A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais



1. Hierarquia entre princípios constitucionais?



Questão interessante é saber se há hierarquia entre os princípios constitucionais.



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O ordenamento jurídico, como se sabe, é um sistema hierárquico de normas, na clássica formulação de KELSEN. Estaria, assim, escalonado com normas de diferentes valores, ocupando cada norma uma posição intersistemática, formando um todo harmônico[1], com interdependência de funções e diferentes níveis normativos de forma que “uma norma para ser válida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa”[2]. É a famosa teoria da construção escalonada das normas jurídicas (stufenbautheorie).



Considerando que princípios jurídicos são normas[3], e que as normas são hierarquicamente escalonadas, poder-se-ia facilmente admitir que há hierarquia entre os princípios. Nesse sentido, assim se manifesta GERALDO ATALIBA:  “O sistema jurídico (…) se estabelece mediante uma hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as quais, por sua vez, repousam em princípios que, de seu lado, se assentam em outros princípios mais importantes. Dessa hierarquia decorre que os princípios maiores fixam as diretrizes gerais do sistema e subordinam os princípios menores. Estes subordinam certas regras que, à sua vez, submetem outras (…)”[4].



Apesar de ser esta uma dedução lógica, a questão da possibilidade de hierarquia entre princípios não é tão fácil quanto se imagina.



Se levarmos em conta que existem princípios constitucionais e princípios infraconstitucionais, não há grande dificuldade em perceber que aqueles são hierarquicamente superiores a estes. Pode-se mesmo dizer que os princípios constitucionais são o fundamento de validade dos princípios infraconstitucionais. Assim, por exemplo, o princípio da identidade física do juiz, inserto no art. 132 do C.Pr.C., buscaria fundamento de validade no princípio constitucional do juiz natural, disposto no art. 5o, LIII, da CF/88.



A questão se complica quando se toma como ponto de referência unicamente os princípios constitucionais. Ou seja, imaginando um “corte epistemológico” na pirâmide normativa e separando as normas de status constitucional, poder-se-ia dizer que há hierarquia entre os princípios constitucionais considerados em si mesmos? Por exemplo, o princípio da isonomia seria hierarquicamente superior ao princípio da liberdade de reunião, ambos consagrados no texto constitucional? A resposta para esta questão varia conforme o critério a ser adotado para se estabelecer a hierarquia.



De fato, se nos pautarmos no critério axiológico, valorativo, parece indubitável que há hierarquia entre tais princípios. Afinal, quem ousa dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana “vale” menos do que o princípio da proteção à propriedade? Aliás, todos os princípios e regras decorrem, ainda que indireta e mediatamente, do princípio-mor da dignidade da pessoa humana[5]. Do mesmo modo, seria correto dizer que o princípio do devido processo legal estaria situado no topo dos princípios constitucionais processuais.



GERALDO ATALIBA, nesse sentido, afirma que “mesmo no nível constitucional, há uma ordem que faz com que as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionadas pelos princípios. Estes se harmonizam, em função da hierarquia entre eles estabelecida, de modo a assegurar plena coerência interna ao sistema (…)”[6]. Nesse aspecto, portanto, parece inarredável que nossa Carta Magna realmente “hierarquizou” princípios, “elegendo” os mais importantes para compor o núcleo essencial, ou, na expressão de LOWENSTEIN, para ser a “dimensão política fundamental”. Tanto é verdade que alguns princípios são “irreformáveis”, ou seja, estão imantados pela cláusula da inabolibidade (não podem ser abolidos), ao passo que outros podem ser, na forma do processo constitucional legislativo, suprimidos pelo poder constituinte derivado[7].



Por outro lado, do ponto de vista jurídico, é forçoso admitir que não há hierarquia entre os princípios constitucionais. Ou seja, todos as normas constitucionais têm igual dignidade; em outras palavras: não há normas constitucionais meramente formais, nem hierarquia de supra ou infra-ordenação dentro da Constituição, conforme asseverou CANOTILHO. Existem, é certo, princípios com diferentes níveis de concretização e densidade semântica, mas nem por isso é correto dizer que há hierarquia normativa entre os princípios constitucionais. Com efeito, como decorrência imediata do princípio da unidade da Constituição, tem-se como inadmissível a existência de normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais), isto é, completamente incompatíveis, conquanto possa haver, e geralmente há, tensão das normas entre si.



