A Culpabilidade por Vulnerabilidade na prática penal brasileira

Resumo: Diante da existência de diversas teorias acerca da Culpabilidade em Direito Penal, muitas delas alheias à realidade sociocultural da América Latina, região de intensa desigualdade social e econômica, o presente trabalho vem analisar inicialmente as teorias existentes e amplamente difundidas nas obras doutrinárias que circulam no País. Em seguida, faz um estudo um pouco mais detalhado, mas não exaustivo, sobre a Teoria da Culpabilidade por Vulnerabilidade, idealizada pelo professor, ex-membro da Suprema Corte da Argentina e atual juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Eugênio Raúl Zaffaroni, teoria essa pouco conhecida e até confundida com a superada Teoria da Coculpabilidade do mesmo autor. O artigo em tela constatada a excelente adequação e cabimento da Teoria da Culpabilidade por Vulnerabilidade à realidade brasileira em razão da alta seletividade do sistema penal pátrio, bem como verifica uma quase inexistente repercussão da teoria no ambiente acadêmico e na prática forense brasileira.

Palavras-chave: Direito Penal. Desigualdade. Culpabilidade. Vulnerabilidade. Seletividade.

Abstract: Given the existence of several theories of Culpability Criminal Law, many of them unrelated to the socio-cultural reality of Latin America, a region of intense social and economic inequality, this work comes first analyze existing and widely held theories in doctrinal works circulating in the country. Then do a study a little more detailed, but not exhaustive, on the theory of culpability for Vulnerability, created by professor and Member of the Supreme Court of Argentina, Eugenio Raúl Zaffaroni, this little-known theory and even confused with overcome theory of the same author Coculpabilidade. Article screen found the excellent suitability and appropriateness of the Theory of Culpability for Vulnerability Brazilian reality due to the high selectivity of internal penal system, and checks an almost non-existent impact of theory in academia and in Brazilian forensic practice.

Keywords: Criminal Law. Inequality. Guilt. Vulnerability. Selectivity.

Sumário: Introdução. 1. Evolução histórica da Culpabilidade e as diversas teorias existentes. 2. A Teoria da Coculpabilidade e sua derrocada. 3. A Teoria da Culpabilidade por Vulnerabilidade. 4. A aplicação da Teoria à realidade brasileira. Conclusão.

Introdução

O Direito Penal, dogmaticamente fundado na ideia de última ratio e nos princípios da subsidiariedade, fragmentariedade, intervenção mínima e individualização da pena, sempre foi na prática meio de seleção e criminalização do mais fraco, retribuindo dor e sofrimento (pena) ao mal causado (crime). Gerador de violência, nos primórdios privada e posteriormente praticada pelo Estado, o sistema penal e penitenciário vive um caos e só pode ser visto hodiernamente numa perspectiva garantista, sob pena de piorar a situação de criminalização dos marginalizados pela sociedade.

Nesse sentido, considerando a desigualdade social e a seletividade intrínseca ao sistema penal, mister encontrarmos uma saída para esse desequilíbrio seletivo, com vistas a filtrar o poder criminalizante das agências estatais e da grande mídia que manipula a opinião pública. A irracionalidade de parte da população que clama pelo punitivismo e o distanciamento das instâncias judiciais do modelo garantista e funcional redutor põe em risco a vida, a liberdade e o futuro de uma nação estigmatizada e dividida pela violência (inclusive a estatal).

Nesse passo, cumpre lembrar que atualmente a culpabilidade pode ser concebida sob três aspectos: elemento integrante do conceito analítico de crime, fundamento da pena e limite da pena. Esse último deve ser entendido como o mais importante, haja vista que não pode haver punição em medida superior à culpabilidade do fato praticado pelo autor.

1. Evolução histórica da Culpabilidade e as diversas teorias existentes

A definição de culpabilidade não foi algo perene e inequívoco ao longo da história da Teoria do Delito. Inicialmente, no sistema causalista de Von Liszt e Beling, influenciado pelo positivismo científico do séc. XIX, a culpabilidade era entendida como a face subjetiva do crime, sendo formada unicamente por elementos psicológicos, ao passo que a imputabilidade era apenas um pressuposto da culpabilidade. Nessa senda, dolo e culpa eram espécies da culpabilidade e entendidas como o vínculo psicológico que ligava o fato típico e antijurídico ao autor da conduta. A teoria então desenvolvida ficou conhecida como Teoria Psicológica da Culpabilidade, haja vista ser despida de elementos normativos.

