A ética na dialogicidade entre o sujeito e a alteridade em instituições democráticas: a política com vistas à emancipação humana

Resumo: A Ética na dialogicidade entre o sujeito e a alteridade em instituições democráticas. Nesse sentido as instituições sociais representadas pelo Executivo, Legislativo e Judiciário precisam repensar as novas mutações capazes de contemplar a ética com vistas à emancipação humana. E o campo de política é o caminho capaz de romper com a tradição de privilégios para poucos. O ato de julgar no ‘trágico da ação’ precisa dar conta da superação do sofrimento humano (egocentrismo) diante do caos social (crise da razão iluminista). Repensar a existência na pólis com dignidade humana pelo bem da comunidade em instituições justas e equânimes.

Palavras-chave: Democracia. Ética. Justiça. Política.

Abstract: Ethics in dialogicity between the subject and otherness in democratic institutions. In this sense social institutions represented by the Executive, Legislative and Judiciary must rethink new mutations can contemplate the ethics aiming at human emancipation. And the field of politics is the way able to break with the tradition of privileges for the few. The act of judging in 'tragic action' needs to take account of overcoming human suffering (egocentrism) before the social chaos (crisis of Enlightenment reason). Rethinking the existence in the polis with human dignity for the sake of the community fair and equitable institutions.

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Keywords: Democracy. Ethics. Justice. Policy.

Sumário: Introdução.  1. A legitimidade das instituições democráticas no acesso à justiça. 2. A ética como campo político nas relações dialógicas. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A uma concepção de justiça identificada na ética do humano pela revelação da vulnerabilidade existencial e que vai além da moral para o campo do viver bem em instituições legítimas tendo o “ser” como o centro das decisões se aproxima da visão kantiana do homem como “um fim em si mesmo”. Nesse sentido, para além da obrigação e da vinculação da norma, o sujeito responsável exerce papel social pela participação política na tomada de decisões (consciência, organização, reflexão e ação) na pólis com vistas à emancipação humana. A República diz respeito ao governo que inclua a todos e visa o bem da coletividade para além de determinados grupos e/ou clãs.

Os dilemas e os conflitos permeiam as histórias de vida. Valores e crenças muitas vezes são frustrados por sentenças de apenação (ditadas pelo agente judiciário em nome do Estado) que não fazem justiça, que não preveem o perdão, tampouco promovem a reabilitação, isso por causa da impossibilidade de mensuração do bem que se perdeu. As relações sociais deveriam ser permeadas pela ética do humano (ética aristotélica da virtude com equidade e ética kantiana das obrigações vinculadas à garantia da dignidade humana). Assim, portanto, mais que viver em instituições formalmente isonômicas, faz-se primordial o retorno ao “mito” na compreensão filosófica do direito: a linguagem como espaço de comunicação do “eu” com o “outro” pelo respeito à pluralidade cultural e social e pela formação de um campo da legitimidade política como espaço de inclusão das diferenças com vistas ao bem comum.

Nesse sentido, as variáveis cíclicas rompem com as tradicionais relações patrimonialistas egocêntricas calcadas na tradição, família e propriedade privada dos meios de produção como centro de interesses e passa-se das relações do “ter” em direção às relações do “ser” na valorização à pluralidade étnico-cultural e social.

1. A LEGITIMIDADE DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NO ACESSO À JUSTIÇA

Com vistas à ideia de justiça e injustiça, em Aristóteles (2001) podemos refletir acerca das diferentes acepções do justo enquanto uma relação de poderes. É nas relações de poder entre as diversas instâncias de governo e deste com a comunidade que os homens se revelam (ARISTÓTELES, 2001, p. 93):

“[…]  ‘na justiça se resume toda a excelência’

Com efeito, a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo […].

[…] praticamente a maioria dos atos prescritos pela lei é constituída de atos prescritos tendo em vista a excelência moral como um todo; de fato, a lei nos manda praticar todas as espécies de excelência moral e nos proíbe de praticar qualquer espécie de deficiência moral, e as prescrições para uma educação que prepara as pessoas para a vida comunitária são as regras produtivas da excelência moral como um todo […]. Se, então, o injusto é iníquo (ou seja, desigual), o justo é igual, como todos acham que ele é, mesmo sem uma argumentação mais desenvolvida. E já que o igual é o meio termo, o justo será um meio termo […]”.  (ARISTÓTELES, 2001, p. 93-95).

