Resumo: muito chama a atenção dos espectadores de jornais televisivos a vultosa gama de notícias envolvendo a divulgação de trechos de escutas telefônicas relativas a investigações criminais. Percebe-se, pois, que essa prática já se enraizou no sistema pátrio, ao arrepio dos princípios da Carta Magna, da legislação especial e em flagrante prejuízo da boa técnica de persecução estatal relativa às ilicitudes penais. Procurar-se-á, portanto, neste escrito, esclarecer-se a ilegitimidade dessa prática precipitada.
Palavras-chave: Lei nº. 9.296/96; escuta telefônica; persecutio criminis; imprensa.
Sumário: 1. Introdução; 2. A Lei nº. 9.296, de 24.07.1996, e suas especificidades proibitórias quanto à quebra do sigilo das investigações criminais; 3. A vedação constitucional à execração pública de pessoas objeto de investigações criminais; 4. A impropriedade de divulgação à imprensa das metodologias de investigação criminal utilizadas durante a persecutio criminis; e 5. Conclusão.
1. Introdução
É cediço que se estendeu pela imprensa nacional, como prática quase que diária, a divulgação de trechos de escutas telefônicas utilizadas pelas autoridades públicas incumbidas de frear ofensas aos bens juridicamente tutelados pelo Estado.
O que se pretende neste singelo e breve escrito é, tão-somente, com suporte na legislação específica e na Constituição Federal, chamar-se a atenção para a absoluta impropriedade de referidas práticas.
Com efeito, abordando-se a problemática por um prisma, vêem-se desrespeitadas garantias constitucionais e infraconstitucionais que, obviamente, inibem a execração pública do investigado. Por outro lado, analisando-se a problemática por um prisma distinto, mais afeto às técnicas de investigação criminal, também se deve exsurgir aos olhos do profissional e do estudioso que a divulgação das metodologias de investigação criminal, como a escuta telefônica, v.g., obviamente acaba por se mostrar contraproducente à boa gestão da persecutio, porquanto alerta o criminoso a não se utilizar mais daquele método ou ferramenta que fora detectável pelos órgãos estatais.
2. A lei nº 9.296, de 24.07.1996,[1] e suas especificidades para com a investigação criminal
As interceptações de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigações criminais e para a instrução processual penal, além de observação à Lei em comento, dependerão de ordem judicial e desenrolar-se-ão, deve-se frisar, sob segredo de justiça.[2]
Vê-se, pois, que, acertadamente, o legislador fez questão de deixar hialino, no primórdio do seu texto que regulamenta as hipóteses de interceptação telefônica, que ela deverá tramitar em segredo de justiça. E dentro dessa seara traçada pela legislação, a autoridade[3] incumbida pela investigação criminal deverá nortear todo o seu labor.
É certo que o deferimento pela autoridade judicial dessa medida extremada está condicionado a certos requisitos, tais como:
1. É necessário que haja indícios razoáveis da autoria ou de participação em infração penal;
2. A prova não pode ser composta por outros meios disponíveis; e
3. O fato investigado deve ser punido com pena de reclusão.
É interessante notar, por outro lado, que, quanto ao aspecto formal do procedimento policial, os autos relativos à interceptação devem correr em apartado aos autos principais do caderno apuratório (art. 8º, da Lei nº9.296/96), preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.
Ora, se isso é bem verdade, logicamente, dessa arte, é defeso à autoridade responsável pelas investigações provocar mal ainda maior à persecutio, qual seja, o de divulgar os resultados das gravações em sessões públicas de propagação nacional, por meio da imprensa televisiva, radiofônica ou jornalística.
Por sua vez, a apensação e conseqüente publicidade restrita das escutas aos autos somente poderá ocorrer imediatamente antes do relatório da autoridade, nas hipóteses de inquérito policial, ou quando da conclusão do processo ao juiz, relativamente ao despacho que decorre dos artigos 407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal.
Quando, por outro lado, as conversações interceptadas não servirem aos interesses legítimos da investigação criminal, estas deverão ser destruídas, mediante referendo judicial (art. 9º da Lei nº9.296/96).
