A desconsideração da personalidade jurídica na sociedade limitada

Resumo: A teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa coibir a prática da utilização da Sociedade como meio artificioso na busca do enriquecimento indevido e/ou fraude contra terceiros credores, evitando a utilização desta limitação e autonomia patrimonial para fins diversos da atividade prevista no estatuto ou contrato social da empresa, para que não haja confusão entre o patrimônio pessoal dos sócios com o seu patrimônio. Assim, o presente estudo visa discutir sobre a aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica às Sociedades Limitadas, no âmbito do direito civil, tratando sobre a limitação imposta à responsabilização dos sócios quando a sociedade não atende as finalidades trazidas em seu estatuto social. A personalidade jurídica é a aptidão de determinado ente ser portador de direitos e obrigações. Concluiu-se que a Sociedade (pessoa jurídica) não mais pode ser utilizada como meio artificioso em detrimento de terceiros, momento em que o Poder Judiciário exerce função inibidora de práticas que coadunam com o abuso da personalidade jurídica. Assim, a importância da teoria nos diversos ramos do direito, em especial, in casu, ao direito civil, passa a ser ferramenta expressa nas legislações pátrias, assegurando a igualdade entre as partes nas relações negociais, e evitando, conforme revelado o favorecimento de uns em detrimento de outros.

Palavras-chave: personalidade jurídica; Sociedade Limitada, direito civil.

Abstract: The theory of Slight of Juridical personality veil is intended to curb the practice of using the company as skillful means in the pursuit of unjust enrichment or fraud against third party creditors, avoiding the use of this limitation and patrimonial autonomy for the various activities provided in the statute or the social contract the company, so there is no confusion between the personal assets of members with their heritage. Thus, this study aims to discuss the applicability of the theory of piercing the corporate veil to limited companies, under the civil law, dealing with the limitation on the liability of shareholders if the company does not meet the goals brought in their social status. Legal personality is the ability of a given entity to be the bearer of rights and obligations. We concluded that the Company can no longer be used as a means designing the detriment of others, when the judiciary exerts inhibitory function of practices that are consistent with the abuse of legal personality. Thus, the importance of theory in various branches of law, in particular, in this case, the civil law, shall be expressed in legislation homelands tool, ensuring the equality of parties in business relationships, and avoiding, as revealed favoring a over others.

Keywords: personality, company limited, civil law

Sumário: 1. Introdução. 2. Referencial teórico. 2.1 Pessoa e personalidade jurídica; 2.2- Aspectos gerais da sociedade limitada; 2.3- A desconsideração da personalidade jurídica aplicada no direito civil; 3. Conclusão.

1- INTRODUÇÃO

A pessoa jurídica é um dos mais importantes institutos jurídicos já criados, cujo uso, todavia, nem sempre atendeu às finalidades a que se destina originalmente.

As sociedades, atualmente descritas no Código Civil, subdividem-se em sociedades não personificadas e sociedades personificadas. Dentre as personificadas, encontram-se a Sociedade Limitada regida principalmente pelas regras dos artigos 1.052 a 1.087 do citado diploma legal.

Sua principal característica, como afirmado propriamente em sua nomenclatura, se dá pela distinção da pessoa jurídica face à pessoa de seus sócios, que tanto podem ser pessoas físicas como também jurídicas.

Ressalta-se o fato de que nas Sociedades Limitadas a responsabilidade de seus sócios é restrita aos limites de seu capital social, respondendo todos, solidariamente pela integralização do mesmo.

Neste sentido, considerando a limitação e autonomia patrimonial entre a sociedade e os sócios que a compõem, essa forma de constituição societária passou a ser a mais comum no comércio brasileiro, sendo em alguns casos, utilizada como meio artificioso na busca do enriquecimento indevido e/ou fraude contra terceiros credores.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa coibir tal prática, evitando a utilização desta limitação e autonomia patrimonial para fins diversos da atividade prevista no estatuto ou contrato social da empresa, para que não haja confusão entre o patrimônio pessoal dos sócios com o seu patrimônio.

