A importância do Inquérito Policial no Sistema Processual Penal

 “Certamente, existem princípios gerais que orientam a ação policial, normas jurídicas que pretendem enquadrá-la, receitas que, experimentadas no passado, se transmitem quase imutavelmente de uma geração a outra. Mas essas normas abstratas pesam menos que as lógicas de situação, e a maneira como as coisas são conduzidas no concreto “esquina da rua” é indissociável da personalidade daquele que age, das motivações e dos valores que o animam”. (Jean Claude Monet, Polícia e Sociedade na Europa, São Paulo, Edusp,  2001, p.130).


Os manuais doutrinários de Processo Penal, bem como a maioria dos estudiosos da área, definem o Inquérito Policial como sendo uma peça meramente informativa, destinada à apuração de uma infração penal e de sua autoria. Poucos se aprofundaram no assunto, projetando, assim, a nítida impressão de que referido procedimento investigativo não possui nenhum tipo de importância significativa para o sistema processual penal. Esquecem-se, no entanto, que a quase totalidade das ações penais em curso ou já transitadas em julgado, foram precedidas de um Inquérito Policial. Tal assertiva pode ser comprovada através de pesquisas junto a qualquer Comarca do nosso extenso território. Para tal, basta a verificação de que a denuncia oferecida pelo representante do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal publica incondicionada, inicia-se da seguinte maneira: “ Consta do incluso Inquérito Policial que no dia…, por volta das …., fulano de tal, seguida da exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias).


Verifica-se, assim, que a expressão “mera peça” deveria ser excluída dos livros doutrinários, já que, como é cediço, todas as provas produzidas dentro desse importante procedimento investigativo, são, na maioria das vezes, apenas repetidas em Juízo. Segundo Magalhães Noronha, o inquérito reduz a Justiça quase à função de repetidor de seus atos. Analisando o principio da persuasão racional ou do livre convencimento, constata-se que o Juiz não pode condenar o réu com base exclusivamente nas provas produzidas no Inquérito, salientando-se que isso não é possível, não por se tratar de uma mera peça informativa, mas sim em virtude de não estar presente o contraditório. Aliás, no que diz respeito a este principio, também conhecido por principio da bilateralidade da audiência, de onde se extrai o binômio: ciência e participação, talvez tenha chegado o momento para implanta-lo, como regra, nos autos de Inquérito Policial. O seu caráter inquisitivo transparece uma pseudo-impressão pejorativa de que a Polícia Judiciária produz provas de forma abusiva e contraria aos ditames da Lei. Nada mais justo de que abrir vistas ao Advogado da parte a quem esta sendo imputada a prática de uma infração penal para que ele, num primeiro momento, apresente argumentos em defesa de seu cliente. Ainda segundo renomado doutrinador “ não se pode de antemão repudiar o inquérito, como integrante do complexo probatório que informara a livre convicção do Magistrado. Claro que se a instrução judicial for inteiramente adversa aos elementos que ele contem, não poderá haver prevalência sua”. 


A finalidade do Inquérito Policial não é a de produzir a acusação de uma pessoa, mas sim reunir provas dos fatos, sempre na busca da verdade real. A Autoridade Policial, tida esta como o Delegado de Policia de carreira, Bacharel em Direito e aprovado em concurso público, nos casos de crimes de ação penal publica incondicionada, tem a obrigação de instaurar o competente Inquérito Policial, proceder as diligências preliminares constantes no artigo 6º do Código de Processo Penal, dar prosseguimento às investigações e por fim relatar tudo aquilo que foi realizado, encaminhando tal expediente a Juízo.  Dentro dessa fase pré-processual, várias são as providências a serem adotadas pela Autoridade Policial, dentre as quais se destacam as seguintes: requisição de exames periciais, representação pelo mandado de busca domiciliar, representação pelas prisões temporárias ou preventiva, indiciamento, representação pela interceptação telefônica, pela quebra do sigilo bancário, interrogatório do indiciado, oitiva da vitima, de testemunhas, de terceiras pessoas envolvidas.