Ora, se a Constituição é um sistema de normas, um lucidos ordo, como era sempre advertido por Ruy Barbosa, que confere unidade a todo o ordenamento jurídico, disciplinando unitária e congruentemente as estruturas fundamentais da sociedade e do Estado, é mais do que razoável concluir não há hierarquia entre estas normas constitucionais. Não existe nem mesmo hierarquia (jurídica) entre os princípios e as regras constitucionais, o que se afasta, de logo, a ocorrência de normas constitucionais inconstitucionais[8], ou melhor, normas constitucionais do poder constituinte originário inconstitucionais, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, acertadamente, já admitiu a possibilidade de normas constitucionais emanadas do poder constituinte derivado inconstitucionais (ADIn 939), desde que maculem as garantias de eternidade (cláusulas pétreas) enumeradas no §4o do art. 60.



Dessume-se, pois, que não há, do ponto de vista estritamente jurídico (epistemológico), hierarquia entre os princípios. Pode-se, não obstante, cogitar a hipótese de existência de hierarquia axiológica (ou deontológica) entre as normas constitucionais, incluindo-se aí, obviamente, os princípios.



Partido-se dessa constatação de que não há hierarquia entre os princípios constitucionais, surge uma tormentosa questão: o que fazer quando dois ou mais princípios constitucionais entram em rota de colisão? É o que veremos no tópico que se segue. 



2. Colisão[9] de princípios constitucionais: o postulado da  concordância prática e  a dimensão de peso ou importância



Falou-se que não há hierarquia jurídica entre os princípios, embora normalmente haja entre eles uma tensão permanente. É verdade. As normas constitucionais, muitas vezes, parecem conflitantes, antagônicas até. À primeira vista, aparentam inconciliáveis o princípio da liberdade de expressão e o direito à intimidade ou privacidade. E o princípio da função social da propriedade com a norma que diz que as terras públicas não são passíveis de usucapião, como conciliá-los? O que dizer, outrossim, do princípio da livre iniciativa e as possibilidades de monopólio estatal constitucionalmente previstas? Há, sem dúvida, constante tensão entre as normas constitucionais.



Essa tensão existente entre as normas é conseqüência da própria carga valorativa inserta na Constituição, que, desde o seu nascedouro, incorpora, em uma sociedade pluralista, os interesses das diversas classes componentes do Poder Constituinte Originário. Esses interesses, como não poderia deixar de ser, em diversos momentos não se harmonizam entre si em virtude de representarem a vontade política de classes sociais antagônicas. Surge, então, dessa pluralidade de concepções – típica em um “Estado Democrático de Direito” que é a fórmula política adotada por nós – um estado permanente de tensão entre as normas constitucionais. Como explica MÜLLER, a Constituição é de si mesma um repositório de princípios às vezes antagônicos e controversos, que exprimem o armistício na guerra institucional da sociedade de classes, mas não retiram à Constituição seu teor de heterogeneidade e contradições inerentes, visíveis até mesmo pelo aspecto técnico na desordem e no caráter dispersivo com que se amontoam, à consideração do hermeneuta, matéria jurídica, programas políticos, conteúdos sociais e ideológicos, fundamentos do regime, regras materialmente transitórias embora formalmente institucionalizadas de maneira permanente e que fazem, enfim, da Constituição um navio que recebe e transporta todas as cargas possíveis, de acordo com as necessidades, o método e os sentimentos da época[10]. 



Ademais, o simples fato de os princípios constituírem um sistema aberto, ou seja, permitirem uma compreensão fluida e plástica, já insinua (ou subentende-se) que podem existir fenômenos de tensão entre esses princípios componentes dessa dinâmica ordem sistêmica. Nos casos concretos, é muito comum o jurista deparar-se com dois princípios conflitantes. É o que costuma denominar-se de colisão de princípios[11].



