A herança de Darwin e o problema da justificação filosófico-jurídica da dignidade humana (parte II)

Resumo: O problema da tão popular justificação filosófico-jurídica da dignidade humana, sem referência alguma às atuais teorias e evidências científicas acerca da natureza humana, é que não significa nada. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitivo, equivale a não dizer nada. Os bons argumentos baseados exclusivamente na mera contemplação teórica indicam de maneira muito clara os riscos que se corre quando se utilizam critérios de abstração e/ou universalização da dignidade que não procedam de uma consideração contrastada da natureza biológica humana: todo um catálogo de propostas que já levaram a situações monstruosas e conduziram em ocasiões à perversa incapacidade de indignar-se ante a injustiça e a comover-se ante o sofrimento desnecessário.


“…soñar con tu libertad me hizo soñar con la mía. Y tuve esperanza por ti y por mí. Seguí adelante, tumbando muros […] peleando con los míos y contra los míos para recuperar tu dignidad robada, mi dignidad al fin”. M. P. MENDOZA


A aparição dos universais éticos: o sentido da justiça[1]


A idéia de universais morais junto com a da seleção natural leva-nos às possíveis explicações biológicas de ditos universais, o que é geralmente considerado como um novo tipo de ética evolucionista, o tipo de ética que sustenta que os instintos morais surgiram por evolução. Por exemplo, a teoria dos jogos, a neurociência cognitiva e a primatologia já nos proporcionaram os primeiros indícios acerca de se a idéia da natureza humana como própria de um preferidor racional é acertada.


A intuição acerca de nosso comportamento racional há fundamentado boa parte dos estudos tanto científicos como humanísticos acerca do ser humano, incluindo a maior parte da economia neoclássica. Mas fenômenos como o do castigo altruísta põe em duvida a premissa de nossa racionalidade perfeita.


O castigo altruísta (Fehr e Gächter, 2002) é um comportamento no qual um sujeito A, ao ver como outro B se salta as regras da convivência, está disposto a pôr algo de sua parte com tal de que o transgressor B seja castigado pese a que seu “delito” não afete A de maneira pessoal. O castigador altruísta não recebe nenhum benefício mais sim sofre uma perda — de bens ou de qualquer outro tipo —, assim que uma maximização de seus interesses impediria que aceitasse tal perda. A teoria dos jogos já estudou a fundo os possíveis modelos de castigo altruísta — mediante o jogo do ultimatum, por exemplo. Mas também sabemos algo acerca da maneira como outros primatas se comportam neste domínio. Os monos capuchinos são, igual que os humanos, castigadores altruístas (Brosnan e De Waal, 2003). Os chimpanzés, não; se comportam como preferidores racionais (Jensen, Call, e Tomasello, 2007).


Isso significa ao menos duas coisas. A primeira, que nosso grupo irmão, a linhagem animal mais próximo evolutivamente aos seres humanos, difere neste aspecto. A segunda, que não sabemos qual pode ter sido o traço fixado antes. Ou bem a linhagem comum a capuchinos + chimpanzés + humanos tem como traço primitivo o do castigo altruísta, com os chimpanzés desenvolvendo uma apomorfia de preferência racional, ou bem o traço primitivo é esta racionalidade firme, com o que os comportamentos de castigo altruísta de capuchinos e humanos são homoplasias, traços fixados de maneira independente.


A diferença é importante porque, da mão do castigo altruísta, o que aparece em realidade é o sentido da justiça. Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais contêm essa particular maneira de sentir-nos bem. É este sentido da justiça o que subjaz à idéia de John Rawls (1978) acerca da capacidade para lograr compromissos por meio do véu da ignorância, propondo em termos de justiça universal e não de interesses particulares as regras do jogo. Perspectiva como esta constitui apenas um exemplo, ainda que parcial, das possibilidades que brinda a naturalização dos valores humanos.