Ocorre que a Teoria Psicológica, com o passar do tempo, sofreu severas críticas, especialmente diante da dificuldade de explicar a culpa inconsciente e os crimes dolosos cometidos mediante coação moral irresistível.

Com o fito de superar as contradições e problemas apresentados pela Teoria Psicológica, surgiu a Teoria Psicológico-Normativa de Frank, influenciada diretamente pelo movimento neokantista. Essa teoria buscou introduzir elementos normativos na culpabilidade, como a exigibilidade de conduta conforme o Direito. Nela o dolo, mantido na culpabilidade, tinha caráter híbrido (psicológico e normativo), visto que dentro dele havia agora a exigência da consciência atual da ilicitude. Ademais, na teoria de Frank, a imputabilidade não era vista apenas como pressuposto da culpabilidade, mas sim como um elemento dessa.

Muito embora o conceito de culpabilidade tivesse sido significativamente aperfeiçoado na Teoria Psicológico-Normativa (sistema neoclássico), esse conceito ainda apresentava falhas, como no caso da culpa inconsciente que persistia sem explicação satisfatória.

A partir das críticas ao sistema neoclássico e com a emersão do sistema finalista de Hans Welzel, a culpabilidade foi redimensionada e dela foi retirado o aspecto psicológico, passando dolo e culpa a integrarem o tipo penal, bem como o requisito da consciência atual da ilicitude passou a ser exigido apenas como potencial consciência. Com isso, a culpabilidade ficou composta apenas por elementos normativos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa, recebendo, portanto, a denominação de Teoria Normativa Pura da Culpabilidade.

Mais recentemente, Roxin, inaugurando o sistema funcionalista moderado, prega que à noção de culpabilidade da Teoria Normativa Pura deve ser acrescido o elemento “necessidade da pena”, resultando no conceito de responsabilidade penal (culpabilidade normativa + necessidade da pena). Segundo a teoria, não havendo a necessidade da pena no caso concreto, esta não deve ser aplicada. Roxin traz como exemplo um caso de excesso na legítima defesa por reações astênicas (medo, susto, etc), em que o excesso, mesmo sendo punível (ou seja, fato típico, antijurídico e culpável), não necessita de repressão penal, pois se deu em razão de uma conduta excepcional de um agente inofensivo ao bem jurídico tutelado.

Por fim, atualmente, pode-se trazer, com certa segurança e com base na doutrina majoritária, um conceito de culpabilidade como sendo o juízo de reprovação do agente por ter praticado um fato típico e antijurídico, quando podia entender o caráter ilícito desse fato e, assim, motivar-se para agir conforme o direito. Na definição de Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 282):

“O conceito de culpabilidade como juízo de valor negativo ou reprovação do autor pela realização não-justificada de um crime, fundado na imputabilidade como capacidade penal geral do autor, na consciência da antijuridicidade como conhecimento real ou possível do injusto concreto do fato e na exigibilidade de conduta diversa determinada pela normalidade das circunstâncias do fato, parece constituir a expressão contemporânea dominante do conceito normativo de culpabilidade: um juízo de reprovação sobre o sujeito (quem é reprovado), que tem por objeto a realização do tipo de injusto (o que é reprovado) e por fundamento (a) a capacidade geral de saber o que faz, (b) o conhecimento concreto que permite ao sujeito saber realmente o que faz e (c) a normalidade das circunstâncias do fato que confere ao sujeito o poder de não fazer o que faz (porque é reprovado).”

No entanto, na base de toda a ideia de culpabilidade já mencionada está a noção de livre-arbítrio, este muito questionado por alguns autores contemporâneos, que não visualizam uma liberdade igualitária de escolhas e de consciência da ilicitude dentre os integrantes do corpo social, especialmente os marginalizados pela sociedade. Nessa senda, surge então a teoria da Coculpabilidade.

2. A Teoria da Coculpabilidade e sua derrocada

Em uma sociedade altamente desigual, estratificada e segregada em classes como a brasileira, onde, apesar do programa político-social enunciado na Constituição (que traz como direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia e o lazer, dentre outros), os mais pobres muitas vezes não têm sequer acesso a escola, assistência médica e oportunidade de emprego (esse afastado em decorrência da pouca escolaridade), as possibilidades de cometer crimes, em especial os patrimoniais, são distribuídas de maneira desigual na população.

