Resumo: O artigo apresenta um estudo sobre a legitimação do poder normativo das agências reguladoras pelo instituto da deslegalização. Para isso é realizada uma análise do tema da Reforma do Estado e da Constituição Federal de 1988, assim como das características das agências reguladoras, especificamente o seu poder normativo, e o momento no qual elas foram inseridas no ordenamento jurídico brasileiro. Constata-se que apesar da Constituição Federal não ter previsto expressamente a forma de atuação do poder normativo desses entes regulatórios, não há inconstitucionalidade quanto a essa atuação, tanto no concernente ao princípio da legalidade quanto à delegação de poderes legislativos. Nesse contexto, verifica-se uma evolução do modelo estatal, no interesse da coletividade, que deve ser acompanhado pelo Direito; porém sem ferir princípios e diretrizes constitucionais.
Palavras-chave: Deslegalização. Estado regulador. Agências reguladoras. Poder normativo. Princípio da legalidade. Delegação de poderes.
Abstract: This article presents an analysis about the legitimation of independent regulatory commission`s rulemaking power by deslegalization institute. For that, it analyses the State reform, Federal Constitution from 1988 and regulatory commission features, mainly its rulemaking power and when it was introduced on brazilian legal system. We realize that even the independent regulatory commission`s power has not been established at Federal Constitution, there is no unconstitutionality on that, as for rule of law as delegation of legislative power. In this way, we see a development on a kind of State, through community interesting, which should be followed by Law; however, without break principles and constitutions clause.
Keywords: Deslegalization. Regulatory State. Independent regulatory commission. Rulemaking power. Rule of law. Delegation of power.
Sumário: 1. Introdução; 2. Agências reguladoras e a reforma do Estado; 3. Poder normativo e a questão da deslegalização; 4. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
Com a mudança do modelo de Estado Social para o modelo Regulador e a, consequente, Reforma do Estado brasileiro, é introduzida no ordenamento jurídico a possibilidade de serem criadas autarquias especiais, denominadas Agências Reguladoras, com finalidade de disciplinar e controlar atividades econômicas em sentido amplo (serviços públicos e atividades econômicas em sentido estrito).
Uma das principais características desses entes é o poder normativo, que encontra algumas barreiras constitucionais para se legitimar, causando uma série de árduas discussões na doutrina. O presente trabalho pretende contribuir para estas conversas doutrinárias, analisando o instituto de deslegalização (ou delegificação) como forma legítima das agências exercerem este poder a elas conferido.
A deslegalização consiste em uma lei rebaixar hierarquicamente determinada matéria para que ela possa vir a ser tratada por regulamento. Como todo instituto importado do Direito alienígena, é necessário fazer algumas adaptações para compatibilizá-lo com o nosso ordenamento. E, como toda novidade, surgem várias vozes contrárias, argumentando no sentido de sua inconstitucionalidade.
Assim, são essas controvérsias que passam agora a serem analisadas no presente trabalho; com enfoque na discussão sobre possível delegação de competência e malferição ao princípio da legalidade.
2 AGÊNCIAS REGULADORAS E A REFORMA DO ESTADO
As agências reguladoras são pessoas jurídicas de direito público interno, especificamente do poder administrativo, e, por isso, devem obedecer aos preceitos do art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988. Embora criadas por lei, sua instituição (existência fática) depende de autorização regulamentar do chefe do Executivo, através de uma avaliação discricionária sobre a conveniência e oportunidade da descentralização administrativa.
Criadas sob a natureza de autarquia especial, caracterizam-se por serem entidades com grau reforçado de autonomia gerencial, orçamentária e financeira, imunizadas de ingerências político-partidárias e investidas de funções técnicas e poderes normativos. Atuando como agente normativo e regulador da atividade econômica[1], essas autarquias têm como função incentivar, fiscalizar e planejar, sendo este indicativo para o setor privado e determinante para o setor público, nos termos do art. 174 da CF/88.
Esses entes foram implementados, em escala mundial[2], com o surgimento do Estado Regulador, após a insuficiência do Estado Social em prover suas obrigações[3], e seu consequente declínio no final da década de 70 e início da década de 80 do século XX.
