A eugenia de Hitler e o racismo da ciência

Sempre que se consulta qualquer arquivo histórico sobre a origem do nazismo, o principal argumento é que Adolf Hitler buscava incessantemente o sucesso de seus três erres: reich (império), raum (espaço) e rasse (raça).

O primeiro se referia ao resgate do nacionalismo alemão, abalado desde o final da Primeira Guerra Mundial.

O segundo era a conquista de territórios tomados da própria Alemanha em virtude da perda da Guerra.

E o terceiro era a busca de uma raça pura, denominada por ele de ariana, segundo a qual somente os alemães mais fortes deveriam sobreviver.

O resultado de toda essa planificação foi uma atrocidade sem precedentes em nossa história, com resultados aterrorizantes e assustadores.

Entretanto, existe um dado em todo esse estratagema que foi atribuído a Hitler, mas, na verdade é muito anterior ao führer, e foi uma das justificativas pelo próprio, de sua utilização na Alemanha nazista: a defesa da eugenia pela ciência.

A idéia de eugenia nasceu na Inglaterra, prosperou nos EUA e teve seu ponto alto na Alemanha nazista. Com nova roupagem e outros nomes, ela sobrevive até hoje.

Quando em The origin of species, de 1859, Darwin propôs que a seleção natural fosse o processo de sobrevivência a governar a maioria dos seres vivos, importantes pensadores passaram a destilar suas idéias num conceito novo – o darwinismo social.

“Devemos suportar o efeito, indubitavelmente mau, do fato de que os fracos sobrevivem e propagam o próprio gênero, mas pelo menos se deveria deter a sua ação constante, impedindo os membros mais débeis e inferiores de se casarem livremente com os sadios”. Darwin acreditava que os criminosos, por sua vida mais breve e a dificuldade de se casarem, naturalmente livrariam as raças superiores de sua má influencia. Além disso, com o predomínio dos casamentos entre os mais fortes, sábios e moralmente superiores – e evitando a miscigenação com as “raças inferiores” – Darwin acreditava na evolução física, moral e intelectual das “raças superiores” pela seleção natural.

Esse conceito, de que na luta pela sobrevivência muitos seres humanos eram não só menos valiosos, mas destinados a desaparecer, culminou em uma nova ideologia de melhoria da raça humana por meio da ciência. Por trás dessa ideologia estava sir Francis J. Galton, que era parente de Darwin, cujo nome é associado ao surgimento da genética humana e da eugenia.

Galton tinha a proposta de esterilizar os humanos fracos de corpo e mente, e de raças inferiores.

Convencido de que era a natureza, não o ambiente, quem determinava as habilidades humanas, Galton dedicou sua carreira científica à melhoria da humanidade por meio de casamentos seletivos. No livro Inquiries into human faculty and its development, de 1883, criou um termo para designar essa nova ciência: eugenia (bem nascer), que nada mais é do que a ciência que estuda as possibilidades de apurar a espécie humana sob o ângulo genético.

No início do século XX, quando as teorias de Darwin eram amplamente aceitas na Inglaterra, havia grande preocupação quanto à “degeneração biológica” do país, pois o declínio na taxa de nascimentos era muito maior nas classes alta e média do que na classe baixa. Para muitos parecia lógico que a qualidade da população pudesse ser aprimorada por proibição de uniões indesejáveis e promoção da união de parceiros bem-nascidos. Foi necessário, apenas, que homens como Galton popularizassem a eugenia e justificassem suas conclusões com argumentos científicos aparentemente sólidos.

As propostas de Galton ficaram conhecidas como “eugenia positiva”. Nos EUA, porém, elas foram modificadas, na direção da chamada “eugenia negativa”, de eliminação das futuras gerações de “geneticamente incapazes” – enfermos, racialmente indesejados e economicamente empobrecidos –, por meio de proibição marital, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em última análise, extermínio.

