Resumo: O objetivo deste artigo é discutir critérios metodológicos para a adequada abordagem da criminalidade econômico-financeira, evidenciando as dificuldades sentidas na investigação econômica dessa realidade delitiva, sobretudo em razão da invulnerabilidade estrutural conferida aos seus atores e da cifra oculta da criminalidade. Dentro desse propósito, avança criticando a utilização de métodos estatísticos para a análise desse fenômeno. Analisa a macrocriminalidade a partir da teoria econômica do delito e da teoria da escolha racional. Ademais, a autora apresenta os apontamentos para uma aproximação metodológica defendida por Raúl Cervini. Defende uma prática metodológica plural, assim como a criação de uma cultura transdisciplinar que possibilite a compreensão da crise do paradigma do Direito Penal liberal, anunciando, ao abrir das portas de um novo milênio, a chegada de um tempo de revolução científica, nos moldes kuhnianos.
Palavras-chave: metodologia, criminalidade econômico-financeira, cifras ocultas, teoria econômica do crime e pluralidade metodológica.
Résumen: El objetivo del artículo es discutir criterios metodológicos para una adecuada abordaje de la criminalidad económica-financiera, evidenciando las dificultades sentidas en la investigación económica de esa realidad delictiva, sobretodo, en razón de la invulnerabilidad estructural conferida a sus actores y de la cifra oculta de la criminalidad. Dentro de este propósito avanza, criticando la utilización de métodos estadísticos para el análisis de estos fenómenos. Analiza la macrocriminalidad a partir de la teoría económica del crimen y de la teoría de la elección racional. Además, la autora presenta los apuntes para una aproximación metodológica defendida por Raúl Cervini. Defiende una práctica metodológica plural así como la creación de una cultura transdisciplinar, que posibilite la comprensión de la crisis de paradigmas del Derecho Penal Liberal, anunciando, al abrir de las puertas de un nuevo milenio, la llegada de un tiempo de revolución científica, en los moldes Kuhnianos.
Palabras Clave: metodología, delincuencia económico-financiera, teoría económica del crimen y pluralidad metodológica.
Sumário: 1. Introdução. 2. A inadequação das estatísticas criminais e a problemática das cifras ocultas da criminalidade. 3. A racionalidade econômica das escolhas do delinquente e a análise econométrica do comportamento criminoso. 4. A proposta de Raúl Cervini. 5. Em defesa de uma prática metodológica plural e de uma composição transdisciplinar. 6. O paradigma do Direito Penal Liberal 7. Conclusão. Bibliografia.
“Quanto maior for o progresso em conhecimento, mais claramente discerniremos a vastidão de nossa ignorância” Karl Popper
1. Introdução
Seguindo a lógica da vida, o Direito Penal de bases clássicas, produto da ilustração, tem sofrido contínuas alterações que abalaram a firmeza e a segurança de sua dogmática de sustentação, notadamente quanto à macrocriminalidade econômica, posta em prática pelos altos estratos socioeconômicos, no curso da atividade funcional, produzindo perdas imensas à coletividade.
Seriíssimos problemas de ordem prática, como a questão da eficácia das normas penais que disciplinam a tutela penal de interesses difusos (ordem econômica e sistema financeiro), conduziram a especulações doutrinárias, intranquilidades filosóficas e, conseguintemente, a problemas teóricos.
Refoge ao objetivo do presente trabalho a análise do problema da flexibilização do Direito Penal Liberal e dos seus princípios de garantia em nome de suposta eficácia na intervenção punitiva e, bem assim, a investigação – de cariz sociológico – sobre a enorme quantidade de leis penais formalmente válidas disciplinando a criminalidade econômico-financeira no Brasil – cujos potenciais sujeitos ativos são membros da classe dominante –, mas que, por razões conjunturais, normalmente, não se revestem de qualquer eficácia, já que a impunidade é, quase sempre, a regra.
O foco do artigo é, precisamente, evidenciar quão incerta é, nessa seara, a busca de critérios metodológicos válidos para a abordagem de tal criminalidade. As dificuldades de trabalhar com a pesquisa empírica são muitas e enormes, porque o Direito Penal Econômico não pode ser presidido por uma lógica de investigação matemática, pretendida pela ciência moderna. O conhecimento não chegará pela quantificação, que não é modelo representativo do real.
Ensina-nos Boaventura de Sousa Santos que o modelo de racionalidade que presidiu a ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI, mas apenas no século XIX se estendeu às ciências sociais emergentes.
Refere o autor como consequência da primazia da matemática, nesse período, que o método científico estava assentado na redução da complexidade e na noção de que seria cientificamente irrelevante aquilo que não pudesse ser quantificável. Ou seja, “conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As quantidades intrínsecas do objecto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir”.[1]
Arremata Boaventura de Sousa Santos que a ciência moderna veiculou leis como “um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas”.[2]
Com o ocaso da primazia das explicações meramente causais do comportamento criminoso – seguidoras do modelo mecanicista das ciências naturais –, é preciso aprender regras metodológicas e princípios epistemológicos que não conduzam a simplificações vazias, sempre redutoras da realidade.
O método não pode ser uma camisa de força que amarre outras formas de olhar e construir a compreensão do mundo.
Abandonadas as ideias de ordem e estabilidade do mundo, quem garantirá a sanidade da resposta, se até mesmo os processos contínuos da física clássica, arrogante senhora das suas certezas, deram lugar à física quântica e a seu mundo do descontínuo? Se a física aceitou o paradoxo nos estudos da microrrealidade, como esperar certeza em relação à correta abordagem da metodologia científica no Direito, único elemento que tem resistido ao próprio naufrágio das civilizações?
Se mesmo a física, ciência dura, renunciou às suas certezas, demonstrando a impossibilidade de conhecer com precisão absoluta tanto a posição quanto a velocidade de uma partícula, ao admitir não ser possível prever com exatidão como se comportarão os fenômenos quânticos, não se pode esperar estaticidade no mundo social. Não se ignora a ação do observador sobre o objeto observado, o lugar de onde observa, a interpenetração sujeito-objeto.[3]
A mecânica quântica e as implicações filosóficas mais imediatas do princípio da incerteza, descoberto por Heisenberg,[4] alteraram profundamente a teoria do conhecimento. Se, antes, na física newtoniana, era possível ignorar a presença do observador; agora há consciência de sua presença e necessária intromissão quando da descrição da natureza das coisas. É íntima a conexão entre o observador e o sistema observado.