É através dela que o Estado atua, indiretamente, na economia. Para Eros Roberto Grau[4] o Estado, com o advento do modelo Regulador, passa a “dinamizar técnicas específicas de atuação”; sendo elas:
“1.atuação na economia: 1.1 atuação por absorção, quando o Estado assume, em regime de monopólio, o controle dos meios de produção e/ou troca de determinado setor; 1.2atuação por participação, quando o Estado assume parcialmente (em regime de concorrência com agentes do setor privado) ou participa do capital de agente que detém o controle patrimonial dos meios de produção e/ou troca; 2. atuação sobre a economia: 2.1 atuação por direção, que ocorre quando o Estado exerce pressão sobre a economia, estabelecendo normas de comportamento compulsório para os agentes econômicos; 2.2 atuação por indução, que ocorre quando o Estado dinamiza instrumentos de intervenção em consonância e na conformidade das leis que regem o funcionamento dos mercados.”
No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 não previu forma de atuação desses entes regulatórios, parecendo ter sido elaborada para um Estado Social de Direito (Welfare state). Ou melhor, para um Estado promotor da justiça social[5].
A nível infraconstitucional, a Lei n.8.031, de 12 de abril de 1990, que instituiu o Plano Nacional de Desestatização, reformulado pela Lei 9.491, de 9 de setembro de 1997 (com as alterações da Medida Provisória 2.161-35, de 23 de agosto de 2001), veio introduzir no ordenamento jurídico pátrio o ideal neoliberal (assim como o princípio da subsidiariedade), no intuito de transacionar a passagem do Estado de Social ao Regulador[6].
Nessa tendência foram editadas algumas Emendas Constitucionais[7] que afetaram especificamente os monopólios criados pela Constituição Federal de 1988 e a Emenda n° 6/2005, suprimindo o art. 171 daquela Carta, que trazia a proteção e benefícios especiais à empresa brasileira de capital nacional.
No esteio das mudanças introduzidas no ordenamento jurídico pátrio, há, na atualidade, uma grande discussão doutrinária quanto à legitimação do poder normativo das agências reguladoras, que, paradoxalmente, tem finalidade de disciplinar e controlar certas atividades[8].
Aqui cabe a lição de Carvalho Filho no sentido de que, apesar de o sistema introduzido pela reforma administrativa do Estado não estar abarcado pela concepção clássica da atuação dos órgãos administrativos no poder normativo, não induz em uma quebra do mesmo. Pelo contrário, caracteriza-se, apenas, como uma “evolução natural no processo cometido ao Estado de gestão dos interesses coletivos”[9].
3 PODER NORMATIVO E A QUESTÃO DA DESLEGALIZAÇÃO
A princípio, antes de adentrar na análise do instituto da deslegalização, cabe considerar que a função normativa pressupõe duas premissas, quais sejam: “1ª) a norma jurídica constitui um elemento essencial do ordenamento jurídico; 2ª) a norma jurídica consubstancia invocação de preceito primário no ordenamento jurídico”[10].
Nesse sentido, entende-se por função normativa “a de emanar instituições primárias, seja em decorrência de exercício do poder originário para tanto, seja em decorrência do poder derivado, contendo preceitos abstratos e genéricos”[11](grifo do autor); estando nela compreendida a função legislativa e a função regulamentar (institucionais)[12].
O poder normativo conferido às agências é de caráter eminentemente técnico, e, mesmo editando normas gerais, as agências atuam no exercício da função administrativa; não havendo, pois, qualquer forma de usurpação de natureza legiferante[13].
A deslegalização, cuja idéia básica foi desenvolvida na Itália, consiste na possibilidade de o Parlamento estabelecer princípios gerais e diretrizes sobre determinada matéria que não fosse reserva absoluta de lei, porém já disposta em lei formal; e, nessa mesma lei deslegalizadora (superveniente), atribuir competência delimitada ao governo para editar decretos regulamentares, o qual acabaria por ab-rogar a lei formal que estava vigente[14].
A deslegalização, também chamada de delegificação, acontece, segundo J. J. Gomes Canotilho[15], quando “uma lei, sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser modificada por regulamento.”. E ainda: tendo como limite as matérias constitucionalmente reservadas à lei.
Esse instituto, criado pela doutrina européia, tem sido tema de grandes discussões entre os doutrinadores pátrios e estrangeiros. A doutrina contrária à tese que fundamenta o instituto advoga que, nesse caso, a lei atuaria delegando competência legislativa (o que só é possível em sede constitucional), ou seja, derrogando infraconstitucionalmente competência legislativa. Por outro lado, ao Executivo seria permitido, inclusive, revogar leis através de regulamentos. Havendo, pois, uma degradação do grau hierárquico da lei, a delegificação ofenderia o princípio da legalidade, possibilitaria que regulamentos inovassem na ordem jurídica e permitiria uma delegação de competências.
