A Discricionariedade do Supremo Tribunal Federal e a Modulação dos Efeitos das Decisões Proferidas em Sede de Controle de Constitucionalidade

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Marília Mateus Marques

Resumo: Este artigo possui o objetivo de analisar o papel da discricionariedade do Supremo Tribunal Federal brasileiro na modulação dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Ele analisa as hipóteses legais autorizadoras da modulação dos efeitos das referidas decisões, analisando, de forma breve, o conceito jurídico indeterminado “segurança jurídica”, utilizado pelo legislador como condição para a realização da modulação. Para tanto, faz uma análise da doutrina existente acerca do tema.

Palavras-chave: direito constitucional; controle de constitucionalidade; modulação dos efeitos da decisão; discricionariedade do julgador.

 

Abstract: This article aims to analyze the role of the discretion of the Brazilian Federal Supreme Court in modulating the effects of the decisions handed down in the concentrated control of constitutionality. It analyzes the legal hypotheses that allow the modulation of the effects of those decisions, analyzing briefly the indeterminate legal concept “legal certainty”, used by the legislature as a condition for the realization of modulation. To this end, it analyzes the existing doctrine on the subject.

Keywords: constitutional Law; constitutionality control; modulation of the effects of the decisions; judge’s discretion.

 

Sumário: Introdução. 1. Breves Considerações sobre Controle de Constitucionalidade. 2. Dos Efeitos das Sentenças Proferidas no Controle Concentrado e da Modulação dos seus Efeitos. 2.1. Requisitos Legais para Modulação. 3. Da Discricionariedade. Conclusão. Referências Bibliográficas.

 

Introdução

O presente artigo visa analisar a discricionariedade do Supremo Tribunal Federal na modulação dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade.

Trata-se de uma análise, ainda que limitada, da margem de discricionariedade que o Supremo Tribunal Federal possui no exercício de sua função precípua de guardião da Constituição da República Federativa do Brasil, ao realizar o controle de constitucionalidade das normas jurídicas por meio de ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e arguição de descumprimento de preceito fundamental.

O art. 27 da Lei 9.868/1999 e o art. 11 da Lei 9.882/1999 trouxeram ao ordenamento jurídico nacional a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal realizar a modulação no tempo dos efeitos das decisões preferidas em ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e arguição de descumprimento de preceito fundamental. Por meio da modulação, a Corte pode, por decisão de dois terços de seus membros, visando resguardar a segurança jurídica ou o excepcional interesse social, fazer com que a declaração de inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo valha a partir do trânsito em julgado da decisão ou de outro momento que considerar conveniente o Tribunal, em oposição aos efeitos tradicionais da declaração de inconstitucionalidade, que são ex tunc.

Ocorre que a modulação tem por objetivo resguardar a “segurança jurídica” ou o “excepcional interesse social”, conceitos jurídicos indeterminados. Assim, no preenchimento destes conceitos vagos, surge uma margem de liberdade na aplicação da modulação.

O objetivo deste artigo, em última instância, é analisar, ainda que de forma superficial, a modulação, suas possibilidades e suas limitações, do ponto de vista da discricionariedade do Supremo Tribunal Federal.

Para tanto, realizou-se levantamento bibliográfico e revisão doutrinária acerca do tema.

 

  1. Breves Considerações sobre Controle de Constitucionalidade

Como este artigo tratará de assunto afeto ao controle de constitucionalidade repressivo pela via concentrada, é faz necessário lembrar do que se trata o controle de constitucionalidade.

O ordenamento jurídico brasileiro tem como um de seus alicerces estruturais o princípio da supremacia da constituição. Trata-se de princípio diretamente relacionado com as constituições classificadas como rígidas[1].

Nos Estados com constituições rígidas, segundo José Afonso da Silva (Silva, 2015), a constituição é colocada no “vértice” do sistema jurídico nacional. A constituição é, portanto, a norma fundamental do Estado, da qual todas as demais normas do ordenamento retiram seu fundamento de validade.