Por fim, além dessas especificidades relativas às investigações criminais que ressaltam aos olhos do leitor em uma legislação especial que é composta por um número bastante restrito de dispositivos legais, e portanto que se mostra bem clara ao intérprete, é de suma importância ressaltar-se algo que está, ao que parece, absolutamente despercebido pelas autoridades públicas nacionais no que tange à vedação legal e constitucional de divulgação de resultados, parciais ou não, relativos às escutas telefônicas, mormente da forma como se está ocorrendo hodiernamente, em publicidades difamatórias e sensacionalistas em telejornais de grande audiência. Com efeito, reza o art. 10 da Lei em comento que constitui crime[4] a quebra do segredo de Justiça das escutas telefônicas, sem autorização judicial ou com “objetivos não autorizados em lei”.
Por certo, a divulgação, em canais de imprensa, de interceptações telefônicas objeto de investigações criminais não se coaduna, em nada, com os objetivos traçados pelo Legislador.
3. A vedação constitucional à execração pública de pessoas objeto de investigações criminais
Se é bem certo que o art. 5º da Constituição Federal permite, em hipóteses restritas, a violação do sigilo das comunicações telefônicas[5], também é bem certo que a própria Carta Magna impõe responsabilidades àqueles que fazem mau uso dessa exceção à regra[6].
Diante, pois, das revelações que se fazem no dia-a-dia aos órgãos de imprensa envolvendo trechos de interceptações telefônicas, resta-se saber a quem aproveita referida publicidade. Por certo, não vale à persecutio criminis, que em nada lucra com isso. A propósito, esta só vem a ser prejudica, como se verá no capítulo seguinte deste singelo escrito. E dentre os prejuízos que advêm dessa precipitada conduta publicitária e sensacionalista, o maior deles talvez seja a própria execração pública daquele que, sequer, foi alvo ainda de uma sentença penal condenatória.
Não se exige muito esforço intelectual, a fim de se perceber que a execração pública, o escárnio e horror a que esses sujeitos investigados são expostos à toda nação é, absolutamente, irremediável. Não há volta, ainda que o trânsito em julgado da sentença penal seja de cunho absolutório, e ainda que a própria imprensa, que destruíra a imagem do investigado, publicasse, agora, os fundamentos judiciais que o inocentaram.
A verdade é que, efetivados o sensacionalismo e crucificação prévios do indigitado autor, tudo sob os holofotes da imprensa cuja força é devastadora, o interesse pelo desenrolar da matéria, após a chama do seu sensacionalismo perder a intensidade, acaba caindo no esquecimento, ocasião em que a sedenta imprensa passará a focar, como de praxe, vorazmente, outro sucesso similar que lhe possa conferir audiência análoga àquela.
Como se disse acima, fato é que, mesmo sendo o autor inocentado posteriormente, ao final do processo penal, isso já não possuirá o condão de sensibilizar a qualquer pessoa que assistira o seu escárnio, talvez nem ao próprio investigado isso lhe valha algo, porquanto tudo que tinha ele a padecer já padecera, com tamanha execração que lhe fora, violenta e abruptamente, impingida.
A questão, afinal, tratada neste capítulo, em nada é referente à culpa ou à ausência de culpa do indigitado autor, mas à vedação legal e constitucional que impede o seu escárnio público, ainda mais de forma precipitada, durante investigações criminais. E se houvesse, ainda, alguma dúvida a respeito da ilegitimidade dessa imposição de execração não regulada por lei, vale lembrar que, mesmo com trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não está prevista dentre as hipóteses de penas[7] no sistema jurídico nacional outras que não as privativas de liberdade, restritivas de direito e a multa.
4. A impropriedade de divulgação à imprensa das metodologias de investigação criminal utilizadas durante a persecutio criminis
Reflito ainda, insistindo comigo mesmo, sobre qual seria a vantagem, necessidade ou conveniência de se lançar à imprensa televisiva, radiofônica ou jornalística, alguns trechos de interceptação telefônica obtidos junto a conversações mantidas entre investigados.