Gustavo Binenbojm[16], com fulcro no princípio da legalidade, afirma que tal preceito
“importaria, ao ângulo formal, a possibilidade de o legislador alterar o procedimento legislativo previsto na própria Constituição – o que é inadmissível. Estar-se- ia diante de uma delegação legislativa inominada, incompatível com a carta da República.
Ao ângulo material, a adoção da tese de deslegalização significaria que a agência não mais estaria sujeita às normas ditadas pela autonomia dos cidadãos […]”
Acompanhando o mesmo raciocínio, Letícia Queiroz de Andrade[17] fundamenta-se, principalmente, no princípio da legalidade (art. 5°, II, da Constituição Federal) para afirmar que regulamentos não podem gerar direito e obrigações e que não é possível haver delegação de competência (para a autora, a deslegalização implica delegação de competência). A doutrinadora filia-se, pois, à corrente de que aquela permissão geraria regulamentos autônomos, e que estes não são possíveis no sistema jurídico brasileiro.
Diogo Figueiredo Moreira Neto[18] afirma, por outro lado, que o Poder Legislativo pode transferir mediante lei (poder de disposição) certas matérias que lhe são constitucionalmente deferidas (sem cláusula de exclusividade) a certos órgãos e sob certos pressupostos um específico espaço decisório (regulatório).
Já Alexandre dos Santos Aragão[19] afirma que essa teoria não consiste em uma “transferência de poderes legislativos, mas apenas na adoção, pelo próprio legislador, de uma política legislativa pela qual transfere a uma outra sede normativa a regulação de determinada matéria”; decorrendo, pois, do princípio da essencialidade da legislação.
Nesse sentido, questiona o autor[20]:
“se este tem poder para revogar uma lei anterior, porque não o teria simplesmente para rebaixar o seu grau hierárquico? Por que teria de, direta e imediatamente revogá-la, deixando um vazio normativo até que fosse expedido o regulamento, ao invés de, ao degradar a sua hierarquia, deixar a revogação para um momento posterior, ao critério da Administração Pública, que tem maiores condições de acompanhar e avaliar a cambiante e complexa realidade econômica e social?”
Nesse contexto, é importante mencionar que a deslegalização não consiste em uma delegação de poderes e nem confere poder aos regulamentos para revogar leis. A doutrina contrária ao instituto ora estudado ainda encontra argumentos no artigo 25 da ADCT[21], que teria vedado expressamente a delegação de competência normativa do Legislativo ao Executivo. Data vênia, pensamos que essa argumentação não deve prosperar haja vista que a redação deste artigo faz uma disposição retroativa, e não ultrativa. Nesse mesmo raciocínio, Fabiano Mendonça[22] afirma que:
“Como todo texto da norma, sua interpretação deve ser contextualizada. Volta-se ela não apenas à delegação do legislativo, mas a norma como Ato Institucional n° 05/68, o qual autorizava ao Presidente da República não só decretar o recesso do Congresso, como, inclusive, editar emendas constitucionais, como o fez. Dispositivo autoritário equivalente também estava presente na Carta de 1937.
(…) Entenda-se, então, que, de outubro de 1988 para frente, caberia apenas ao próprio Congresso, livre e democrático, controlar o seu exercício de poder. Não se pode retirar daí interpretação de vedação mais extensa, diante do que já foi apontado com o uso da tradicional interpretação lógico-sistemática da Carta Magna.”
Ademais, a lei deslegalizadora estabelece parâmetros e princípios (standards) a serem seguidos pelo regulamento; que está vinculado aos princípios constitucionais (expressos e implícitos). Por isso que, para Rafael Carvalho Rezende de Oliveira[23], ao invés de se falar em delegação de poderes, seria mais adequado falar em atribuição de competência pelo legislador ao administrador.
O ato normativo dessas autarquias especiais atuará dentro dos limites estabelecidos na lei; assim aquele ato administrativo tem caráter infralegal, não podendo ser equiparado à lei. Ao órgão regulador a lei atribui “o papel de preencher a moldura com conhecimentos técnicos à luz da realidade em que a lei vai ser aplicada”[24].