“If one wants to be clear about the meaning of the words ‘position of an object’, for example an electron (in a given reference frame), one has to specify definite experiments with which one intends to measure the ‘position of the electron’; otherwise these words have no meaning”.[5]
Henrique Fleming, ao analisar o princípio da incerteza, recorda-nos a impossibilidade de separar completamente o observador do resto da natureza, haja vista que o distúrbio causado pela observação é comparável aos próprios fenômenos que estão sendo observados, demonstrando a razão de a mecânica quântica ir mais longe do que as teorias que a antecederam, porque “não apenas diz como a natureza procede, mas é capaz de se manifestar sobre o que a natureza pode ser, e o que não pode”.[6] Conclui:
“Voltando por um momento à análise da determinação da posição de um elétron por meio de um fóton, vemos que a impossibilidade de determinar acuradamente a posição e o momento de um elétron está ligada ao fato de que a Natureza nos oferece como o seu mais sensível instrumento para esse gênero de medida o fóton. Ora, a teoria de Heisenberg contém em si as limitações à acurácia dessa medida, e a prevê.”[7]
Muitos anos antes de Heisenberg, em Portugal, a poesia de Fernando Pessoa já lamentava a incerteza do viver, o mundo fragmentado, a inexistência de um caminho certo a seguir:
“[…] Tudo é incerto e derradeiro
tudo é disperso, nada é inteiro
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a hora!”[8]
Gregório de Matos, o poeta baiano conhecido por muitos como “Boca do Inferno”, ao enfatizar a “Inconstância das cousas do mundo”, confundido em suas dúvidas, indagações e incertezas, também revelou “a firmeza só na inconstância”.
“[…] Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
e é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.”[9]
Notadamente, em relação às ideias penais, “a hipótese do determinismo mecanicista é inviabilizada, uma vez que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que a dividimos para observar e medir”.[10]
É preciso redimensionar as perspectivas. A realidade que se desnuda e se insinua pede uma outra abordagem. A visão nítida do fenômeno da macrocriminalidade econômica, que se quer reprimir ou prevenir, pressupõe, muito além do conhecimento das características e manifestações dos crimes de colarinho-branco – white-collar crime –, reflexões sobre a transcendência da escolha dos métodos para o tema, consabidamente complexo.
Ressalte-se, por oportuno, a definição de crime de colarinho-branco proposta por Edwin Sutherland, que designou os delitos cometidos por pessoa de respeitabilidade e alto status social no curso de sua ocupação.
A conferência magna proferida por Sutherland acerca da dissertação The white-collar criminal, significou uma ruptura com o paradigma convencional da criminalidade, e causou uma reviravolta na criminologia do século XX, sobretudo na superação do positivismo criminológico, ao explicar o fenômeno da criminalidade a partir da negação de teorias criminológicas que apontavam como causa da delinquência fatores bioantropológicos, ou condições psicopatológicas ou sociopatológicas do indivíduo. Representou, indubitavelmente, um marco histórico no estudo da delinquência econômica, sobretudo por destacar nas suas análises um específico grupo de criminosos, compostos por indivíduos de classe social elevada e de posição privilegiada de poder na sociedade, que justamente por serem mais poderosos, econômica e politicamente, escapavam das teias de controle social. Sutherland enfrentou problema de crucial importância para a criminologia: a forma de distribuição da conduta desviante entre as diversas camadas sociais.
Verificou que tais crimes eram, frequentemente, ignorados pelas informações estatísticas constantes dos órgãos oficiais, já que não seriam alvo da persecução criminal. Não se alcançavam, à época, tais condutas, pois as investigações cingiam-se à criminalidade aparente, ou seja, uma vasta gama de infrações que, não obstante sua existência e lesividade social, não figuravam nas estatísticas oficiais. Destacou, nesse sentido, a existência de uma cifra oculta da criminalidade. Ainda que a profunda alteração científica ocasionada com o advento de sua teoria não tenha suplantado o paradigma etiológico – assentado na busca das causas do delito e em uma pretensão correcionista mediante a qual, descobrindo-se as causas do delito, sua redução ou eliminação importariam, também, na supressão ou redução do fenômeno criminal –, foram erigidas as bases para o desenvolvimento do paradigma da reação social.
A compreensão da criminalidade econômica não pode ser vislumbrada a partir de uma relação puramente causal, como se houvesse um encadeamento consequencial de teorias e fatos. A questão é como verificar a logicidade ou ilogicidade que unem cada peça desse mosaico policromático.
2. A inadequação das estatísticas criminais e a problemática das cifras ocultas da criminalidade
Afirma Karl Popper ser equivocado o foco do naturalismo ou cientificismo ao fixar a necessidade de as ciências sociais aprenderem das ciências naturais o que deve ser o método científico. Exemplifica que tal naturalismo equivocado firma exigências de observações e medidas, como se vê na coleta de dados estatísticos, seguida pela indução a generalizações e à formação de teoria[11].
Evitando-se uma pesquisa com cariz matemático, própria das ciências naturais, evitaremos a abordagem dentro de um espectro quantitativo, pois as estatísticas são instrumentos, por excelência, dos criminólogos positivistas. Nessa seara, os dados estatísticos, por vezes, viciam a análise, que se restringe ao conhecimento daquilo que chegou, em razão de condicionalismos vários, a determinada instância formal de controle. É enorme a cifra oculta da criminalidade (discrepância existente entre a criminalidade real e a criminalidade conhecida). Não podendo ser mensurada a real extensão das violações aos interesses difusos, resta largo espaço para especulações e conjecturas.
Certo é que a criminalidade registrada pelos dados oficiais, em termos puramente estatísticos, não é refletora ideal da criminalidade real. Há inúmeras condutas que, em tese, se amoldariam às descrições delitivas, mas que não chegam às instâncias formais de controle penal.
As estatísticas criminais não são fontes adequadas nem dignas de fidedignidade para a investigação científica da criminalidade de colarinho-branco. Há dificuldade na percepção individual dessa criminalidade não convencional em face da natureza supraindividual do bem jurídico violado, como servem de exemplo a ordem econômica, o sistema financeiro, as relações de consumo, a ordem tributária e o meio ambiente. Grande parte das violações a esses interesses juridicamente protegidos não chegam ao Tribunal e quando isso ocorre, torna-se difícil precisar a eficácia da acusação pública.
Há um enorme déficit de execução da função declarada pela dogmática penal e do seu discurso de pretensa neutralidade ideológica (Direito Penal igualitário) e um excesso de realização de formulações meramente retóricas e simbólicas.
Nesses casos, a vitimização é difusa e, justamente por não personificar dor ou se experimentar sofrimento gerado pela lesão, raramente haverá estímulo para mobilização para levar o caso ao conhecimento das autoridades competentes para persecução criminal. São muitas as vítimas, mas estas não têm consciência de terem sido alvo de uma ação delituosa. Não há, portanto, uma vítima direta, identificável. As pessoas, em geral, não “sentem” que foram vítimas de um crime econômico.
Nessa modalidade delitiva, chamada na doutrina anglo-saxã de crime of the suites, conhece o crime quem dele participa, ao contrário do crime de rua (crime of the streets), facilmente perceptível em face da ostensividade da conduta, a forma direta e até violenta como é praticado.