Assim, nestes Estados, como é o caso do Brasil, as normas constitucionais são hierarquicamente superiores a todas as demais normas do sistema jurídico, sendo, portanto, o fundamento de validade de todo o ordenamento[2].

No entanto, para que uma norma retire o seu fundamento de validade daquela norma que lhe é hierarquicamente superior, é indispensável que a primeira seja compatível com a segunda. Daí se extrai o contexto e a função do controle de constitucionalidade: ele é, em última instância, a forma de verificação da compatibilidade vertical das normas infraconstitucionais com a constituição, ou, nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Ferreira Filho, 2015, p. 62):

“Controle de constitucionalidade é, pois, a verificação da adequação de um ato jurídico (particularmente da lei) à Constituição. Envolve a verificação tanto dos requisitos formais – subjetivos, como a competência do órgão que o editou – objetivos, como a forma, os prazos, o rito, observados em sua edição – quanto dos requisitos substanciais – respeito aos direitos e às garantias consagrados na Constituição – de constitucionalidade do ato jurídico.

É isso o que sempre ensinou a doutrina clássica.”

Nesse sentido, é por meio do controle de constitucionalidade que o ordenamento jurídico verifica a compatibilidade de uma norma com aquela que lhe dá fundamento de validade. A doutrina, de forma geral[3], classifica o controle de constitucionalidade em duas modalidades: preventivo e repressivo.

O controle de constitucionalidade preventivo ocorre durante a fase de elaboração da norma, ou seja, durante o processo legislativo e visa impedir a entrada da norma inconstitucional no sistema jurídico.

O controle de constitucionalidade repressivo, por sua vez, ocorre após a entrada em vigor da norma e busca retirar do ordenamento as normas inconstitucionais que, por ventura, nele adentraram.

A este artigo importa apenas o controle de constitucionalidade repressivo, especialmente em sua via concentrada. O controle de constitucionalidade repressivo pela via concentrada, doravante denominado “controle concentrado”, é aquele que ocorre por meio das ações do controle abstrato de constitucionalidade, quais sejam, ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e arguição de descumprimento de preceito fundamental, e visa à declaração de inconstitucionalidade de normas incompatíveis com a Constituição Federal.

Atualmente, a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade encontram assento constitucional no art. 102, I, a, da Constituição Federal. Por sua vez, a arguição de descumprimento de preceito fundamental assenta-se no §1º do art. 102 da Constituição Federal.

No entanto, é certo que as referidas normas constitucionais não trazem, de forma pormenorizada, o procedimento das ações do controle concentrado. Foi neste contexto que foram editadas as Leis nº 9.868/1999 e 9.882/1999, que regulamentam, a primeira, o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade e, a segunda, o procedimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental.

 

  1. Dos Efeitos das Sentenças Proferidas no Controle Concentrado e da Modulação dos seus Efeitos

Em regra, as sentenças proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações do controle concentrado têm efeito ex tunc, ou seja, os seus efeitos retroagem até o momento da edição da norma inconstitucional.

Isso se dá porque, como já declarou a Suprema Corte Norte Americana (Suprema Corte Norte Americana, 2020), “[a]n unconstitutional act is not a law; it confers no rights; it imposes no duties; it affords no protection; it creates no office; it is in legal contemplation as inoperative as though it had never been passed”, ou, em uma tradução livre: um ato inconstitucional não é uma lei; não confere direitos; não impõe deveres; não oferece proteção; não cria nenhum escritório; está em contemplação legal (jurídica) tão inoperante como se nunca tivesse sido aprovado. Trata-se de uma expressão do entendimento arraigado na doutrina nacional, e também na doutrina americana, de que a lei inconstitucional é nula.