Aragão[25] também afirma que “o legislador, no uso de sua liberdade para dispor sobre determinada matéria, atribui um largo campo de atuação normativa à Administração, que permanece, em todo caso, subordinada às leis formais.”. Desta forma, os regulamentos estariam subordinados à lei, podendo ser revogados por estas, e não podendo revogá-las.
Compreendemos que a argumentação de que na deslegalização os regulamentos poderiam revogar as leis não encontra sustentação razoável. Pensamos assim por entender que a revogação da lei anterior não acontece no momento da expedição do ato normativo da Administração. Ela se dá “pela própria lei deslegalizadora que, utilizando-se do ato normativo da agência, opera uma verdadeira ‘revogação diferida’ no tempo”[26]. Ou seja, a revogação da lei anterior é operada por outra lei, qual seja, a lei deslegalizadora; as agências, dentro de suas atribuições técnicas, escolherão o melhor momento para tal “procedimento”.
Ademais, procedendo a análise dessa linha de defesa em conjunto com o disposto no artigo 174 da CF[27], entendemos que não há delegação de competência normativa na deslegalização, em virtude dessa norma ter conferido ao Estado a característica de agente normativo e regulador, devendo ser exercidas, na forma da lei, as funções a esses poderes conferidos.
Nesse diapasão, urge concluir que aquele dispositivo indica, em termos gerais, a faculdade do Poder Executivo atuar como regulador de mercados, distribuindo-se tal competência também pelos entes administrativos descentralizados, posto que o Texto Máximo não impõe exclusividade em prol do chefe da Administração. E também: a lei que cria a agência reguladora deverá determinar o seu campo de atuação normativa, que deverá, logicamente, fazer parte do seu campo de atuação.
Dessa forma, ao invés de a Constituição delimitar taxativamente quais matérias poderiam ser objeto de delegação, ela estabeleceu o rol negativo das matérias que não podem ser objeto, desse modo “a lei que descentralizar o poder deverá especificar ‘seu conteúdo e os termos de seu exercício’. Assim, ficaria estabelecida a discricionariedade” em que as agências poderiam atuar[28].
Nesse contexto, importante se faz mencionar a observação feita por Eros Grau, segundo o qual “se há um princípio de reserva de lei – ou seja, se há matérias que só podem ser tratadas pela lei – evidente que as excluídas podem ser tratadas por regulamentos”[29]. Além disso, a própria lei deslegalizante tem a função de autorizar a disciplina da matéria por regulamentos, e somente naquelas matérias que não contemplem reserva de lei[30].
Seguindo essa linha de raciocínio, cabe colacionar o julgado do Supremo Tribunal Federal, em sede de Recurso Extraordinário, que admite a tese ora defendida:
“EMENTA: TRIBUTÁRIO. IPI. ART. 66 DA LEI N° 7450/85, QUE AUTORIZOU O MINISTRO DA FAZENDA A FIXAR PRAZO DE RECOLHIMENTO DO IPI, E PORTARIA N° 266/88/MF, PELA QUAL DITO PRAZO FOI FIXADO PELA MENCIONADA AUTORIDADE. ACÓRDÃO QUE TEVE OS REFERIDOS ATOS POR INCONSTITUCIONAIS. Elementos do tributo em apreço que, conquanto não submetido pela Constituição ao princípio da reserva legal, fora legalizado pela Lei n° 4502/64 e assim permaneceu até a edição da Lei. n° 7450/85, que, no art. 66, o deslegalizou, permitindo que sua fixação ou alteração se processasse por meio da legislação tributária (CTN, art. 160), expressão que compreende não apenas a lei, mas também os decretos e as normas complementares (CTN, art. 96). Orientação contrariada pelo acórdão recorrido. Recurso conhecido e provido[31].”
Esse mesmo julgado (RExt n°140.669-1/PE), além da tese da deslegalização, admitiu, ainda que implicitamente, a tese da revogação diferida. Isso porque, apesar de existir o Decreto Lei n°326/67 fixando prazos específicos para o pagamento de IPI, o STF entendeu que este Decreto foi revogado pela Lei n°7450/86, mas que somente se operou após a edição da Portaria Ministerial n° 266/88.
Ainda no Supremo, no julgamento do AC n°1.193 QO-MC/RJ[32], foi declarado constitucional o procedimento licitatório no âmbito da Petrobrás estabelecido por Decreto presidencial (Decreto n° 2475/98) após a Lei n°9478/97 remeter toda a matéria para esta via. Ou seja, foi admitida, mais uma vez, a possibilidade da deslegalização.