Assim, o presente estudo visa discutir sobre a aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica às Sociedades Limitadas, no âmbito do direito civil, tratando sobre a limitação imposta à responsabilização dos sócios quando a sociedade não atende as finalidades trazidas em seu estatuto social, evitando, o enriquecimento indevido, bem como a fraude aos credores.

2- REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Pessoa e personalidade jurídica

Existem no ordenamento jurídico os conhecidos sujeitos de direito, os quais se subdividem nas pessoas físicas e jurídicas.

As pessoas físicas são os seres humanos que adquirem sua personalidade jurídica através do nascimento com vida, encontrando esta assertiva prevista no artigo 2º do Código Civil.

Já as pessoas jurídicas possuem características diferentes das pessoas físicas, externadas principalmente no momento de sua criação, que as torna dependentes da vontade expressa do homem, devendo ainda atender a diversos requisitos legais para sua formalização.

A principal característica é a distinção patrimonial entre as pessoas físicas e as pessoas jurídicas, sendo que esta, uma vez adquirida a personalidade jurídica se torna sujeito de direitos e deveres frente ao ordenamento jurídico, distinguindo-os de seus criadores.

“O instituto da pessoa jurídica é uma técnica de separação patrimonial. Os membros dela não são os titulares dos direitos e obrigações imputados à pessoa jurídica. Tais direitos e obrigações formam um patrimônio distinto do correspondente aos direitos e obrigações imputados a cada membro da pessoa jurídica” (COELHO, 2003).

Dividem-se, pois, em pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, encontrando esta um rol taxativo expresso no artigo 44 do Código Civil.

“Artigo 44 – São pessoas jurídicas de direito privado:

I – as associações;

II – as sociedades;

III – as fundações;

IV – as organizações religiosas;

V – os partidos políticos.”

Verifica-se, pois, no inciso II da disposição legal acima invocada, a previsão da existência da pessoa jurídica na forma de sociedades, que por sua vez se subdividem em: sociedades não personificadas quais sejam: Sociedade em Comum (art. 986 à 990 do C. C.) e Sociedade em Conta de Participação (art. 991 à 996 do C. C.); como também nas sociedades personificadas reveladas como: Sociedade Simples (art. 997 à 1.038 do C.C.), Sociedade em Nome Coletivo (art. 1.039 à 1.044 do C. C.), Sociedade em Comandita por Ações (1.045 à 1.051 do C.C.), Sociedade Limitada (art. 1.052 à 1.087 do C.C.), Sociedades Anônimas (art. 1.088 e 1.089 do C.C. e lei 6.404/76), Sociedade em Comandita por Ações (Art. 1.090 à 1.092 do C.C.), Sociedades Cooperativas (art. 1.093 à 1.096 do C.C. e lei 5.764/71) e por fim as Sociedades Coligadas (art. 1.097 à 1.101 do C.C.).

O foco principal deste estudo se dá nas atribuições conferidas à Sociedade Limitada, principalmente no que diz respeito à distinção patrimonial de seus bens face aos bens particulares de seus sócios, limitando estes à possível responsabilização, somente dentro dos limites de suas quotas.

Para a criação da pessoa jurídica constituída na forma de Sociedade, in casu, é necessária a elaboração de contrato social que atenda suas peculiaridades, bem como a manifestação de vontade por duas ou mais pessoas, sejam físicas ou jurídicas.

O melhor conceito referente à constituição de uma Sociedade é aquele previsto no artigo 981 do Código Civil de 2002, onde se afirma que:

“celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados” (BRASIL, 2002).

Para Oliveira (2004) o contrato realizado entre os sócios dá origem a uma entidade, que exerce o comércio com todos os direitos e obrigações dos comerciantes, exceto aqueles que pressupõem uma existência física.