Elival da Silva Ramos (Ramos, 2010, p. 88) declara, também nesse sentido, que a norma inconstitucional padece de uma “ineficácia congênita”, ou seja, na qualidade de norma inválida e ineficaz, ela jamais adentrou verdadeiramente o sistema jurídico. Assim, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal tem caráter meramente declaratório e apenas proclama formalmente a ausência de validade, eficácia e vigência, da qual sempre padeceu a norma, como se o ato normativo jamais tivesse existido.

Tradicionalmente, pela aplicação da deste entendimento doutrinário, não se admitia qualquer tipo de modulação dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Significa dizer: se a norma jamais foi válida e eficaz, resta ao Supremo Tribunal Federal apenas declarar tal situação, reconhecendo a nulidade da norma.

Ocorre que a Lei nº 9.868/1999 trouxe, em seu bojo, previsão legislativa que autorizou o Supremo Tribunal Federal a modular, no tempo, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida em sede de julgamento de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade. Vejamos a redação do art. 27 da Lei nº 9.868/1999:

“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

Idêntica previsão legislativa foi incorporada ao art. 11 na Lei nº 9.882/1999, de forma que a modulação pode ocorrer, também, nos julgamentos das arguições de descumprimento de preceito fundamental. Assim, excepcionalmente, o Supremo Tribunal Federal pode modular no tempo os efeitos de suas decisões.

A modulação supramencionada, se esclarece, só pode ser admitida em situações excepcionais, como bem demonstra Uadi Lammêgo Bulos (Bulos, 2018, p. 310):

“Somente em situações absurdas, teratológicas, que ocasionem estados de injustiça e insegurança, é que se pode flexibilizar a regra da Lei n. 9.868/99 (art. 26).

Suponhamos que uma decisão transitada em julgado, com lastro em lei que posteriormente veio a ser declarada inconstitucional, ofenda direitos adquiridos, atente contra a dignidade humana, malsine o pórtico da isonomia etc. Imaginemos, ainda, uma sentença transitada em julgado que ao declarar a constitucionalidade de uma lei malsine direitos comezinhos derivados da cidadania, princípios ínsitos às liberdades públicas, postulados fundamentais do Estado brasileiro.

Em ambas as hipóteses é a própria segurança jurídica que estará em jogo, bem como o postulado da justiça social.”

Assim, é importante mencionar que, sempre que tratamos de modulação, devemos considerar que se trata de situação excepcionalíssima. A regra é a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc. Assim, evidentemente, a margem de discricionariedade do Supremo Tribunal Federal, em termos de modulação dos efeitos de suas decisões, será reduzida, muito em decorrência da excepcionalidade da medida.

É relevante mencionar que, com a entrada em vigor das Leis nº 9.868/1999 e 9.882/1999, houve discussão jurídica relevante acerca da constitucionalidade dos arts. 27 e 11, respectivamente, na medida em que a Constituição Federal não traz qualquer norma que embase, expressamente, a modulação. No entanto, esta discussão restou, de alguma forma, superada pela reiterada utilização da técnica de modulação pelo Supremo. Considerando que a constitucionalidade do instituto não está no escopo deste trabalho, limita-se a mencionar tal discussão, por puro preciosismo.

 

2.1. Requisitos Legais para Modulação

Acerca da modulação dos efeitos de suas decisões no tempo, inicialmente, é necessário compreender os requisitos legais para que o Supremo Tribunal Federal possa realizá-la. Isso porque, cumpre lembrar novamente, a regra, no controle concentrado, é que a decisão declaratória da inconstitucionalidade tenha efeitos ex tunc.

Assim, é necessário compreender quais os casos em que, excepcionalmente, o Supremo Tribunal Federal pode realizar a modulação dos efeitos de suas decisões no tempo. Para tanto, analisa-se o art. 27 da Lei nº 9.868/1999[4]:

“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

Da simples leitura do texto, podemos extrair dois requisitos expressos para a modulação, quais sejam: (i) a concordância de dois terços dos membros da Corte; e (ii) a existência de “razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social”.