A desigualdade social, a falta de assistência do Poder Público e a carência de recursos e de oportunidades de melhoria de vida, aliada à exclusão e à falta de direitos sociais mínimos, como moradia digna, trabalho e educação de qualidade, promovem a marginalização e afetam diretamente o âmbito de liberdade dos cidadãos suburbanos, que se veem muitas vezes sem escolhas.

Para ilustrar a ideia, imagine a seguinte situação hipotética: um cidadão está há meses desempregado, sem condições financeiras de sequer comprar os alimentos necessários para sua sobrevivência e de sua família, tendo um filho pequeno com fome e uma mulher grávida também desempregada. Morador de uma favela dominada pelo tráfico de drogas, essa pessoa recebe uma proposta de “trabalho” de um traficante local, serviço esse que consistia em entregar droga para os “clientes” e pelo qual receberia dinheiro suficiente para sustentar sua família. Já tendo procurado trabalho diariamente desde que ficou desempregado, rejeitado muitas vezes por não ter concluído nem o 1º grau escolar e ser um semianalfabeto, esse cidadão se vê forçado a aceitar a proposta e começa a “trabalhar” para o traficante.

Nessa situação, pela teoria da coculpabilidade, se o referido cidadão fosse preso e condenado pelo tráfico, sua culpabilidade e em consequência sua pena deveriam ser atenuada ou até dispensada em razão de o Estado ter se omitido e gerado toda a situação de exclusão do desempregado, visto que não lhe proporcionou educação na infância e oportunidade de trabalho na idade adulta, inadimplindo seu dever constitucional.

Dessa forma, por essa teoria, o Estado devia assumir sua parcela de culpa no delito, pois foi o causador da marginalização do cidadão, na medida em que não cumpriu com sua obrigação constitucional e, omitindo-se, fez surgir condições propícias ao delito. Na lição de Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 529):

“Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma "coculpabilidade", com a qual a própria sociedade deve arcar. Tem-se afirmado que este conceito de coculpabilidade é uma ideia introduzida pelo direito penal socialista. Cremos que a coculpabilidade é herdeira do pensamento de Marat e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado Social de Direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no Código Penal mediante a disposição genérica do art. 66.”

Ocorre que tal teoria foi bastante criticada e até desprezada por parte da doutrina em razão de associar o cometimento de delitos à pobreza, passando a ideia de um determinismo social exacerbado, que, por mais que em alguns casos se confirme, não reflete um dado empiricamente comprovado.

Além do mais, a teoria em comento falha por se aplicar apenas a delitos com fundo patrimonial. Outrossim, muitos criticam a tese afirmando que não é verdade que o Estado tem culpa pela pobreza (não se pode atribuir essa responsabilidade unicamente ao Estado ou à sociedade), bem como é inverídica a afirmação de que a pobreza ocasiona automaticamente crimes (não há uma ligação direta e automática entre esses fatores). O próprio Zaffaroni (2004), posteriormente, já alertou:

“A co-culpabilidade (Mit-Schuld) é insuficiente porque: (a) em princípio invoca o preconceito de que a pobreza é a causa de todos os delitos; (b) em segundo lugar, ainda corrigindo esse preconceito, habilitaria mais poder punitivo para as classes hegemônicas e menos para as subalternas, o que pode conduzir a um direito penal classista em dois tempos; (c) o terceiro ponto é que seja abastado ou pobre o selecionado, sempre o será com bastante arbitrariedade, com o qual esta tese não logra fazer cargo da seletividade estrutural do poder punitivo.”

Em razão das críticas, desacreditada pela maioria da doutrina, a teoria da coculpabilidade foi praticamente abandonada. No entanto, o senso crítico de desigualdade social e de uma análise da criminalização mais voltada à realidade do sistema penal latino-americano deu origem a uma teoria mais consiste e bem elaborada, que não traz maniqueísmos ou falsos dados generalistas, haja vista que é voltada à incriminação individualizada e à culpabilidade do agente singularizado.