Assim, portanto, a ideia de justiça diz respeito, na concepção aristotélica, aos atos que produzem a felicidade da comunidade política, a excelência moral pela imposição da prática de certos atos e proibição de outros. É o bem dos outros. É também a justiça uma virtude intrínseca ao ser humano em busca do bem que lhe é próprio. A justiça, portanto, enquanto meio-termo, é proporcional (ARISTÓTELES, 2001).

Quem condena ou quem absolve, esse faz a justiça ou a injustiça dando ou retirando o que há de mais precioso na vida do homem: a dignidade. Esse operador da justiça, em geral, em vez de aplicar uma decisão adequada ao sujeito, acaba por subjugar a própria pessoa (geralmente o mais fraco) e, como resultado, as relações subjetivas, interpessoais e institucionais ficam ainda mais assimétricas.

A ideia de sujeito de direito capaz se expressa no plano moral, jurídico e político. Nessa perspectiva, a noção de identidade narrativa do sujeito capaz é associada ora à ideia ética de bem, ora à ideia de obrigação, a partir das ações julgadas como boas ou más, permitidas ou proibidas, enquanto sujeito de imputação. Há também um nexo mútuo entre autoestima e a avaliação ética das ações que visam à vida boa (concepção aristotélica), assim como há um nexo entre o autorrespeito e a avaliação moral das ações submetidas à prova da universalização das máximas da ação enquanto concepção kantiana. Assim, portanto, autoestima e autorrespeito definem a dimensão ética e moral do si-mesmo, como dimensão do homem sujeito de imputação ética, jurídica e política.

O princípio da observação aos pactos enquanto regra de reconhecimento engloba a todos os que vivam sob as mesmas leis. O meio, no entanto, para realização das potencialidades humana, é o âmbito político. Assim, podemos identificar algumas características norteadoras do campo ético-político. Entre as quais a democracia direta no plano social para além da democracia representativa, no liberalismo econômico. Outra seria a da política com papel norteador e civilizador, o que seria realizado por meio de instituições sociais adequadas a esse ideal. Tal política teria como centro a ética pública a partir de relações subjetivas, interpessoais e institucionais que conduzam à emancipação humana que passa pelo respeito à pluralidade étnico-cultural e social.

A ideia de governo justo e legítimo diz respeito à própria noção de democracia em suas várias acepções enquanto exercício da política.

Aristóteles, em “Política” (2001), é singelo nas suas reflexões:

“Um princípio fundamental de uma forma democrática de governo é a liberdade […]. É um dos princípios da liberdade que todos possam revezar-se no governo e, de fato, a justiça democrática é a aplicação de uma igualdade numérica e não de uma igualdade proporcional, consequentemente a maioria deve ser soberana, e o que a maioria aprove deve ser o resultado justo e final. Afirma-se que todo cidadão deve ser tratado com igualdade e, portanto, na democracia os pobres possuem mais poder que os ricos, pois há mais pobres que ricos, e a vontade da maioria é soberana. 

[…] outra característica é que cada homem deve viver como quer; diz-se que esse é o privilégio do homem livre, uma vez que, por outro lado, não viver como se quer é a marca da vida de um escravo […].

[…] mas a democracia e o poder do povo em suas formas mais genuínas baseiam-se no princípio reconhecido de justiça democrática, segundo o qual todos têm a mesma importância numérica; esse princípio igualitário implica que os pobres não tenham uma participação maior no governo do que os ricos, e não deveriam ser governantes exclusivos, mas sim que todas as classes deveriam governar igualmente, de acordo com os seus números. É dessa maneira que os homens acreditam que podem assegurar a igualdade e a liberdade em sua Cidade”. (ARISTÓTELES, 2001, p. 217-219).

A democracia representativa e participativa é baliza da Constituição Federal do Brasil de 1988, herança desde a Grécia antiga, passando pelos modernos ideais franceses de igualdade, liberdade e fraternidade. A previsão constitucional é de uma democracia com instituições sociais livres, justas e solidárias, com efetividade dos direitos humanos fundamentais (cidadania, dignidade humana, pluralismo político, desenvolvimento para todos com justiça social), sem fome, sem miséria, sem preconceitos e sem discriminação, conforme apregoado nos artigos 1º a 3º da Magna Carta. 

Holanda (2008), em "Raízes do Brasil", enfatiza que, no Brasil, a democracia foi sempre um mal-entendido, pois fora importada e acomodada por uma aristocracia rural e semifeudal em benefício dos seus próprios direitos ou privilégios (HOLANDA, 2008, p. 160).