Como se vê, parece bastante provável que, a estas alturas, a idéia antropológica do que é um ser humano já tenha alcançado uma universalidade superior à grega clássica, à escolástica e à ilustrada, mas, não existem mais fronteiras que ampliar? Claro que existem. As dúvidas acerca da dignidade não se detem na consideração dos cidadãos-promédio. Sem olvidar que, com nossas leis e nossas condutas, podemos estar mantendo ainda a qualificação de quase-pessoas (um novo “Compromisso das 3/5 partes”?), por exemplo, para a maioria dos homossexuais que continuam a luta contra uma injustificada desigualdade de direitos. As fronteiras seguem abertas. Mantêm sua dignidade os criminosos confessos reicindentes, os psicopatas, os genocidas? E os trabalhadores em situação de escravidão? Deve conceder-se aos embriões? E a partir de que momento? Têm dignidade os chimpanzés? E os monos verdes, que usam a semântica para advertir da presença de um predador? Mais além dos primatas, tem dignidade os mamíferos, as aves, os peixes? Também as baratas, as amebas e as bactérias?


A aposta menos arriscada consiste em basear-se no conhecimento científico, nas evidências que se vão obtendo desde o funcionamento do cérebro humano ao caráter do ecossistema, para limitar e definir a natureza humana e, na mesma medida, rechaçar toda e qualquer forma de abstracionismo puramente teorizante no que se refere à definição da dignidade. Será sempre uma tarefa reservada, com exclusividade, à atividade filosófica humana?


Desde um ponto de vista evolucionista, é tentador ver as principais teorias éticas normativas – a ética aristotélica da virtude, o egoísmo psicológico de Hobbes, o utilitarismo de Bentham e Mill, as deontologias de Kant e de Ross, o véu de ignorância de Rawls, e inclusive, mais recentemente, a ética meio ambiental e a ética feminista – mais ou menos do mesmo modo em que John Hick (1985) vê as principais religiões do mundo: cada uma das principais religiões do mundo é como um indiano cego na parábola budista dos cegos e o elefante, na qual cada um dos indianos cegos toca e descreve uma parte diferente do corpo de um elefante e cada um deles confunde a parte com o todo. (Stamos, 2009)


E uma vez que os humanos e as instituições morais humanas evoluíram durante milhões de anos na complexa dinâmica grupal dos caçadores-coletores, pode muito bem ser que cada uma das principais teorias normativas seja como um desses indianos cegos que descrevem e atribuem uma realidade completa a somente uma parte do todo da ética normativa tal como evoluiu nos humanos. De tal modo, ignorar ou rechaçar as justificações naturalistas da ética é, sem mais, um risco que não podemos permitir-nos, para não dizer um disparate.


Princípios e valores jurídicos: natureza humana, liberdade e dignidade


Uma vez admitida a necessidade de um câmbio de paradigma, parece razoável sustentar que toda forma jurídica operativa destinada a avaliar o problema da dignidade humana sob a perspectiva “naturalista” deveria começar por uma pergunta: Em que medida os enfoques acerca da relação que existe entre natureza e dignidade humana poderão arrojar luz sobre como concebemos os direitos humanos? Quer dizer, em que medida é possível e útil a adoção jurídica da concepção naturalista da dignidade humana no contexto dos direitos humanos?


A idéia de que a dignidade se assenta em nossa biologia vai contra as crenças jurídicas habituais e com frequência entra em conflito com as diretrizes ditadas pela lei, a moral ou a religião. Em nenhum âmbito teve isso mais importância que no dos direitos e garantias assegurados por meio dos direitos humanos e, em especial, dentro de algumas das recentes batalhas em relação com o livre arbítrio, a igualdade, a eutanásia e o aborto. Não obstante, parece haver uma evidente preocupação por parte dos direitos humanos no sentido de eliminar o funcionamento dessa dinâmica conflitiva, favorecendo a liberdade e a autonomia do indivíduo. Por exemplo, entre os objetivos da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos figura o de  “proporcionar un marco universal de principios y procedimientos” destinados, a partir de um “dialogo multidisciplinario”, a “promover el respeto de la dignidad humana y proteger los derechos humanos, velando por el respeto de la vida de los seres humanos y las libertades fundamentales, de conformidad con el derecho internacional relativo a los derechos humanos”.