3. A Teoria da Culpabilidade por Vulnerabilidade

De início, importante trazermos os conceitos de criminalização primária e secundária, primordiais para o entendimento da teoria em tela. Criminalização primária consiste na criação de tipos penais incriminadores de forma geral pelo legislador. A tipificação de condutas nem sempre é baseada em fundamentos criminológicos e as vezes é utilizada como meio promocional (Direito Penal Promocional) ou simbólico (Direito Penal Simbólico). No entanto, nessa fase de criminalização não há uma perseguição a sujeitos individualizados pelo poder punitivo.

Já a criminalização secundária remete ao cometimento de crimes e se refere sempre a agentes concretos. Nela se vislumbra a total seletividade do sistema penal, sob vários aspectos (não só econômicos), visto que é impossível às agências de criminalização secundária (polícia, ministério público, etc) perseguir e punir todos os que cometem infrações penais.

Nos dizeres de Zaffaroni et al (2011, p. 43):

“Enquanto a criminalização primária (elaboração de leis penais) é uma declaração que, em geral, se refere a condutas e atos, a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre as pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judicial, que legitima tais iniciativas e admite um processo (ou seja, o avanço de uma série de atos em princípio públicos, para assegurar se, na realidade, o acusado praticou aquela ação); no processo, discute-se publicamente se esse acusado praticou aquela ação e, em caso afirmativo, autoriza-se a imposição de uma pena de certa magnitude que, no caso de privação da liberdade de ir e vir da pessoa, será executada por uma agência penitenciária (prisonização).”

Considerando a quase infinidade de delitos tipificados na legislação pátria, é verdadeira a afirmação de que a maioria das pessoas cometem crimes (vide arts. 133, 135, 139, 140, 151, 245, 246, 247, 319 e 321, CP; art. 49 da Lei 9.605/98; art. 243, ECA; arts. 306 e 310, CTB; entre outros). No entanto, também é verdade que poucas pessoas e poucos crimes são selecionados e capturados pelo sistema penal repressor, haja vista que esse sistema é limitado e as agências de criminalização não dão conta de perseguir todas as condutas incriminadas, gerando a chamada cifra negra da criminalidade (em um vergonhoso apelo à questão racial).

No que tange à incidência e ao cometimento de crimes, sociólogos da envergadura de Durkheim já asseveravam que o crime é um fato natural e inerente ao convívio humano, mas que se todos os crimes fossem efetivamente punidos estaríamos definitivamente em um puro estado de polícia (onde o poder punitivo tem seu auge).

Na definição de Zaffaroni et al (2011, p. 41):

“O estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam. O princípio do estado de direito é atacado, por um lado, como ideologia que mascara a realidade de um aparato de poder a serviço da classe hegemônica e defendido, por outro, como uma realidade bucólica com alguns defeitos conjunturais. Considerando a dinâmica da passagem do estado de polícia ao estado de direito, é possível sustentar uma posição dialética: não há estados de direito reais (históricos) perfeitos, mas apenas estados de direito que contêm (mais ou menos eficientemente) os estados de polícia nele enclausurados.”

Nesse contexto, o estado de direito, através das agências judiciais (juízes, advogados, defensores públicos, etc), revela sua importância, na medida em que, no seu atuar, esses agentes devem lutar para reduzir o poder punitivo e realizar uma operação contrasseletiva, haja vista que, a partir de uma análise funcional redutora, o Direito Penal deve ser entendido como “o ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo, para impulsionar o progresso do Estado Constitucional de Direito” (Zaffaroni et al, 2011, p. 40). Nesse sentido, a legitimidade do Direito Penal se funda na sua capacidade de limitar o poder punitivo.

Outrossim, quanto à seletividade criminalizante, sabemos que a sociedade, os meios de comunicação e as agências estatais de criminalização formam no senso comum verdadeiros estereótipos criminais, na sua maioria ligados aos crimes toscos contra o patrimônio, podendo esse estereótipo ser comprovado por uma breve análise da população carcerária brasileira. Em geral, são jovens negros, pobres, de baixa escolaridade e moradores da periferia.

No entanto, há de se destacar que a teoria em comento não se aplica apenas aos casos de criminalização de esteriótipos, pois é possível que a seleção do agente criminalizado ocorra, extraordinariamente, em sujeitos não estereotipados que realizaram um grande esforço criminalizante.