Entre os direitos políticos assegurados no artigo 14, caput e incisos I, III e III da Constituição Federal, como expressão da cidadania, destacam-se os instrumentos de democracia participativa: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. As instituições públicas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário devem, portanto, nortear-se, entre outros princípios, pela legalidade, publicidade, impessoalidade, moralidade nos seus atos.  Na administração direta ou indireta, as diretrizes norteadoras da administração pública devem, portanto, estar voltadas ao interesse público, conforme dispõe o artigo 37, caput, do texto constitucional e carente de efetividade.

A dignidade humana como princípio está expressa como direito fundamental nos artigos 1º (inciso III), 170 (III) e 226 (VII) da Constituição Federal, enquanto estrutura do Estado de Direito, como salienta Jacintho (2006). E perpassa, no campo principiológico as relações subjetivas, interpessoais e institucionais, envolvendo liberdades civis, étnicas e culturais, que dizem respeito às dignidades.

“Neste século XXI, partimos da consciência de que a supremacia da Constituição e a aplicabilidade direta de suas normas se fundam no princípio da democracia, que a tutela da autonomia da vontade não é suficiente para proteger a dignidade, especialmente em sociedade desiguais como as nossas, e que métodos aparentemente neutros e mecânicos como a subsunção servem a encobrir escolhas valorativas, inevitáveis a qualquer processo de interpretação”. (BODIN DE MORAES, 2008, p. 39).

Numa perspectiva de Ricoeur (2008) para além do “eu” e do “tu” e pautada na pluralidade de atores que compõem nossa história, podemos estudar as formas de democracia enquanto construção republicana com instituições sociais justas e éticas, apesar da emblemática realidade de não efetividade para os excluídos.

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Montesquieu é favorável à democracia representativa:

“Como, em um Estado livre, todo homem que supostamente tem uma alma livre deve ser governado por si mesmo, seria necessário que o povo em conjunto tivesse o poder legislativo. Mas, como isto é impossível nos grandes Estados e sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, é preciso que o povo faça através de seus representantes tudo o que não pode fazer por si mesmo”. (MONTESQUIEU, XI, 6).

Rousseau, por sua vez, em "O Contrato Social", no capítulo XV, livro III, defende a democracia direta:

“A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada. Ela consiste essencialmente na vontade geral e a vontade não se representa. Ela é a mesma ou é outra; nisso não há meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes. São, quando muito, seus comissários e nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo, em pessoa, não ratificou é nula; não é sequer lei”. (ROUSSEAU, 2008, III, 15).

Acerca da ideia de democracia representativa podemos destacar que o governo ideal é o representativo ou, nas palavras de Stuart Mill, após longas considerações sobre os governos desde a Grécia:

“[…] é evidente que o único governo capaz de satisfazer completamente todas as exigências do estado social é aquele em que o povo todo possa participar; onde qualquer participação, mesmo na função pública mais modesta, é útil; um governo no qual a participação deverá ser, em toda parte, tão grande quanto permita o grau geral de aprimoramento da comunidade; e no qual, nada menos possa ser desejado do que a admissão de todos a uma parte do poder soberano do estado. Porém, uma vez que é impossível, em uma comunidade maior do que uma única cidade, que todos participem pessoalmente de todos os negócios públicos, a não ser de muito poucos, conclui-se que o tipo ideal de governo perfeito deve ser o representativo”. (MILL, 2006, p. 65).

Para além da democracia representativa, não podemos ignorar que viver em instituições justas e que promovam políticas públicas efetivas visando à vida boa para todos é um dos dilemas do capitalismo contemporâneo. Assim, vejamos que é possível conciliar liberalismo e socialismo, por outro lado há a dificuldade em conciliar democracia e liberalismo.

“[…] a relação entre o socialismo e democracia foi bem mais, desde a origem, uma relação de complementaridade, assim como houvera sido até então a relação entre democracia e liberalismo.

[…] Para reforçar o nexo de compatibilidade (melhor: de complementaridade) entre socialismo e democracia, foram sustentadas duas teses: antes de tudo, o processo de democratização produziria inevitavelmente, ou pelo menos favoreceria, o advento de uma sociedade socialista, fundada na transformação do instituto da propriedade e na coletivização pelo menos dos principais meios de produção; em segundo lugar, apenas o advento da sociedade socialista reforçaria e alargaria a participação política e, portanto, tornaria possível a plena realização da democracia, entre cujas promessas – que a democracia liberal jamais seria capaz de cumprir – estava também a de uma distribuição igualitária (ou ao menos mais igualitária) do poder econômico e político.