O primeiro dos dois requisitos é de natureza objetiva e refere-se ao número mínimo de Ministros necessário para que seja aprovada a modulação dos efeitos da decisão que decreta a inconstitucionalidade. Aqui, cumpre mencionar que a norma sinaliza claramente a excepcionalidade da modulação, pois não basta que apenas um ou dois Ministros entendam ser necessária a modulação dos efeitos de determinada decisão, que reconhece a inconstitucionalidade de uma norma. O quórum é elevado justamente para que a modulação não se torne a regra, ou seja, o requisito é uma expressão da característica da excepcionalidade, inerente à modulação.

O segundo requisito legal traz uma margem de discricionariedade à aplicação da norma em decorrência do uso dos conceitos jurídicos indeterminados de “excepcional interesse social” e “segurança jurídica”. Diante disto, é necessário compreender a natureza de tais conceitos, que são causa justificadora da atuação discricionária do Supremo Tribunal Federal.

 

  1. Da Discricionariedade

Celso Antônio Bandeira de Mello distingue, da seguinte forma, a atuação vinculada da discricionária (Mello, 2017, p. 9):

“Haveria atuação vinculada e, portanto, um poder vinculado, quando a norma a ser cumprida já predetermina e de modo completo qual o único possível comportamento que o administrador estará obrigado a tomar perante casos concretos cuja compostura esteja descrita, pela lei, em termos que não ensejam dúvida alguma quanto ao seu objetivo reconhecimento. Opostamente, haveria atuação discricionária quando, em decorrência do modo pelo qual o Direito regulou a atuação administrativa, resulta para o administrador um campo de liberdade em cujo interior cabe interferência de apreciação subjetiva sua quanto à maneira de proceder nos casos concretos, assistindo-lhe, então, sobre eles prover na conformidade de uma intelecção, cujo acerto seja irredutível à objetividade e ou segundo critérios de conveniência e oportunidade administrativa. Diz-se que, em tais casos, a Administração dispõe de um “poder” discricionário.”

A discricionariedade, portanto, representaria, para o Administrador, uma margem de liberdade na aplicação legislativa, conforme Bandeira de Mello posteriormente conclui na mesma obra (Mello, 2017, p. 48):

“Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.”

Não obstante, é, importante ressaltar que o Administrador[5], mesmo diante de uma margem de liberdade, está vinculado à lei, e, portanto, a discricionariedade só tem lugar quando está voltada ao atingimento da finalidade legal. Daí por que Celso Antônio Bandeira de Mello (Mello, 2017, p. 15) diz que, antes de falarmos em um poder discricionário estaríamos diante de um “dever discricionário”.

Dentre as causas da discricionariedade, destaca-se a utilização pelo legislador de expressões que Celso Antônio Bandeira de Mello (Mello, 2017, p. 17) descreve como “conceitos algo fluídos, algo imprecisos, também chamados de vagos ou indeterminados ou elásticos (…)”. Dentre o extenso rol de expressões e conceitos indeterminados, encontramos os conceitos de “segurança jurídica” e de “excepcional interesse social”, como previstos no art. 27 da Lei 9.868/1999 e no art. 11 da Lei 9.882/1999.

No entanto, a margem de liberdade do Supremo Tribunal Federal, na modulação temporal dos efeitos de suas decisões, encontra, na própria natureza da discricionariedade, algumas de suas limitações e possibilidades.

Cumpre destacar, primeiramente, que, em se tratando de conceitos indeterminados, existem campos de certeza positivos e negativos, ou seja, hipóteses em que o Administrador não possui qualquer grau de incerteza sobre a aplicação ou não do conceito ao caso concreto. À título exemplificativo, analisemos o julgamento, realizado em 2007, pelo Supremo da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 2.240. A referida ação insurgia-se contra a Lei Estadual nº 7.619/2000 do Estado da Bahia, que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães e que contrariava o §4º do art. 18 da Constituição Federal. No julgamento realizado, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação direta de inconstitucionalidade para declarar a inconstitucionalidade da Lei Estadual, mas, modulando os efeitos da sua decisão, manteve a vigência da norma pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses a partir do trânsito em julgado da decisão, de forma a permitir que o legislador estadual elaborasse novo regulamento para o Município (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2007).