No que tange ao mito do livre-arbítrio e da autodeterminação, importante destacar que, apesar de não serem verificáveis o determinismo, a autodeterminação e o livre-arbítrio, quando atuamos socialmente nos comportamos como autodeterminados e é verificável que cada pessoa nas diferentes circunstâncias do dia a dia dispõe somente de certo catálogo de possíveis condutas a praticar. Logo, não há de fato um livre-arbítrio, mas apenas há uma liberdade restrita de escolha dentro de um espectro limitado de possíveis condutas diante dos fatos que se apresentam cotidianamente.

Assim, afirma Zaffaroni (2004) que:

“A culpabilidade penal no estado de direito não pode ser a simples culpabilidade pelo ato, também deve surgir da síntese desta (como limite máximo da reprovabilidade) e de outro conceito de culpabilidade que incorpore o dado real da seletividade.”

Esse dado real da seletividade é justamente a vulnerabilidade do agente. Acerca da seletividade do sistema penal pela vulnerabilidade do agente, de início cumpre diferenciar os conceitos de estado de vulnerabilidade e de situação de vulnerabilidade, que não se confundem.

O estado de vulnerabilidade se refere a um dado genérico sobre o sujeito, com base nas suas condições concretas de vida, levando em conta aspectos sociais, de renda, de poder, de moradia, de trabalho, de instrução formal, etc. O estado de vulnerabilidade a princípio não criminaliza ninguém, pois esse estado permanece latente enquanto não se manifesta o crime. Conclui-se, então, que o estado de vulnerabilidade não determina o crime.

Para exemplificar esse conceito, podemos dizer que, em geral, um jovem negro, morador de favela, semianalfabeto e desempregado possui em um estado de vulnerabilidade bastante grande. Já um rico empresário, branco, com alta instrução formal e morador de área nobre, possui em regra um baixo estado de vulnerabilidade.

Já a situação de vulnerabilidade em relação ao poder criminalizante é um conceito aferido no caso concreto, é específico e varia conforme as circunstâncias. Em outras palavras, é a situação concreta de vulnerabilidade proporcionada pelo ilícito que possibilita a seleção criminalizante. É, portanto, a situação fática capaz de gerar a incriminação e punição do agente pelas agências de repressão. A grosso modo, é o risco de ser preso pelo crime que cometeu.

A teoria em comento faz essa distinção para concluir que a culpabilidade pelo fato deve ser aferida e limitada pelo esforço que o agente fez no caso concreto para atingir uma situação de vulnerabilidade criminalizante.

Nesse sentido, Zaffaroni (2004) ensina que:

“Não se pode reprovar a ninguém seu estado de vulnerabilidade. Só é possível reprovar o esforço pessoal realizado para alcançar a situação de vulnerabilidade em que o poder punitivo concretiza-se. O esforço pode ser de diferentes magnitudes:

(a) São excepcionais os casos de quem parte de um estado de vulnerabilidade muito baixo e faz um esforço extraordinário até alcançar a situação concreta de vulnerabilidade. Não sempre, mas em muitas oportunidades, os esforços obedecem a perda de cobertura precedidas por lutas de poder.

(b) Também são menos frequentes os casos de pessoas que, por partir de um estado alto, custar-lhes-ia pouco alcançar a situação de vulnerabilidade, mas mesmo assim realizam um esforço muito alto para atingi-la. Em geral, tais casos tratam-se de fatos que estão perto da patologia e constituem aberrações.

(c) A maioria dos criminalizados não leva a cabo importantes esforços para alcançar a situação concreta de vulnerabilidade; partindo de um estado elevado, é preciso um esforço insignificante para que seja concretizada a periculosidade do poder punitivo. É muito mais fácil selecionar pessoas que circulam pelos espaços públicos com o figurino social dos delinquentes cometendo injustos de pequena ou média gravidade.”

Para ilustrar as referidas hipóteses, podemos citar diferentes situações acerca do tráfico de drogas, que a depender das circunstâncias, o agente pode ter a culpabilidade pela vulnerabilidade totalmente distinta. Imaginemos inicialmente que um rapaz de classe média alta ande pelas ruas com uma pequena quantidade de droga no bolso. A chance de que esse rapaz seja revistado pela polícia e efetivamente incriminado é muito baixa. Agora imagine um rapaz pobre (um morador de rua, por exemplo) andando com a mesma quantidade de droga no bolso: a chance da droga ser descoberta e haver a incriminação é bastante alta.