O sentimento de inadequação dos dados estatísticos e certa aversão a tal instrumento para abordagem revelaram-se úteis para discutir métodos alternativos de apreciação dos crimes de colarinho-branco. Demais disso, decorre, em grande medida, de um novo olhar lançado ao estudo do crime: o movimento do labeling approach, que surge como Escola da Reação Social. A partir dos anos 1960, ganhou relevo a perspectiva interacionista do fato delitivo, na qual a explicação da conduta desviada é indissociável da reação social, instituindo uma abertura aos estudos dos processos de criminalização, que corrigiu, irreversivelmente, os rumos da criminologia.
A identificação do desvio como resultante do controle social, que cria a criminalidade (caráter constitutivo do controle social), representa um paradigma epistemológico distinto do etiológico (preocupado com o delinquente e as causas do seu comportamento), a saber: a Reação Social (orientada ao estudo dos processos de criminalização levados a efeito pelas instâncias de controle social, que têm por objetivo controlar e coibir os desvios).
A abordagem conferida pela Escola da Reação Social desmistifica as considerações essencialistas ou imanentistas do delito, isto é, o crime não possui um substrato ontológico, uma conduta não é criminosa de per si, mas é resultante de uma criação das instâncias estatais de controle jurídico-penal (natureza definitorial do delito). Assim, o controle social desponta como variável independente na criação da conduta desviada.
São questões fundamentais contemporâneas: quem considera a conduta como desviada? Como é construída a criminalidade? Por que determinadas pessoas são selecionadas pelos órgãos de controle social? Como se excluem determinadas condutas do processo de seleção?
Howard Becker, um dos mais autênticos representantes do labelling approach, assegura que
“[…] a desviação não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma consequência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções a um ‘delinquente’. O desviado é aquele a quem esta etiqueta foi exitosamente aplicada, e segue ‘a conduta desviada é a conduta que as pessoas etiquetam como tal’.”[12]
A partir dessa perspectiva é lícito supor que os órgãos formais responsáveis pelo controle social são levados à condição de fatores criminógenos, mormente em face do seu funcionamento seletivo e discriminatório.
Resta-nos indagar em que medida confluem o comportamento dos white-collars e o labelling approach. Há quem aponte a falência da Teoria do Etiquetamento, justamente porque não seria capaz de explicar a delinquência de colarinho-branco, uma vez que sobre esses delinquentes não recairia a proclamada estigmatização decorrente da prática delitiva.[13]
Entendemos que tal compreensão importaria numa estreiteza de raciocínio inadmissível, pois a criminalidade de colarinho-branco corrobora a tese de que o delinquente é produto de uma construção social. Criminoso é aquele que a sociedade estigmatiza como tal. Por óbvias razões, sobretudo, em virtude do status socioeconômico do delinquente e da respeitabilidade de que desfruta na sociedade, as chances de ser rotulado ou etiquetado como criminoso são mínimas.
Não se pode olvidar, também, que os processos de criminalização estão adstritos, também, à visibilidade da conduta desviante, que, nesses casos, é escassa.
Corroborando com essa linha de entendimento, preceitua Costa Andrade:
“A descoberta de delinqüentes que apesar de o serem preservam a integridade da sua imagem de respeitabilidade, continuam a liderar a sociedade e a simbolizar os seus valores e virtudes, tem valido à perspectiva interacionista como reforço da tese de que delinqüente é, afinal e apenas, quem a sociedade estigmatiza como tal.”[14]
Merece referência a forma distinta como Sutherland e teóricos do labelling enxergavam o fenômeno. Enquanto o primeiro entendia que a conduta criminosa aprendida era, em si mesma, portadora de um desvalor, mesmo quando não era passível de criminalização, os segundos afirmavam que o crime não é uma realidade ontológica, não havendo, portanto, uma qualidade negativa ínsita à conduta delituosa.
Assim, se de uma parte Sutherland propugnava o endurecimento quanto às sanções alusivas ao white-collar crime, por ser este mais gravoso que o crime comum – não se admitindo a omissão e as inúmeras lacunas do Direito Penal –, por outro lado os teóricos da etiquetagem não poderiam apresentar semelhante modelo de controle, já que conheciam o efeito criminógeno da pena: as cerimônias de degradação do condenado, a etiquetagem e a interiorização da qualidade de delinquente pelo sujeito (self-fulfilling prophecy).[15]
Em razão dos estudos desenvolvidos pela Escola da Reação Social e da Criminologia Crítica, partilhamos do entendimento de que as estatísticas não podem dimensionar adequadamente a ocorrência dos crimes econômicos. Apesar do atual estardalhaço midiático em derredor de tais condutas, não há, por óbvias razões, uma preocupação política com a investigação desses crimes, até porque os atores sociais, perpetradores de toda engenharia e engenhosidade delitiva, não têm qualquer interesse em subministrar informações úteis à pesquisa.
Se o jornalismo tem contribuído para aumentar o grau de percepção social desses delitos, desnudando escândalos econômicos, financeiros e políticos, não é possível erigir os casos veiculados pela imprensa e pelos meios de comunicação em geral como amostra representativa da realidade.
A criminalidade econômica, por ser altamente estruturada e organizada, não comporta uma lógica de investigação artesanal, puramente intuitiva. Para além dos limites da capacidade cognitiva do elemento humano e suas naturais dificuldades interpretativas para fazer as devidas conexões de dados e informações na tentativa de processar e identificar os delitos, não há como afastar a incorporação de sistemas de tecnologia modernos que venham dar suporte ao controle efetivo da delinquência, sem, contudo, violar direitos e garantias individuais do acusado.
Falta, então, uma base empírica sólida para pesquisa. A dificuldade de quantificação desses crimes foi apontada.
Fundamentado na obra Basic methodological aspects of corruption measurement: lessons learned from the literature and the pilot study, publicada por The Hungarian Gallup Institute, Nuno Vieira de Carvalho aponta três maneiras científicas de avaliar e medir a corrupção, a saber: a medição das percepções sociais em relação à corrupção, a medição da incidência das atividades corruptas – quer a corrupção tentada, quer a corrupção esperada – e o uso de estimativa de peritos, de que serve como exemplo o Índice da Transparência Internacional.[16]
Explica o autor que a percepção social diz respeito à representação que a sociedade faz da corrupção, sendo uma medida indireta da corrupção, certamente influenciada pelas narrativas midiáticas e apresentando o risco de que os resultados obtidos sejam produto muito mais de razões afetivas e cognitivas do que da experiência mesma de corrupção. A segunda metodologia é a medição da incidência do crime, a partir da inquirição dos atores sociais envolvidos na cena delitiva, potenciais corruptos e corruptores, em setores mais permeáveis ao delito, como o funcionalismo público. Por fim, a avaliação dos peritos refere-se à construção de índices, indicadores para traduzir a realidade criminal. O exemplo clássico é a metodologia empregada pela TI – Transparência Internacional, com o IPC – Índice de Percepção da Corrupção.[17]
Nuno Vieira de Carvalho critica tal metodologia a partir dos seguintes argumentos.