Ora, não havia qualquer dúvida, neste caso, de que a declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual, com efeitos ex tunc, poderia gerar irremediáveis e desastrosas consequências: na prática, o Município existiu, forneceu serviços públicos, firmou contratos, contratou servidores públicos, realizando o pagamento de seus salários, institui tributos e realizou a sua cobrança por quase sete anos, antes que a inconstitucionalidade de sua criação fosse declarada. Assim, a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc, neste caso, traria graves consequências colocando em risco o interesse social e, em especial, a segurança jurídica.

Trata-se de um caso no qual não existe incerteza. Há, aqui, uma zona de certeza positiva: a não modulação da decisão que declara a inconstitucionalidade levará a grande insegurança jurídica.

Nesse sentido, pode-se dizer que “a aplicação continuada de uma lei por diversos anos torna quase impossível a declaração de sua nulidade, recomendando a adoção de alguma técnica alternativa com base no próprio princípio constitucional da segurança jurídica” (Mendes & Martins, 2009, p. 548).

Assim, apesar de existir uma margem de discricionariedade ao Supremo Tribunal Federal, decorrente do uso de conceitos indeterminados pelo legislador, podemos dizer que a liberdade da Corte seria mínima, em casos enquadrados no campo de certeza positivo, dada a certeza decorrente do caso concreto analisado. Neste caso, com a devida vênia, o “dever discricionário” e a própria vinculação do Estado à lei exigem que o Supremo Tribunal Federal realize a modulação.

Na hipótese que ora analisamos, a discricionariedade do Supremo se limitaria à fixação temporal, ou seja, na ponderação acerca da aplicação de efeitos ex nunc, a partir do trânsito em julgado da sentença, ou ainda, pro futuro.

Algo parecido ocorre no campo negativo de certeza: havendo casos em que se tem certeza de que a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc não afrontará o excepcional interesse social e a segurança jurídica, a Corte se vê impedida de modular os efeitos da decisão.

Vale dizer, nessa hipótese, o Tribunal não tem liberdade para realizar a modulação, dado que, pela não incidência da hipótese legal, é obrigado a manter a declaração de inconstitucionalidade com seus efeitos ex tunc.

O problema consiste, na realidade, naquela zona intermediária de incerteza, decorrente do conceito indeterminado. Explica-se: analisando o caso concreto, é possível que o Supremo Tribunal Federal identifique uma possível insegurança jurídica ou afronta ao excepcional interesse social, caso a decisão proferida possua efeitos ex tunc. No entanto, não há certeza, somente uma possibilidade. Ainda, é possível que a insegurança jurídica causada seja relativamente pequena ou que o interesse social afrontado não seja evidentemente excepcional. Nestes casos, existe uma maior discricionariedade do Supremo Tribunal Federal, dado que o Tribunal precisará analisar o caso concreto para verificar se há, ou não, a incidência da norma, delimitando o que entende por “segurança jurídica” e por “excepcional interesse social”.

A análise do conteúdo do termo “segurança jurídica” permite entender a extensão da discricionariedade concedida nestes casos.

A segurança jurídica é um princípio constitucional implícito e pode ser conceituada, segundo José Afonso da Silva (SILVA, 2006, p. 133), como uma conjectura que faz possível o conhecimento antecipado das consequências de atos e fatos à luz da liberdade juridicamente reconhecida e é reconhecida um dos princípios do próprio Estado Democrático de Direito (SILVA, 2015, p. 124).