Certamente, não seria um afã dos propagadores em se mostrar à sociedade como investigadores eficientes e diligentes. Também não seria no sentido de uma falta de confiança deles no Poder Judiciário, onde, acreditando-se que haveria uma impunidade ao final do processo, proceder-se-ia, ao menos, então, a uma imposição prévia de pena de execração pública ao indigitado autor, embora não prevista no sistema legal. Também não seria, por óbvio, uma questão de sobreposição da vaidade humana ao interesse público, onde o próprio responsável pelas investigações preferiria, ao arrepio do sistema legal, mostrar-se aos holofotes da imprensa como um investigador de sucesso. Mas então, resta-se saber, qual seria o propósito dessas divulgações, tão corriqueiras de um lado e tão patentemente ilegítimas de outro, pois contrárias à Lei nº9.296/96 e a princípios basilares expressos em nossa Constituição Federal?
Deixo a resposta aos leitores, mas não sem antes ressaltar-lhes uma absoluta inconveniência técnica e prejudicial ao trabalha policial que de toda essa banalização de divulgações ilegais e inconstitucionais de escutas telefônicas advém. De efeito, mostra-se irretorquível afirmar-se que é contrário à boa técnica policial divulgarem-se, mormente à imprensa, as ferramentas que são utilizadas pelos investigadores durante a persecutio criminis. Certamente, essa prática, além de alertar os criminosos como um todo para a inconveniência de se fazer uso desses meios os quais se mostraram detectáveis pela Polícia e pelo Ministério Público, também prejudica, muitas vezes, o desenvolvimento do próprio processo de onde foram abstraídas particularmente as escutas telefônicas divulgadas à imprensa[8], já que os investigados, in casu, de imediato, assim que as escutas tornarem-se manchete, estancarão aquelas suas conversações de rotina.
5. Conclusão
Como se viu, a divulgação à imprensa de escutas telefônicas as quais se constituem objeto de investigações criminais constitui-se, não obstante isso se venha tornando prática ordinária hodiernamente, em conduta desvaliosa, a qual afronta vários comandos expressos da Lei nº9.296/96, configura-se em crime, à luz do art. 10 da Lei em epígrafe, além de ofender, estampadamente, princípios constitucionais consagrados no art. 5º da nossa Constituição Federal.
E como se não bastasse tudo isso, a flagrante ilegalidade e inconstitucionalidade das referidas divulgações ilícitas vem acompanhada, ainda, de uma característica absolutamente contraproducente e negativa, qual seja, a da não preservação de um segredo mínimo acerca das técnicas utilizadas pelo Poder público, a fim de garantir o sucesso de investigações criminais presentes e futuras.
Por fim, e é isso o que se pretende neste breve escrito, urge que a temática, por meio do prisma utilizado nesses comentários, chame a atenção não só das autoridades policiais e promotores responsáveis pelas interceptações telefônicas que estão sendo difundidas inadequadamente na imprensa nacional nos últimos tempos, mas também do Poder Judiciário e das corregedorias daqueles dois primeiros órgãos, a fim de que não se banalize, ainda mais, os comandos legais e constitucionais acerca dos quais já basta a vulgarização e o desrespeito promovidos por aqueles que não fazem parte do Poder Público incumbido de zelar, e não de ferir, o ordenamento jurídico nacional.
Notas:
[1] A Lei nº 9.296 de 24.07.1996 – DOU de 25.07.1996 – regulamenta o inciso XII, parte final, do artigo 5º da Constituição Federal.
[2] O “segredo de justiça” já vem expressamente determinado pelo dispositivo primeiro da Lei nº9.296/96.
[3] Consoante o art. 3º da Lei nº9.296/96, a interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: I – da autoridade policial, na investigação criminal; e II – do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.
[4] Art. 10 da Lei nº 9.296/96: constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, informática ou telemática, ou quebrar segredo de Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena – reclusão, de 02 (dois) a 04 (quatro) anos, e multa.
[5] Art. 5º, XII, da CF – É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma em que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
[6] Art. 5º, X, da CF – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
[7] O artigo 32 do Código Penal estabelece, com a redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984, as espécies seguintes de penas: ‘I – privativas de liberdade; II – restritivas de direitos; e III – de multa’.
[8] E isso que elas não deveriam ser noticiadas (divulgadas) sequer no próprio inquérito policial ou processo penal respectivo, sem ao menos antes satisfazer os requisitos legais insculpidos no art. 8º, parágrafo único, da Lei nº9.296/96.
Informações Sobre o Autor
Roger Spode Brutti
Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)