Mudando o exemplo para o porte de arma, podemos dizer que uma pessoa rica e bem-vestida que porta um revólver calibre 38 na cintura tem chances mínimas de ser revistada e criminalizada se comparada a um maltrapilho que porta a mesma arma. Certamente, para que o rico e bem-vestido tenha a mesma chance de ser incriminado, este deverá fazer um esforço significativo para isso, como por exemplo portanto uma arma maior ou deixando à vista a arma que traz consigo. É esse esforço criminalizante que deve ser analisado para, considerando o insignificante esforço que especialmente os estereotipados realizam para serem incriminados, reduzir a medida de sua culpabilidade.

Ressalte-se que nem sempre a culpabilidade do estereotipado será menor, pois caso este, em que pese a desnecessidade de um grande esforço, realize esse esforço criminalizante elevado, não será merecedor de redução da culpabilidade pela vulnerabilidade. No exemplo do porte de arma, se o maltrapilho anda com a arma à vista de todos, não merecerá redução da culpabilidade em razão de seu maior esforço.

Zaffaroni (2004) constata que “há décadas é conhecida a tendência da seleção criminalizante a exercer-se de acordo com estereótipos e a recair sobre a criminalidade grosseira, praticada por pessoas das classes subalternas, carentes de treinamento para condutas mais sofisticadas ou mais dificilmente captáveis pelo sistema penal. Isto demonstra que a grande maioria dos criminalizados não o são tanto em razão do conteúdo ilícito do injusto cometido, senão pela forma grosseira deste (obra tosca) e pelas características estereotípicas do agente, que o colocam ao alcance do sistema penal”. Há de se destacar, outrossim, que não são apenas as classes menos favorecidas que praticam crimes e isso há muito foi desmistificado por Sutherland em seu estudo sobre os crimes de colarinho branco, o que resultou na Teoria da Associação Diferencial.

Ocorre que as agências de criminalização secundária sempre se voltam para as condutas mais grosseiras e facilmente perceptíveis, especialmente quando realizadas por sujeitos estereotipados.

Nos países periféricos, como são os latino-americanos, devido à crescente polarização da riqueza, a maioria da população encontra-se em estado de vulnerabilidade ante o poder punitivo, embora só sejam criminalizados uns poucos. Ou seja, o campo para selecionar amplia-se, mas a seleção continua sendo ínfima em relação a ele. O dito obedece a que o mero status ou estado de vulnerabilidade não determina a criminalização. Não se seleciona a uma pessoa por seu puro estado de vulnerabilidade, senão porque se encontra em uma situação concreta de vulnerabilidade. Partindo de um estado de vulnerabilidade, deve concorrer um esforço pessoal do agente para alcançar a situação concreta em que se materializa a periculosidade do poder punitivo. (Zaffaroni, 2004)

Em síntese, a seleção criminalizante dá-se geralmente em detrimento dos seguintes tipos de pessoas: 1 – ou o selecionado é alguém estereotipado que comete crime tosco; 2 – ou é alguém fora do estereótipo que comete crime muito aberrante, extravagante (ex: caso de Suzane von Richthofen); 3 – ou é alguém que perdeu uma disputa de poder (“bode expiatório” ou “laranja” nos crimes de colarinho branco).

Nas lições de Zaffaroni et al (2011, p. 49):

“O sistema penal opera, pois, em forma de filtro para acabar selecionando tais pessoas. Cada uma delas se acha em um certo estado de vulnerabilidade ao poder punitivo que depende de sua correspondência com um esteriótipo criminal: o estado de vulnerabilidade será mais alto ou mais baixo consoante a correspondência com o esteriótipo for maior ou menor. No entanto, ninguém é atingido pelo poder punitivo por causa desse estado, mas sim pela situação de vulnerabilidade, que é a posição concreta de risco criminalizante em que a pessoa se coloca. Em geral, já que a seleção dominante corresponde a esteriótipos, a pessoa que se enquadra em algum deles não precisa fazer um esforço muito grande para colocar-se em posição de risco criminalizante (e, ao contrário, deve esforçar-se muito para evitá-lo), porquanto se encontra em um estado de vulnerabilidade sempre significativo. Quem, ao contrário, não se enquadra em um esteriótipo, deverá fazer um esforço considerável para posicionar-se em situação de risco criminalizante, de vez que provém de um estado de vulnerabilidade relativamente baixo. Daí o fato de que, em tais casos pouco frequentes, seja adequado referir-se a uma criminalização por comportamento grotesco ou trágico. Os raríssimos casos de falta de cobertura servem para alimentar a ilusão de irrestrita mobilidade social vertical, configurando a outra face do mito de que qualquer pessoa pode ascender até a cúspide social a partir da própria base da pirâmide (self made man), e servem também para encobrir ideologicamente a seletividade do sistema, que através de tais casos pode se apresentar como igualitário.”