Nesse sentido, podemos dizer que o princípio da segurança jurídica incorpora um objetivo do ordenamento de garantir a estabilidade das relações jurídicas existentes e dar aos tutelados segurança para o exercício de seus deveres e direitos.

Na qualidade de princípio implícito, a segurança jurídica não encontra uma previsão constitucional expressa. No entanto, é possível localizar na Constituição Federal e nas demais leis do ordenamento diversas normas que visam à realização da segurança jurídica. Mencionamos, a título exemplificativo, a proteção ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido, a irretroatividade da lei penal, a ficção do conhecimento obrigatório da lei, a garantia de ampla defesa e de contraditório, a exigência de prévia lei para configuração de crime, a vedação aos tribunais de exceção, a existência dos institutos da prescrição e da decadência, dentre outros.

Apesar de serem, inegavelmente, normas jurídicas, os princípios jurídicos não podem ser concebidos como regras gerais, que pudessem se subsumir a situações fáticas, igualmente gerais. Isso porque, como menciona Larenz (LAZENS, 2001, p. 683), os princípios não possuem o caráter formal das proposições jurídicas, ou seja, eles não apresentam uma conexão entre um determinado fato e uma consequência jurídica.

Carraza (CARRAZA, 1998, p. 31) entende que os princípios jurídicos seriam enunciados lógicos, implícitos ou explícitos, que em decorrência de sua “grande generalidade” teriam uma posição privilegiada em direitos campos do direito.

Por sua vez, explicando a distinção entre princípios e regras, Alexy afirma que os princípios são “mandados de otimização”. Uma de suas principais características seria, portanto, que eles podem ser cumpridos em diferentes graus e, mais, a efetivação do princípio depende das possibilidades reais e das jurídicas. Por outro lado, as regras seriam normas que só poderiam ser cumpridas ou descumpridas.

Ainda na distinção entre regras e princípios, afirma Ávila (ÁVILA, 2012, p. 85):

“As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.”

Nesse sentido, os princípios trazem uma finalidade ou, em outras palavras, um objetivo do sistema jurídico. As regras, por sua vez, trazem uma descrição da realidade ou, melhor dizendo, como uma consequência do pensamento de Larenz (LARENZ, 2001, p. 683), são normas que apresentam uma conexão entre um determinado fato e uma consequência jurídica.

Se os princípios são (i) dotados de “grande generalidade”, como defende Carraza, (ii) dependentes das possibilidades reais e das jurídicas, como afirma Alexy e (ii) eles não apresentam uma conexão entre um determinado fato e uma consequência jurídica, como alega Larenz, então, consequentemente, eles são normas jurídicas que necessitam, antes da sua efetiva subsunção, ou melhor dizendo, de concretização.

Assim, a concretização é essencial para garantir a aplicabilidade dos princípios. Ao princípio da segurança jurídica também se aplica a necessidade de concretização para a aplicação.

Como um dos mais relevantes princípios constitucionais, o princípio da segurança jurídica possui um âmbito de aplicação praticamente universal dentro do ordenamento jurídica: aplica-se aos ramos do direito público, do direito privado e, inclusive, influência no âmbito dos direitos difusos e coletivos.

Paulo de Barros Carvalho declara que a segurança jurídica é um “sobreprincípio” (CARVALHO, 2013), ou seja, uma norma que advém de um conjunto de princípios jurídicos.

E, de fato, podemos listar diversos princípios constitucionais expressos que visam a concretização da segurança jurídica, em maior ou menor graus, dentre eles, a proteção ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido, a irretroatividade da lei penal, a ficção do conhecimento obrigatório da lei, a garantia de ampla defesa e de contraditório, a exigência de prévia lei para configuração de crime.

Menciona-se, ainda que alguns destes princípios são, também, direitos humanos previstos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos[6], como, por exemplo, a exigência de prévia lei para configuração de crime, prevista no Artigo 9 da Convenção (Pacto de São José da Costa Rica):

“Artigo 9.  Princípio da legalidade e da retroatividade

Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável.  Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito.  Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.”