O primeiro argumento é que o IPC é construído a partir de vários inquéritos e, apesar de a TI optar pela adoção de um índice composto supostamente para permitir a comparação estatística com outros países, é questionável se estariam medindo o mesmo fenômeno, pois em se tratando de estudos independentes, além da utilização de amostras e metodologias diferentes, o próprio conceito de corrupção pode variar, não havendo clareza na noção de dimensão do crime de corrupção, pois não há distinção entre corrupção administrativa e política, por exemplo.
Como segundo argumento, apresenta a diversidade de técnicas de amostragem. Não raro haverá inconsistências, haja vista que as respostas podem variar de acordo com a inquirição de peritos, o público, o nível de rendimentos ou até o background cultural. Por fim, argumenta que o IPC toma o fenômeno da corrupção como unidimensional, sem distinguir atos diferentes, inclusive quanto à danosidade (por exemplo, grande e pequena corrupção). Conclui afirmando que o IPC pode ser preconceituoso em relação aos países em desenvolvimento, apontando, a título ilustrativo, que a mesma pontuação obtida em lugares distintos deu lugar a classificação diferente. Em 2000, Portugal e Japão obtiveram 6,4, ficando ex aequo em 23.º lugar.[18]
3. A racionalidade econômica das escolhas do delinquente e a análise econométrica do comportamento criminoso
A Teoria da Prevenção Situacional está intimamente relacionada com a Teoria da Escolha Racional. Ambas partem da compreensão de que na gênese do delito há uma ponderação entre os custos (desvantagens) e os benefícios (vantagens) alusivos ao seu cometimento. Dessa maneira, diminuindo as oportunidades para a prática delitiva e aumentando a certeza de consequências gravosas dela decorrentes – como a detenção e o severo sancionamento –, seria possível um controle de criminalidade mais eficaz.
Diz-se Teoria da Escolha Racional porque o criminoso tem a possibilidade de eleger, racionalmente, o caminho que quer seguir, não sendo o comportamento delitivo produto de condicionalismos outros. O delinquente age porque é livre para escolher e ponderar os possíveis ganhos e perdas com a conduta criminosa. É, justamente, em virtude disso que Cláudia Maria Cruz Santos a considera uma teoria especialmente adequada à criminalidade de colarinho-branco porque
“Os white-collars são, por definição, os agentes vistos como mais frios e racionais, predadores movidos pelo intuito de lucro e não pelas humanas paixões. Eis a razão pela qual, segundo cremos, as teorias da escolha racional e da prevenção situacional parecem asssentar-lhes como uma luva: a sua ponderação dos custos e dos benefícios associados à infração poderá dissuadi-los da prática da mesma, caso as oportunidades sejam menores e as possibilidades de detenção e sancionamento maiores.”[19]
Questionar-se-ia se a complexidade das condutas, a pouca ou nula visibilidade desses delitos, a responsabilização difusa e a dificuldade de persecução penal não seriam para o delinquente escolher racionalmente pela conduta delituosa. A esta indagação responde Cláudia Maria Cruz Santos, apontando-nos
“a razão pela qual nos parece claro que o aumento do risco de detecção e sancionamento, provocado pela diminuição das oportunidades, pode funcionar com um importante estímulo para o aprimoramento das normas pelos potenciais criminosos de colarinho branco.”[20]
A teorização proposta por Sutherland a propósito dos crimes de colarinho-branco serviu de estopim para a deflagração de uma série de questionamentos que, até então, haviam sido sufocados pelo obscurantismo do positivismo cego e acrítico.
A teoria econômica do crime enxerga o delito como ato racional. Os indivíduos elegem trilhar a senda do crime porque os benefícios de tal atividade seriam compensadores. Em 1968, ao elaborar a Teoria da Escolha Racional, Gary Becker[21] compreendeu crime como atividade econômica, apesar de ser ilegal. Para Becker “crime is an economically important activity or industry, notwithstanding the almost total neglect by economists”.[22]
A atividade criminosa seria, então, uma decisão tomada racionalmente, a partir da análise dos custos e benefícios advindos da prática delitiva, assim como os indivíduos ponderam quando da tomada de outras decisões de natureza econômica. O criminoso só se disporá a praticar o delito se a utilidade e os benefícios por ele esperados com o crime (recompensas ou custo oportunidade) excederem a utilidade que ele obteria se dedicasse seu tempo e recursos em atividades lícitas. Nesse sentido, a certeza da prisão ou da eficiência do sistema punitivo faria diferença no processo decisório de delinquir ou não.
Nessa perspectiva, são os custos e benefícios que irão determinar as decisões individuais de participar ou não de uma atividade ilegal. O criminoso econômico capta recursos, investe, assume o risco da atividade e, obviamente, dela espera lucro, seguindo a lógica empresarial. Os incentivos de ordem econômica são fatores determinantes para a eleição da atividade criminosa.
Se essa escolha for mais custosa para o criminoso, como, por exemplo, quando for mais concreta a possibilidade de o criminoso ser alcançado pelas instâncias de controle social ou, até mesmo, a probabilidade real de ser condenado pela justiça criminal a cumprir uma pena, ele avaliará se, realmente, “vale a pena” o envolvimento com tal atividade. Destarte, uma contribuição relevante da análise econômica do crime diz respeito à relação delito-punição como fator determinante da taxa criminal. Dentro do arcabouço teorético proposto por Becker, outra variável relevante no processo decisório de participar ou não da atividade criminosa seria o custo moral do crime. Esta variável, contudo, é de difícil mensuração.
A criminalidade é, nessa linha de intelecção, um problema econômico, que legitima o acentuado papel que a ciência econômica e os economistas têm desempenhado no estudo da criminalidade, sobretudo pelo prisma do multimencionado princípio da racionalidade do potencial delinquente. O fato de as condições econômicas interferirem na conformação da realidade criminal afigura-se como hipótese inafastável.
Com invulgar frequência os economistas têm assumido a cena e o controle da investigação da criminalidade econômica, sendo de referir a maior habilidade – decorrente do conhecimento técnico – demonstrada na coleta e manipulação de dados, possibilitando uma investigação mais consistente.
Afirma-se que se pode proceder à investigação empírica do crime a partir de diversas variáveis socioeconômicas, entre as quais indicamos a renda, o nível de escolaridade do agente, a pobreza, o desemprego, o analfabetismo, a desigualdade social, a faixa etária e a pertinência a determinada classe social ou status econômico.