Se estabelece, por esta via, uma evidente conexão entre a natureza humana e os princípios, normas e valores jurídicos: não parece razoável conceber a dignidade humana sem liberdade, autonomia, igualdade e pluralismo jurídico, e estes valores, por sua vez, resultariam inúteis se não  redundassem em favor da dignidade humana. Os princípios inspiradores dos direitos humanos constituem seu próprio fundamento e, como tal, configuram e delimitam seu próprio sentido em todo o processo, tanto o da elaboração normativa como o de sua aplicação prático-concreta. Esses princípios são os parâmetros condicionantes e vinculantes para a elaboração normativa, interpretação e aplicação de direito e, ao mesmo tempo, um limite para o ordenamento jurídico interno dos Estados.


Também como princípio fundamental, o conceito da dignidade humana vai mais além da mera funcionalidade normativa. A idéia da livre constituição e o pleno desenvolvimento do indivíduo sob o manto de instituições justas (igualitária e fraterna) se caracteriza por ser um elemento axiológico objetivo de caráter indisponível. Junto com os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o respeito à lei e os direitos dos demais, constitui o fundamento último da ordem jurídico-política internacional. A dignidade da pessoa humana, portanto, não é uma simples idéia valorativa (o melhor) no modelo normativo, senão que expressa um dos critérios condicionantes da ordem estabelecida. Sua colocação como valor fundante dos direitos humanos e como principio normativo (o devido) lhe dá um significado especialmente relevante como elemento universal fundamental, inviolável e indisponível e, em consequência, como um critério axiológico-normativo, vinculante e irrevogável da práxis judicial.


Mas apesar desse cuidadoso desenho, a concepção dominante dos direitos humanos contém a nosso entender um vício de origem que lastra seus possíveis resultados: o da ênfase no indivíduo como critério essencial. E partir daí, é possível formular as seguintes perguntas: o que precisamente devemos fazer com a dignidade humana? Por que enquanto a naturaza humana, tal como aparece hoje em dia à luz dos descobrimentos científicos, propõe sem lugar a dúvidas a nossa consideração e reflexão uma idéia completamente nova de transformação, nos recusamos tenaz e taxativamente a rechaçar a sensação de que nada se transforma? Por que então, se está claro que não pode haver, em adiante, aproximação filosófica, ética, jurídica, etc., que não passe por uma análise detalhada da natureza humana, temos, não obstante, insistido por seguir um caminho contrário a uma integração interdisciplinar necessária que, a toda evidência, seguramente contribuirá mais para a compreensão do que nos torna humanos e dignos, no palco da natureza e da cultura? Por que se insiste em situar o problema da dignidade em função do homem singular, encerrado em sua esfera individual e exclusivamente moral? Continua sendo razoável conceber um conceito de dignidade humana que pretenda ser digno de crédito na atualidade mantendo-o à margem de um modelo darwiniano acerca da natureza humana?


Não parece nem razoável, nem oportuno. A cristalização de uma existência individual, separada e autônoma —digna, portanto— é um elemento muito mais complexo e gradual que a simples e óbvia assunção do princípio da dignidade como mera diretriz normativa. A caracterização da dignidade humana que desenvolvemos ao longo deste artigo leva-nos a admitir que temos boas razões para supor como correta a afirmação de que não cabe inferir grande coisa acerca da dignidade humana a partir de enunciados meramente lógico-formais, religiosos, normativos, de ideais políticos ou de vagas elucubrações acadêmico-filosóficas. A investigação da dignidade está vinculada de forma estreita à noção de natureza humana, que, a sua vez, é uma questão tão fática como a medida do periélio de Mercúrio (Mosterín, 2006). Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e/ou meramente como condição transcendental de possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da liberdade…


E a idéia de nossa natureza que se deriva da concepção biológica do ser humano parte da situação básica de relação que existe entre cada um dos seres humanos com outros seres humanos.  A natureza humana nem se esgota nem fica bem descrita em função do indivíduo moral singular, encerrado em sua esfera individual, e que serviu até agora para caracterizar como valor básico da construção do Estado liberal. Hoje sabemos – já dissemos – que o que denominamos natureza humana tem qualidades e predisposições físicas e morais inatas. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que esse conjunto de traços conformam a condição humana. Sabemos, mais além de toda dúvida razoável, que somos o resultado do processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. E o resultado é uma espécie interdependente, ética e social.