Como se sabe, a situação de regras incompatíveis entre si é denominada antinomia. Há três critérios clássicos, apontados por BOBBIO e aceitos quase universalmente, para solução de antinomias: o critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e, por último, o critério da especialidade (lex specialis derogat generali). Assim, no caso de duas regras em conflito, aplica-se um desses três critérios, na forma do tudo ou nada (no all or nothing[12]): “se se dão os fatos por ela estabelecidos, então ou  a regra é válida e, em tal caso, deve-se aceitar a conseqüência que ela fornece; ou a regra é inválida e, em tal caso, não influi sobre a decisão”[13]. No caso de colisão de princípios constitucionais, porém, não se trata de antinomia[14], vez que não se pode simplesmente afastar a aplicação de um deles. Portanto, não há que se falar em aplicação destes critérios para solucionar eventual colisão de princípios constitucionais. Como assevera CANOTILHO: “Assim, por ex., se o princípio democrático obtém concretização através do princípio maioritário, isso não significa desprezo da proteção das minorias (…); se o princípio democrático, na sua dimensão económica, exige a intervenção conformadora do Estado através de expropriações e nacionalizações, isso não significa que se posterguem os requisitos de segurança inerentes ao princípio do Estado de direito (princípio de legalidade, princípio de justa indenização, princípio de acesso aos tribunais para discutir a medida da intervenção)”[15].



Surge, em razão dessa impossibilidade de se aplicar os critérios clássicos para resolver antinomias, no caso de conflito entre princípios, uma tormentosa questão: quid iuris no caso de uma colisão de princípio constitucionais, já que eles possuem a mesma hierarquia normativa e, portanto, devem ser igualmente obedecidos? Escolhe-se o axiologicamente mais importante, afastando integralmente a aplicação do outro? A nosso ver, não é essa, a priori, a melhor solução. Afinal, quem irá determinar qual o princípio “axiologicamente mais importante”? Para o fazendeiro, dono da terra, o princípio mais importante certamente será o da propriedade; para o “sem-terra”, o da função social da propriedade.



Duas soluções foram desenvolvidas pela doutrina (estrangeira, diga-se de passagem) e vêm sendo comumente utilizada pelos Tribunais. A primeira é a da concordância prática (Hesse); a segunda, a da dimensão de peso ou importância (Dworkin). A par dessas duas soluções, aparece, em qualquer situação, o princípio da proporcionalidade como “meta-princípio”, isto é, como “princípio dos princípios”, visando, da melhor forma, preservar os princípios constitucionais em jogo. O próprio HESSE entende que a concordância prática é uma projeção do princípio da proporcionalidade.



A nosso ver, essas duas soluções (concordância prática e dimensão de peso e importância) podem e devem ser aplicadas sucessivamente, sempre tendo o princípio da proporcionalidade como “parâmetro”: primeiro, aplica-se a concordância prática[16]; em seguida, não sendo possível a concordância, dimensiona-se o peso e importância dos princípios em jogo, sacrificando, o mínimo possível, o princípio de “menor peso”. Vejamos, com mais detalhes, o que vem a ser a concordância prática e a dimensão de peso e importância.



 – O princípio da concordância prática ou da harmonização, como consectário lógico do princípio da unidade constitucional, é comumente utilizado para resolver problemas referentes à colisão de direitos fundamentais. De acordo com esse princípio, os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados, no caso sub examine, por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionais protegidos[17].



A concordância prática pode ser enunciada da seguinte maneira: havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas de hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os direitos e valores em jogo, no estabelecimento de uma concordância prática (praktische Konkordanz)[18], que deve resultar numa ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja, busca-se o ‘melhor equilíbrio possível entre os princípios colidentes’(LERCHE). Nas palavras de INGO WOLFGANG SARLET: “Em rigor, cuida-se de processo de ponderação no qual não se trata da atribuição de uma prevalência absoluta de um valor sobre outro, mas, sim, na tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, ainda que no caso concreto se torne necessária a atenuação de uma delas”[19].



Um exemplo esclarecerá melhor a aplicação do princípio da concordância prática: na Alemanha, em um caso famoso, um sujeito foi preso, por estar sendo acusado de inúmeros crimes de grande repercussão social. Logicamente, a imprensa local pretendia divulgar amplamente a matéria, tendo, inclusive, uma emissora editado um documentário, o qual seria transmitido em horário nobre. Diante desses fatos, o sujeito que havia sido preso aforou uma ação pretendendo impedir os intentos da imprensa sob a alegação de que a divulgação da matéria feriria o seu direito à intimidade e à privacidade, sendo certo que, após a divulgação, seria impossível ao sujeito tornar a ter uma vida normal.