Quanto à argumentação de malferição ao princípio da legalidade, pois os regulamentos inovariam na ordem jurídica, não compartilhamos de tal entendimento. Tomando por base a lição de Eros Roberto Grau[33], o art. 5°, inc. II, da CF (princípio da legalidade)
“estabelece uma reserva de lei em termos relativos (= reserva da norma), razão pela qual não impede a atribuição, explícita ou implícita, ao executivo para, no exercício de função normativa, definir obrigação de fazer e não fazer que se imponha aos particulares – e os vincule” [34]
Ainda nesse raciocínio, Eros Grau[35] ensina que se existem matérias que são reservadas à lei, evidentemente as demais poderão ser dispostas por regulamentos.
Contudo, releva, ainda, destacar que parte da doutrina ainda tenta refutar a delegificação sustentando-se na decisão do Supremo Tribunal Federal[36], na ADI n°1668 que decidiu, cautelarmente, dando interpretação conforme a Constituição, por rejeitar a possibilidade de Resolução da ANATEL derrogar, v. g., partes gerais da Lei de Licitações[37].
Contudo, há que se observar que a teoria de deslegalização tem como limite as matérias com reservas de lei. A necessidade de se observar o processo de licitação (art. 37, inciso XXI, da Carta Magna) tem de obedecer às condições estabelecidas “nos termos da lei”, ou seja, consiste em matéria de reserva legal (limite à deslegalização); além de compreender competência exclusiva[38] de a União legislar sobre normas gerais de licitação (art. 22, XXVII, CF)[39].
Com relação aos limites à técnica da deslegalização, além da reserva de lei específica, Rafael Carvalho[40] aponta, no ordenamento jurídico brasileiro, algumas outras. São elas: matérias reservadas à lei complementar e matérias que devem ser instituídas em caráter geral. E ainda: a medida provisória deslegalizadora deve respeitar tanto os requisitos de relevância e urgências, quanto o processo constitucional de legitimação da sanção legislativa; não podendo, logicamente, deslegalizar aquelas matérias as quais ela é vedada (art. 62, I, II, III e IV, da CF)
Passando a analisar a ordem do ser, há a questão da crise da lei formal em que a lei não é mais expressão da vontade geral e nem o meio mais adequado – com o seu lento processo legislativo – para tratar de questões de ordem técnica, ou seja, no exercício da função regulatória, em que a preparação rápida e eficiente do Estado se faz inerente[41].
Para Aragão[42],
“devemos observar que o Poder Legislativo, em face da complexidade, dinamismo e tecnização da sociedade, tem distinguido os aspectos políticos dos da natureza preponderantemente técnica da regulação social, retendo os primeiros, mas, consciente das suas limitações, transpassando a outros órgãos ou entidades, públicas ou privadas, a normatização de cunho marcadamente técnico.”
Conforme Marçal Justen Filho[43], o trâmite necessário para um projeto de lei se tornar lei não é inferior a dois anos; sendo este tempo incompatível com a natureza da regulação.
Além do mais, as agências conseguem superar obstáculos quase intransponíveis no âmbito do Congresso Nacional: a dimensão quantitativa (números de pessoas participando do processo normativo) e a complexidade qualitativa (qualidade das pessoas encarregadas desse processo).
No esteio dessa situação fática e dentro do regime jurídico da produção de normas abstratas, segundo o qual o procedimento específico a ser adotado pela agência deve ser orientado pela natureza da questão regulada e pela peculiaridade da situação, merece referência o princípio da adequação e o princípio da especialidade. Quanto ao primeiro, “o procedimento a ser seguido pela agência deve ser compatível com a natureza específica do tema tratado”[44]. Todas as questões tratadas pelas agências constituem-se em questões técnicas, e necessitam de agilidade; sendo, portanto, incompatível com a morosidade do Legislativo.
Quanto ao princípio da especialidade, a matéria a ser normatizada pela agência é de caráter técnico-científico. Assim, “o procedimento normativo tem de propiciar a identificação de todos os problemas técnicos e das soluções adequadas e compatíveis”[45]. Os problemas a serem solucionados por essas agências devem ser aquele recomendado pela ciência.