Ao tratarem das controvérsias empíricas e apresentarem as dificuldades inerentes à investigação econômica do crime, Marcelo Justus dos Santos e Ana Lúcia Kassouf reproduziram as dificuldades empíricas mais comuns, extraídas de trabalho de Andrade e Lisboa:
“[…] a falta de uma medida adequada dos retornos da criminalidade; o erro de medição nas taxas de crimes em função do elevado número de sub-registros; e a difícil mensuração da probabilidade de punição, uma vez que as variáveis comumente usadas estão potencialmente sujeitas a uma forte correlação com o aumento da criminalidade ou ainda sofrem de erro de mensuração.”[23]
Marcelo Justus dos Santos e Ana Lúcia Kassouf, depois de apresentarem as lacunas na literatura nacional, no que tange à investigação econômica, propõem como agenda de pesquisa: o estudo de uma relação específica como os efeitos da escolaridade sobre o crime, questões relativas à reincidência criminal, o ciclo de vida do comportamento criminoso, as condições do mercado de trabalho brasileiro sobre a criminalidade, os efeitos da interação social sobre o comportamento criminoso e a delinquência juvenil.[24]
O delinquente econômico, como qualquer empresário, assume o risco de sua atividade. Não se pode ignorar sua racionalidade pessoal, a relevância dos fatores econômicos nas suas escolhas e seus significativos custos em termos sociais quando da investigação científica da criminalidade de colarinho-branco. Maximizados os custos da atividade criminosa e minimizados os seus lucros, valerá o velho adágio popular de que o crime não compensa, sendo possível o direcionamento da implementação de políticas de prevenção à macrocriminalidade.
Vale frisar que a abordagem econométrica, como a realizada por Gary Becker, é viabilizada por pesquisas quantitativas, realizadas nos Estados Unidos da América, notoriamente conhecidos pelas altas tradições na pesquisa científica e pela fartura de dados e informações que instrumentalizam tal metodologia. Todavia, frisamos, oportunamente, as ressalvas já apresentadas ao longo desse trabalho quanto ao sub-registro presente nos dados oficiais brasileiros, em face da cifra oculta da criminalidade econômica, bem como a indisponibilidade ou escassez de dados sobre a criminalidade e as sanções impostas.
Muito além da representação numérica e das análises estatísticas, o investigador, necessariamente, deverá estudar essa problemática em um contexto mais amplo, a partir do pensamento econômico e da compreensão do crime quer como problema estrutural e conjuntural, quer como fenômeno integrativo da própria realidade econômica.
4. A proposta de Raúl Cervini
Os progressos tecnológicos e o consequente desenvolvimento das comunicações ocasionados pelo desenvolvimento global forjaram condições ideais para a crescente macrocriminalidade, que tem avançado do ponto de vista técnico e apresentado condutas delituosas cada vez mais racionais, especializadas e sofisticadas, que escapam das malhas do controle penal. As condutas são planificadas do ponto de vista estratégico e tático e, geralmente, revestem-se da aparência de legalidade. Trata-se de delitos de elevada danosidade material e social, porque lesam bem jurídicos de titularidade difusa, afetando, por conseguinte, os interesses de toda a comunidade. Os danos são macroscópicos. Além do alto custo que representam para cada pessoa como entidade individual, projetam-se sobre toda uma economia nacional, podendo, inclusive, ocasionar a quebra de confiança em dado sistema econômico.[25]
Para além da necessidade, já apontada, de conhecer os mecanismos extremamente complexos de funcionamento da economia, Cervini propugna uma descrição das características que singularizam os desvios dos mecanismos econômicos, “a través del análisis clínico-sintomatológico de aquellas aristas que definen a las desviaciones macroeconómicas, reflexionando en el sentido que ‘por sus frutos lo conocerás’”.[26] Tal enfoque metodológico trabalha com uma análise tomográfica – tomando emprestadas as expressões da ciência médica – de tais mecanismos, para detectar a vulnerabilidade de todo o sistema. Isto porque os níveis abusivos dos desvios estão, em maior ou menor medida, condicionados aos níveis de eficácia do controle social formal.
Os métodos de análise clínico-sintomatológica da macrocriminalidade econômica e a análise tomográfica dos mecanismos econômicos também foram propostos como adequada metodologia para a investigação da particular dinâmica e características dos crimes de colarinho-branco, nomeadamente da teoria econômico-financeira desenhada ao controle penal. Os aportes metodológicos constam de trabalho desenvolvido pelo uruguaio Raúl Cervini,[27] intitulado Macrocriminalidade econômica: apontamentos para uma aproximação metodológica.
No que toca à análise clínico-sintomatológica, diz o autor que deverá estudar os sintomas exteriores da macrodelinquência, de acordo com sua natureza estrutural, mas sem se limitar a uma visão meramente descritiva e periférica do fenômeno, que requer uma análise global. Posteriormente, o fenômeno da extradelinquencia será abordado a partir do funcionamento dos mecanismos econômicos.
Raúl Cervini aponta a análise tomográfica como outra metodologia possível para a abordagem da macrodelinquência econômica. Esse método consiste em responder a uma indagação central à investigação: Quando começa o abuso? O método concreto de análise variará de acordo com o setor da atividade estudado, sua dinâmica e características. Procede-se a uma análise comparativa das relações entre os mecanismos econômicos envolvidos. “Funciona como un tomógrafo médico que por medio de sucesivas fotos va siguiendo el proceso hasta detectar la desviación por comparación”.[28] O penalista uruguaio sintetiza seu método de trabalho da seguinte forma:
“El primer paso sería visualizar el conjunto de variables macroeconómicas que componen los diferentes nichos o sectores de la actividad económica del país; Cumplida esa etapa, procede definir, en una segunda instancia, los diferentes nichos, canchas o ‘layers’ a analizar (ejemplo: industria de la vestimenta, mercado de cambios, etc.); Seguidamente (tercera etapa) se define cada ‘jugador’ (empresa) que integra la rama o nicho de la economía; y La cuarta e fundamental instancia consiste en analizar las relaciones de esos mismos jugadores entre sí, principalmente las relaciones entre insumos y productos, es decir, a dónde van los productos.”
Assevera que tais metodologias não são contrapostas, mas antes complementares e confluentes, por permitem abordar uma mesma realidade estrutural a partir de perspectivas diferentes, isto é, os sintomas sociopenais e os próprios mecanismos econômicos. Enquanto o primeiro método serve para definir a existência do fenômeno e aferir as disfunções do controle formal em todos os seus aspectos (legislativo, administrativo e judicial), o segundo é idôneo para detectar cientificamente, em caráter preventivo, o possível exercício abusivo ou mecanismos superiores da economia.
Ao considerar a transcendência de seu critério metodológico, Raúl Cervini diz que:
“Esta alternativa permite superar la particular mutabilidad, apariencia de legalidad absoluta, falta de transparencia, el carácter múltiple, anónimo e incontrolable de las víctimas y la eventual transnacionalización de las actividades involucradas en los casos de macrodelincuencia económica. Posibilita un acotamiento racional y efectivo de los márgenes de invulnerabilidad que desde la perspectiva tradicional caracterizan a estas formas de extradelincuencia.”