A eugenia pode ser dividida em: eugenia positiva, que busca o aprimoramento da raça humana através da seleção individual por meio de casamentos convenientes, para se produzir indivíduos “melhores” geneticamente; e  eugenia negativa, que prega que a melhoria da raça só pode acontecer eliminando-se os indivíduos geneticamente “inferiores” ou impedindo-os que se reproduzam. Tendo a eugenia positiva se mostrado impraticável, a maioria dos eugenistas ao redor do mundo acabou por adotar a eugenia negativa.

O líder do movimento eugenista dos EUA foi Charles Davenport, que dirigia o laboratório de biologia do Brooklin Institute of Arts and Science, em Long Island, instalado em Cold Spring Harbor. Em 1903, obteve da Carnegie Institution o estabelecimento de uma Estação Biológica Experimental no local, onde a eugenia seria abordada como ciência genuína.

O próximo passo de Davenport foi identificar os que deveriam ser impedidos de se reproduzir. Em 1909 criou o Eugenics Record Office para registrar os antecedentes genéticos dos norte-americanos e pressionar por legislação que permitisse a prevenção obrigatória de linhagens indesejáveis. Para isso, o grupo concluiu que o melhor método seria a esterilização, e o estado de Indiana foi a primeira jurisdição do mundo a introduzir lei de esterilização coercitiva, logo seguido por vários outros estados. Desde o início, porém, o uso de câmaras de gás estava entre as estratégias discutidas para eliminação daqueles considerados indignos de viver.

O movimento cativou tanto a elite americana da época que, a partir de 1924, leis que impunham a esterilização compulsória foram promulgadas em 27 Estados americanos, para impedir que determinados grupos tivessem descendentes.

O modo de ação preferido da eugenia estadunidense foi a esterilização compulsória. Houve também isolamentos – para que os “débeis mentais”, conceito que nunca foi explicitado com clareza, não se reproduzissem – e restrição a casamentos, principalmente entre brancos e negros, mas a grande vitória do movimento eugenista dos Estados Unidos foi conseguir aprovar leis estaduais que permitiam a médicos esterilizar seus pacientes.

Confrontada com tamanha violação dos princípios da Constituição americana, a Suprema Corte fez o pior, dando sua bênção à eliminação dos mais fracos. “Em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, a sociedade deve se prevenir contra aqueles que são manifestadamente incapazes de procriar sua espécie”, disse o juiz Oliver Wendell. Entre os anos 1920 e 1960, pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente – a maioria mulheres. ‘Os esforços americanos para criar uma super-raça nórdica chamaram a atenção de Hitler’

A maior lição sobre o tema nos Estados Unidos pode ser acompanhada nos relatos de Edwin Black no livro A guerra contra os fracos.

Apesar de a Alemanha ter desenvolvido, ao longo dos primeiros vinte anos do século XX, seu próprio conhecimento eugenista, tendo suas próprias publicações a respeito do assunto, os adeptos alemães da eugenia ainda seguiam como modelo os feitos eugenistas americanos, como os tribunais biológicos, a esterilização forçada, a detenção dos socialmente inadequados, e os debates sobre a eutanásia. “Enquanto a elite americana descrevia os socialmente indignos e os ancestralmente incapazes como “bactérias”, “vermes”, “retardados”, “mestiços” e “subumanos”, uma raça superior de nórdicos era progressivamente considerada a solução final para os problemas eugenistas do mundo.” (Um tribunal Biológico: Tratando a Causa, Eugenical News, v. IX, 1924, p. 92, apud Edwin Black, op. cit., p. 419).

Os Estados Unidos também foram responsáveis pela criação e desenvolvimento do amplamente conhecido teste de QI, popular até hoje. O aludido teste nada mais é do que uma derivação direta dessas teses. Ninguém dirá que uma pessoa com resultado baixo pode ser considerada tão “inteligente” quanto a outra de resultado acima da média.

As atrocidades cometidas pelo nazismo em nome da construção de uma Alemanha exclusivamente para a “raça ariana” foram tão grandes e tão chocantes que tiveram como efeito misturar o nazismo e a eugenia considerando a mesma coisa. Após o fim da Segunda Grande Guerra, o sentimento de repulsa e revolta com a revelação das torturas e mortes nos campos de concentração talvez tenha sido uma das razões que levaram a opinião pública em geral a se “esquecer” de que a idéia de higiene racial não foi uma invenção original de Hitler e de seus companheiros de partido.