Em geral, a pessoa jurídica é constituída por mais de uma pessoa, começando a existir, assim, em decorrência de suas vontades, sendo identificadas como membros, integrantes ou instituidores da pessoa jurídica. Essa noção apenas não se ajusta inteiramente aos entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), que são pessoas jurídicas derivadas da organização política independente da sociedade brasileira (pessoas jurídicas de direito público). As demais pessoas jurídicas sempre terão mais de um membro que são necessariamente sujeitos de direito e obrigações, podendo ser pessoas físicas ou outras pessoas jurídicas (COELHO, 2003).

“A vontade humana traduz o elemento anímico para a formação de uma pessoa jurídica. Quer se trate de uma associação ou sociedade, resultante da reunião de pessoas, quer se trate de uma fundação, fruto da dotação patrimonial afetada a uma finalidade, a manifestação da vontade é imprescindível. Não se pode conceber, no campo do direito privado, a formação de uma pessoa jurídica por simples imposição estatal, em prejuízo da autonomia negocial e da livre iniciativa. A unidade orgânica do ente coletivo decorre exatamente desse elemento imaterial.” (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2004).

A possibilidade de pessoas físicas, que exerçam atividade empresarial, possuírem registro no cadastro nacional de pessoas jurídicas – CNPJ gera certo conflito, pois não há caracterização dessas pessoas como pessoas jurídicas, haja vista não estarem incluídas no rol taxativo do artigo 44 do Código Civil.

A personalidade jurídica, portanto, é a aptidão de determinado ente ser portador de direitos e obrigações. A lei é que confere à pessoa jurídica a sua existência autônoma, dotada de patrimônio próprio e distinto do de seus componentes (OLIVEIRA, 2004).

Para que a pessoa jurídica exista não é necessário que tenha patrimônio; basta-lhe a possibilidade de vir a tê-lo. Ademais a atividade patrimonial, dependendo da finalidade social, não é essencial, pois pode extinguir-se independentemente da existência de patrimônio (VENOSA, 2005).

O princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas (principio latino quod debet universitas non debet siguli) surge como um incentivo à iniciativa privada no sentido em que reduz os riscos de prejuízos individuais dos componentes de uma sociedade ao galgarem empreendimentos de grande porte, tendo assim maior segurança nas relações jurídico-comerciais (OLIVEIRA, 2004).

Esta segurança se estende ainda aos terceiros que com ela contratam, haja vista que a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas naturais que a compõem, pelo fato principal de possuírem, conforme revelado acima, patrimônio próprio, distinto do de seus sócios. Assim, o terceiro contratante possui meios específicos de identificar a responsabilidade da sociedade com que estabelece relação jurídica, o que de fato torna-lhe clara a possibilidade de segurança ao recebimento no caso de qualquer prejuízo oriundo do contrato.

O elemento essencial à constituição e início da personalidade das pessoas jurídicas de direito privado, que diferentemente das pessoas naturais que adquirem-na com o nascimento com vida, às pessoas jurídicas é indispensável o registro junto ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, conforme preceitua o art. 1.150 do Código Civil de 2002:

“Art. 1.150 – O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária” (BRASIL, 2002).

Entretanto, caso não haja o registro do contrato social da Sociedade no órgão competente, em nada se aferirá aos seus direitos, por faltar-lhe elemento essencial ao inicio de sua personalidade.

É importante destacar que como todas as espécies de atividades, a licitude para aquelas previstas na constituição da pessoa jurídica, também se faz elemento essencial à sua inscrição.

Neste sentido, o artigo 115 da lei 6.015/73, que trata dos Registros Públicos é taxativo ao mencionar que:

“Art. 115 – Não poderão ser registrados os atos constitutivos de pessoas jurídicas, quando seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem destino ou atividades ilícitos, ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral e aos bons costumes.”

A doutrina é pacífica em especificar três requisitos essenciais à caracterização da personalidade jurídica, quais sejam: organização de pessoas e de bens patrimoniais; objetivos em conformidade com a lei; reconhecimento pelo ordenamento jurídico como sujeito de direitos e obrigações.