Ademais, temos que considerar que no próprio conceito de regulação está inserido a necessidade de descentralização administrativa, principalmente de natureza técnica, caracterizando – como falamos acima – a própria finalidade das agências reguladoras. Não podemos esquecer, também, que o caput do art. 37 (alterado com a Emenda 19/98) introduziu a necessidade de se obedecer ao princípio da eficiência na administração de qualquer dos Poderes Públicos.
4. CONCLUSÃO
A titulo de conclusão importa destacar alguns importantes aspectos.
Vimos que a recente “reforma” ocorrida no Estado brasileiro introduziu na Ordem Jurídica pátria a possibilidade de criação de entes regulatórios, porém entendemos que a Constituição Federal de 1988 não foi preparada para recepcioná-los e legitimar a sua atuação como seria devido.
Contudo, com a adoção do atual modelo estatal, fundado em uma doutrina neoliberal, é premente a necessidade de regulação (atuação indireta) da atividade econômica (em sentido amplo), haja vista que esta foi deixada à livre atuação dos particulares (parágrafo único do art. 170 c/c art. 173 da Constituição Federal), só atuando diretamente o Poder Público quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse público (art. 173 da Constituição Federal).
Nesse sentido, o Poder Público, por não mais estar presente diretamente na economia, tem que se valer da sua atuação na forma como lhe é constitucionalmente permitido, qual seja, agindo como agente normativo e regulador. E, como a Constituição Federal de 1988 não deixou de forma clara o modo de legitimação do poder normativo dos entes aqui tratados (o que consiste em sua finalidade), é papel da doutrina suprir essa lacuna jurídica.
No âmago desse cenário, conclui-se que não há qualquer inconstitucionalidade na atuação dos mesmos; sendo necessário fazer uma interpretação sistemática do ordenamento, levando em consideração a natural evolução do Estado (ocorrido em escala mundial), mas sem transgredir valores e princípios consagrados constitucionalmente.
Desse modo, não vemos qualquer inconstitucionalidade no instituto da deslegalização, que consiste em uma lei deslegalizadora estabelecer diretrizes para que um regulamento possa vir a atuar dentro desses standards estabelecidos.
Pensamos que, ao contrário do que muitos doutrinadores sustentam, na deslegalização não há delegação de poderes legislativos. A lei deslegalizadora estabelece parâmetros e princípios a serem seguidos pelo regulamento. Dessa forma, este só vai poder atuar dentro do estabelecido na lei, não podendo excedê-la. Isso quer dizer que há uma atribuição de poder dentro dos limites legais e constitucionais (como, v.g., os princípios estabelecidos no art. 37, caput, da CF/88)
Essa interpretação, que compreendemos equivocada, se dá pelo fato de se dizer que nesse instituto há uma degradação do grau hierárquico. No entanto, a degradação consiste nas diretrizes estabelecidas pela lei, tendo o regulamento a discricionariedade para atuar dentro desses limites. Mas isso não caracteriza colocar a lei e o regulamento no mesmo patamar; tanto é que o regulamento não tem poder de revogar a lei, e pode ser revogado por ela. A revogação da lei anterior à lei deslegalizadora não é dada pelo regulamento, mas sim pela própria lei que deslegalizou, conforme a chamada “revogação diferida”.
Quanto ao princípio da legalidade (art. 5, II, da CF), entendemos que este estabelece uma reserva de norma, ou seja, lei em sentido material, que pode ser tanto lei quanto regulamento. Afinal, todo regulamento inova na ordem jurídica, em grau maior ou menor; havendo sempre alguma inovação. Dessa forma não há que se falar em regulamentos autônomos em sede de poder normativo das agências; o que há são simplesmente regulamentos para executar o estabelecido na lei deslegalizadora.
E aqui ainda cabe a consideração de que função ou poder normativo não se confunde com função ou poder legiferante (legislativo). Aquele é gênero, do qual este é espécie juntamente com a função regulamentar.
De todo o exposto decorre que muito há que se estudar e debater sobre o tema objeto do presente estudo, que, longe de trazer observações inflexíveis sobre a matéria, tem por fim tão somente contribuir para a sua polêmica discussão.
Informações Sobre o Autor
Ricardo Duarte Jr
Doutorando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Especialista em Direito Administrativo pela UFRN; Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UnP); Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF), Coordenador da Pós-graduação em Direito Administrativo no Centro Universitário Facex (UniFacex), Procurador Geral do Município de São Bento do Norte, Advogado, Consultor Jurídico e sócio do escritório Duarte & Almeida advogados associados