Entretanto, infelizmente, este malefício não pode ser atribuído ao nazismo, porque as teorias de superioridade racial, de anti-semitismo, de seleção da espécie já se encontravam largamente difundidas, especialmente entre as elites científicas e acadêmicas, bem antes de Adolf Hitler assumir o poder.

Na Alemanha, a eugenia norte-americana inspirou nacionalistas defensores da supremacia racial, entre os quais Hitler, que nunca se afastou das doutrinas eugenistas de identificação, segregação, esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos indesejáveis, e legitimou seu ódio fanático pelos judeus envolvendo-o numa fachada médica e pseudocientífica.

Mesmo com o final da Segunda Guerra Mundial a eugenia ainda continua cada vez mais presente em nossos dias. Muitos dizem que a morte de Hitler também sepultou os dias de loucura e insensatez.

Entretanto, o que a humanidade presenciou nos cinqüenta anos posteriores a existência do Führer, novamente pelas mãos da ciência?

Para sermos sucintos, dentre tantas outras coisas, duas de relevante importância: o Projeto Genoma e a experiência em células-tronco, como meio regenerativo.

E, em ambos os casos as teorias cientistas envolvidas foram as de melhoria da vida humana, eliminação de doenças, correção de imperfeições. Frases amplamente utilizadas e difundidas por Darwin há 150 anos atrás.

Com o avanço desenfreado da tecnologia os eugenistas tiveram uma gama enorme de recursos para ampliar seu campo de pesquisa, sem nunca, desviar de seus propósitos.

O Projeto Genoma visa um mapeamento com a seqüência dos genes humanos e verificar em que série do código genético existe um gene defeituoso e então substituí-lo.

Porque, desta feita, os genes defeituosos responsáveis por defeitos congênitos, transmissões hereditárias de características indesejáveis ou doenças, simplesmente deixariam de existir, uma vez que seriam substituídos.

Estaríamos loucos ou seria uma derivação mais aperfeiçoada da raça ariana pura defendida por Hitler?

O líder nazista ordenou que milhões de judeus fossem dizimados em nome da chamada “raça pura” idealizada por ele; e que portadores de deficiências físicas e mentais servissem de cobaias para experimentos genéticos realizados por Josef Mengele, “médico” de confiança do Füher (PEDROSA, 2005).

Os atos de Adolf Hitler refletem a aversão em se conviver com a condição da fragilidade humana, inclusive no medo que tange a si próprio de gerar um filho “fraco” ou “imperfeito”.

No entanto, este temor não era exclusividade de um dos maiores genocidas da história, porque esta aversão às fraquezas do homem está presente na humanidade desde épocas ancestrais. E perdura nos dias de hoje sobre o pretexto de uma melhora significativa da qualidade de vida da humanidade.

Agora entre um pensamento que deixamos mais para o final, não seria então a ciência racista?

Este procurar incansável de uma raça melhor, mais forte e perfeita, denota um profundo preconceito com os cidadãos portadores de deficiências.

Não que seja um racismo dirigido, mas, se trata de uma espécie de vergonha dos cientistas de “permitirem” que existam pessoas tidas como fora dos padrões de normalidade.

O Projeto genoma apenas nos mostra a profunda intolerância que a ciência tem com os menos favorecidos. E fortalece este pensamento na medida em que anuncia a proximidade de erradicação de doenças e deficiências.

E como se desenvolverá tal processo? Primeiro identificando os genes causadores dos defeitos e doenças, e na seqüência, os alterando ou erradicando dos embriões, para evitar que uma pessoa desenvolva a deformidade.

O mais simples será eliminar o embrião que apresentar alguma doença séria, como já é feito em muitos países, mas se os pais objetarem por motivos éticos ou religiosos, poderá ser feita uma intervenção visando modificar o gene e retorná-lo à codificação de normalidade, antes de permitir o desenvolvimento posterior em feto.

O segundo passo será “tratar” das pessoas já vivas, numa substituição das seqüências defeituosas por outras “corrigidas”.