Assim, vistas as tipificações e formalidades necessárias à aquisição, pela pessoa jurídica, de sua personalidade, tornando-se um sujeito de direito e obrigações frente a terceiros, bem como ao ordenamento jurídico, passa a enfatizar o estudo especificamente no diz respeito às regras básicas da Sociedade Limitada, principalmente quanto à distinção de seu patrimônio com o patrimônio pessoal de seus sócios, e a limitação da responsabilidade destes frente ao possível prejuízo causado por aquela.

2.2- Aspectos gerais da sociedade limitada

A sociedade limitada como forma de constituição societária encontra-se regulada no Código Civil, em especial nos artigos 1.052 à 1.087.

Para Fazzio Júnior (2007):

“qualquer conceito de sociedade limitada deverá ser construído a partir dos elementos fornecidos por sua regência legal. É, precisamente, o que se encontra nas conceituações dos principais comercialistas nacionais, permitindo-nos formular um conceito-sintese que contempla a sociedade limitada como a pessoa jurídica constituída por sócios de responsabilidade limitada à integralização do capital social, individualizada por nome empresarial que contém o adjuntivo limitada”.

Segundo estatísticas do Departamento Nacional de Registro de Comércio – DNRC, este é o tipo jurídico de sociedade mais utilizado no Brasil seja por empresários e não empresários que exerçam atividades de pequeno, médio e grande porte. Antes do novo Código Civil, esta matéria era disciplinada pelo Decreto nº. 3.708 de10 de janeiro de 1919, que intitulava de sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Com as novas determinações do Código Civil, passou a ser chamada simplesmente de Sociedade Limitada. (OLIVEIRA, 2004)

Requião (1998), citado por Oliveira (2004, p. 352) afirma que há Sociedade Limitada, quando duas ou mais pessoas, debaixo de uma firma ou denominação social, reúnem-se para a prática de atividade comercial, assumindo todas elas, de forma subsidiária, responsabilidade pelo capital social.

Sua principal característica, de fato, é a distinção patrimonial de seus bens face aos bens de seus sócios, sendo o destes limitada ao valor de suas quotas, mas respondendo todos solidariamente pela integralização do capital social.

A integralização do capital social pode ser feita em moeda corrente, em bens ou com direitos a receber. A efetiva responsabilidade de cada sócio é pela integralização de sua quota. Contundo, caso um ou algum deles deixar de cumprir com seu ônus, os demais respondem solidariamente, frente a terceiros pela integralização do capital.

“Artigo 1.052 – Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social” (BRASIL, 2002).

Para Negrão (2005):

“Nesse tipo societário, se cada sócio integralizar a parte que subscreveu no capital social – se cada um deles ingressar com o valor prometido no contrato –, os credores nada mais podem exigir. Entretanto, se um, alguns ou todos deixarem de entrar com os fundos que prometeram, haverá solidariedade entre eles pelo total da importância faltante, perante a sociedade e terceiros.”

Segundo Oliveira (2004),

“havendo parte do capital social não integralizada, os sócios respondem solidariamente pela quantia que falta para a completa integralização, cabendo ação de regresso contra o sócio que efetivamente não integralizou sua parte.”

A responsabilidade dos sócios é sempre total pela integralização do capital social, restringindo-se particularmente, quando integralizado, no limite das quotas individuais.

A problemática quando das constituições societárias na forma de Limitada se dá justamente neste ponto, ou seja, devido a uma omissão da lei ao que se refere à comprovação em face da real integralização do capital social, vêm elas sendo utilizadas como uma forma “legal”, para que pessoas agindo de má fé consigam obter para si, vantagens financeiras, sempre em detrimento de terceiros.

Neste aspecto, a omissão da lei quanto à comprovação da integralização do capital social, os terceiros contratantes podem ser surpreendidos, seja pelo não recebimento do crédito consignado, seja até mesmo pela inexecução de algum tipo de serviços, levando-lhes, por certo a uma perda patrimonial calculada nos limites da contratação.