Estaríamos, assim, diante de uma colisão de dois princípios constitucionais: a liberdade de expressão e o direito à intimidade.



O fato foi posto a julgamento, e a Justiça Alemã, utilizando o princípio da concordância prática, assim decidiu: a imprensa poderá, em nome da liberdade de expressão, exibir a matéria. No entanto, visando preservar o direito à intimidade do indivíduo, não poderá citar seu nome completo (mas somente as iniciais), nem mostrar seu rosto (deverá utilizar mecanismos eletrônicos para desfigurá-lo).



Conciliou-se, dessa forma, os princípios da liberdade de expressão e da privacidade. É a concordância prática.



2.2. A dimensão de peso e importânciaO segundo critério que pode ser utilizado se não for possível a concordância prática é o da dimensão de peso e importância (dimension of weights), fornecido por RONALD DWORKIN. Na obra Taking Rights Seriously, após explicar que as regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicada (dimensão do tudo ou nada), o prof. da Universidade de Oxford diz que os princípios “possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles (…). As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas, no interior do sistema normativo, é mais importante do que outra, de modo que, no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em virtude de seu peso maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida”[20].



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Seguindo o ensinamento de CANOTILHO: “(1) os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (…); a convivência dos princípios é conflitual (ZAGREBELSKY); a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem; as regras antinómicas excluem-se; (2) consequentemente, os princípios, ao constituirem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ‘lógica do tudo ou nada’), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. (3) em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objecto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas ‘exigências’ ou ‘standards’ que, em ‘primeira linha (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm ‘fixações normativas’ definitivas, sendo insustentável a validade simultânea da regras contraditórias. (4) os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).”[21]



No dimensionamento do peso ou importância dos princípios, segundo DOWRKIN, haveria única resposta correta para os casos difíceis (hard cases).



Nesse ponto, ousamos discordar do mestre. É que, no nosso entendimento, a ponderação de valores, pela carga axiológica mesma inserta nessa atividade, faz com que a decisão do caso concreto dependa sobremaneira da postura ideológica do hermeneuta: é uma “solução de compromisso”. Assim, no já citado exemplo do princípio da função social da propriedade, a solução seria diversa em função da diretriz ideológica adotada na interpretação (postura tradicional versus postura social). Como diria LOUIS VEUILLOT, publicista do século passado: “quando eu sou o mais fraco eu vos peço liberdade porque tal é o vosso princípio; mas quando eu sou o mais forte, eu vos nego esta liberdade porque tal é o meu”[22].



Portanto, somente diante do caso concreto será possível resolver o problema da aparente colisão de princípios, através de um ponderação (objetiva e subjetiva) de valores, pois, ao contrário do que ocorre com a antinomia de regras, não há, a priori, critérios formais (meta-normas) e standards preestabelecidos para resolvê-lo.



O intérprete, no caso concreto, através de uma análise necessariamente tópica, terá que verificar, seguindo critérios objetivos e subjetivos[23], qual o valor que o ordenamento, em seu conjunto, deseja preservar naquela situação, sempre buscando conciliar os dois princípios em colisão. É a busca da composição dos princípios.



Nesse caso, a legitimidade da interpretação apenas será preservada na medida em que, em cada caso, informada pelo critério da proporcionalidade, essa composição seja operada[24]. Ou seja, “a especificidade, conteúdo, extensão e alcance próprios de cada princípio não exigem nem admitem o sacrifício unilateral de um princípio em relação aos outros, antes reclamam a harmonização dos mesmos, de modo a obter-se a máxima efectividade de todos eles”, conforme a lição de CANOTILHO.



Um caso semelhante ao que citamos para explicar a concordância prática, onde também estava em jogo os princípios da liberdade de expressão e da inviolabilidade da vida privada, pode tornar mais claro a aplicação da dimensão do peso e importância dos princípios.