Tal metodologia serve, principalmente, às observações técnicas dos crimes de lavagem de dinheiro, delitos contra o sistema financeiro nacional, crimes tributários, crimes contra as relações de consumo e crimes previdenciários.
5. Em defesa de uma prática metodológica plural e de uma composição transdisciplinar
A ampliação do objeto de estudo do Direito Penal a domínios antes inimagináveis, para, supostamente, dar conta de novas e mais variadas tutelas, exige um conhecimento não determinístico e total que transcenda a estreiteza do puro e estéril dogmatismo. Tal conhecimento científico manda o velho Direito Penal – arrogantemente fechado em si e cheio de certezas – abrir suas portas a outros saberes sobre o mundo.
Em face da complexidade assumida pela vida jurídica, comungamos com o entendimento de Boaventura de Sousa Santos de que é “hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos”.[29]
Contemporaneamente, descortina-se um novo cenário onde se abandonam os ideais absolutos e as reivindicações universalistas da modernidade. Impõe-se uma nova atitude epistemológica que possibilite a superação dos desafios de uma sociedade que reclama para si não mais a condição da modernidade, mas antes a condição pós-moderna. O conhecimento, como infraestrutura de uma sociedade extremamente dinâmica, deve ser operativo sem gerar tantos efeitos colaterais… O método para se chegar a uma compreensão comum do mundo é a interação, a abertura para o diálogo.
Apesar de havermos assistido a uma evolução do pensamento criminológico, que ocorreu no ritmo das (r)evoluções históricas, as instituições jurídicas não foram capazes de absorver tais ideias porque, por vezes, resistiram ao espaço do diálogo.
Se a razão de ser do Direito é a resolução de problemas e a satisfação de necessidades individuais e coletivas, mais do que nunca o discurso deve estar conectado com a prática, encontrando ressonância na realidade social. Na matéria aqui abordada, especialmente, isso só é possível mediante o intercâmbio de conversações, uma investigação interdisciplinar entre a criminologia, a dogmática jurídico-penal e a política criminal, a filosofia, a sociologia e a economia. A criminalidade econômico-financeira deve ser tratada numa perspectiva interacionista.
À pluralidade de questões levantadas com a problematização teórica e empírica deve corresponder um modelo aberto no qual as explicações e a concretização do Direito Penal estejam pautadas no acúmulo de conhecimentos alcançado com o desenvolvimento das teorias criminológicas. Entendemos, portanto, que a fragmentação do conhecimento ou o seu reducionismo deve ser rechaçada, de plano, já que inviabiliza a busca de soluções ao multifacetado fenômeno do white-collar crime.
Na obra Constitutive criminology: the maturation of critical theory, Stuart Henry e Dragon Milovanovic recusam a redução do crime a um plexo de microcausas ou de macroestruturas. Esses estudiosos defendem um discurso de pacificação criminológica, em vez do conflito e da oposição.[30]
Cláudia Maria Cruz Santos admitiu a pouca permeabilidade da criminologia ao pensamento pós-moderno,[31] referindo que, particularmente a Criminologia Construtiva revelou tal movimento filosófico, quando se contrapôs ao modernismo e entendeu que a teoria não é capaz de refletir plenamente a realidade, já que fornece apenas uma imagem limitada, parcial e mediada pela linguagem.[32]
Depois de explicar o poder à luz do pensamento de Foucault – para quem o poder está disperso e indeterminado, no campo social, não guardando associação com a classe social ou com as macroestruturas –, a escritora portuguesa questiona se o fato de os white-collars partilharem das formas de discurso dominantes não os colocará numa posição de privilégio em sua relação com as instância de controle.[33]
A abordagem feita por Boaventura de Sousa Santos no livro Um discurso sobre as ciências, notadamente sobre a tolerância discursiva como manifestação da pluralidade metodológica, vai ao encontro da perspectiva aqui defendida. A composição transdisciplinar e individualizada é essencial à personalização do trabalho científico. O diálogo com outras áreas do pensamento, não necessariamente jurídicas, na tentativa de proceder a uma configuração de estilos construída segundo os critérios e a imaginação pessoal do autor, torna mais atraente o trabalho, sem, contudo, perder em cientificidade.
A pesquisa sobre a delinquência econômica remete, velada ou explicitamente, a uma análise ampla da sociedade, de sua conjuntura econômica, cultural, filosófica, política e jurídica, considerando o Direito como Ciência Social Aplicada, bem como a um enfoque particularizado da investigação proposta. Consubstancia, portanto, uma abordagem transdiciplinar e crítica, muito mais que descritiva, da (des)ordem circundante, evitando uma visão segmentada e inteiramente fracionada da realidade, para compreender esse fenômeno delitivo que se apresenta como mosaico policromático.
Aqui se agiganta o perigo, sempre presente na elaboração de trabalhos pretensamente científicos, dos erros grotescos veiculados pelas generalizações acríticas quando o investigador, não podendo desvencilhar-se de si mesmo, potencializa e até caricatura as suas posições ideológicas.
Karl Popper, em sua obra Lógica das ciências sociais, refere que o início da empresa científica é sempre um problema e, dessa forma, a observação torna-se algo como um ponto de partida somente se revelar um problema. Isto é, a pesquisa científica não parte de observações, mas “de problemas práticos ou de uma teoria que se chocou com dificuldades, ou seja, que despertou expectativas e depois as desiludiu”.[34] A observação, todavia, está animada por expectativas teóricas. Não há possibilidade de observação pura. “Todas as observações são impregnadas de teorias; não existe observação pura, desinteressada, ou livre de teoria.”[35]
A mente do pesquisador, portanto, não é tábula rasa, desconectada de uma memória cultural, sem pressupostos, longe de suspeitas, desvencilhada de hipóteses. Assim, Giovanni Reale e Dario Antiseri explicam que Popper considera o observativismo um mito: “O observativismo é mito filosófico, já que a realidade é que nós somos tábula plena, um quadro-negro cheio dos sinais que a tradição ou a evolução deixaram escritos”.[36]
Segundo Popper, teórico do falibilismo na epistemologia, o método da ciência consiste em tentativas experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas por severa crítica, ressaltando a necessidade de submeter à prova as suas hipóteses, valendo-se do método de experimentação e eliminação do erro, “que inclui severos testes ou exames empíricos; isto é, tenta enquadrar, na medida do possível, as fraquezas das teorias, e tenta refutá-las”.[37]
Como temos dito, o trabalho de investigação não está desconectado do horizonte hermenêutico do investigador. Ao interpretar, o mundo é construído. A investigação não é exata nem segura. É ingenuidade pueril, ilusão atroz, a crença na tradução objetiva da realidade exterior; não só pelos mitos, pelas metáforas, pela polissemia, antes pelo eu e vivências de quem fala, que não é sufocado no ato da comunicação.