[…] fica claro que o contraste contínuo e jamais definitivamente resolvido (ao contrário, sempre destinado a se colocar em níveis mais altos) entre a exigência dos liberais de um Estado que governe o menos possível e a dos democratas de um Estado no qual o governo esteja o mais possível nas mãos dos cidadãos, reflete o contraste entre dois modos de entender a liberdade, costumeiramente chamados de liberdade negativa e de liberdade positiva, e em relação aos quais se dão, conforme as condições históricas, mas sobretudo conforme o posto que cada um ocupa na sociedade, juízos de valor opostos […]”. (BOBBIO, 1994, p. 81-97).

2 A ÉTICA COMO CAMPO POLÍTICO NAS RELAÇÕES DIALÓGICAS

Identificamos que deva estar no campo político, jurídico e social a ética como superação do “eu e do tu” para o mundo plural “nós”, portanto, ética cuja existência seja digna para todos.

Haja vista que se fala em pacto social quando desigualdades já estão naturalizadas e já não há mais condições existenciais de dignidade a todos os seus participantes. Também se apela para o pacto social quando se negam ao dito cidadão os bens básicos da vida e este tem que se endividar para custear seus instrumentos de trabalho necessários à sobrevivência ou escolher entre sua saúde e vida ou pagar suas dívidas. Poderia haver ética nesse debate? Trata-se de moralismo burguês:

“O novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da ‘globalização negativa’. Em sua forma atual, puramente negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos. […]”. (BAUMAN, 2007, p. 30).

O liberalismo é a doutrina do chamado Estado Mínimo. E por neoliberalismo entende-se uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário. No sentido de que uma sociedade é tanto melhor quanto mais extensa é a esfera da liberdade e restritiva de poder, porém, pela participação de todos. (BOBBIO, 1994, p. 87-88).

Wolfgang Leo Maar, em “O que é Política”, discute o papel da política como missão civilizadora:

“Quando se classifica algo de ‘autoritário’, isto quer dizer mais do que simplesmente lhe atribuir uma atividade política que se impõe pela força. Significa atribuir-lhe um valor, uma referência que possui um sentido além do político. Do mesmo modo, quando consideramos uma pessoa ‘democrática’, emitimos uma opinião sobre as suas qualidades que não se esgota unicamente na sua prática. Neste sentido, a democracia seria algo mais do que uma determinada forma de governo ou de atividade política. Seria um valor, uma referência cotidiana que diz respeito ao conjunto de uma experiência humana e social, objetiva, acumulada ao longo da história na cultura”. (MAAR, 1994, p. 90-91).

A democracia moderna passa pelas diversas formas de entendimento do papel do Estado, entendido como sendo a sociedade civil organizada na sua pluralidade de atores sociais enquanto exercício de papel ético-político. Assim, o pensamento de Ricoeur (2008), na medida em que tangencia a relação do eu com o outro, trata da vida boa na pólis mediante instituições justas, equânimes, que promovam o bem de todos, pelo respeito às diversidades sociais, culturas (de sotaques), pensamentos e não espaço em que alguns se acham privilegiados em detrimento da maioria.

Para discutir a autoridade é importante entender se há a legitimidade, pois a distinção entre autoridade enunciativa e autoridade institucional é apenas provisória e de ordem didática, uma vez que não se trata de um consenso social, mas de instituições que usam dos discursos e escritos produzidos, enunciados e publicados para o convencimento. Uma autoridade legítima é essencial para evitarmos os totalitarismos do Estado, muitas vezes representados por juízes engessados a uma dogmática jurídica elitista.

Arendt (2011), em “Origens do Totalitarismo”, nos traz à luz algumas reflexões fundamentais sobre o tema:

“A política totalitária não substitui um conjunto de leis por outro, não estabelece o seu próprio consensus iuris, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade. O seu desafio a todas as leis positivas, inclusive às que ela mesma formula, implica a crença de que pode dispensar qualquer consensus iuris, a ainda assim não resvalar para o estado tirânico da ilegalidade, da arbitrariedade e do medo.