Exemplo: se um funcionário qualquer da base da Petrobrás (um servente, por exemplo) subtrair da empresa uma impressora que custa 200 reais, como se trata de uma pessoa mais vulnerável, facilmente será incriminada, até pelo aparato a que se submete (ex: câmeras de vigilância). Já se um diretor da mesma Petrobrás, indicado pelo Governo Federal, desviar o valor da impressora em seu próprio proveito, quase impossível será sua incriminação. Este diretor, em razão do seu baixíssimo estado de vulnerabilidade, para chegar a uma situação concreta de vulnerabilidade incriminadora, deve fazer um esforço gigantesco (desvio de milhões de reais) e ainda perder uma disputa de poder (alguém que conhece o esquema internamente o delatar) para que chegue a uma situação de vulnerabilidade e seja punido, pois se isso não ocorrer dificilmente será investigado, incriminado e punido. Nessa comparação, a culpabilidade do servente deve ser considerada menor do que a culpabilidade do diretor, pois aquele fez um esforço mínimo para ser criminalizado, já este fez um esforço estratosférico para que sua conduta fosse percebida e punida. Ademais, a lesão ao bem jurídico é incomparável entre os casos.

No entanto, vale lembrar que pela teoria da culpabilidade por vulnerabilidade a punição do diretor não seria agravada dentro dessa comparação, este responderia na medida da culpabilidade do fato. Mas para a aferição da punição do servente, a teoria prega que a culpabilidade do fato seja atenuada pela culpabilidade pela vulnerabilidade, haja vista o mínimo esforço do agente para se colocar em situação de vulnerabilidade criminalizante. Em suma, a teoria serve apenas para atenuar a culpabilidade do fato, nunca para agravá-la, pois é defeso em matéria penal agravação não prevista em lei (ao contrário da atenuação – art. 66, CP).

Abrindo um parêntese, cumpre observar, em relação ao fenômeno criminológico, que a vitimização também é seletiva. Na medida em que as agências executivas protegem mais as classes abastadas e os locais de maior renda, a população pobre e da periferia sofre maior vitimização. Daí constata-se que, na classe mais baixa, é maior o apelo pela criminalização e pelo aumento das penas, não sendo raro nesse setor da sociedade quem apoie a pena de morte.

Nesse prisma, vê-se uma autofagia de parte dessa população carente, que é ao mesmo tempo selecionada pelo poder punitivo e clama por mais punição aos criminosos, atingindo com esse apelo os seus próprios membros selecionados pelo poder punitivo.

Isto posto, sobre a teoria da culpabilidade, Brodt conclui que:

“Em relação à culpabilidade, Zaffaroni fundamenta-a no esforço pessoal do sujeito para alcançar a situação concreta de vulnerabilidade. O que, se não nega propriamente a teoria normativa pura da culpabilidade, apresenta, em relação a mesma, importantes particularidades.”

Desse modo, a culpabilidade pela vulnerabilidade somente pode reduzir a culpabilidade pelo ato, sendo esta seu limite, haja vista que, mesmo que haja um enorme esforço do agente de baixo estado de vulnerabilidade para se colocar em uma situação de vulnerabilidade concreta, a culpabilidade do agente estará limitada pela culpabilidade do fato. Assim, a culpabilidade por vulnerabilidade cumpre apenas um papel redutor do açodado poder punitivo.

4. A aplicação da Teoria à realidade brasileira

No Brasil, a teoria da culpabilidade por vulnerabilidade não teve até então a reverberação merecida. A doutrina nacional pouco comenta sobre o assunto e às vezes ainda o confunde com a coculpabilidade. Os tribunais pátrios em geral também não aplicam a teoria. Em que pese esse cenário de aparente rejeição, mostraremos a seguir porque a teoria deveria ser largamente aplicada no Brasil e qual seu cabimento dentro da legislação penal brasileira.

Inicialmente, podemos lembrar que no Brasil, muito embora haja centenas de crimes tipificados em lei, prende-se na maioria das vezes por basicamente 7 deles: tráfico de drogas, roubo, furto, homicídio, porte ilegal de arma, receptação e estupro. Não é demais reforçar que, como fora dito, apesar de a maioria das pessoas cometem crimes, apenas uma ínfima parte é criminalizada e punida. A seletividade é patente no sistema penal, especialmente em detrimento das pessoas marginalizadas que cometem esses tipos penais mais rudes.

Com isso não se quer dizer que esses crimes sejam os mais importantes, nem tampouco que as pessoas presas sejam as mais prejudiciais para a sociedade. Muito pelo contrário, os crimes com maior repercussão na qualidade de vida de toda a população são raramente investigados e punidos (crimes contra a ordem tributária, crimes de corrupção, etc), pois seus autores muitas vezes têm alto poder econômico e político e, portanto, ostentam um baixíssimo estado de vulnerabilidade.

Outrossim, voltando ao dado da seletividade criminalizante, a vulnerabilidade é ainda maior para aqueles que já foram “fichados” (seja porque são reincidentes, seja porque apenas foram investigados, indiciados ou processados criminalmente). Diante dessa vulnerabilidade, para equilibrar essa verdadeira “perseguição” aos estigmatizados, torna-se imperioso adotarmos a teoria em comento.

No que tange à possibilidade legal de aplicação da teoria, esta encontra guarida em dois dispositivos do Código Penal (arts. 59, caput, e 66), que versam respectivamente sobre a primeira e a segunda fase da dosimetria pena. Vejamos o primeiro dispositivo:

“Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:”

Na primeira fase da dosimetria da pena, mediante a análise das chamadas “circunstâncias judiciais” para a fixação da pena-base, a lei é clara ao determinar que o juiz deve considerar a culpabilidade do agente em razão do fato por ele cometido, conforme seja necessário, em um claro juízo de reprovação, que deve aferir, dentre outros aspectos, a culpabilidade do agente pela vulnerabilidade analisada no momento do delito. Portanto, deve ser considerado o (maior ou menor) esforço do agente para se colocar numa situação concreta de vulnerabilidade, consoante o método já tergiversado acima. Agora vejamos o segundo dispositivo:

“Art. 66 – A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.”

Na segunda fase da dosimetria, em que se verifica a existência de circunstâncias atenuantes, deve-se analisar o estado de vulnerabilidade do agente, que, caso seja consideravelmente alto, resta salutar aplicar a atenuante genérica do art. 66 a partir da constatação de ter havido um mínimo esforço do réu para cometer o crime, ser percebido e punido.

Na legislação extravagante, interessante previsão é encontrada na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), que em seu art. 14 traz uma atenuante compatível com a ideia da vulnerabilidade do agente.

“Art. 14. São circunstâncias que atenuam a pena: I – baixo grau de instrução ou escolaridade do agente;”

Portanto, vê-se que, em matéria de crime ambiental, essa vulnerabilidade deve ser expressamente considerada a fim de dosar a pena de uma maneira mais justa e consentânea com a culpabilidade pela vulnerabilidade do agente.

Conclusão

Diante de todo o exposto, podemos visualizar que a culpabilidade, desde a teoria causalista do delito até hoje, passou por significativas mudanças de entendimento e compreensão. De um pressuposto da pena, composta apenas por elementos psicológicos, tornou-se elemento essencial à caracterização do delito, formada a culpabilidade nessa fase somente por elementos normativos. Sua natureza valorativa, no entanto, não pode estar alheia à realidade concreta do crime praticado, nem tampouco distante da constatação de elementos objetivamente verificáveis, como o estado de vulnerabilidade do agente e seu esforço para cometer o crime e se colocar em situação de vulnerabilidade criminalizante.

Portanto, diante da função de reduzir e limitar o estado de polícia latente em nossa sociedade, as agências judiciais devem voltar-se para uma análise mais apurada dos fatos e em especial da culpabilidade do agente. Não fosse essa a função do Direito Penal, o processo penal seria inútil e dispensável, haja vista que o poder punitivo da polícia, de outros agentes estatais e até da própria população não requer os ritos judiciais para ser satisfeito de maneira irracional e desumana.

Referências
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Informações Sobre o Autor

Túlio Ponte de Almeida

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Pós-Graduando pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus


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