Em razão deste fato os sócios da Limitada, por possuírem distinção patrimonial daquela e ainda não tendo comprovada a real integralização do capital quando do inicio das atividades da sociedade, passarão a perceber vantagens indevidas face aos credores ou contratantes que agiram dentro da mais límpida boa fé.

Ocorre assim, a confusão patrimonial entre os supostos bens da sociedade frente aos bens particulares dos sócios, caracterizando, o enriquecimento indevido de uns em detrimento de outros.

Com a finalidade de se evitar a mantença de tais práticas, como também e principalmente zelando pela validade plena de quaisquer atos ou negócios jurídicos em que se façam parte Sociedades constituídas pela forma Limitada, deu-se então inicio à Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, a qual se passa a fazer certa abordagem.

É importante destacar que a Administração da Sociedade Limitada é feita por qualquer dos sócios, em conjunto ou separadamente, ou ainda por terceiros, devendo esta previsão encontrar-se devidamente instituída no contrato ou estatuto social ou em ato separado. A administração atribuída no contrato a todos os sócios não se estende de pleno direito aos que posteriormente adquiram essa qualidade.

Pode-se conceituar a desconsideração da pessoa jurídica como o afastamento da personalidade autônoma da pessoa jurídica em relação aos seus sócios ou beneficiários, com o intuito de responsabilizar estes pelos atos ilícitos cometidos em nome da pessoa jurídica.

Como acentuado no item acima, este ato de desconsideração foi chamado pelo direito americano de disregard of legal entity, termo este compatível com o ordenamento jurídico pátrio, pois em seu bojo se denota todos os requisitos da desconsideração aplicada pelo direito pátrio.

Venosa (2004) em seu estudo de direito civil conceituou disregard of legal entity como:

“[…] quando a pessoa jurídica, ou melhor, a personalidade jurídica for utilizada para fugir as suas finalidades, para lesar terceiros, deve ser desconsiderada, isto é, não deve ser levada em conta a personalidade técnica, não deve ser tomada em consideração sua existência, decidindo o julgador como se o ato ou negócio houvesse sido praticado pela pessoa natural (ou outra pessoa jurídica). Na realidade, nessas hipóteses, a pessoa natural procura um escudo de legitimidade na realidade técnica da pessoa jurídica, mas o ato é fraudulento e ilegítimo. Imputa-se responsabilidade aos sócios e membros integrantes da pessoa jurídica que procuram burlar a lei ou lesar terceiros. Não se trata de considerar sistematicamente nula a pessoa jurídica, mas, em caso especifico e determinado, não levar em consideração. Tal não implica, como regra geral, negar a validade à existência da pessoa jurídica” (VENOSA, 2004).

Assim, os sócios ou terceiros administradores da sociedade ao praticarem qualquer conduta que enseje na aplicação do instituto submetem-se à responsabilidade patrimonial pessoal pelos prejuízos causados, destacando-se, pois, que no caso de esta vantagem haver se dado em favorecimento único e não extensivo aos demais sócios, somente aquele que a auferiu terá seu patrimônio invadido ao fito de garantir a adimplência das obrigações assumidas.

Sendo a Sociedade administrada por todos os sócios responderão eles, solidariamente, quando da efetiva aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, administrada por um só a desconsideração atinge tão somente seu patrimônio, caso o da sociedade não satisfaça o débito havidos frente aos terceiros.

Já no caso de a sociedade ser administrada por terceiro estranho à sua constituição, responderá ele pelos prejuízos decorrentes de sua administração, esbarrando aqui nas causas que ensejam na aplicação do instituto.

Noutro ponto, cumpre frisar que a desconsideração da personalidade jurídica não possui caráter amplo a qualquer tipo de negócio havido pela pessoa jurídica, mas tão somente àqueles em que o uso da distinção patrimonial se torna patente em ter se dado em detrimento a terceiros.

Não se confunde, pois, com a dissolução da sociedade que é externada pelo fim das atividades exercidas, seja meramente por decisão dos sócios, pelo término do prazo previsto no estatuto ou contrato social, seja ainda pela decretação de falência.

A desconsideração da pessoa jurídica foi o método encontrado pelo direito a coibir a utilização do instituto da pessoa jurídica para fins diversos da previsão de contrato ou estatuto social, bem como o enriquecimento indevido e a fraude contra credores, destacando-se, por ora, que a lei prevê e determina os casos a serem aplicados a disregard of legal entity no direito brasileiro, seja no âmbito do direito consumidor, do direito civil, trabalhista, previdenciário e tributários, fazendo-se uma apuração direta de que na realidade os requisitos para sua aplicabilidade traduzem-se na tentativa de se impedir a fraude.

2.3- A desconsideração da personalidade jurídica aplicada no direito civil

A teoria da desconsideração jurídica, até por ser relativamente uma novidade no direito brasileiro, não figurou no Código Civil de 1916, apresenta-se expressamente no ordenamento jurídico brasileiro, tão somente com a vigência da lei 8.078/94. Naquela época ainda se debatia a própria existência das pessoas jurídicas, ficando a desconsideração da mesma ligada a conceitos doutrinários e ou jurisprudenciais.

O Código Civil de 2002 por sua vez já nasceu na égide das novas teorias acerca da pessoa jurídica, inclusive da disregard of legal entity; o conceito da desconsideração da pessoa jurídica já permeava os comercialistas brasileiros, em especial o Professor Rubens Requião.

Seus apontamentos, ainda na fase de projeto, se mostravam amplamente críticos e levaram a uma nova redação do artigo, que se destinou tratar do tema da desconsideração.

A redação original do artigo 50 do Código Civil, segundo Fiúza (2002) era:

“Artigo 50. A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado, ou do Ministério Público, decretar-lhe a dissolução.

Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo das sanções cabíveis, responderão conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se tiver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.”

O referido artigo despertou inúmeras críticas. A principal era que sua redação era falha e despertava idéias que não condiziam com a desconsideração da pessoa jurídica, acerca deste artigo escreveu Xavier (1994) citado por Oliveira (2004) que se utilizando amplamente do direito comparado, procurou-se desenvolver uma regra a fim de coibir, o que denominou fraude por meio da pessoa jurídica ou abuso da personalidade jurídica, onde a responsabilidade, até então, exclusiva da pessoa jurídica, atingiria a pessoa dos administradores ou representantes daquela. Ou seja, poderia o credor buscar ressarcimento nos bens pessoais, contudo, o texto legal para Oliveira, deveria se limitar a norma contida no parágrafo único.

Para Oliveira (2004) a regra apresentada pelo caput do artigo era antagônica a verdadeira razão da aplicação da desconsideração da pessoa jurídica. A possibilidade de, a requerimento do lesado ou do Ministério Público o magistrado decretar a dissolução da pessoa jurídica afrontava as características e até a verdadeira finalidade da aplicação da disregard of legal entity.

“[…] o que não se concebe, porém, é que, para se sanar a lesão de que a pessoa jurídica foi vítima, pois seu nome foi utilizado, em proveito próprio, por sócios ou administradores desonestos, seja a pessoa jurídica dissolvida. E é isso, nada mais, nada menos, que é autorizado pelo ‘caput’ do mencionado art. 50, que permite a dissolução da pessoa jurídica de que se abusou, a requerimento do lesado ou do Ministério Público, e por decisão judicial. Cura-se a doença cortando-se a cabeça do doente. Acode-se ao lesado tirando-se-lhe a vida. Urge retirar ao Anteprojeto o perigoso radicalismo dessa sanção de dissolução” (XAVIER, 1994, citado por OLIVEIRA, 2004).

Ao final, influenciado pelos trabalhos de Requião, o Senador Josaphat Marinho, em emenda, alterou o texto do projeto e legou a redação que se encontra no nosso Código Civil.

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica” (CÓDIGO CIVIL, 2002).

A redação final também sofreu críticas por parte dos doutrinadores, apesar de se coadunar com a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, alguns doutrinadores argumentam que o artigo é falho em não explicitar o vocábulo “fraude” em seu texto e apenas deixá-lo implícito.

A referida idéia não pode e não deve levar ao esquecimento a aplicação do artigo no ordenamento jurídico brasileiro, e ainda, não o descaracterizará como a base da teoria da desconsideração da pessoa jurídica no direito pátrio.

Deveras, o artigo 50 do novel diploma civil não faz menção expressa aos institutos do dolo e fraude, fazendo-se estes, parte integrante dos elementos que acarretam na nulidade dos atos e negócios jurídicos.

Verifica-se o dolo no consciente uso da pessoa jurídica, como in casu, no momento de sua constituição atribuindo-lhe as benesses da sociedade limitada, para a prática de atos ilícitos. Já a fraude por sua vez encontra-se muito próxima do dolo vez que seu objetivo final se dá na utilização da pessoa jurídica para fins ilícitos e o resultado acaba sendo o mesmo, o prejuízo a terceiros.

No desvio de finalidade a pessoa jurídica é utilizada para a prática de atos diversos de sua finalidade social, não se confundindo aqui com a teoria ultra vires.

Com isso, tem-se a confusão patrimonial ocorrida entre os bens particulares dos sócios e os bens da sociedade, um exemplo clássico em que a sociedade adquire determinado automóvel para o desempenho de suas atividades, registrando-o, porém, em nome particular de determinado sócio.

No direito civil apesar não se fazerem expressas as causas de dolo e fraude no uso da personalidade jurídica, cabem-lhes a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, vez que sua principal finalidade visa justamente impelir a prática de atos que vem a dar causa ao enriquecimento indevido e à fraude aos credores.

É importante destacar que nas relações em que se aplicam as regras do CC, ao juiz é defeso aplicar a teoria por mero ato de ofício, mas tão somente após manifestação das partes interessadas e ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo.

3- CONCLUSÃO

A utilização da personalidade jurídica, através da sociedade limitada, passou a ser tida como a forma de constituição societária mais vista no ordenamento jurídico, principalmente no brasileiro.

Devido a sua distinção patrimonial face aos bens de seus sócios, bem como a limitação das responsabilidades destes aos limites do capital social devidamente integralizado, a mesma era algumas vezes utilizada para fins ilícitos, seja na fraude contra os credores, como também como forma de enriquecimento indevido.

Ocorre, porém, que o direito, adequando-se ao meio social, instituiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que visa justamente impelir tal prática, assegurando, todavia, o principio da boa fé.

Dessa forma, com esta evolução, a Sociedade (pessoa jurídica) não mais pode ser utilizada como meio artificioso em detrimento de terceiros, momento em que o Poder Judiciário exerce função inibidora de práticas que coadunam com o abuso da personalidade jurídica.

Assim, a importância da teoria nos diversos ramos do direito, em especial, in casu, ao direito civil, passa a ser ferramenta expressa nas legislações pátrias, assegurando a igualdade entre as partes nas relações negociais, e evitando, conforme revelado o favorecimento de uns em detrimento de outros.

 

Referências
________. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Lex: Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 20 jul 2010.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. v.1, São Paulo: Saraiva, 2003. 176 p.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de direito comercial. São Paulo: Atlas, 2007. 727 p.
FIÚZA, Ricardo (Coord). Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002. 1795 p.
GAGLIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: obrigações. São Paulo: Saraiva, 2004. 390 p.
NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. São Paulo: Saraiva, 2005. 1 v. 521 p.
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Tratado de direito empresarial brasileiro: teoria geral do direito societário. Campinas: LZN, 2004. v.2. 833 p.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 4. ed., São Paulo : Atlas, 2004. 1 v. 663p.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral; 5. ed., São Paulo: Atlas, 2005.  1 v. 674 p.

Informações Sobre o Autor

Luciano Siqueira Salim

Advogado; Pós Graduado em Direito Civil e Processual Civil; Mestrando em Direito pela Univem


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