De fato, a própria idéia de liberdade — condicio sine qua non na qual se arraigam a autonomia e a dignidade humana — não se pode conceber a margem da relação com outras pessoas, porque a forma de ser do homem no mundo é de por si uma forma de ser interpessoal. A autonomia de ser e de fazer está inscrita na mesma essência do homem; dela surge a possibilidade e a capacidade de atuar de maneira livre e digna. Pois bem, essa autonomia não pode ter lugar mais que no diálogo e a interação com outros (com o “outro”). Dito de outro modo, não há liberdade humana que não se plasme na capacidade de sentir a chamada do outro. Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, de forma posterior e secundária, se veja revestida de uma dimensão ética. Dimensão livre e dimensão ética são os mesmos, e também é essa uma constatação que cobra seu sentido à luz do naturalismo.


Darwin apresentou o “homem moral” baseando-se em que sua capacidade cognitiva para compreender, avaliar e eleger complementa o moral sense para dar lugar à natureza humana evoluída. Nada disso é possível em uma situação de isolamento. A mais íntima essência e a medida da liberdade no ser humano são a possibilidade e a capacidade para sentir a chamada do outro e responder a ela. Desde o momento em que o outro aparece como um outro livre e autônomo, nasce  também a dimensão ético-jurídica, relacional e intersubjetiva da  dignidade.


A autonomia pessoal


Dado que os humanos não nos criamos a nós mesmos em um sentido absoluto, tem que haver algo em nós do qual não somos a causa. Mas o problema central com respeito ao nosso interesse pela liberdade e a dignidade humana não radica em quais dos acontecimentos em nossa vida volitiva estão determinados causalmente por condições externas a nós. O que realmente conta, no concernente à liberdade e a dignidade, não é a independência causal. É a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão acerca de se somos ativos ou passivos em nossos motivos e eleições; de se, com independência do modo em que os adquirimos, são motivos e eleições que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios. (Frankfurt, 2004). O sujeito autônomo, entanto que sujeito livre, não se encontra nem por debaixo nem por encima do sujeito de carne e osso ( genes, mente e cérebro) e tão pouco requer, para salvar a liberdade e a dignidade, de um  “agente moral autônomo” como alternativa a uma explicação causal em termos biológicos e evolutivos.


Ser fiel à natureza não é, portanto, recusar em seu nome a autonomia ou a liberdade ( elemento constitutivo da dignidade e, por sua vez, efeito da natureza); é, ao contrário, prolongar esse gesto, indissociavelmente natural e histórico, pelo qual nossa espécie, biológica e social, se ergue contra a natureza que a produz e a contém.  É o que Camus chamava de revolta, é o que Vercors chamava de  “recusa  rebelde” ( em que via uma característica de nossa espécie, que faz de nós uns  animais desnaturados), é o que chamamos ordinariamente de livre-arbítrio e que a evolução por seleção natural também pode explicar. Nossos cérebros (plásticos) realmente estão desenhados para produzir flexibilidade, liberdade e autonomia[2]. Para a perspectiva naturalista, portanto, ser fiel à natureza consiste en estender este gesto à categoria de princípios fundamentais para os direitos humanos.


É esse sentido relacional de dignidade humana o que deve estar ancorado em um direito destinado a favorecer a liberdade e a autonomia da pessoa. E não se trata de um problema de pouca importância, de um mero diletantismo mental para os juristas e os filósofos acadêmicos. A eleição da forma de abordar o problema da dignidade humana supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a direção  e o sentido do discurso jurídico e político.