Cuidava-se de um ação de reparação de danos proposta pela atriz Maria Zilda Bethelm Vieira contra a Editora Abril S.A., cuja causa petendi remota[25] foi uma matéria jornalística publicada na seção Gente da revista Veja, noticiando que a autora, quando estava sendo transmitida a novela “Olho por Olho”, teria o hábito de faltar às gravações ou chegar alcoolizada, ferindo, portanto, o seu direito à intimidade (inviolabilidade da vida privada). A Editora Abril S.A sustentou em sua defesa que sua conduta (a de publicar a matéria) estava em consonância com o preceito constitucional que garante a liberdade de informação, tendo, por isso, agido em absoluta conformidade com a Carta Magna, informando seus leitores a respeito de fato de interesse público, pelo que não teria praticado ato ilícito. O Desembargador relator, afirmando que “não é possível analisar-se uma disposição constitucional isoladamente, fora do conjunto harmônico em que deve ser situada; princípios aparentemente contraditórios podem harmonizar-se desde que se abdique da pretensão de interpretá-los de forma isolada e absoluta”, aduziu em seu voto que “a revelação de verdades da vida privada capazes de causar transtornos só, se justifica se isso for essencial para se entender um fenômeno histórico. Se não, vira artifício sensacionalista, o que é eticamente condenável e politicamente perigoso”. O acórdão ficou assim ementado, excluídas as partes que não nos interessam:



“(…) Responsabilidade civil de empresa jornalística. Publicação ofensiva. I. Liberdade de informação versus inviolabilidade à vida privada. Princípio da unidade constitucional. Na temática atinente aos direitos e garantias fundamentais, dois princípios constitucionais se confrontam e devem ser conciliados. De um lado, a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, de outro lado, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Sempre que princípios aparentam colidir, deve o intérprete procurar as reciprocas implicações existentes entre eles até chegar a uma inteligência harmoniosa, porquanto, em face do princípio da lealdade constitucional, a Constituição não; pode estar em conflito consigo mesma, não obstante a diversidade de normas e princípios que contém. Assim, se ao direito à livre expressão da atividade intelectual e de comunicação contrapõe-se o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, segue-se como conseqüência lógica que este último condiciona o exercício do primeiro, atuando como limite estabelecido pela própria Lei Maior para impedir excessos e abusos” (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cível n° 760/96 – RJ, 2ª Câmara Cível, rel. Des. SÉRGIO CAVALIERI FILHO).



Dessa forma, no caso concreto, ponderou-se que o princípio da inviolabilidade da vida privada teria maior “peso e importância” do que a liberdade de expressão, para fins de aplicação da sanção civil. Aplicou-se, assim, a dimensão de peso e importância, apesar de ficar consignado em diversas partes do acórdão, que se deveria buscar a conciliação dos princípios. Na hipótese, como a conciliação completa não seria possível, tendo em vista que a matéria já havia sido publicada, condenou-se a Editora Abril S.A. a pagar uma indenização à atriz, pela violação de sua vida privada.



3. Para finalizar



Em conclusão:



a) não há, do ponto de vista estritamente jurídico (epistemológico), hierarquia entre os princípios;



b) pode-se, não obstante, cogitar a hipótese de existência de hierarquia axiológica (ou deontológica) entre as normas constitucionais, incluindo-se aí, obviamente, os princípios;



c) no caso de duas regras em conflito (antinomia), aplica-se um dos três critérios apontados pela doutrina (cronológico, hierárquico ou da especialidade), na forma do tudo ou nada (no all or nothing): “se se dão os fatos por ela estabelecidos, então ou  a regra é válida e, em tal caso, deve-se aceitar a conseqüência que ela fornece; ou a regra é inválida e, em tal caso, não influi sobre a decisão”. 



d) no caso de colisão de princípios constitucionais, porém, não se trata de antinomia, vez que não se pode simplesmente afastar a aplicação de um deles;



e) duas soluções foram desenvolvidas pela doutrina estrangeira e vêm sendo comumente utilizada pelos Tribunais para solucionar casos em que dois princípios entram em rota de colisão. A primeira é a da concordância prática (Hesse); a segunda, a da dimensão de peso ou importância (Dworkin);



f) a concordância prática pode ser enunciada da seguinte maneira: havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas de hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os direitos e valores em jogo, no estabelecimento de uma harmonização, que deve resultar numa ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja, busca-se o ‘melhor equilíbrio possível entre os princípios colidentes’;



g) na dimensão de peso e importância, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles, não se aplicando, tal como ocorre com as regras, o critério do tudo ou nada;



h) em todo caso, o princípio da proporcionalidade deve ser utilizado pelo operador do direito como meta-princípio, ou seja, como “princípio dos princípios”, visando, da melhor forma, preservar os princípios constitucionais em jogo.



