzem um discurso tão pluralista. Pelo contrário, são controladas por facções organizadas ligadas ao tráfico de drogas, que ditam suas regras através do medo. Em contrapartida, ergue-se uma política criminal punitiva que criminaliza, etiqueta e elimina seletivamente do convívio social aqueles que vivem em “Pasárgada”, excluídos das relações de consumo, portanto, não-consumidores. Segundo Aury Lopes Jr.[12], “a sociedade coloca o indivíduo não-consumidor à margem (literalmente marginal), introduzindo-o no sistema penal, que na sua atividade de seleção atuará com toda dureza sobre o rotulado, o etiquetado, o não-consumidor. Até porque quem não é consumidor não é visto como cidadão.
A idéia de que algo precisa ser feito para garantir o funcionamento do organismo social acaba legitimando a utilização do direito penal para eliminar o elemento disfuncional, garantindo, assim, a ordem pública e a estabilidade social.
De fato, trata-se de um modelo que se aproxima das políticas internacionais de combate ao terrorismo, enxergando no “outro” a figura do inimigo, permitindo uma reação punitiva mais incisiva, com mais rigor e maior exemplaridade, mesmo que com isso se estabeleçam as maiores injustiças e atrocidades contra o ser humano, destituído de sua irrevogável condição de cidadão.
Informações Sobre o Autor
Marco Russowsky Raad
Advogado em POA/RS. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS