Resumo: O presente artigo visa demonstrar os reflexos da inconstitucionalidade do cumprimento da pena em regime integralmente fechado (crimes hediondos), nos demais institutos relacionados à pena privativa de liberdade, tais como livramento condicional (art. 83 do CP), substituição da pena de prisão por pena restritiva de direitos (art. 44 do CP) e a suspensão condicional da pena (art. 77 do CP).
1. INTRODUÇÃO
No dia 23 de fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal, mais alta corte de justiça do país, através de seu plenário, enfrentou a questão da inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei n° 8.072/90, que previa o cumprimento da pena em regime integralmente fechado aos condenados por crimes hediondos, pela prática da tortura, por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e pela prática de terrorismo.
Até então o STF entendia constitucional a Lei n° 8.072/90, inclusive, após a publicação da Lei 9.455/97. Referida Lei, tipificou o crime de tortura, assemelhado ao crime hediondo, passando a admitir a progressão de regime, fato que levou o STF a sumular o seu entendimento através do verbete de súmula N° 698, cuja dicção é no sentido de que: “não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão de regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura”. Referida orientação merece ser revista em face do novo posicionamento adotado pela Suprema Corte.
A decisão pela inconstitucionalidade, acima mencionada, foi muito criticada pelos meios midiáticos em todo o país, e especialmente por familiares de vítimas de crimes hediondos, pois autorizam os condenados pelos crimes hediondos e assemelhados a obterem a progressão de regime após o cumprimento de um sexto da pena. Significando dizer que se estão no regime fechado, após o cumprimento de um sexto da pena passam para o regime semi-aberto, desde que estejam em bom comportamento carcerário.
O regime semi-aberto autoriza o trabalho externo, bem como a freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior (§ 2° do art. 35 do CP). Também autoriza a saída temporária nos termos do art. 122 da Lei de Execuções Penais (n° 7.210/84).
Depois de cumprido mais um sexto da pena no regime semi-aberto, os condenados (inclusive os que praticaram crimes hediondos) poderão obter o regime aberto, o qual, pelo teor do art. 93 da Lei n° 7.210/84, deveria ser cumprido em casa de albergado. Tal regime permite ao condenado sair do estabelecimento prisional sem vigilância, para trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade autorizada pelo juízo da execução penal, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga, segundo a dicção do § 1° do art. 36 do Código Penal.
Negritou-se a palavra deveria em virtude de que os Estados e o Distrito Federal não cumpriram a ordem legal de instalação de casa de albergado, no prazo de seis meses, a partir da publicação da Lei n° 7.210/84, conforme determinado no § 3° do seu art. 203, e, como o condenado não pode arcar com essa ineficiência do Estado, tem-se concedido, contra lege, o direito à prisão domiciliar ao condenado que obteve regime aberto, utilizando-se o art. 117 da lei de regência.
Esse novo entendimento do STF iguala o condenado por crime hediondo ao condenado por crime não hediondo, pois os requisitos para a progressão de regime são os mesmos (cumprimento de um sexto da pena em cada regime), fazendo-se necessário que o legislador edite lei no sentido de impor requisitos diferenciadores para a obtenção de progressão de regime aos condenados por crimes hediondos e assemelhados, tais como o cumprimento de pelo menos metade da pena em cada um dos regimes prisionais.
Se assim agir, estará o legislador atendendo os anseios da sociedade, assim como daqueles que forem condenados por crimes hediondos e assemelhados, pois continuarão obtendo o direito de progressão de regime.
Não é nosso objetivo discutir o acerto ou não da decisão da Suprema Corte, entretanto faz-se necessário mencionar que o posicionamento do STF apenas confirmou o que grande parte da doutrina penal brasileira já argumentava. Isso porque o sistema penal adotado pelo Brasil é o sistema progressivo de cumprimento de pena, onde o réu ingressa em um regime mais rigoroso e com o passar do tempo vai obtendo a progressão até ser liberado definitivamente, ou seja, o sistema progressivo de cumprimento de pena vem atender a determinação constitucional da individualização da pena (art. 5°, inc.XLVI).
Passamos agora analisar sucintamente os reflexos da decisão do Supremo quanto à concessão do livramento condicional, das penas restritivas de direito e da suspensão condicional da pena (sursis).
2. O REFLEXO DA DECISÃO DO STF NO LIVRAMENTO CONDICIONAL
Até a publicação da Lei n° 8.072/90 (crimes hediondos), o Código Penal a partir do seu art. 83, tratava do Livramento Condicional estabelecendo alguns requisitos (objetivos e subjetivos) para o condenado obter tal benefício. Entre eles pode-se destacar o cumprimento de mais de um terço se o condenado não for reincidente e possuir bons antecedentes criminais ou ainda mais da metade se for reincidente em crime doloso, conforme estabelecido respectivamente nos incisos I e II do art. 83 do CP. Além desses requisitos exige-se que o condenado comprove comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto (art. 83, inc. III do CP), bem como reparar, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração (Art. 83, inc. IV do CP).
A Lei 8.072/90 acrescentou o inc. V no art. 83 do CP, dispondo que o condenado por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo somente poderia obter o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena se fosse reincidente específico em crimes dessa natureza. Ou seja, criou requisitos mais graves para que os condenados por crimes hediondos e assemelhados pudessem obter o livramento condicional, impedindo o benefício aos reincidentes em crimes dessa natureza, os quais então deveriam cumprir toda a pena em regime integralmente fechado.
Com a decisão do STF, julgando inconstitucional o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, os dispositivos do Código Penal que tratam do livramento condicional merecem revisão urgente pelo legislador. Isso porque a decisão do STF não alterou os referidos dispositivos. Significa dizer que aquele que foi condenado em crime hediondo para colocar os pés na rua não necessitará aguardar o cumprimento de dois terços da pena para obtenção do livramento condicional, pois até lá já obteve progressão de regime, inclusive já se encontrando no regime aberto.
Ora, como dito anteriormente, o condenado que esteja cumprindo pena em regime aberto, em regra, obtêm o direito da prisão domiciliar nos termos do art. 117 da Lei 7.210/84, pois os Estados e o Distrito Federal não construíram casa de albergado. Daí que se ele já está cumprindo a pena em regime aberto, qual a vantagem em peticionar pelo livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena?
E o reincidente em crime hediondo? Não poderá obter o livramento condicional mas poderá obter progressão de regime e alcançar o regime aberto. Significa dizer que a restrição do inc. V, do art. 83, do CP, acrescido pela Lei 8.072/90, perdeu totalmente o seu efeito, fazendo-se necessária a edição de uma nova lei para regular a progressão de regime aos condenados por crime hediondo e assemelhados, assim como o livramento condicional e a imposição de condições mais rígidas quando do cumprimento da pena em regime aberto.
3. O REFLEXO DA DECISÃO DO STF QUANTO AS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS E SURSIS.
A decisão da Suprema Corte Brasileira também terá reflexo quanto à substituição da pena de prisão por penas restritivas de direitos, pois até então, a doutrina e os tribunais se dividiam no sentido de que aos condenados por crimes hediondos e assemelhados que alcançassem os requisitos do art. 44 e seus incisos do Código Penal, não poderiam ter a pena privativa de liberdade substituída em virtude da incompatibilidade do cumprimento da pena em regime integralmente fechado com as penas restritivas de direitos.
Nesse sentido julgou o STJ reiteradas vezes, do qual destaco a seguinte decisão: “As alterações introduzidas no Código Penal pela Lei das Penas Alternativas (Lei 9.714/98) não alcançam o crime de tráfico de entorpecentes (crime hediondo), cujo cumprimento da pena é em regime integralmente fechado. Impossibilitada, portanto, a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos” (RHC 9.059-RJ, 5ª T., REL. Jorge Scartezzini, 04.11.1999, v. u., DJ 06.12.1999, p. 103). Fernando Capez adota o mesmo posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, citando ainda vários acórdãos do referido Tribunal.[1]
Em sentido contrário é a posição de Luiz Flávio Gomes, Damásio E. de Jesus entre outros, pois segundo eles não há nenhuma incompatibilidade entre a Lei dos crimes hediondos (Lei n° 8.082/90) com a Lei n° 9.714/98, que alterou substancialmente os dispositivos do Código Penal que tratavam das penas restritivas de direitos. Para eles enquanto a Lei dos crimes hediondos trata de regime de cumprimento de pena, a Lei 9.714/98, além de ser posterior, trata de substituição de pena de prisão por restritiva de direito, o que não pode ser confundido com regime de cumprimento da pena.[2]
O STF, antes de julgar a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, já se inclinava pela admissibilidade da substituição da pena de prisão por restritiva de direitos para os autores de crimes hediondos e assemelhados que fossem condenados a pena privativa de liberdade de até quatro anos, presentes os demais requisitos para substituição elencados na lei. Este foi o recente entendimento ao julgar o HC N° 85894/RJ, conforme publicação no informativo n° 411 do STF, abaixo colacionado:
Crime Hediondo e Substituição de Pena Privativa de Liberdade por Restritiva de Direitos: O Min. Gilmar Mendes, relator, concedeu o writ para que, afastada a proibição, em tese, de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito, o Tribunal a quo decida fundamentadamente acerca do preenchimento dos requisitos do art. 44 do CP, em concreto, para a substituição pleiteada. Reportando-se aos fundamentos de seu voto no julgamento do HC 82959/SP, no sentido de que o modelo adotado na Lei 8.072/90 não observa o princípio da individualização da pena, já que não considera as particularidades de cada pessoa, sua capacidade de reintegração social e os esforços empreendidos com fins a sua ressocialização, e, salientando que a vedação da mencionada lei não passa pelo juízo de proporcionalidade, concluiu que, afastada essa vedação, não há óbice à substituição em exame, nos crimes hediondos, desde que preenchidos os requisitos legais. Citou, ainda, a decisão proferida no HC 84928/MG (DJU de 11.11.2005), no qual assentado que, somente depois de fixada a espécie da pena (privativa de liberdade ou restritiva de direito) é que é possível cogitar do regime de seu cumprimento. Acompanharam o voto do relator os Ministros Eros Grau, Cezar Peluso e Marco Aurélio. Em divergência, o Min. Joaquim Barbosa, acompanhado pelos Ministros Carlos Velloso e Celso de Mello, denegou a ordem, invocando o entendimento perfilhado no julgamento do HC 83627/SP (DJU 27.2.2004) pela impossibilidade da substituição da pena, tendo em conta o disposto na Lei 8.072/90. Em seguida, o Tribunal, por maioria, acolhendo proposta do Min. Marco Aurélio, concedeu a liminar para que a paciente aguarde o julgamento em liberdade. Vencidos, no ponto, os Ministros Carlos Britto, Carlos Velloso e Celso de Mello que a indeferiam. O julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do Min. Carlos Britto – (HC 85894/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, 30.11.2005. STF-INFORMATIVO n. 411).
Assim, com a decisão do STF pela inconstitucionalidade do cumprimento de pena em regime integralmente fechado, a discussão acima se tornou inócua, passando os condenados por crime hediondo e assemelhados a obterem o direito da substituição da pena de prisão por restritiva de direitos, nos termos do art. 44, e seguintes do Código Penal, desde que presentes os requisitos objetivos e subjetivos para tal substituição.
O mesmo entendimento vale também para a concessão da suspensão condicional da pena (SURSIS), prevista no art. 77 que autoriza a suspensão da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, impondo-se ao condenado algumas condições que serão cumpridas por um período de dois a quatro anos.
Até então, a doutrina e a jurisprudência se dividiam quanto a possibilidade de conceder a sursis ao autor de crime hediondo e assemelhados, que fosse condenado a uma pena de até dois anos e que preenchesse os demais requisitos exigidos pela lei. Para alguns, o entendimento era de que não caberia a sursis para os crimes previstos na lei 8.072/90, ante a incompatibilidade do benefício com o tratamento mais rigoroso imposto por essa legislação (crime hediondo, tortura, tráfico de drogas e terrorismo).
Inclusive foi esse o entendimento do STF, no julgamento do HC 72.697: “É incabível a concessão do sursis em favor daquele que foi condenado pelo delito de atentado violento ao pudor, ainda que satisfeitos os pressupostos subjetivos e objetivos fixados pelo art. 77 do Código Penal, pois, tratando-se de crime hediondo, a sanção privativa de liberdade deve ser cumprida integralmente em regime fechado.” (HC 72.697, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 21/05/99).
No entanto o melhor entendimento é aquele que entende não existir na lei dos crimes hediondos, norma expressa a vedar a concessão da sursis, não podendo o interprete lançar mão de interpretação extensiva ou dilatória para suprimir o benefício, o que consistiria em analogia in mallam partem.[3]
Com a nova orientação do Supremo Tribunal Federal, não há mais óbice em conceder a suspensão condicional da pena para os condenados por crimes hediondos ou assemelhados que preencherem os requisitos objetivos e subjetivos elencados no art. 77 do Código Penal.
4. DA CONCLUSÃO
Diante da nova orientação do Supremo Tribunal Federal, entendendo pela inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei n° 8.072/90, que previa o cumprimento da pena em regime integralmente fechado aos condenados por crimes hediondos, pela prática da tortura, por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e pela prática de terrorismo, chegamos às seguintes conclusões:
a) O verbete n° 698, da Súmula do STF, deve ser revisto;
b) O legislador deve o mais rápido possível regular a questão da progressão de regime aos condenados por crimes hediondos e assemelhados, adotando critérios diferenciadores dos condenados por crimes não hediondos na obtenção de progressão de regime, tal como exigir o cumprimento de pelo menos metade da pena em cada um dos regimes.
c) Deve ainda alterar o inc. V do art. 83, do Código Penal, que trata do livramento condicional, pois na prática, com a nova orientação do STF, o condenado por crime hediondo que estiver em regime aberto (cumprindo pena domiciliar) não terá nenhum interesse em peticionar pelo livramento condicional.
d) Não se discute mais a possibilidade ou não de se conceder a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos aos condenados por crimes hediondos ou assemelhados que preencherem os requisitos legais do art. 44 do CP, pois, até então o único empecilho era a incompatibilidade do regime integralmente fechado com a pena restritiva de direitos.
e) O mesmo entendimento do item anterior deve ser aplicado para a concessão da suspensão condicional da pena (sursis), nos termos do art. 77 e seguintes do Código Penal.
f) Por fim, faz-se necessária uma alteração na Lei de Execuções Penais e no Código Penal, no sentido de criar condições mais rígidas a serem cumpridas no regime aberto, que não os previstos no art. 115 da Lei n° 7.210/84, especialmente para os condenados por crimes hediondos e assemelhados, em virtude da ineficiência do Estado na implantação de Casa de Albergado ou na fiscalização de tal regime.
Informações Sobre o Autor
Valdinei Cordeiro Coimbra
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo ICAT/UNIDF.
Professor de Direito Penal na UNIDF.
Delegado de Polícia Civil do Distrito Federal.