Assim, a utilização do termo “segurança jurídica” abre um leque absurdamente grande de possibilidades ao Supremo Tribunal Federal: havendo violação ou afronta a um dos princípios concretizadores da segurança jurídica já seria possível, em tese, que o Tribunal considerasse violada a própria segurança jurídica, autorizando, assim, a modulação dos efeitos da decisão.

O mesmo acontece com o termo “excepcional interesse social”, que pode ser ainda mais genérico. Então, qual seria o limite desta discricionariedade nestes casos em que não existe nem certeza positiva nem certeza negativa?

Em situações que não se enquadram nos campos positivo e negativo de certezas, notamos que a modulação dependerá de um “severo juízo de ponderação” (Mendes & Martins, 2009, p. 564). Assim, deve restar demonstrado claramente, no caso analisado pelo Tribunal, a segurança jurídica ou o interesse social que se prestigia no julgamento, o que justificaria efetivamente o afastamento da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc.

De fato, o princípio da proporcionalidade impõe ao Supremo Tribunal Federal a realização de uma ponderação dos princípios constitucionais em colisão. Assim, o Tribunal deve fazer prevalecer a solução jurídica mais necessária, adequada e proporcional ao caso concreto, levando em consideração também os possíveis ou definitivos efeitos concretos da decisão que vier a declarar a inconstitucionalidade.

Isso se dá porque a Constituição Federal tende à não manutenção dos estados de inconstitucionalidade, o que reduz consideravelmente a margem de discricionariedade da Corte para a aplicação da modulação dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade (Ávila, 2011, p. 524).

A este propósito, Regina Maria Macedo Nery Ferrari (Ferrari, 2005, p. 250), citando Jorge Miranda, declara que:

“não basta justificar a limitação dos efeitos da declaração de constitucionalidade sob o argumento de que envolvem alguma incerteza para o mundo do direito e para a vida social; é preciso que envolvam uma insegurança de grau elevado e que por isso seus efeitos sejam reduzidos ao estritamente necessário para salvaguardar os valores constitucionais.”

Assim, é exigido do Supremo Tribunal Federal uma fundamentação rigorosa e extensiva, dado que ele necessita, não somente justificar a excepcionalidade da medida adotada, como amoldar a referida medida aos conceitos jurídicos indeterminados legalmente previstos, demonstrando a gravidade das situações que busca evitar e o juízo de proporcionalidade que levou o Tribunal àquela conclusão. Lembra-se que o Poder Judiciário, do qual o Supremo é parte integrante, encontra-se submetido ao princípio da juridicidade. Isso significa que a fundamentação, além de cumprir com o dever legal de motivação das decisões tomadas, representa uma forma de exteriorização e formalização da ponderação entre princípios realizada e permite uma melhor delimitação do que o Tribunal entende como casos integrantes das hipóteses de incidência dos conceitos jurídicos indeterminados, analisados pelo Supremo Tribunal Federal em cada caso concreto.

             

Conclusão

Pela análise realizada, podemos concluir que o Supremo Tribunal Federal: (i) não terá nenhuma discricionariedade quando houver, no caso prazo, situação que se insira no campo de certeza negativo dos conceitos jurídicos  indeterminados de “segurança jurídica” e de “excepcional interesse social”; (ii) terá pouca margem de discricionariedade quando, no caso concreto, houver situação que se insira inegavelmente no campo de certeza positivo dos conceitos jurídicos  indeterminados; e (iii) terá margem de discricionariedade para amoldar a situação à hipótese legal de situação quando, no caso concreto, a situação se inserir no campo de incerteza dos conceitos jurídicos indeterminados, ou seja, quando a situação não pertencer nem ao campo de certeza positivo nem ao negativo.