[…] Essa identificação do homem com a lei, que parece fazer desaparecer a discrepância entre legalidade e a justiça […] nada tem em comum com o lúmen naturale ou com a voz da consciência, por meio dos quais a Natureza ou a Divindade, como fonte de autoridade para o ius naturale ou para os históricos mandamentos de Deus, supostamente revela a sua autoridade no próprio homem”. (ARENDT, 2011, p. 514-515).

É no espaço público que se permite a pluralidade das relações inter-humanas para além do eu e o tu, do ter em direção ao ser. Segue-se que a justiça se realiza como instituição social aplicando as regras às interações humanas, por um sistema de partilha de papéis sociais e de tarefas para além da simples distribuição de valores no plano econômico. Assim, portanto, se o indivíduo precede ao Estado, os direitos vinculados às capacidades e às potencialidades humanas, enquanto membros da comunidade política estão sujeitos à mediação institucional de um terceiro que conduza à autonomia, à emancipação e não à submissão repressiva.

A técnica disciplinar na modernidade se constitui na normalização do sujeito pela produção de uma individualidade marcante que condena o “criminoso”. Aponta suas características peculiares, rotula, julga e pune severamente. O poder normalizador define o lugar do sujeito na sociedade pelas qualidades ou defeitos que marcam sua autonomia de parte orgânica do corpo social e pressupõe a vontade, o querer, o poder-saber, a consciência de si. A técnica-ciência é tida como o espírito da modernidade, portanto normalizadora na produção e na reprodução de poderes. A norma jurídica é uma dessas técnicas. Ela produz uma refinada definição das posições sociais, econômicas e políticas enquanto ferramenta nas mãos de quem sabe e pode fazer o direito (valoração do fato em norma). Por isso o direito serve a quem pode fazê-lo na hierarquia social. A vontade de verdade é libertação ou prisão, absolvição ou condenação na luta interna das partes que unem o corpo social (BERTEN, 2011, p. 131-157).

Chaui (2001), no artigo “Acerca da moralidade pública”, destaca a Justiça Comutativa, Distributiva e Social a partir de Aristóteles. A justiça distributiva se refere aos bens partilháveis (é a economia), no sentido de dar a cada um o que lhe é devido, e sua função é dar desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. A justiça comutativa se refere às penas e às recompensas legais que reparam danos cometidos contra cidadãos (o tribunal); mas a justiça fundante se refere a um bem que não pode ser partilhado e distribuído, somente participado: o poder político.

“Todavia não podemos pensar apenas a idéia de justiça política entendida como o direito de participação de todos os cidadãos no poder. O pensamento político moderno, exatamente ao propor a distinção entre virtudes privadas e poder político, afirmou dois princípios nucleares da lógica do poder com os quais podemos nos acercar da moralidade propriamente política. Em primeiro lugar, a compreensão de que toda a sociedade está dividida originalmente entre o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem oprimido, definindo o lugar do governante não acima das classes e sim como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do desejo dos grandes (pois o desejo destes aniquila a instância pública da política).

[…] Em segundo lugar, a compreensão de que a moralidade pública não depende do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições com expressões concretas do lugar e do sentido da lei. A lei é o pólo da universalidade numa sociedade dividida em classes (ou cindida em particularidades conflitantes e contraditórias); pólo no qual se definem a cidadania e as formas de exercício”. (CHAUI, Folha de São Paulo, 24/5/2001).

Chaui (2001) analisa a mentira política como um mal que aflige a sociedade.

“Se nos recordarmos do clássico estudo de Hannah Arendt sobre a mentira política, haveremos de lembrar que ela aponta os dois instrumentos empregados pelo governante para realizar o embuste. Um deles são os ‘relações públicas’, que operam com os recursos da publicidade e têm como princípio a idéia de que os cidadãos são inteiramente manipuláveis pelas opiniões vendidas no mercado político; são os agentes da propaganda do governo.

O outro instrumento são os ‘resolvedores de problemas’, caracterizados pela autoconfiança extrema e pela certeza de sempre prevalecerem porque sabem se livrar dos fatos, tanto destruindo documentos, memórias e testemunhos, como produzindo uma irrealidade que vem à existência, por meio de discursos, chantagens, coações, distribuição de benesses, ameaças veladas ou diretas e, sobretudo pela desqualificação sumária dos opositores; são os assessores do governo. Juntos, relações públicas e resolvedores de problemas criam as condições para que o governo nunca possa ser desmentido, pois toda contraprova é invalidada por princípio, graças ao ocultamento da realidade sob a imagem irreal e graças à desqualificação prévia dos oponentes”. (CHAUI, Folha de São Paulo, 24/5/2001).