Desde esta perspectiva, o interesse humano pela dignidade  como valor prioritário na ordem dos valores vem a converter-se, desde a idéia da liberdade humana, em um convite a viver de forma genuinamente humana nossa existência a partir do reconhecimento do “outro”. De fato, a responsabilidade pelos demais, que emana de sua mera existência, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia, a liberdade e a dignidade humana. O fundamento do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, geneticamente programado para a liberdade e a vida em sociedade (Magistretti, 2004; Siegel, 2007). Longe de ser um princípio contrário ou separado de nossa natureza, é esta, nossa natureza, a que dá sentido a nossa idéia da dignidade humana.


Por um novo modelo de direito: normatividade, interpretação e aplicação


A idéia de dignidade fundada em uma teoria forte de natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito sustentado, entre outras coisas, na moral de respeito mútuo. Somos nós mesmos os que outorgamos direitos morais a todo homem, por mais que busquemos seus fundamentos em instâncias não humanas, transcendentes ou sobrenaturais. Não existem, pois, direitos que não sejam outorgados para resolver problemas adaptativos relacionados com nossa própria vida (ou sobrevivência) social. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo — que implica ter em conta as necessidades, desejos e crenças dos demais — tem por objeto garantir as condições mínimas de uma vida satisfatória e plena, que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar. Nisso reside, de fato, a dimensão intersubjetiva, relacional ou co-existencial da dignidade humana: atuar baixo o suposto implícito de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.


Em consequência, parece que a melhor maneira para explicar, compreender e aplicar o princípio da dignidade é a partir da idéia do ser humano em sua tríplice configuração: a) em sua existência individual, separada e autônoma (e, como tal, princípio do direito); b) como fim de seu mundo (e, portanto, também do direito); e c) como sujeito de vínculos sociais elementares através dos quais constrói, a partir das reações dos demais, os estilos aprovados de uma vida sócio-comunitária digna de ser vivida em sua plenitude (ou seja, como titular de direitos e deveres que projetam na coletividade a sua existência como cidadão).


O objetivo essencial em uma operação assim, recorda Chomsky (2006), deve ser sempre o de intentar criar a visão de uma sociedade donde impere a justiça. Isto significa criar uma teoria social e jurídica humanista baseada, na medida do possível, em uma concepção humanista e empiricamente firme da natureza humana (ou da essência humana), quer dizer, de intentar estabelecer as conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar à liberdade, à igualdade e à fraternidade, enfim, à dignidade humana e outras características humanas fundamentais, e uma noção de estrutura e relação social donde estas propriedades possam realizar-se para que a vida humana adquira um sentido pleno.


Mas o princípio da dignidade não somente tem importância no processo político-legislativo de elaboração de um desenho normativo. Também tem, e muito em especial, no momento tão problemático como concreto de sua aplicação. Nesse sentido, a primazia que desempenha o princípio da dignidade humana como um critério clave das normas, valores e princípios contidos no ordenamento jurídico se converte em garantia contra um perigoso relativismo moral, já proceda do iusnaturalismo transcendental ou do positivismo jurídico. Com frequência os juízes devem tomar decisões em função de interesses arbitrários, de uma injustificada interferência do Estado ou de qualquer outro agente social. Tais decisões conduzem ao sacrifício de direitos de todo ponto inalienáveis, que são os que habilitam a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres. Para evitá-lo, um sistema axiológico-normativo fundado na dignidade humana deve exigir que as normas sejam interpretadas e aplicadas de um modo que não choquem com os valores e princípios superiores. A prática jurídica há de servir para promover sua efetiva realização, quer dizer, de que esse é o papel que cabe ao operador do direito a partir de uma práxis social e hermenêutica comprometida com uma concepção robusta da natureza humana.


Por conseguinte, e considerando os argumentos antes articulados, parece razoável inferir que os princípios inerentes ao ser humano, como sua dignidade, igualdade e liberdade, provêem da natureza humana, devidamente fundada na herança e na cultura. Como assinalado por Andorno (1997): “Es cierto que en la historia de la humanidad han existido categorías de hombres a quienes no se reconocía como personas ( p. ej. los esclavos). No obstante, con el paso de los siglos se ha ido afirmando en la conciencia social la idea de que todos los hombres, cualquiera que sea su origen, sexo, condición social o edad, poseen una misma e igual dignidad. La filosofía de los derechos humanos desarrollada por la modernidad hunde sus raíces en esta misma intuición, ya que su tesis principal consiste en sostener que la dignidad y los derechos que de ella derivan corresponden al hombre por el sólo hecho de ser hombre. Toda otra exigencia está de más […] la noción de derecho humano indica precisamente que el hombre no se convierte en miembro de la sociedad humana mediante una captación realizada sobre la base de determinadas características sino en virtud de su pertenencia biológica a la especie Homo sapiens”.


A título de resumo, os direitos humanos constituem um instrumental normativo muito útil para dar curso normal a uma mediação pragmático-normativa de elaboração e aplicação das leis que seja eficaz para evitar que o indivíduo seja interferido em seu plano vital pelos demais agentes sociais. Mas como condição necessária para que suceda isso, para poder fugir das imposições arbitrárias, a própria realização prático-jurídica dos direitos humanos deve ser formulada a partir de uma posição antropológica capaz de explicar a fenomenologia da ação humana. Somente desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível ao operador do direito captar o sentido e a função do princípio da dignidade humana como unidade de um contexto vital, ético e cultural.


Em realidade não se trata de pretender impor grandes novidades. O que se intenta mediante a concepção naturalista dos princípios e valores humanos é vincular de forma prioritária a concepção da dignidade humana às virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. Estas três virtudes, que compõem o conteúdo da justiça, só são diferentes aspectos da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito sem condições da dignidade humana. Não se pode realizar na prática o princípio da dignidade da pessoa se este não se materializa nas condições de vida de cada cidadão (um primata que evoluiu por seleção natural), garantindo-lhe liberdade e igualdade de oportunidades em uma sociedade fraterna.


É sabido que a norma jurídica, qualquer que seja seu grau de imperatividade, deve promover a justiça. O modo mais decisivo de fazê-lo é garantir de forma incondicional a liberdade, a igualdade e a autonomia do ser humano que, em seu conjunto, configuram sua dignidade. Mas nada disso haveria resultado possível, nem o seria nunca, se a natureza humana não houvesse adquirido através do caminho de nossa evolução as bases necessárias para alcançar a dignidade, para entendê-la e para fazer dela o sentido mesmo de nossa existência como primatas peculiares.


 


Notas:

[1] Este artigo é a versão revisada de um trabalho dos autores publicado com o título “Naturaleza y Dignidad Humana”, in CASADO, Maria (COORD.) (2009). Sobre la Dignidad y los Principios. Análisis de la Declaración Universal de Bioética y Derechos Humanos de la UNESCO, Barcelona: Civitas –  Thomson Reuters, pp. 113-129.

[2] “Uma descrição naturalista de como ocorreu nossa evolução e de nossas mentes parece ameaçar o conceito tradicional de liberdade, e o medo ante esta perspectiva acabou por distorcionar a investigação científica e filosófica nesta matéria. Alguns dos que deram à voz de alarma ante os perigos dos novos descobrimentos sobre nós mesmos apresentaram uma imagem muito falseada dos mesmos. Uma severa reflexão sobre as implicações de nosso novo conhecimento sobre nossas origens servirá de fundamento para uma doutrina mais sólida e prudente sobre a liberdade que os mitos aos que está chamada a substituir” (Dennett, 2003).


Informações Sobre os Autores

Atahualpa Fernandez

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB).

Manuella Maria Fernandez

Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Humanidades y Ciencias Sociales( Evolución y Cognición Humana)/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Mestre em Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Research Scholar, Fachbereich Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main/ Deutschland; Research Scholar do Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos /UIB


logo Âmbito Jurídico