Incluindo-se o caso concreto no campo de certeza negativo, o Supremo não poderá aplicar a modulação, dado que ele está vinculado à hipótese normativa que não se aplica ao caso. Em outras palavras, ele estará diante de uma hipótese simples de não aplicação da norma, sendo esta uma atividade vinculada.

Por outro lado, se a situação concreta levar ao campo de certeza positivo, o Supremo deverá necessariamente modular, em decorrência dos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade. Neste caso, o Supremo terá discricionariedade apenas quanto ao momento a partir do qual a sua decisão passará a produzir efeitos. No entanto, ele se vê obrigado a realizar a modulação dos efeitos, o que limita, em grande medida, a sua liberdade.

Em terceiro e último lugar, existem as situações que se enquadram no campo de incerteza, ou seja, não estão nem dentro do campo de certeza positivo nem do campo de certeza negativo. Nestas hipóteses, haverá uma efetiva

discricionariedade e, consequentemente, uma maior liberdade para o Supremo Tribunal Federal, na modulação dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle concentrado, dado que a sua margem apreciativa se estenderá não somente quanto ao momento a partir do qual a decisão passará a produzir efeito, mas também sobre a realização, ou não, de modulação, em si.

De fato, dada a incerteza, o STF se encontrará limitado somente pelo princípio da proporcionalidade e pela necessidade de fundamentação de sua decisão. Entende-se que, com relação à proporcionalidade, o Tribunal realizará a ponderação entre os princípios em colisão, envolvidos no caso concreto. Já com relação à necessidade de fundamentação, ele atenderá à necessidade de justificação das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, garantirá a externalização da ponderação realizada pelo Tribunal.

Finalmente, a análise dos três cenários acima descritos permite concluir que a modulação dos efeitos não pode ser utilizada como se regra fosse, dado que constitui exceção. Assim, a modulação só pode ser aplicada nas excepcionais situações previstas em lei e, mesmo nestas, atendendo aos requisitos proporcionalidade e da fundamentação. Somente diante desta situação específica, podemos falar em alguma margem de liberdade do Supremo Tribunal Federal quanto aos efeitos de suas decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, sem que o Tribunal incorra em ativismo judicial e afronte o sistema de controle de constitucionalidade.

 

Referências Bibliográficas

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ARAUJO, L. D., & NUNES JÚNIOR, V. S. (2013). Curso de Direito Constitucional (17ª ed.). São Paulo: Verbatim.

 

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[1] A rigidez constitucional, segundo José Afonso da Silva (Silva, 2015), ocorre quando a forma de alteração da Constituição é mais dificultosa, ou, se poderia dizer, mais complexa, do que a forma de alteração das demais normais jurídicas do ordenamento.

[2] Ou seja, existe uma supremacia, uma superioridade das normas constitucionais quando comparadas às demais normas do sistema. Assim, entre se aplicar uma norma constitucional e um infraconstitucional, frontalmente opostas, deve-se aplicar a norma constitucional, sendo que a norma infraconstitucional que lhe contrária é considerada inconstitucional e deve ser expurgada do sistema.

[3] Podemos, aqui, elencar uma infinidade de autores que adotam esta classificação, que já é tradicional na doutrina. Mencionamos aqui, à título exemplificativo, Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrado Nunes Júnior (Araujo & Nunes Júnior, 2013), bem como Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Ferreira Filho, 2015).

[4] Lembra-se que o art. 11 da Lei nº 9.882/1999, que regula o procedimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, possui idêntica redação a este artigo. Assim, todos os requisitos ora analisados também se aplicam às decisões proferidas em arguição de descumprimento de preceito fundamental.

[5] Importante aqui, lembrar que o Poder Judiciário faz parte da Administração Pública e se submete aos princípios gerais da Administração Pública, previstos no art. 37 da CRFB.

[6] A Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada de Pacto de São José da Costa Rica, foi adotada pelos países da Organização dos Estados Americanos (“OEA”), em 1969, e foi ratificada pelo Brasil em 1992 (BRASIL, 1992).