 



Bibliografia



BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Almedina, Coimbra, 1994



BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2a ed. Saraiva, São Paulo, 1998



BOBBIO, Norbeto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 7a ed. Unb, Brasília, 1996



BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7a ed. Malheiros, São Paulo, 1998



ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999



FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos. Sérgio Antônio Fabris Editor, Brasília, 1996



GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 4a ed. Malheiros, São Paulo, 1998



________________________. Licitação e Contrato Administrativo. Malheiros, São Paulo, 1995



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KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4a ed. Martins Fontes, São Paulo, 1995, p. 248.



SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Celso Bastos Editor, São Paulo, 1999



SARLET, Ingo Wolfgang. Valor de Alçada e Limitação do Acesso ao Duplo Grau de Jurisdição. Revista da Ajuris 66, 1996



VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 3a ed. Malheiros, São Paulo, 1993



 



Notas



[1] VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 3a ed. Malheiros, São Paulo, 1993, p. 12.



[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4a ed. Martins Fontes, São Paulo, 1995, p. 248.



[3] Lembra-se que Kelsen negava o caráter de norma jurídica aos princípios de direito, apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 27. No entanto, “a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípios e as normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas as quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2a ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p. 141).



[4] apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 165.



[5] Cf. FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos. Sérgio Antônio Fabris Editor, Brasília, 1996. Defende este autor que “os direitos fundamentais podem ser entendidos como a concreção histórica do princípio da dignidade humana”.



[6] apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 165.



[7] Em função disso, CARLOS AYRES BRITTO distingue o que chama de princípios fundamentais e princípios “protofundamentais” (mais fundamentais que os demais, nominados na Constituição de 1988), para concluir que existem princípios fundamentais eternos e estáveis, sendo os protofundamentais eternos, e, portanto, insubmissos a disposição reformadora do legislador constituído (apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 155).



[8] Nesse sentido, BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Almedina, Coimbra, 1994. Muitas das implicações que se tem atribuído a este autor, acerca da possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais, é equívoca. Foge, porém, ao objeto desse trabalho analisar mais profundamente a teoria deste alemão. Para uma visão bastante clara do assunto, remetemos o leitor à obra de LUÍS ROBERTO BARROSO (Interpretação…, p. 188/198).



[9] A doutrina costuma dividir os conceitos de colisão e conflito, sendo que o primeiro (colisão) ocorreria entre os princípios; já o segundo (conflito), entre regras. Para os fins deste trabalho, utiliza-se indistintamente os termos conflitos e colisão.



[10] Apud BONAVIDES, Paulo. Curso…p. 460.



[11] Para um estudo aprofundado do tema: FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Sérgio Antônio Fabris Editor, Brasília, 1996



[12] O termo é de DWORKIN, apud SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Celso Bastos Editor, São Paulo, 1999, p. 44.



[13] Idem. Ob. Cit. p. 44.



[14] Eros Roberto Grau chama a colisão de princípios de antinomia jurídica imprópria



[15] apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 242.



[16] CANOTILHO, em seus estudos, tende a preferir a concordância prática à dimensão de peso e importância.



[17] FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão…p. 98



[18] O termo é de Konrad Hess.



[19] Valor de Alçada e Limitação do Acesso ao Duplo Grau de Jurisdição. Revista da Ajuris 66, 1996, p. 121.



[20] apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65



[21] apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 66.



[22] Até KELSEN, no auge da neutralidade ultra-ideológica contida na sua Teoria Pura do Direito, reconhece que o direito positivo oferece apenas um moldura na qual encontram-se inseridas várias possibilidades de aplicação: “a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma dela se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. (…) Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo” (Teoria Pura do Direito. Martins Fontes, São Paulo, 1995, p. 390).



[23] Nesse sentido, BARROSO: “A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do teto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que, normalmente, não vai além da literalidade, da história, do sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permitirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2a ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p. 256).



[24] GRAU, Eros Roberto. Licitação e Contrato Administrativo. Malheiros, São Paulo, 1995, p. 17.



[25] Pela teoria da substanciação, adotada por nosso Código de Processo Civil, a causa de pedir se divide em próxima (direito, ou seja, as razões jurídicas do pedido) e remota (os fatos que embasam o pedido).



Informações Sobre o Autor

George Marmelstein Lima

Juiz Federal Substituto.


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