E muitos podem pensar que isso nunca irá acontecer, mas o que dizer das experiências com as células-tronco? Até agora tem apresentado resultados bastante polêmicos e restritos.

Em termos comparativos, os resultados obtidos até agora são muito mais significativos que antigamente. É apenas uma questão de tempo para que as pesquisas avancem e se aperfeiçoem a tal ponto que num futuro se tornem procedimentos de rotina, realizados em consultório.

Nada mais é do que uma correção de problemas para pessoas que já os possui. A diferença é que agora essas pessoas não eram mortas como há dois séculos atrás.

A correção dos “defeitos” pode ser encarada apenas como uma etapa inicial, porque num futuro, ainda que muito distante de nossa realidade, poderá, com base no próprio mapeamento genético desenvolver um ser humano “ideal”, sem defeitos, forte e virtuoso.

E, neste ponto, as pessoas ainda não enxergaram os riscos. Por que, se no futuro será possível eliminar as doenças e tornar a vida das pessoas mais saudáveis, o que impedirá a ciência de alteraras funções e estruturas normais do corpo?

E não estamos falando de corrigir problemas de saúde. Poderão os pais escolher a cor dos olhos de seu filho? Da pele? Do cabelo? Ou mudar tendências genéticas de temperamento, personalidade, preferências sexuais, etc.

Pode ser uma profetização, e Oxalá estejamos errados, mas de que impede que a ciência proporcione que as pessoas fiquem mais inteligentes com as alterações dos genes, e por fim, queiram brincar de serem Deus e prolongar a longevidade de um ser humano?

Pode ser que a diferença esteja no contexto de brutalidade em que Hitler idealizou sua “melhoria da raça”, mas, de qualquer forma, o cerne da questão continua sendo o mesmo: trata-se de eugenia.

E não criticamos em momento algum as conquistas obtidas pela ciência até o presente momento, mas Hitler nos deixou um legado que não pode ser esquecido.

A eugenia tem de ser tratada com muito cuidado, porque tende a se tornar um racismo exacerbado e incontrolável, a busca por uma perfeição imperfeita.

Será a transformação da humanidade num padrão, e porque não, numa robotização.

O nazismo nos ensinou que a eugenia pode trazer muitos benefícios, mas que os seus malefícios podem causar estragos numa escala muito mais devastadora. A missão da ciência é inglória: aperfeiçoar o homem, que não se percam os pesquisadores.

 

Bibliografia
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Cantarino, Carol.  Nova genética desestabiliza idéia de “raça” e coloca dilemas políticos, disponível em: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8& edicao=8&id=51.
EVANGELISTA, Rafael. Resenha sobre o livro A guerra contra os fracos, em: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&tipo=resenha&edição=8.
GUERRA, André. Do Holocausto nazista à nova eugenia no século XXI, disponível em: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8& edicao=8&id=44.
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PEDROSA, Paulo Sérgio R. Eugenia: o pesadelo genético do Século XX. Parte I: o início”. MONTFORT Associação Cultural, disponível em: www.montfort.org.br/ index.php?secao= veritas&subsecao= ciencia&artigo=eugenia1&lang=bra.
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_________________________________Eugenia: o pesadelo genético do século XX. Parte III: a ciência nazista . MONTFORT Associação Cultural, disponível:
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REVISTA SUPERINTERESSANTE, n. 215, julho de 2005.
Sabbatini, Renato. O livro da vida. Jornal Correio Popular, Campinas, 16/2/2001.
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Informações Sobre o Autor

 

Antonio Baptista Gonçalves

 

Advogado, Membro da Association Internationale de Droit Penal, Membro da Associação Brasileira dos Constitucionalistas. Membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAB/SP, Mestrando em Filosofia do Direito – PUC/SP, Especialista em International Criminal Law: Terrorism´s New Wars and ICL´s, Responses – Istituto Superiore Internazionale di Scienze Criminali, Especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra, Pós Graduado em Direito Penal – Teoria dos delitos – Universidade de Salamanca, Pós Graduado em Direito Penal Econômico da Fundação Getúlio Vargas – FGV

 


 

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