É que o leitor não faz morada no mundo das ideias, não caminha nas abstrações metafísicas; como homem concreto, tem necessidades e comprometimentos reais e função social, também.
Inúmeros prejuízos ao labor científico podem decorrer de determinismos de qualquer espécie, particularmente no que toca à criminalidade das elites. É preciso não incorrer em preconceitos às avessas no tocante à criminalidade de colarinho-branco, campo fértil para se cair na tentação de realizar uma nova “caça às bruxas”, ou de serem esses criminosos “os novos perseguidos”, simplesmente por ocuparem determinado status social ou posição privilegiada.
Que papel desempenha o poder econômico na criminalidade? Existe uma relação necessária e lógica entre poder econômico e privilégio na administração da justiça criminal? As instâncias de controle social agem, velada ou explicitamente, como aliadas desses criminosos? Os criminosos de colarinho-branco de hoje podem ser considerados os lombrosianos de ontem? Certo é que as generalizações são insuficientes e causam empeço à busca de soluções mais racionais, menos precipitadas, não preconceituosas….
No trabalho intitulado La investigación científica: su estrategia y su filosofía, Mário Bunge apregoa que cada método se torna relevante para alguma etapa específica da investigação científica de problemas de certo tipo. Merece referência a reflexão do autor, para quem
“Un método es un procedimiento para tratar un conjunto de problemas. Cada clase de problemas requiere un conjunto de métodos o técnicas especiales. Los problemas del conocimiento, a diferencia de los del lenguaje o los de la acción, requieren la invención o la aplicación de procedimientos especiales adecuados para los varios estadios del tratamiento de los problemas, desde el mero enunciado de éstos hasta e control de las soluciones propuestas.”[38]
Mario Bunge, apesar de defensor da causalidade, tem consciência do papel limitado do causalismo no conhecimento científico, admitindo a impossibilidade de que todo conhecimento humano seja passível de submeter-se à esfera científica, bem assim a compreensão de que o método científico não é infalível nem autossuficiente. De qualquer modo, o método científico e a finalidade à qual se aplica (conhecimento objetivo do mundo) constituem, segundo pensa, a diferença que existe entre a ciência e a não ciência. Para o autor, não há que se falar em um modelo único da realidade como um todo, senão em conjunto de modelos parciais:
“[…] tanto cuantas teorías tratan con diferentes aspectos de la realidad, sino también de la heterogeneidad y la profundidad de nuestro instrumental conceptual. La investigación no arranca de tales visiones sintéticas de pedazos de realidad, sino que, llega a ellas mediante análisis racional y empírico.”[39]
Para Bunge o enfoque científico – constituído pelo método científico e pelo objetivo da ciência – é o que de melhor se dispõe.
“Así pues, la investigación científica no termina en un final único, en una verdad completa: ni siquiera busca una fórmula única capaz de abarcar el mundo entero. El resultado de la investigación es un conjunto de enunciados (fórmulas) más o menos verdaderos y parcialmente interconectados, que se refieren a diferentes aspectos de la realidad. En este sentido es la ciencia pluralista. […] La unidad de la ciencia no estriba en una teoría única que lo abrace todo, ni siquiera en un lenguaje unificado apto para todos los fines, sino en la unidad de su planteamiento.”[40]
A título meramente exemplificativo, Mário Bunge enuncia algumas regras, segundo ele “muito óbvias”, do método científico, entre as quais se lê:
“Someter las hipótesis a contrastación dura, no laxa. […]; No declarar verdadera una hipótesis satisfactoriamente confirmada; considerarla, en el mejor de los casos, como parcialmente verdadera. […] e Preguntarse por qué la respuesta es como es, y no de outra manera: no limitarse a hallar generalizaciones que se adecuen a los datos, sino intentar explicarlas a base de leyes más fuertes.”[41]
Reconhece o autor que essas regras estão muito longes de ser consideradas infalíveis e de não necessitarem um posterior aperfeiçoamento, advertindo que não devemos esperar que o método científico substitua a inteligência por um mero paciente adestramento. É que a metodologia é capaz de dar indicações e subministra de fato meios para evitar erros, mas não pode suplantar a criação original, nem sequer todos os erros.[42]
Destarte, partilhamos da ideia defendida por Boaventura de Sousa Santos na obra Um discurso sobre as ciências, de que a produção do conhecimento no paradigma emergente é relativamente imetódica, constituindo-se a partir da pluralidade metodológica, sendo de assinalar que “cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação do método fora do seu habitat natural”.[43] Não se identifica um estilo unidimensional, pois “o seu estilo é uma configuração de estilos construída segundo o critério e a imaginação pessoal do cientista”.[44]
6. O paradigma do Direito Penal Liberal
Trilhando a senda em busca de adequada investigação científica sobre a delinquência econômico-financeira, especial consideração merece a epistemologia pós-popperiana, notadamente o pensamento esposado no livro A estrutura das revoluções científicas, de Thomas S. Kuhn. Diz ele que a comunidade científica se constitui de teorias por ele denominadas paradigmas. Ensina: “Com esse termo quero indicar conquistas científicas universalmente reconhecidas, que por certo período fornecem um modelo de problemas e soluções aceitáveis aos que praticam em certo campo de pesquisas”.[45]
A compreensão dos paradigmas é imprescindível para adquirir os critérios que irão orientar a eleição dos problemas científicos e a escolha das soluções possíveis. No que atine à criminalidade de colarinho-branco, faz-se mister a ampliação dos horizontes do conhecimentos produzidos pelo Direito Penal Liberal, produto da ilustração, para dar conta de um novo modelo societário que demanda um novo paradigma, uma nova conformação para o controle das novas modalidades delinquenciais.
Aquele patamar básico de conhecimentos reunidos pelo Direito Penal de bases clássicas (antigo paradigma), dando suporte conceitual e instrumental aos problemas de determinado momento histórico, mostra-se agora insuficiente para a tutela de bem jurídico de feição supraindividual. Percebe-se a sua inadequação e a necessidade de ruptura com o modelo anterior.
O problema é que, ainda, não se pode renunciar ao antigo paradigma de feição eminentemente garantista, uma vez que não se firmou nenhum novo modelo respeitador dos direitos e garantias fundamentais e, ao mesmo tempo, eficaz no combate à criminalidade econômica para substituí-lo a contento. Vivenciamos uma fase de transição, já que alguns dogmas do Direito Penal estão sendo postos em dúvida, entre os quais aquele que versava sobre a impossibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica. O Direito Penal Liberal e seus princípios estão sendo desfocados.
Paulatinamente, estão sendo abandonadas as teorias que antes bastavam à explicação do fenômeno criminal, e renasce a discussão filosófica sobre os próprios fundamentos dessa ciência e, até mesmo, a busca de entendimento sobre uma metodologia adequada. Segundo a concepção kuhniana, cuida-se da crise do paradigma que abre espaço à ciência extraordinária.