Dada a importância dessa atividade de policia judiciária, não tem mais como sustentar que o Inquérito Policial é uma mera peça de informação. Ademais, cabe consignar que o Inquérito pode se iniciar de varias maneiras, dentre elas, através da lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, onde o Delegado de Policia, na condição de representante do Estado e, principalmente de garantidor da legalidade, deve analisar o caso concreto, adequá-lo ou não a uma tipificação criminal e, convicto do estado flagrancial, deve proceder à captura do indigitado autor do delito, cuja conseqüência imediata é a sua privação de liberdade.


Nota-se, assim, que nem toda aquela pessoa detida em flagrante, é conduzida ao cárcere. Nessa fase, a Autoridade Policial figura como um “juiz de fato”, servindo como um filtro, que tem por objetivo especial depurar os eventuais vícios ou irregularidades de uma ocorrência apresentada no calor dos acontecimentos. Analisada a tipificação, o próximo passo é verificar a pena abstratamente cominada aquele delito. Se tratar de uma infração de pequeno potencial ofensivo, ou seja, aquela em que a pena máxima não seja superior a dois anos, elabora-se, como regra geral, o termo circunstanciado. Nos demais casos, convicta do estado flagrancial, a Autoridade Policial terá que analisar se o delito é de iniciativa pública incondicionada, condicionada à representação ou privada. Nos dois últimos casos, só haverá lavratura do auto de prisão se essa for a vontade da vitima ou de seu representante legal, já que tanto a representação como o requerimento que devem ser apresentados pelo ofendido figuram como condição de procedibilidade. Constatada a pena em abstrato, a natureza do delito, o Delegado de Policia devera verificar se a infração penal é ou não passível de fiança nessa fase pré-processual. Assim, mesmo que lavrado o auto de prisão em flagrante, desde que se trate de crime afiançável na fase policial, ou seja, infração punida com detenção ou prisão simples, o autuado pode ser colocado em liberdade assim que exibir o valor respectivo arbitrado.


Doutrinariamente se tem discutido acerca da aplicação ou não do principio da bagatela dentro dessa fase policial, vez que não se justifica a movimentação da máquina estatal quando a lesão ao bem jurídico protegido é irrisória ou insignificante. Certamente deverá o Delegado de Policial, na condição de aplicador do Direito, fazer valer o bom senso, a equidade, podendo sim, mesmo diante da falta de aparato doutrinário, deixar de lavrar um eventual auto de prisão em flagrante em razão de um furto, por exemplo, de um aparelho de barbear ou uma caneta. Não há, nesses modestos exemplos, s.m.j, violação a nenhum bem jurídico capaz de levar alguém ao cárcere.


Outro ponto crucial diz respeito ao Delegado de Policia ter ou não “competência” para analisar situações fáticas de condutas excludentes de antijuridicidade quando da apresentação de uma ocorrência  concreta, notadamente se tratar-se de estado flagrancial. Novamente a doutrina processual penal se divide, preponderando a tese de que a autoridade policial deve instaurar o inquérito, já que a analise da antijuridicidade do fato só pode ser realizada no momento do oferecimento da denuncia ou quando do julgamento da ação penal. A doutrina mais moderna, no entanto, minoritária, vem entendendo que não seria caso de instauração de inquérito policial, primeiro em atendimento ao princípio da economia processual e também pelo fato de ter o delegado de policia capacidade jurídica para constatar, de plano, se o fato é ou não antijurídico. A título de exemplo, apontamos um caso de um individuo que adentra clandestinamente em uma residência e mediante grave ameaça consistente no uso de arma de fogo, anuncia um roubo, exigindo que os presentes fiquem privados da liberdade dentro de um cômodo. Durante a execução do referido crime patrimonial, tal indivíduo, ainda mediante grave ameaça e na presença de todos, exige que uma das vitimas, uma mulher, tire a sua roupa, com a intenção de manter com ela conjunção carnal. O marido, por sua vez, ao presenciar tal cena, avança contra o criminoso, toma-lhe a arma e dispara contra ele um tiro, causando-lhe a morte. Pergunta-se: Deverá a autoridade policial lavrar auto de prisão em flagrante por homicídio contra esse marido ? Levando-se em conta a posição majoritária da doutrina e jurisprudência, a resposta será positiva, já que a legitima defesa de terceiros não pode, segundo essa corrente, ser analisada pela autoridade policial.