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A política tem como finalidade a vida justa e feliz, ou seja, a vida humana digna de seres livres, portanto, é inseparável da ética (CHAUI, 2006, p. 359).

CONCLUSÃO

O resgate da ética como virtude se constitui um dos maiores desafios do cotidiano da nossa cidade e do país pela construção da democracia em instituições justas, haja vista que a subjetividade do juiz, na construção do discurso normativo, na argumentação e na interpretação, conduz, muitas vezes, a decisões frustrantes, reveladoras de não legitimidade. Isso ocorre em especial, nos casos chamados difíceis, em que os juízos reflexivos, atendendo muitas vezes aos clamores midiáticos, acabam optando pela manutenção de desigualdades. Isso ocorreu no já acima mencionado “caso pinheirinho”, em São Paulo, em que oito mil pessoas foram retiradas à força de área ocupada quando vínculos afetivos, sociais, culturais, familiares já estavam sedimentados há anos. Nesse caso, em nome da lei e da ordem negou-se a relação de justiça a partir da pluralidade de sujeitos enquanto campo ético-político, próximo não só da obrigação, mas do homem como fim em si mesmo, enquanto resgate da dignidade e, ao mesmo tempo, em instituições equânimes.

Ética com emancipação humana aos cidadãos da pólis, eis a finalidade primeira da justiça. Para atingir tal fim, é essencial dispensar um tratamento de vida digno a todos, sem discriminações étnicas, sociais, culturais, de preferências sexuais ou afetivas, idade ou sexo. O novo constitucionalismo, para além de qualquer Constituição formal, se realiza mediante a materialização de direitos humanos fundamentais, ou seja, com a efetivação dos bens básicos à vida com dignidade para todos, o que inclui alimentação adequada, saúde preventiva e curativa, educação de qualidade, moradia digna e renda mínima. Esse desafio resume a ética como espaço da política na compreensão nas relações subjetivas, interpessoais e institucionais. Esses são desafios primordiais do novo milênio. Em especial diante da crise da pós-modernidade, por mais que se busque a justiça, esta tem escapado pelas mãos no conflito existencial com o outro e, por consequência, há a exclusão. Enfrentar essa realidade é um desafio muito especial. Nesse quadro, praticamente globalizado, o caso mais grave nas relações verticais e horizontais diz respeito à “invisibilidade” do outro como sujeito de direitos, não havendo nem mesmo reconhecimento da sua existência, deixando-o, portanto, em espaço de indiferença, de ignorância.

 

Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego, introdução e notas Mário da Gama Kury. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 2001.
__________. Política. Trad.: Pedro Constantin Tolens. 6. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad.: Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad.: Carlos A. Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BERTEN, André. Modernidade e desencantamento – Nietzsche, Weber e Foucault. Trad.: Márcio Anatole de Sousa Romeiro. São Paulo: Saraiva, 2011.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Perspectivas a partir do Direito Civil-Constitucional. In: Direito civil contemporâneo – novos problemas à luz da legalidade constitucional. Organização de Gustavo Tepedino. São Paulo: Atlas, 2008.
BRASIL, Constituição Federal da República Federativa do Brasil. 14. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2003.
CHAUI, Marilena. Acerca da moralidade pública. Folha de São Paulo, Caderno Tendências/Debates. São Paulo, 24/5/2001.
__________. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade humana – princípio constitucional. Curitiba, PR: Editoa Juruá, 2006.
MAAR, Wolfgang Leo. O que é política.  16. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Coleção Primeiros Passos).
MILL, Stuart. Considerações sobre o governo representativo. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal – 56. Trad.: Débora Ginza e Rita de Cássia Gondim. São Paulo: Escala, 2006.
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RICOEUR, Paul. O Justo 1. A justiça como regra moral e como instituição. Trad.: Ivone C. Benedetti. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
________. O Justo 2. Justiça e verdade e outros estudos. Trad.: Ivone C. Benedetti. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Col. Grandes Obras do Pensamento Universal -13. Trad.: Ciro Mioranza. 2. ed. São Paulo: Escala, 2008.

Informações Sobre o Autor

Afonso Soares de Oliveira Sobrinho

Doutor em Direito – FADISP. Mestre em Políticas Sociais – UNICSUL. Advogado


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