“A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras.”[46]
São sintomas de uma transição da pesquisa normal para a extraordinária: “a proliferação de articulações concorrentes, a disposição de tentar qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao debate sobre os fundamentos […]”.[47]
Em matéria penal essa ruptura não pode operar de forma drástica e imediata em razão dos princípios constitucionais do Direito Penal.
Já se vislumbram alguns mecanismos de ruptura. Já não se enxerga o Direito Penal da mesma maneira.
Agigantam-se as contradições internas dentro do sistema e já se sente que a forma como se tem tratado a criminalidade econômico-financeira não é adequada. Começa-se a mudar a forma de perceber o Direito Penal. É preciso olhá-lo de outra perspectiva.
Para o desenvolvimento da ciência jurídico-penal parece haver a necessidade de um paradigma distinto. Seria o momento propício para uma rotura revolucionária?
Os paradigmas do Direito Penal Clássico têm sido desafiados, indubitavelmente. Permitiremos uma nova maneira de ver a realidade?
Ainda somos prisioneiros do velho paradigma e, em geral, olhamos com desconfiança as tentativas de sua substituição. É possível flexibilizar as bases clássicas do Direito Penal? É possível deixar o novo nascer, quando o velho ainda está bem vivo?
Não está descartada a possibilidade de a transferência de um paradigma para outro ser produto de uma moda intelectual, de mais uma imposição lógica ou de um triunfo intelectivo de uma teoria nova sobre uma predecessora, como se vê na lamentação de Max Planck: “uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus opositores e fazendo-lhes ver a luz, e sim muito mais porque os seus opositores acabam por morrer e cresce uma nova geração a ela habituada”.[48]
A dificuldade está em encontrar soluções equilibradas, isto é, um diálogo possível entre a eficácia na prevenção, a repressão dessas condutas criminosas altamente lesivas ao interesse societário e o mais profundo respeito aos direitos fundamentais do acusado e as garantias inerentes à vivência de um Estado Democrático.
Deve-se ter em linha de consideração que as novas modalidades criminosas demandam, por seu modus operandi e por suas peculiaridades, um tratamento jurídico diferenciado, mas que não pode importar na desconstrução irracional de todo um sistema de garantias conquistados ao longo da evolução histórica das ideias penais.
Se é certo que no Estado Democrático de Direito devemos presumir a correção das escolhas dos legisladores penais, democraticamente eleitos, também é certo que não há nenhuma garantia de sua competência para fazer funcionar racionalmente as categorias da dogmática jurídica penal no tocante à criminalidade contemporânea.
Há o risco de irracionalidade, de precipitação, de excessos quando se oferecem respostas aos clamores, expectativas, esperanças e emoções várias depositadas, paradoxalmente, no Direito Penal, na eterna ilusão de segurança…
Encontrar os limites do inevitável e irreversível processo de flexibilização das bases clássicas do Direito Penal é mais um desafio a ser superado, sobretudo na sociedade já fraturada por tantas contradições, como esta em que nos foi dado viver…
A proliferação de articulações concorrentes, a disposição de tentar qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao debate sobre os fundamentos são sintomas de uma transição da pesquisa normal para a extraordinária.
A crise foi instalada, mas não se consumou. Não há qualquer novo paradigma estruturado e sistematizado, como referencial com capacidade de ser adotado em sua substituição. Para Gramsci, “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, surge uma grande variedade de sintomas mórbidos”.[49]
Concluímos com o pensamento de Kuhn, quando recordou-nos que “rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência. Esse ato se reflete não no paradigma mas no homem. Inevitavelmente ele será visto por seus colegas como o carpinteiro que culpa suas ferramentas pelo fracasso”.[50]
Há o perigo de aniquilarmos nosso objeto de estudo, sem nada propor em seu lugar. Destruir, pura e simplesmente, sem pensar opções novas e melhores de edificação não é científico nem sensato. É preciso conhecer o direito posto no sistema jurídico abordado e suas tradições antes de pensar em mudá-lo. É preciso conhecer para se conformar ou transformar.
7. Conclusão
No entreabrir das portas do século XXI, se os processos contínuos já foram substituídos pelos saltos quânticos, se o determinismo deu lugar às probabilidades, se as incertezas perturbam o espírito humano em lugar da tranquilidade entorpecedora das certezas, não se pode esperar uma abordagem metodológica monista.
O Direito Penal está mudando a cara. Está mudando, também, a forma de cometimento dos crimes. A propósito, refletiu Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança. Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança”.[51] A natureza cambiante da ciência jurídica nos convoca à seguinte indagação: deve mudar a forma de reação às práticas delitivas contemporâneas?
O crime enquanto construção social não pode ser captado como peça solta de um mosaico em que podemos distinguir e medir cada parte isoladamente e cada cor insulada como se cada peça contivesse por si mesma logicidade interna, desvinculada dos demais fatos sociais, notadamente da economia. A dogmática seca não nos dá a compreensão dos processos. Não basta conhecer cada peça do mosaico; antes disso se deve perscrutar quem o construiu, como foi feito, qual o fim do artífice, aprender, em síntese, sua lógica constitutiva.
Há crimes invisíveis, há cifras ocultas, há interesses que não aparecem no discurso oficial e há intervenções simbólicas não transparentes. Há peças propositadamente malcolocadas. Há debates que fogem do foco. Há opções de enquadramento da realidade. Há opções de metodologia.
Por falar em colarinho-branco, por tratar do crime, por chorar a crise, por cansar do crime, por buscar o certo e saber que o caminho é incerto, canto e desperto:
“Neste país de manda-chuvas
cheio de mãos e luvas
tem sempre alguém se dando bem
de São Paulo a Belém
Pego meu violão de guerra
pra responder a essa sujeira
e como começo de caminho
quero a unimultiplicidade
onde cada homem é sozinho
a casa da humanidade
Não tenho nada na cabeça
a não ser o céu
não tenho nada por sapato
a não ser o passo[…]”.[52]
Informações Sobre o Autor
Juliana Pinheiro Damasceno e Santos
Mestra em Direito Público pelo Programa de Pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal da Bahia-UFBA. Pós-graduada em Ciências Criminais e em Direito do Estado (bolsista) pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia. Graduada em Direito, com láurea acadêmica, pela Universidade Federal da Bahia. Professora substituta de Direito Penal da graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador e professora convidada da Pós-graduação em Ciências Criminais do JusPodivm. Autora do livro \”Limites constitucionais à iniciativa do juiz no processo penal democrático\”. Autora de diversos capítulos de livros jurídicos e de artigos científicos publicados em periódicos especializados, inclusive com trabalho apresentado em reunião científica, com publicação em anais, além de ser palestrante em eventos jurídicos. Advogada criminalista.