Outra peculiaridade importante do Inquérito Policial diz respeito ao seu caráter sigiloso. Segundo artigo 20 do Código de Processo Penal: “ A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.  Se a finalidade essencial do aludido procedimento investigativo é a de apurar a infração penal, apontando a autoria e a materialidade, nada mais lógico de que as diligencias realizadas nesse sentido sejam de caráter sigiloso. Alias esse sigilo deve ser visto sob dois aspectos: o primeiro analisando a busca da autoria e o segundo levando-se em consideração a intimidade do suposto autor, que está protegida pelo principio do estado de inocência, segundo o qual ninguém poderá ser considerado culpado antes de sentença condenatória transitada em julgado. Sabemos, no entanto, que esse sigilo não pode ser estendido ao Juiz, ao Promotor de Justiça e também ao Advogado, conforme dispositivo previsto no Estatuto da OAB.


Quanto ao caráter inquisitivo, leciona o doutrinador Julio Fabrini Mirabete que: “ constitui-se em um dos poucos poderes de autodefesa que é reservado ao Estado na esfera da repressão ao crime, com caráter nitidamente inquisitivo, em que o réu é simples objeto de um procedimento administrativo. Ainda que a regra direcione para essa característica da inquisitiva, nada mais salutar, dentro do próprio inquérito policial, a abertura da possibilidade da parte acusada contraditar argumentos e provas da parte contrária. Partindo do principio que já no inquérito, que é uma peça de investigação preliminar, busca-se a verdade real, justo seria abrir a oportunidade do imputado apresentar sua defesa. Levando-se em conta ainda que do principio do contraditório, como já dito, surge o binômio: ciência e participação, nota-se que na fase pré-processual, existem alguns atos típicos deste principio que se exteriorizam através do interrogatório policial e pela expedição da nota de culpa quando da lavratura do auto de prisão em flagrante. No interrogatório, é dado ao investigado a chance de apresentar sua versão sobre os fatos, podendo, inclusive, quedar-se inerte.  Já com a nota de culpa, documento essencial a formalização da prisão, o Delegado de Polícia cientifica o autor do delito sobre o motivo da privação da sua liberdade, o nome da autoridade policial responsável por essa prisão, dentre outras informações.


Segundo a exposição de motivos do vigente C.P.P, no que diz respeito a importância do inquérito : “ é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstancias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até então despercebido”.


Por fim, cabe consignar que o Inquérito Policial nasceu oficialmente através da Lei n.º 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto n.º 4.824, de 22 de novembro do mesmo ano, cujo artigo 42, assim dispôs: “ O inquérito policial consiste em todas as diligencias necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstancias e dos seus autores e cúmplices e deve ser reduzido a escrito”.  Segundo o professor da Academia de Policia e Delegado Roberto Mauricio Genofre *, a criação do Inquérito Policial foi saudada por Frederico Marques como: “uma das instituições mais benéficas de nosso sistema processual, apesar de críticas infundadas contra ele feitas ou pela demagogia forense, ou pelo juízo apressado de alguns que não conhecem bem o problema da investigação criminal”. 


 


Bibliografia:

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002.

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 17ª ed. Atual. São Paulo: Atlas, 2005.

NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 4º ed. São Paulo: Saraiva, 1971. 


Informações Sobre o Autor

Paulo Henrique da Silva Carvalho


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